1- A falta de citação de credor hipotecário com garantia inscrita no registo tem o mesmo efeito da falta de citação, determinando a nulidade de todo o processado posterior à omissão.
2- A falta da referida citação não importa, todavia, a anulação das vendas, adjudicações, remissões ou pagamentos já ordenados - e não apenas já ordenados - no momento da arguição atempada da nulidade.
3- A excepção aos efeitos anulatórios dos actos referidos no número anterior não se aplica quando o exequente tiver sido o exclusivo beneficiário dos mesmos.
4- É exclusivo beneficiário o exequente que seja comprador ou adjudicatário, sem que lhe sobrevenha preferência ou remissão e, cumulativamente, a quem couber em pagamento todo o preço da coisa adquirida.
(N.N)
I – BANCO , SA interpõe recurso de agravo do despacho de fls. 163, que indeferiu o seu requerimento de 13.5.2003, a fls. 148-149, em que veio invocar a nulidade de todo o processado posterior à omissão da sua citação, na execução para pagamento de quantia certa com processo ordinário que o B, SA intentou contra A, LDA, M e M, e na qual foi penhorada a fracção autónoma designada pela letra “A” correspondente à cave direita (piso -1), com acesso pelo nº 5 da Rua C, do prédio urbano destinado a habitação sito na Rua , concelho de Almada.
Invocou então a violação, por omissão, do disposto no artigo 864º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, determinante de nulidade de todo o processado subsequente, nos termos conjugados do nº 3 daquele artigo e do artigo 194º, também do mesmo Código.
Ouvidos os interessados, declararam a executada M, em cujo nome a dita fracção se encontrava inscrita no registo predial, e o exequente, nada terem a opor à requerida anulação.
Formulou o agravante, a concluir as suas alegações, as seguintes conclusões:
1. O agravante é titular de hipoteca sobre a fracção autónoma penhorada nos autos a folhas --- para garantia do capital mutuado de Esc. 9.800.000$00 e respectivos acessórios, hipoteca essa inscrita pela inscrição C-1;
2. Compulsados os autos constata-se que, ao ser dado cumprimento às citações previstas no artigo 864º do Código de Processo Civil, se omitiu completamente a citação do ora requerente para reclamar o seu crédito nos presentes autos.
3. Tal omissão é assimilada a falta de citação do Réu (nº 3 do artigo 864º do Código de Processo Civil) e, como tal, nos termos da alínea a) do artigo 194º do Código de Processo Civil, provoca necessariamente a anulação de todo o processado subsequente ao acto de citação em falta.
Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, ordenando-se a anulação de todo o processado subsequente ao acto de citação em falta e seguindo-se os ulteriores termos até final.
Não houve contra-alegações.
Foi proferido despacho de sustentação.
Cumpre decidir.
II – QUESTÃO A DECIDIR
Resulta das conclusões das alegações do agravante – que, nos termos dos artigos 684º, n º 3 e 690º, nºs 1 e 4 do Código de Processo Civil, definem o objecto do recurso – que a questão que cumpre apreciar é a de saber se a preterição da citação de credor hipotecário, em execução em que, após a efectivação da penhora do bem imóvel sobre que incide a hipoteca, teve lugar a convocação dos credores privilegiados, constitui nulidade e se esta acarreta a nulidade de todo o processado subsequente à dita omissão.
III – OS FACTOS E OCORRÊNCIAS PROCESSUAIS RELEVANTES
Extrai-se dos autos a seguinte factualidade e processado com relevância para a decisão de mérito:
a) Na presente execução para pagamento de quantia certa que B, SA intentou contra A, Lda, M e M, para pagamento da quantia de Esc. 25.096.120$00, titulada por duas livranças de que é portadora, subscritas pela 1ª executada e avalizadas pelos dois outros executados, e dos juros de mora até integral pagamento, sendo os vencidos na data da propositura da acção de Esc. 233.722$00, veio, por termo a fls. 83, a ser penhorada, em 26.2.2001, fracção autónoma designada pela letra “A” correspondente à cave direita (piso -1), com acesso pelo nº 5 da Rua C, do prédio urbano destinado a habitação sito na Rua C, nº 5, Rua D, nº 6. 6-A a 6-C, freguesia da Sobreda, concelho de Almada (fls. 83 dos autos), cuja titularidade se encontrava inscrita a favor da executada M pela inscrição com a cota G;
b) Tal penhora veio a ser inscrita no registo predial pela apresentação (certidão a fls. 99);
c) Sobre a mesma fracção está inscrita, pela Apresentação , convertida em definitiva pelo AV. 1, Ap. , uma hipoteca voluntária a favor de Banco , SA, para garantia do empréstimo de capital de Esc. 9.180.000$00 e outros encargos (certidão a fls. 99 dos autos);
d) Por despacho de 25.9.2001, a fls. 105, foi ordenado fosse dado cumprimento ao disposto no artigo 864º do Código de Processo Civil, relativamente à fracção referida nas alíneas anteriores;
e) Em cumprimento de tal despacho, foram apenas afixados editais e expedidos ofícios ao exequente e aos Chefes de Repartição de Finanças de Almada ao NIP, ao NAIF e ao SAIVA (fls. 105 a 113);
f) Foi deduzida uma reclamação pelo Instituto de Solidariedade Social por dívidas de contribuições, admitida liminarmente, não impugnada e em que veio a ser proferida sentença de graduação, a qual posteriormente foi dada sem efeito por a dívida reclamada ser da titularidade da executada sociedade, não dispondo o referido Instituto de garantia real sobre o bem penhorado (apenso de reclamação de créditos);
g) A fls. 134, e sem que tivesse sido citado o ora agravante, foi proferido o despacho datado de 28.2.2003, ordenando a venda por propostas em carta fechada;
h) A fls. 138, foi expedida, com data de 2.4.2003, carta precatória à comarca de Almada, para venda do bem penhorado por propostas em carta fechada, pelo valor base de € 125.000,00;
i) Em 13.5.2003, o ora agravante apresentou o requerimento junto a fls. 148-149, em que, começando por alegar ter tido conhecimento de que e encontra designado o dia 20 de Maio de 2003, pelas 10.00, para a abertura de propostas de venda em carta fechada da fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número da Freguesia de Sobreda da Caparica, e invocando constar da certidão de ónus e encargos junta aos autos a inscrição da hipoteca voluntária mencionada na antecedente alínea c), e ainda que se constata da consulta dos autos que ao ser dado cumprimento às citações previstas no artigo 864º do Código de Processo Civil omitiu-se completamente a citação do ora requerente para reclamar o seu crédito nos presentes autos, e invocando ainda a consequência de anulação de todo o processado subsequente à citação em falta, por força das disposições combinadas do número 3 do artigo 864º e 194º do Código de Processo Civil, requereu que fosse decretada essa anulação e que fosse ordenada a sua citação nos termos do artigo 864º do dito Código;
j) O executado e a executada M pronunciaram-se no sentido do deferimento desse requerimento (fls. 160 e 161 respectivamente);
k) Em 19.5.2003 foi, a fls. 163, exarado sobre o requerimento do ora agravante o seguinte despacho, ora agravado:
Fls. 148 e 149:
Nada há a anular.
A venda prosseguirá seus termos. Todavia, concretizada, não poderá registar-se o pagamento imediato.
Paralelamente, entretanto, poderá decorrer a competente reclamação do credor, B, SA, que manifesta a pretensão de exercer, em sede própria, o seu crédito.
Assim, os autos – na fase da venda, deprecada à Comarca de Almada -prosseguirão.
Oficie de imediato por “fax” àquele Tribunal para que proceda à venda do bem penhorado, salientando que – como resulta da certidão de ónus e encargos – sobre a fracção autónoma penhorada incide hipoteca voluntária a favor do Banco de Investimento Imobiliário, SA para garantir capital mutuado e acessórios na importância de Escudos: 9.800.000$00, registada sob a inscrição C-1;
l) Tendo interposto o presente recurso por requerimento datado de 22.5.2003, a fls. 174, foi ele admitido por despacho de 11.6.2003, que fixou o regime de subida quando estiver concluída a venda, nos termos do disposto nos artºs 676º, nº 1, 678º, nº 1, 680º, nº 2, 685º, nº 1, 687º, nº 1, 733º e 923º, n º 1, alínea c) do CPC;
m) O agravante apresentou as suas alegações por requerimento entrado em juízo em 4.7.2003 (fls. 188);
n) Na carta precatória expedida para venda, foi designado o dia 20.5.2003 para abertura de propostas (fls. 218);
o) Nessa data foi lavrado o auto de fls. 256, de que se fez constar que não foram apresentadas quaisquer propostas, sendo por isso ordenado que se procedesse à venda por negociação particular;
p) A venda veio a ter lugar em 24.5.2007, por escritura pública celebrada no cartório notarial de Almada da notária A, pelo preço de € 80.000,00, sendo adquirente o banco exequente e tendo ficado consignado no acto a inscrição registral da hipoteca mencionada na alínea c) supra – escritura certificada a fls. 390-394.
IV – DO DIREITO
O artigo 864º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, na redacção vigente à data da fase de convocação de credores na presente acção executiva – a resultante do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro – determinava que, feita a penhora e junta a certidão dos direitos, ónus e encargos inscritos, quando necessária, sejam citados para a execução, entre outros, os credores com garantia real relativamente aos bens penhorados, citação que deve ser feita no domicílio que conste do registo, sempre que o direito de garantia esteja sujeito a registo (nº 2 do mesmo artigo).
É patente, pela factualidade descrita, que, não obstante o ora agravante ser titular de um direito real de garantia sobre a fracção autónoma penhorada – uma hipoteca voluntária – inscrito no registo, como da certidão de direitos, ónus e encargos já então nos autos constava, o mesmo não foi pessoalmente citado, na sua sede.
Essa omissão, diz o nº 3 do mesmo artigo (na referida redacção, e a que corresponde o nº 10 na actual redacção, já sujeita a alterações que não afectam a solução a dar à questão colocada no presente recurso) tem o mesmo efeito que a falta de citação do réu, mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efectuados, das quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário, ficando salvo à pessoa que devia ter sido citada o direito de ser indemnizada, pelo exequente, do dano que haja sofrido.
A falta de citação do réu tem, nos termos do artigo 194º, alínea a) do Código de Processo Civil, o efeito de produzir a nulidade de todo o processado depois da petição inicial, salvando-se apenas esta, pelo que, em acção executiva, a omissão de citação de um credor que o devesse ser nos termos das alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 864º [e o agravante devia tê-lo sido nos termos da alínea b), por ter garantia real registada sobre o bem penhorado] produz a nulidade de todo o processado posterior ao acto omitido, com a possível ressalva da parte final do aludido nº 3 desse mesmo artigo.
À data em que a falta de citação foi arguida não havia ainda sido realizada a venda, se bem que tivesse sido ordenada.
Ora, a lei apenas ressalva do efeito anulatório as vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efectuados.
É, assim, manifestamente ilegal – além de totalmente carecido de fundamentação, mas tal não vem arguido – o despacho agravado, ao declarar, sem mais justificações, que Nada há a anular,pois que é patente a omissão de um acto prescrito pela lei e nem o mero facto de a venda já ter sido ordenada e a carta precatória para sua efectivação expedida obviavam à nulidade de todo o processado, a qual deveria ter sido declarada, com as legais consequências, entre as quais a de ser mandada devolver no estado em que se encontrasse a dita carta precatória.
O que, com senso e acerto, tanto exequente como executada aceitaram – quando ouvidos – se determinasse.
E não havendo ainda venda, remição ou pagamento no momento da arguição da nulidade, em bom rigor não será o facto de, após o incorrecto despacho que a indeferiu, os autos terem prosseguido até efectiva realização da venda que deverá levar à relevância da ressalva contida na parte final do citado nº 3 do artigo 864º.
Ainda assim, e por cautela, e visto que antes da subida do recurso o bem penhorado e hipotecado acabou por ser já vendido em negociação particular, pode equacionar-se a questão de em concreto se aplicar ou não a excepção à regra de nulidade decorrente da omissão do acto de citação do ora agravante.
E o ponto fulcral de discussão é o do sentido a dar à expressão exclusivo beneficiário.
Começa-se por referir que a doutrina e a jurisprudência são, com ou sem crítica ao sistema legal, unânimes em interpretar a norma em questão com o sentido de que o exequente só será beneficiário exclusivo quando:
1º For ele o comprador ou adjudicatário, sem que lhe sobrevenha preferência ou remição;
2º Lhe couber em pagamento todo o preço da coisa adquirida.
Esta síntese é colhida do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 77/2002, de 26.2.2002, publicado no Diário da República II série, de 18.7.2002, em que foi por unanimidade decidido não sofrer a norma em apreço de inconstitucionalidade.
Nesse douto aresto se faz, aliás, abundante invocação da doutrina e jurisprudência, desde a opinião de Alberto dos Reis [1], e de Eurico Lopes Cardoso [2] à de Artur Anselmo de Castro [3], todos eles sustentando que o facto de haver transmissão do bem a um terceiro por venda executiva, adjudicação ou remissão tornam o exequente um beneficiário não exclusivo, se bem que o último dos Autores citados não deixe de assinalar que a expressão literal (beneficiário) adoptada na lei parece dizer o contrário [4] e que tal solução foi adoptada exactamente pelo facto de o legislador ter optado por dar predomínio à defesa da posição do adquirente, quando ele não é o próprio exequente, no confronto com o interesse da pessoa que devia ter sido citada, justificando-se tal opção no facto de o adquirente não ter culpa da falta de citação, e de desse modo se proteger o interesse de que os bens sejam vendidos mais facilmente e com maior rendimento (pela segurança conferida à aquisição em execução).
E outros Autores, embora de modo menos desenvolvido, têm sustentado a mesma interpretação. [5]
A tutela do terceiro justifica-se pelo facto de que, estranho que é em relação à execução, difícil ou mesmo impossivelmente poderia exercer acção de vigilância sobre a regularidade das citações de credores.
Ora, como veio a suceder, o adquirente do bem não foi um terceiro, mas o próprio exequente e, depois de dada sem efeito, em sede de reforma nos termos do artigo 669º, nº 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, a sentença de verificação e graduação de créditos, não existe outro credor que possa ser considerado beneficiário da venda (obviamente o pagamento, saindo sempre precípuas do produto dos bens penhorados, das custas da execução, nos termos do artigo 455º daquele Código, não tem qualquer relevância para este efeito), pelo que, ainda que a ressalva do efeito anulatório da parte final do artigo 864º, nº 3 colhesse campo de aplicação possível na hipótese em apreço, sempre seria de anular todo o processado após a omissão da citação do agravante.
Pelo que importa conceder provimento ao agravo, revogando o despacho impugnado e determinando a sua substituição por outro que, anulando todo o processado posterior à omissão da citação do agravante, incluindo a venda efectuada, ordene essa citação, seguindo-se os ulteriores e normais termos da execução.
V – DECISÃO
Nestes termos, acordam em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho impugnado e determinando a sua substituição por outro que, anulando todo o processado posterior à omissão da citação do agravante, incluindo a venda efectuada, ordene essa citação, seguindo-se os ulteriores e normais termos da execução.
Sem custas, por delas estarem isentos os agravados, atento o disposto no artigo 2º, nº 1, alínea g) do Código das Custas Judiciais.
Lisboa, 23 de Outubro de 2008
António Neto Neves
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
______________________________________________________
[1] Em Processo de Execução, vol. 2º, edição de 1982, pág. 240.
[2] Manual da Acção Executiva, edição de 1987, págs. 505-506.
[3] A Acção Executiva Singular, Comum e Especial 3ª edição, 1977, págs. 190 e seguintes.
[4] Mas, embora criticando sob vários pontos de vista a extensão da solução, não põe a mesma em causa e reconhece que tem como razão de ser […] em primeira linha, a protecção ao adquirente dos bens, estranho à execução, com a manutenção dos seus direitos e, indirectamente, a segurança da venda, imunizando-o de todo o risco, e, em segundo lugar, a protecção aos credores a quem tenham já sido liquidados os seus créditos por qualquer forma – págs. 190 e 191.
[5] Designadamente, Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 8ª Edição 2005, pág. 301, Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 3ª Edição, pág. 246-247, José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª Edição, pág. 303, nota 2, Armindo Ribeiro Mendes, Reclamação de Créditos no Processo Executivo, in THEMIS, ano IV, Nº 7. 2003, A Reforma da Acção Executiva, pág. 234-235.