INVENTÁRIO
INTERESSADO
Sumário

1. Ao cessionário de quinhão hereditário assiste legitimidade para requerer o inventário nos precisos termos em que assistia ao herdeiro cedente, legitimidade essa que deve ser aferida em função da nova titularidade derivada da cessão.
2. E igualmente assistirá legitimidade ao cônjuge do cessionário, nos casos em que o direito cedido se lhe comunique, mormente por força do regime matrimonial de bens.
3. Ao interessado que intervenha no processo como titular ou contitular do quinhão cedido incumbe provar os factos constitutivos da sua aquisição, seja em sede de habilitação-legitimidade, seja já em sede de habilitação incidental.
(PLG)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

            I - Relatório
            1. A… veio interpor recurso de agravo da decisão, proferida em sede de presente processo de inventário por si requerido, decisão que absolveu os requeridos da instância por verificação da excepção dilatória de ilegitimidade do requerente.
            2. Nas suas alegações de recurso o agravante formulou as seguintes conclusões:
1ª - O objecto do presente recurso é a decisão que determinou a absolvição do ora agravante da instância por entender não ter este legitimidade para requerer inventário para partilha das heranças abertas por óbito dos pais de sua ex-mulher, M… e de MR…, falecidos em 1987;
2ª - Como consta do requerimento inicial do inventário, ao “de cujus”, M…, sucederam sua mulher MR …e cinco filhas;
3ª – Por sua vez, MR …veio a falecer, sucedendo-lhe, as suas quatro filhas, figurando entre as filhas de ambos MR I…, à data MR I… S;
4ª - Em 1989, por escrituras públicas, as herdeiras B…,MR A… eMR T… cederam à referida MR I..e a MR M… os quinhões hereditários que as três detinham na herança de M… e que a segunda e a terceira detinham na herança de MR…;
5ª - O agravante e a herdeira MR I… eram, à data daquelas escrituras, casados sob o regime da comunhão de adquiridos;
6ª - A herdeira MR M… e o marido desta, J…, eram e são casados no regime da comunhão geral de bens;

   7ª - O agravante concluiu o requerimento inicial pedindo queMR I… e o agravante, por um lado, e MR M… e o marido, J…, por outro, sejam julgados habilitados como cessionários das quotas hereditárias das aludidas B…e, MR A…e MR T…;
8ª - A decisão recorrida considerou que o agravante, por não ser herdeiro, não é interessado directo na partilha, pois os bens que couberem à herdeira MR I…l, sua ex-mulher, são bens próprios dela, sendo a ilegitimidade dele excepção dilatória, de conhecimento oficioso;
9ª - De acordo com o art. 2124º e seguintes do Código Civil, na herança indivisa, o co-herdeiro pode dispor do seu direito de quinhão hereditário, constituindo efeito dessa alienação a transferência “do herdeiro para o adquirente dos “… direitos a tudo aquilo que esteja compreendido (…) no seu quinhão”;
10ª - Dispõe o art. 2101º, n.º 1, do Código Civil que qualquer co-herdeiro tem o direito de exigir partilha quando lhe aprouver; mas não só o herdeiro, pois no caso de alienação do quinhão hereditário “ o adquirente subroga-se nos direito do herdeiro, e pode pedir a partilha”; “ o cessionário, desde que tenha a seu favor uma escritura donde conste a cessão, pode, com base nela, requerer inventário, considerando-se na mesma qualidade que o cedente”;
11ª - É por isso que o art. 1327º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, estabelece que têm legitimidade para requerer o inventário e para nele intervirem, como partes principais, os interessados directos na partilha, e não somente os herdeiros, pois o conceito de “interessado” é mais abrangente do que o de “herdeiro”, naquele cabendo, nomeadamente, o cessionário o direito de acção à herança, por ser pessoa directamente interessada na partilha;
   12 ª - O art. 1332º, n.º 6, do C.P.C. preceitua que a habilitação do cessionário de quota hereditária se faz nos termos gerais, pelo “o cessionário do direito à herança só pode intervir no respectivo inventário através da sua habilitação, requerida inicialmente ou no correspondente incidente”;
13ª - Quando as cessões dos quinhões hereditários ocorram antes da instauração do inventário e a habilitação seja requerida no próprio requerimento inicial, com a apresentação da respectiva prova, os cessionários têm legitimidade para intervir no processo, sem necessidade de recorrer ao incidente de habilitação;
14ª - De acordo com o regime de bens da comunhão de adquiridos – aplicável ao casamento que vigorou entre o agravante e a herdeira MR I… -, são considerados próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação, mas já fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei - arts. 1722º, n.º 1, al. b), e 1724º, al. b), do C.C.);
15ª - Na interessada MR I concorrem dois títulos distintos no que às heranças de seus pais diz respeito: o de herdeira legitimária e o de adquirente por cessão onerosa (em comum com sua irmã M M…) dos quinhões hereditários de suas irmãs B…,MR A… e MR T…, que não consubstancia uma aquisição por sucessão ou por doação, mas uma aquisição onerosa na constância do matrimónio;
16ª - Não é na qualidade de herdeiro ou sequer por sua ex-mulher ser herdeira que o ora agravante é interessado na partilha, mas sim na qualidade de cessionário, por via da aquisição onerosa do direito a quinhões hereditários por sua ex-mulher, na pendência do casamento entre ambos, na medida em que os direitos assim adquiridos são bens comuns do casal  - art. 1724º, al. b), do C.C.;
17ª - Na qualidade de cessionário, o agravante tem legitimidade para requerer inventário para partilha das heranças abertas por óbito dos pais de sua ex-mulher;
18ª - Decidindo de modo diverso, a Mmª Juiza “a quo” violou as disposições dos arts. 1722º, n.º1, al. b), 1724º, al. b), 2101º, n.º 1, e 2124º, todos do CC, e dos arts. 1327º, n.º1, al. a), 1332º, n.º 6, e 494º, al. e), todos do CPC.
            Pede o agravante que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue os habilitados como cessionários dos quinhões hereditários partes legítimas para requerer, em cumulação, os inventários em referência.
            3. Não foram produzidas contra-alegações e a Mmª Juíza a quo exarou despacho tabelar de manutenção do agravo.
            Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
           
II – Fundamentação

1. Factualismo relevante

            Dos autos extrai-se o seguinte factualismo relevante para a apreciação do objecto do presente recurso :
1.1. A…, ora agravante, requereu, em 23/11/2007, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, o presente processo de inventário para partilha, em cumulação, das heranças abertas por óbito de M…, falecido em dia indeterminado de Abril de 1987, e de sua mulher MR…, falecida, no estado de viúva, em 13 de Novembro de 1987 (docs. fls. 7 e 8);
            1.2. A M… sucederam a sua mulher MR …e suas filhas :
   a) – B…, casada com J… sob o regime da comunhão geral de bens;
   b) –MR I…, à data MR I… e casada com o requerente A…, sob o regime de comunhão de adquiridos, de que está hoje divorciada;
   c) -MR M.., casada com J…, sob o regime de comunhão geral de bens;
   d) –MR A…, casada com S…, sob o regime de comunhão de adquiridos;
   e) –MR T…, casada com J A… sob o regime da comunhão de adquiridos;
1.3. Por sua vez, MR …faleceu, no estado de viúva de M…, em 13 de Novembro de 1987, deixando como herdeiros as pessoas indicadas nas alíneas a) a e) do ponto precedente, suas filhas;
1.4. Ambas as heranças estão impartilhadas;
1.5. Em de 11 de Dezembro de 1989, as herdeiras B… e marido, MR A… e MR T…, estas últimas autorizadas pelos respectivos cônjuges, outorgaram a escritura pública reproduzida a fls. 10-13, em que cederam às herdeiras MR I… e MR M…, o quinhão hereditário que aquelas possuíam na herança impartilhada aberta por óbito de M…, mediante o preço de Esc. 57.446$00;
1.6. Pela escritura de fls. 15-17, outorgada na mesma data, as herdeirasMR A… e MR T…, com autorização dos respectivos cônjuges, cederam às herdeiras MR I… e MR M…, o quinhão hereditário na herança que aquelas possuíam na indivisa deixada por MR…, mediante o preço de Esc. 47.871$00;
1.7. A herdeira MR I… contraíra casamento civil com A…, em 16 de Novembro de 1981, sem convenção antenupcial (doc. de fls. 18), o qual veio a ser dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 7/2/1992 e transitada em 27/2/1992 (doc. de fls. 18). 
2. Do mérito do recurso
A única questão suscitada neste recurso consiste em saber se ao requerente e ora agravante assiste legitimidade activa para requerer, como requereu, o presente inventário.
O despacho recorrido concluiu que ao requerente não assiste aquela legitimidade por não ser interessado directo na partilha, nos termos do nº 1 do artigo 1327º do CPC.
Todavia, o recorrente sustenta tese afirmativa conforme decorre das conclusões acima sumariadas.
A alínea a) do nº 1, do artigo 1327º CPC confere legitimidade para requerer inventário, como parte principal, a quem seja interessado directo na partilha.
Ora, como observa Lopes do Rego[1], são interessados directos na partilha da herança :
   a) - o cônjuge do herdeiro, quando casado sob o regime de comunhão geral de bens, na medida em que os bens que integram o acervo hereditário fazem parte do património comum;
   b) – e, eventualmente, o cônjuge do herdeiro, independentemente do regime de bens, se tiver interesse directo a defender em relação a certos bens, nomeadamente quando se trate de imóvel que constitua casa de morada de família, ou se, vigorando o regime de comunhão de adquiridos, estiver em causa a partilha de imóvel ou estabelecimento comercial, cuja concretização da partilha carece de consentimento conjugal nos termos do nº 1 do artigo 1682º-A do CC.  
            Todavia, além desta regra geral de legitimidade aferida pela titularidade originária do quinhão hereditário, importa ter em linha de conta que os quinhões hereditários podem ser objecto de alienação regulada pelas disposições especiais previstas nos artigos 2124º e seguintes do CC e, subsidiariamente, pelas disposições gerais do negócio jurídico que lhe der causa. 
            Consequentemente, ao cessionário de quinhão hereditário assiste legitimidade para requerer o inventário nos precisos termos em que assistia ao herdeiro cedente, legitimidade essa que deve ser aferida em função da nova titularidade derivada da cessão. E igualmente assistirá legitimidade ao cônjuge do cessionário, nos casos em que o direito cedido se lhe comunique, mormente por força do regime matrimonial de bens. Ao interessado que intervenha no processo como titular ou contitular do quinhão cedido incumbe alegar e provar os factos constitutivos da sua aquisição, seja em sede de habilitação-legitimidade, seja já em sede de habilitação incidental.  
            No caso em apreço, constata-se que a herdeira MR I… , então ainda casada sob o regime de comunhão de adquiridos com o requerente e ora agravante A…, juntamente como a herdeira M …, adquiriu por contrato de cessão onerosa os quinhões que as herdeiras B.., MR A…e MR T… possuíam nas heranças abertas por óbito de M… e de MR….    
            Desse modo, os quinhões assim adquiridos por parte da herdeira MR I…, na constância do seu matrimónio com o requerente A…, passaram a integrar o património do casal, nos termos da alínea b) do artigo 1724º do CC, o que se reconduz à contitularidade de ambos naqueles quinhões.
            Sucede que o casamento contraído entre MR I… e A… foi dissolvido por divórcio decretado mediante sentença transitada em julgado em 27/2/1992, portanto já depois da data dos contratos de cessão dos quinhões hereditários, realizada em 11/12/1989. Mas, nos termos do nº 1 do artigo 1789º do CC, os efeitos do divórcio quanto às relações patrimoniais dos cônjuges retroagem à data da propositura da respectiva acção. Daí que, se os contratos de cessão dos quinhões à herdeira MR I tiverem ocorrido já depois da propositura daquela acção de divórcio, não se verificará a comunicabilidade ao agravante A naquelas quinhões[2].
            Acontece que dos autos não constam quaisquer elementos que permitam apurar qual a data da propositura da referida acção de divórcio, o que bem poderá ser suprido por via de despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 265º do CPC.
            De qualquer modo, não se mostra para já evidente que o requerente não seja contitular dos quinhões em referência e, nessa medida, interessado directo na partilha em causa para que se justifique, de imediato, a “absolvição liminar da instância”, ou melhor dizendo, um indeferimento liminar do requerimento inicial. Haverá pois que diligenciar no sentido de esclarecer a data da propositura da acção de divórcio, que correu termos entre A e a interessada M I, por forma a que se possa depois aferir da legitimidade processual activa do requerente.

            III – Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em dar provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido e ordenando que seja substituído por outro que convide o requerente a juntar documento comprovativo da data da propositura da acção de divórcio em referência, decidindo-se depois sobre o prosseguimento ou não dos autos em conformidade com o critério de legitimidade acima definido.
            Sem custas (artigo 2º, nº 1, alínea g, do CCJ).      
             
 Lisboa, 7 de Outubro de 2008

Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho  
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[1] Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, pags. 695 e 696.
[2] A este propósito, vide Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2001, pag. 656.