TRANSPORTE MARÍTIMO
CONTRATO DE TRANSPORTE
CONHECIMENTO DE EMBARQUE
Sumário

1.No contrato de transporte de mercadorias por mar o conhecimento de carga ou de embarque (ou bill of lading) constitui o instrumento documental com que normalmente se formaliza o contrato de transporte, podendo assumir três modalidades: nominativo, à ordem ou ao portador.
2.No caso de conhecimentos de embarque nominativos não existe qualquer obrigação legal de o transportador condicionar a entrega da mercadoria à apresentação dos originais dos respectivos conhecimentos de embarque.
3.A não ser que as partes tivessem convencionado que a entrega da mercadoria ao destinatário dependia da apresentação dos originais do conhecimento de embarque, o facto de o comprador não ter pago o preço da mercadoria não constitui fundamento para o vendedor responsabilizar o transportador.
(A.S.A.G.)

Texto Integral

TEXTO INTEGRAL:

I – C…, Ldª,
demandou
M…, S.A.,
e, mediante posterior intervenção principal provocada,
M…., S.A. (GENEVA),
pedindo a condenação a da primitiva R. e, a título subsidiário, a condenação da R. Interveniente no pagamento da quantia de € 106.071,40, com de juros moratórios vencidos e vincendos desde a data de entrega das mercadorias até integral pagamento.
Alegou que incumbiu a R. M… (P…) – …, S.A., de providenciar o transporte marítimo e a entrega de determinadas mercadorias a um cliente sedeado no Togo e que a entrega das mercadorias em questão dependeria da entrega do original do conhecimento de embarque. Todavia, a R. não observou as instruções recebidas da A., tendo entregue a mercadoria ao destinatário sem que este lhe apresentasse o original dos conhecimentos de embarque ou outros documentos.
Por esse facto a A. encontra-se desembolsada da quantia de € 106.071,40 correspondente ao preço da mercadoria vendida e não paga pela compradora.
 
A R. M… (…) –…, S.A., contestou a pretensão da A. alegando que é apenas agente de navegação e que não assumiu perante a A. qualquer obrigação de fazer transportar e entregar as mercadorias dos autos, sendo o transporte efectuado pela sociedade M…, S.A. (GENEVA).
Requerida pela A. a intervenção principal de M…, S.A. (GENEVA), para efeito de eventual condenação subsidiária no pedido formulado na petição inicial, esta apresentou contestação na qual, além de impugnar a existência de quaisquer condições especiais de entrega das mercadorias, alegou ainda que a A. não contratou pessoalmente o transporte dos autos com qualquer das demandadas.

A R. M… (…) –…., S.A., foi absolvida do pedido.
A acção foi julgada parcialmente procedente quanto à chamada MSC, S.A. (GENEVA), sendo condenada no pagamento da quantia de € 997,60.

Apelou a A. a título principal, concluindo que:
a) Está provado que a P…., Ldª, agiu em representação da A., identificando esta como sua representada e carregadora das mercadorias antes da emissão dos conhecimentos de embarque pela R, pelo que o contrato foi celebrado entre a Interveniente e a Autora;
b) A Interveniente entregou irregularmente as mercadorias à destinatária Fairway sem que lhe fossem entregues os originais dos Conhecimentos de Embarque, sem cuidar de saber se esta já se encontrava legitimada para exigir a sua entrega;
c) Nos termos do disposto no n° 4 do art. 8° do Dec. Lei n° 352/86, o transportador não deve entregar a mercadoria a quem não se apresente munido de um dos dois conhecimentos originais, e é tão-somente pela apresentação de um deles que o transportador pode fazer a prova do adimplemento do dever de entrega da mercadoria por si transportada.
d) A Interveniente, violando a sua obrigação de não entregar a mercadoria sem a prévia exibição e entrega de um dos Conhecimentos originais, não cumpriu o contrato pontualmente, sendo responsável por reparar o dano causado à vendedora das mercadorias dos autos correspondente ao preço das mercadorias que deixou de receber;
e) A limitação legal da responsabilidade prevista na Convenção de Bruxelas tem em vista os danos na mercadoria transportada e não as responsabilidades derivadas do cumprimento defeituoso do contrato de transporte de mercadorias por mar, não sendo aplicável ao caso a limitação legal da responsabilidade prevista na Convenção de Bruxelas.

A Ré Interveniente M…, S.A. (GENEVA) contra-alegou.
Além disso, interpôs também recurso subordinado, onde conclui que:
A. A resposta ao quesito 15º sobre a intervenção da P… como representante da A. não encontra qualquer suporte na prova documental e testemunhal produzida, devendo ser modificada a resposta para “não provado”;
B. De qualquer modo, pertencendo à A. o ónus de provar a referida matéria, havendo dúvidas, deverá ser dado como não provado, por força do disposto no art. 346° do C.C., in fine.
C. A alteração da resposta ao quesito 15°, nos termos acima indicados, determinará a absolvição da chamada do pedido, dado que, nesse caso terá de se considerar que entre a A. e a Interveniente não foi estabelecida qualquer relação contratual.
D. Além disso, ao ponderar na sentença a resposta dada ao quesito 15°, foi desconsiderado o disposto no art. 264°, n°s 1 e 2, do CPC, já que a A. não articulou tal facto;
E. Acresce que a venda efectuada pela A. foi na modalidade FOB, competindo ao comprador celebrar o contrato de transporte e pagar o frete marítimo, pelo que se a P… representou alguém, foi a referida destinatária e nunca a A., que não tinha quaisquer obrigações ao nível da contratação do transporte;
F. Nas condições FOB, a entrega da mercadoria tem lugar na origem e não no destino, o que significa que a entrega da mercadoria à compradora Fairway ocorreu em Portugal, no preciso momento em que a P… a entregou ao agente da chamada para embarque, não podendo a A. responsabilizar a Interveniente pela entrega livre da mercadoria no destino, quando, de acordo com as condições de venda acordadas, foi ela quem procedeu a essa entrega na origem;
G. Além disso, considerando que o conhecimento de embarque que titulou o transporte dos autos é um conhecimento nominativo, indicando o beneficiário final, sem que seja negociável, a Interveniente apenas tinha de se certificar que quem se apresentou no destino a reclamar a mercadoria correspondia ao beneficiário identificado no conhecimento, não estando a entrega condicionada à apresentação do respectivo original.
H. O tribunal a quo nunca poderia desconsiderar o clausulado contratual ao abrigo do qual foi realizado o transporte dos autos, tanto mais que a A. não logrou provar a transmissão à chamada de quaisquer instruções especiais de entrega susceptíveis de derrogar as disposições contratuais escritas inseridas no conhecimento de embarque;
I. Deste modo, numa interpretação a contrario sensu do clausulado do conhecimento de embarque resulta que, sendo este nominativo, o transportador pode entregar as mercadorias independentemente da apresentação do respectivo original.

A. A. contra-alegou em relação ao recurso subordinado.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Delimitando a matéria de facto provada e não provada.
1. Pretende a Ré Interveniente M…, S.A. (Geneva) que se modifique a resposta ao quesito 15º, considerando-se “não provado” que a P…, empresa transitária, tenha agido no contrato de transporte em representação da A.
Na sua tese, a resposta positiva que foi dada não encontra suporte na prova produzida, decorrendo, ao invés, da prova testemunhal que tal empresa negociou e acordou em nome próprio todas as condições do transporte e entregou o contentor fechado e selado para embarque, nunca tendo feito qualquer referência à A. As instruções com vista ao preenchimento do conhecimento de embarque, das quais consta como carregador a P…, como agente da A., teriam sido enviadas no próprio dia do embarque e alguns dias depois de o contrato estar fechado. Assim, a A. só teria tido conhecimento da identidade do transportador quando a P…. lhe entregou o conhecimento de embarque.
De todo o modo, havendo dúvidas e pertencendo à A. o ónus de provar aquele facto, deveria ser dado como não provado, por força do disposto no art. 346° do CC.

2. Não se reconhece razão à R. apelante subordinada.
A decisão da matéria de facto encontra-se devidamente motivada, mostrando-se essencial o apoio obtido nos documentos que foram analisados e que, aliás, encontram correspondência nas regras da experiência.
É verdade que as diversas testemunhas inquiridas referiram que os contactos com vista à celebração do contrato de transporte foram feitos exclusivamente entre a empresa transitária P…. e a 1ª Ré, ou seja, a agência de navegação que representava a transportadora. Mas estranha-se que uma entidade que, como a R. Interveniente, exerce a actividade de transportes marítimos venha invocar este relacionamento formal para se furtar àquilo que é das regras da experiência, ou seja, que, na grande maioria dos casos, os contratos de transporte são combinados entre empresas de intermediação e de preparação dos carregamentos para embarque, sem que daí decorra que sejam essas as partes contratantes.
Como empresa transitária, a P…. não tinha de invocar formalmente, em todos os momentos que antecederam a celebração do contrato, em nome de quem agia, sendo bastante, de acordo com as regras e usos próprios do sector, a análise da documentação que antecedeu a conclusão do contrato.
Ora, no caso concreto, a preparação do transporte revela bem que o interesse que estava subjacente ao contrato de transporte não era da empresa transitária P….o, assim se compreendendo que no fax que remeteu à agência de navegação que representava a transportadora (fls. 248) tenha solicitado, para efeitos de preenchimento do conhecimento de embarque, a indicação da denominação social da A. no lugar em que competia identificar o carregar ou o expedidor, surgindo a indicação da transitária P…. apenas como sua agente (“as agents only”).
Por conseguinte, mantém-se a resposta positiva ao quesito 15º.

3. Matéria de facto provada:
1. A Ré Interveniente M…. S.A. (GENEVA) dedica-se ao transporte internacional marítimo de mercadorias – al. B).
2. A R. M…. (PORTUGAL) –…., S.A., encontra-se matriculada na …Secção da CRC de Lisboa sob a ficha nº …e tem por objecto social a actividade de agente de navegação, sendo agente, em Portugal, da R. Interveniente M…., S.A. (GENEVA) - al. A) e 10º.
3. A A. dedica-se, com escopo lucrativo, à confecção de artigos têxteis em estabelecimento comercial e industrial – 1º;
4. Em 19-8-02, a propósito das mercadorias dos autos, foram emitidos os conhecimentos de embarque cujos originais constam a fls. 244-246 – al. C).
5. Antes do embarque, as mercadorias foram consolidadas num contentor de 20 pés com o nº MSCU 1.015.866 – al. D).
6. A mercadoria foi entregue à R. pela P…, que agiu representação da A., identificando-a, antes da emissão dos conhecimentos de embarque pela R., como sua representada e carregadora das mercadorias. – 16º e 15º.
7. Foi a Ré Interveniente M…, S.A. (GENEVA) quem efectuou o transporte das mercadorias no seu navio “M… …” de Leixões para Tema – 12º.
8. As mercadorias em questão tinham sido vendidas pela A. à F…, nas condições FOB, pelo preço de € 106.071,40 – 7º.
9. A Ré Interveniente M…., S.A. (GENEVA) fez entregar as mercadorias à F…, em 21-9-02, sem que lhe fossem entregues os originais dos conhecimentos de embarque – E) e 6º.
10. A A. não recebeu o preço das mercadorias que foram entregues nas condições descritas em 9. e sofreu prejuízo de montante equivalente – 8º.
11. A propósito do transporte dos autos, a R. M.. (PORTUGAL) –…, S.A., actuou em nome e por conta e ordem da Interveniente M…, S.A. (GENEVA), limitando-se a proceder aos trâmites necessários à recepção da mercadoria para embarque e a emitir e assinar os conhecimentos de embarque referido em 4. na qualidade de agente da Interveniente M…, S.A. (GENEVA), após ter sido contactada para esse efeito pela P… – 11º, 13º e 14º.
                                                 
IV – O direito:
1. Nos recursos de apelação principal e subordinada suscitam-se as seguintes questões essenciais:
1.1. Quanto ao recurso de apelação subordinado:
a) Se houve celebração de contrato de transporte entre a A. e a Ré Interveniente ou se, ao invés, esse contrato foi celebrado entre a Ré Interveniente e a P…., agindo esta em representação da compradora F…;
b) Se se deve considerar devidamente alegado pela A. que a P…agiu em sua representação ou se, ao invés, a assunção de tal facto surge à revelia da necessária alegação;
c) Se a Ré Interveniente se encontra isenta de qualquer responsabilidade, uma vez que a entrega da mercadoria por parte da A., na modalidade FOB, se considera executada com o seu embarque no navio no porto de Leixões;
d) Se, pelo facto de o conhecimento de embarque ser nominativo, a prova de que a mercadoria foi entregue a quem nele figurava como titular e a falta de prova de que a Ré Interveniente se tenha obrigado a entregar a mercadoria contra a apresentação dos originais do conhecimento isenta a transportadora de qualquer responsabilidade;

1.2. Quanto ao recurso de apelação principal:
No recurso de apelação principal interposto pela A., que apenas será apreciado se não for acolhida inteiramente a pretensão da recorrente subordinada, a generalidade das questões encontrou na sentença recorrida resposta favorável, restando a seguinte questão essencial:
- Se a responsabilidade da armadora deve ser aferida em função das mercadorias embarcadas no contentor, nos termos que constam dos conhecimentos de embarque, sem qualquer limitação da responsabilidade.

2. Está consolidada a asserção de que a Ré Interveniente, M…, S.A. (GENEVA), na qualidade de transportadora, foi parte num contrato de transporte marítimo de mercadorias do porto de Leixões para o porto de Tema, no Togo, o qual foi formalizado através do conhecimento de carga que foi preenchido pela transportadora.
No que concerne à definição do regime do referido contrato, também nada existe a objectar ao caminho trilhado na sentença. Como transporte marítimo de mercadorias, o seu enquadramento jurídico obedece ao que se dispõe na Convenção de Bruxelas de 1924, sendo as lacunas de regulamentação supridas com recurso ao que as partes porventura estipularam e ao disposto no Dec. Lei nº 352/86, de 21-10.

2.1. Nos termos do art. 3º, nº 3, daquela Convenção, depois de receber as mercadorias, o transportador deve entregar ao carregador (ou seu representante) um conhecimento de carga ou de embarque contendo os elementos essenciais que permitam identificar e definir as mercadorias transportadas. Trata-se de uma exigência que igualmente se encontra no art. 8º do Dec. Lei nº 352/86.
Por qualquer das referidas vias, o conhecimento de carga ou de embarque (ou bill of lading) constitui o instrumento documental com que normalmente se formaliza o contrato de transporte, podendo assumir, nos termos do art. 11º do referido Dec. Lei, três modalidades distintas: nominativo, à ordem ou ao portador.
Tal documento exerce múltiplas funções, de que se destacam a função probatória do contrato, a função de recibo da mercadoria embarcada e ainda a de título de crédito relativamente à mercadoria nesse assinalada.[1]
Em qualquer das suas modalidades, o conhecimento de embarque atribui ao respectivo portador a faculdade de exigir e receber as mercadorias.
Já quanto à sua negociação ou circulação existem algumas diferenças. Enquanto os conhecimentos à ordem ou ao portador são livremente transmissíveis por via de endosso, como ocorre com a generalidade dos títulos de crédito,[2] quanto aos conhecimentos nominativos, isto é, aos que identificam o destinatário, as regras sobre a transmissão de direitos são mais apertadas, obedecendo aos requisitos da cessão de créditos, cuja eficácia, em relação ao transportador, depende da sua notificação, nos termos do art. 577º do CC. Por isso, a não ser que se cumpra esse formalismo, a legitimidade para o recebimento das mercadorias tituladas por conhecimentos nominativos pertence exclusivamente ao beneficiário que nele é identificado.[3]
Mas, em qualquer dos casos, desde que, por via da aplicação das regras gerais sobre a titularidade do direito sobre as mercadorias, o transportador dê satisfação a um dos originais do conhecimento de embarque, considera-se cumprida a sua obrigação, como decorre do art. 8º, nº 4, do Dec. Lei nº 352/86, de 21-10.

2.2. No caso concreto, estamos perante um conhecimento de embarque nominativo, já que nele se identifica o respectivo destinatário.
Antes, porém, de apreciar os efeitos que decorrem da natureza específica do conhecimento de embarque, cumpre responder a alguns argumentos prejudiciais colocados pela Ré transportadora no recurso subordinado.

2.2.1. Refere a R. Interveniente que a outra parte do contrato não é a A., uma vez que, além de não ter contratado directamente com esta, a P…, que intermediou o transporte, não agiu em representação da A. Ademais, a existência de representação, nos termos em que foi admitida na sentença, nem sequer é atendível, uma vez que tal facto não foi alegado no momento oportuno, nos termos dos arts. 264º e 664º do CPC.
Não pode ser acolhida tal argumentação.
O alegado pela R. Interveniente é imediata e directamente contrariado pela resposta positiva que foi dada e por este Tribunal foi mantida ao quesito 15º, de onde resulta que, na contratação do transporte, a P… agiu em representação da A., facto que, na sua significação jurídica, responde de imediato àquela questão.
Por outro lado, não existe o obstáculo de ordem processual à atendibilidade desse facto que a recorrente pretende extrair dos arts. 264º e 664º do CPC.
Ainda que apenas pudesse considerar-se o teor da petição inicial, sem possibilidade de ponderar o que posteriormente foi alegado pela A. na réplica, a solução manter-se-ia, pois que a alegação de factos integrantes do direito invocado pode ser feita também, de modo implícito, por remissão para o teor de documentos que, como o conhecimento de embarque, foi simultaneamente apresentado com a petição, de cuja análise se constata que a A. é identificada como carregadora da mercadoria, surgindo a empresa transitária P….somente na qualidade de agente” (“as agents only”).
Todavia, nem sequer se mostra necessária esta argumentação. Apesar de tal alegação não ter sido expressamente assumida na petição inicial, deve ser ponderada a alegação complementar que surge no art. 12º da réplica (onde se diz: “sendo a P…, Ldª, agiu em representação da R. …”), a partir da qual foi elaborado o ponto 15º da base instrutória.
Neste contexto, não existia qualquer obstáculo de ordem adjectiva à consideração desse facto na sentença, com o efeito jurídico que dele imediatamente dimana, ou seja, de que as partes no contrato de transporte são, respectivamente, a R. Interveniente, na qualidade de transportadora, e a A., representada pela P…, na qualidade de carregadora ou expedidora.

2.2.2. Considera ainda a mesma R. que deve considerar-se que a entrega da mercadoria à vendedora ocorreu no acto de carregamento no Porto de Leixões, tendo em conta que a compra e venda foi na modalidade FOB (Free on bord, ou franco a bordo).
É verdade que, nesta modalidade de venda, o transporte da mercadoria é da responsabilidade do comprador e que, a partir do momento em que a mercadoria transpõe a amurada do navio, se transfere o risco de perdas e danos que a mercadoria possa sofrer.[4]
Todavia, tal cláusula geral não impede que o transporte seja efectivamente contratado pelo vendedor, ainda que com imputação ao comprador do custo do frete,[5] tendo em conta a maior facilidade que existe na execução das diligências necessárias à preparação do contrato de transporte.
Além disso, o presente litígio não emerge de qualquer risco que a mercadoria tenha sofrido na execução do contrato de transporte, antes do alegado incumprimento por parte da transportadora de uma obrigação que, na tese da A., teria sido convencionada entre as partes.

2.2.3. Neste contexto, é possível assentar no seguinte:
a) O contrato de transporte de mercadorias por mar foi celebrado entre a A. e a R. Interveniente;
b) Ainda que tenha envolvido mercadorias vendidas na modalidade FOB, mantinha-se a obrigação de entrega da mercadoria por parte da transportadora a quem, no porto de destino, tivesse legitimidade em face do conhecimento de embarque respectivo.
Está., deste modo, preparado o terreno para a abordagem das questões essenciais.

2.3. Na tese da A., assumida na petição, a R. Interveniente não teria dado cumprimento ao que consigo acordou, ou seja, à obrigação de entregar a mercadoria transportada contra a apresentação dos originais do conhecimento de embarque. Tal incumprimento ou o cumprimento defeituoso do contrato de transporte teria sido determinante na verificação do resultado, ou seja, na falta de pagamento do preço da mercadoria que vendera à destinatária.
Já na sentença, o Mº Juiz a quo, confrontado com a falta de prova daquele facto, concluiu que se verificava uma situação de incumprimento de uma obrigação, de natureza legal, prevista no Dec. Lei nº 352/86, traduzida na exigência dos originais do conhecimento de embarque.
No recurso de apelação subordinado, considera a R. Interveniente que, tratando-se de conhecimento nominativo, o documento que o titula permite inferir a falta dessa específica obrigação, inexistindo qualquer disposição legal que a impusesse. Por isso, tendo entregue a mercadoria à respectiva destinatária, está isenta de responsabilidade.

2.3.1. Vejamos:
A A. alegou no art. 4º da petição que a R. Interveniente fora incumbida de transportar a mercadoria e de a entregar “contra a entrega dos originais do B/L (Bill of lading)”, ou seja dos conhecimentos de embarque respectivos.
Depois de tal alegação ter sido impugnada nos arts. 42º e 43º da contestação (fls. 186), foi reforçada no art. 8º da réplica, alegando aí a A. que a R. Interveniente teria contrariado “as instruções recebidas e por si ou pelas pessoas a quem recorreu para tal, fez entregar – no exercício das suas funções – as mercadorias à destinatária sem que lhe fossem entregues os originais dos documentos referidos no art. 4º da petição inicial”.
Perante a manutenção da divergência das partes a respeito de tal facto, o mesmo foi inserido no ponto nº 4 da base instrutória. Submetido a julgamento, obteve a resposta “não provado” (fls. 263, confirmada a fls. 479), a qual, de resto, não foi posta em causa por qualquer das partes.
Assim, contra o que fora alegado pela A., não se provou que a R. Interveniente se tivesse obrigado perante a A. a entregar a mercadoria transportada “contra a entrega dos originais do conhecimento de embarque”.
Esta resposta negativa sugere, por si, a ausência do pressuposto fundamental em que a A. fundou a sua pretensão.
Ante a resposta negativa dada ao facto relacionado com o cumprimento defeituoso do contrato, no segmento relativo à obrigação de entrega das mercadorias, só por via legal ou, porventura, pela análise do próprio documento que formalizou o contrato de transporte se poderia sustentar a verificação de uma situação de incumprimento obrigacional, passo fundamental para que, na etapa seguinte, se procedesse à verificação das suas implicações e à apreciação dos demais pressupostos da responsabilidade contratual: culpa e nexo de causalidade entre o incumprimento ou cumprimento defeituoso e o dano correspondente à falta de pagamento do preço da compra e venda.

2.3.2. Percorrendo o texto da Convenção de Bruxelas não se detecta qualquer preceito que, directa ou indirectamente, imponha à transportadora, em caso de conhecimentos de embarque nominativos, a obrigação de condicionar a entrega da mercadoria à apresentação dos originais dos respectivos conhecimentos de embarque.
Compreende-se facilmente a ausência de previsão da situação em tal instrumento de Direito Internacional. Apesar de regular “certos aspectos” relacionados com conhecimentos de embarque, não teve como objectivo esgotar tudo quanto é relevante para o contrato de transporte marítimo de mercadorias. Perseguindo os objectivos fundamentais de definir os termos em que os transportadores respondem perante os carregadores ou outros interessados e os casos em que existe limitação da responsabilidade, a maior parte dos normativos está naturalmente ligado às operações de transporte e não a actos acessórios integrados na fase do recebimento ou de entrega da mercadoria.

2.3.3. O texto dos conhecimentos de embarque poderia sustentar a existência de uma obrigação nele fixada pelas partes, ainda que com recurso a cláusulas contratuais gerais.
Todavia, feita a sua análise, o resultado é negativo. A única declaração a respeito da entrega das mercadorias está ligada a conhecimentos de embarque com natureza diversa daquele que titula o presente contrato, ou seja, conhecimentos de embarque à ordem ou ao portador.
Com efeito, o clausulado geral limita-se a prevenir que “se este for um conhecimento de embarque original negociável (à ordem), as mercadorias só serão entregues se um dos conhecimentos de embarque originais, convenientemente endossados pelos expedidores e ou pelo banco em causa (e não pela parte a notificar) for entregue, sendo os restantes nulos e sem efeito”. (fls. 485 e 486).
Trata-se de uma cláusula inteiramente compreensível, tendo em conta a natureza dos títulos de crédito a que se dirige e que podem entrar em circulação por via do endosso ou legitimar direitos sobre a carga transportada por mero efeito da sua apresentação.
Mas se em relação aos conhecimentos de embarque à ordem ou ao portador a sua apresentação constitui conditio sine qua non da entrega das mercadorias que titulam, liberando o transportador de qualquer responsabilidade, já não se encontra qualquer dispositivo legal que permita estender tal exigência aos casos em que a mercadoria esteja titulada por conhecimentos nominativos.
É verdade que, como se disso anteriormente, também os conhecimentos de embarque nominativos são transmissíveis (art. 11º, nº 2, do Dec. Lei nº 352/86). Todavia, a circulação é mais difícil, carecendo de exigências formais que normalmente são incompatíveis com a celeridade que rodeia os contratos de transporte marítimo, exigindo que o direito de outrem, que não o destinatário nele identificado, seja comprovado pelas regras da cessão de créditos, com notificação do próprio transportador (art. 577º do CC).[6]
Compreendendo-se a exigência de apresentação dos originais dos conhecimentos de embarque emitidos à ordem ou ao portador, a mesma revela-se dispensável relativamente aos conhecimentos de embarque nominativos, em que a legitimidade para o recebimento das mercadorias decorre, em regra, do mero confronto entre a identidade do destinatário e o que, a esse respeito, é assinalado no documento.
No caso concreto, a mercadoria foi entregue a quem efectivamente detinha sobre a mesma legitimidade conferida pelo título de transporte e que, ao mesmo tempo, tinha a qualidade de comprador, pelo que nem sequer se justificam desvios argumentativos relacionados com eventuais direitos sobre a carga. Em concreto, estamos perante um caso de surgimento de terceiro interessado a reclamar direitos sobre a carga, situando-se o problema num outro campo para o que é fundamental observar que, para além da ausência de qualquer acordo das partes a respeito da referida exigência, não se encontra dispositivo algum que permita fundamentar a existência dessa obrigação.

2.3.4. Ao invés do que se assumiu na sentença, nem directa nem indirectamente se encontra no Dec. Lei nº 352/86 qualquer preceito que faça recair sobre a transportadora a obrigação de, em relação a conhecimentos nominativos, condicionar a entrega da mercadoria à apresentação e recebimento dos originais dos conhecimentos de embarque.
Trata-se de uma tese que, ademais, é recusada por Mário Raposo, em Estudos Sobre o Novo Direito Marítimo. Apesar de este autor informar que um entendimento diverso sobre a referida questão é defendido na Alemanha, conclui taxativamente que “se os conhecimentos forem nominativos, a entrega aos destinatários que deles constassem nem teria de ser precedida da respectiva exibição” (pág. 154), concluindo que “somente se o conhecimento for ao portador ou à ordem é necessária a exibição do conhecimento” (pág. 155).[7]
Tese semelhante é defendida por Vasconcelos Esteves quando refere que quando se “esteja perante um conhecimento nominativo, o comandante deverá entregar as mercadorias à pessoa cujo nome figura no documento e só a ela”.[8]
Será por este motivo também que Palma Carlos, em O contrato de transporte marítimo, inserido em Novas Perspectivas do Direito Comercial, págs. 29 e 30, afirma sinteticamente que nos conhecimentos nominativos “o destinatário será a pessoa designada no conhecimento”, sendo “legítimo possuidor do conhecimento nominativo a pessoa nele designada”. Ou ainda que Francisco Fariña, em Derecho Comercial, vol. II, pág. 329, refere que se se tratar de conhecimento nominativo as mercadorias só podem ser entregues à pessoa nele designada.
É verdade que nos Acs. do STJ, de 17-4-97, CJSTJ, tomo II, pág. 47 e de 17-2-05, CJSTJ, tomo I, pág. 79, se admitiu, como obrigação do transportador, a de exigir a apresentação dos originais dos conhecimentos de embarque. Todavia, há que ponderar que ambos os arestos incidiram sobre situações bem diversas daquela que agora se nos apresenta, já que, como decorre da matéria de facto provada em cada um deles, a entrega da mercadoria deveria ser feita contra a entrega da apresentação dos originais dos conhecimentos de embarque,[9] o que não se provou no caso sub judice.

2.3.5. O art. 11º do Dec. Lei nº 352/86, prevê que o “conhecimento de carga constitui o título representativo nele descrita”. Mas deste singelo segmento legal não pode ser extraído o resultado que foi declarado na sentença recorrida, fazendo emanar dele uma obrigação como a referida e, mais do que isso, assentando em tão frágil argumentação um efeito tão gravoso como aquele em que foi desembocar.
Por certo que, em geral, o capitão do navio apenas entregará a mercadoria contra a entrega do conhecimento de embarque, pois que é esse documento que, nos termos gerais, evita que a mercadoria seja entregue a quem não tenha direito sobre a mesma. Mas tal diligência corresponderá, nesta perspectiva, ao objectivo fundamental de tutelar os interesses do transportador, tendo em vista liberar-se de toda a responsabilidade.
Só que, como já se referiu anteriormente, não é este o problema que nos autos se suscita. A mercadoria foi entregue ao seu legítimo destinatário, isto é, à empresa que a havia adquirido à A., não podendo encontrar-se naquelas razões de ordem prudencial, que visam tutelar o transportador, um fundamento adicional para o responsabilizar pela não exigência do conhecimento nominativo sem que tenha sido provada tal incumbência específica e sem que, além disso, se detecte qualquer preceito legal que a preveja.
Não encontrámos, aliás, um único autor que, em face do direito aplicável ao caso, defenda a existência daquela obrigação acessória relativamente a conhecimentos nominativos.
Alguns dos que se debruçaram sobre este específico momento da entrega da mercadoria transportada por mar não vão além de considerações genéricas que ficam no plano dos deveres de diligência no exercício da actividade de transportador, com vista a evitar a entrega das mercadorias a quem não detenha direitos sobre a mesma, e não a classificar tal exigência como obrigação que possa ser invocada pelo carregador para exigir indemnização fundada em incumprimento contratual.
Assim ocorre com Francisco Costeira da Rocha, em O Contrato de Transporte de Mercadorias, pág. 126, que, depois de referir, a partir das Regras de Hamburgo, que a “mercadoria entregue ao transportador só será entregue a quem se apresentar como destinatário contar o respectivo documento de transporte de que seja portador”, acaba por reconhecer que, “em certos casos, a entrega da mercadoria sem apresentação do conhecimento não surge como fenómeno patológico, mas como regra, o que leva a questionar a eficácia representativa do conhecimento”.
Outrossim com Azevedo Matos, citado no Ac. da Rel. do Porto, de 8-6-06, CJ, tomo III, pág. 188, quando refere que “na prática, o destinatário, ao receber a carga, entrega ao capitão o conhecimento respectivo com a menção nele exarada de haver recebido as mercadorias a que ele respeitava”. Trata-se, como é bom de ver de uma diligência que visa pôr o transportador a coberto das futuras reivindicações da carga ou de reclamações de indemnizações com fundamento na entrega da carga a terceiros.

3. Em conclusão:
Não se tendo apurado o facto que a A. alegou acerca da assunção da referida obrigação acessória da transportadora, nem podendo essa obrigação extrair-se de qualquer norma jurídica aplicável ao contrato de transporte de mercadorias por mar, não pode ser assacada à R. Interveniente qualquer responsabilidade decorrente do facto de a mercadoria ter sido entregue à destinatária sem que esta lhe apresentasse os originais do conhecimento de embarque.
A ausência de prova de incumprimento contratual torna inócua a circunstância de a não exigência dos originais do conhecimento de embarque ter sido causal ou concausal da falta de recebimento do preço da compra e venda efectuada na modalidade FOB.
Ante a falta daquele pressuposto fundamental em que poderia assentar a responsabilidade da R. Interveniente, há que concluir pela absolvição total do pedido, procedendo, assim, o recurso subordinado.
Correspondentemente, encontra-se prejudicada a apreciação da questão suscitada pela A. no recurso de apelação principal, ou seja, sobre a inexistência de uma limitação de responsabilidade.

V – Face ao exposto, acorda-se em
a) Julgar procedente o recurso subordinado;
b) Julgar prejudicada a apreciação do recurso principal interposto pela A.;
c) Revogar a sentença e absolver do pedido também a R. Interveniente MSC (Geneva), S.A.
Custas da acção e de ambos os recursos a cargo da A.
Notifique.
Lisboa, 24-6-08

António Santos Abrantes Geraldes

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria do Rosário Oliveira Morgado

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[1] Cfr. Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, pág. 275, e Da Disciplina do Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Mar, págs. 234 e segs., Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III vol, pág. 9, e Vasco Soares da Veiga, Direito Bancário, pág. 203, ambos citando precisamente o conhecimento de embarque.
[2] Neste sentido cfr. o Ac. do STJ, de 18-4-96, www.dgsi.pt, e Hugo Ramos Alves, A Limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, pág. 51
[3] Vasconcelos Esteves, Contratos de Utilização de Navios, pág. 96.
[4] Cfr. Jan Ramberg, Guia dos Incoterms, 1990, págs. 70 e segs.
[5] Jan Ramberg, ob. cit., pág. 70, onde assinala que nesta modalidade “não importa que seja o vendedor ou o comprador a contratar o transporte; com efeito, o vendedor ou o seu transitário podem muitas vezes fazê-lo mais facilmente no porto de embarque”. E mais adiante (pág. 73), refere que “o vendedor pode prestar assistência ao comprador na contratação do transporte. Se assim for a assistência é prestada por conta e risco do comprador”.
[6] Como referem Almeida e Costa e Evaristo Mendes, na anotação ao Ac. do STJ, de 20-1-94, na revista Direito e Justiça, vol. IX, tomo I, 1995, pág. 190, a transmissão dá-se por cessão de créditos acompanhada da entrega de documentos.
[7] Cita, para o efeito, Victor-Emmanuel Boklali.
[8] Ob. cit., pág. 123.
[9] No primeiro aresto está provado que “tal mercadoria só podia ser entregue à compradora mediante a apresentação, por banda desta, dos conhecimentos de embarque”. No segundo provado ficou que “a mercadoria devia ser entregue em Inglaterra a quem se apresentasse à borda do navio munidos dos originais dos conhecimentos emitidos”.
Também Calvão da Silva, na CJSTJ, 1994, tomo I, pág. 15 e segs., incidiu sobre um caso de conhecimentos de embarque ao portador.