CONTRATO DE SEGURO
INUNDAÇÃO
Sumário

1 – No art. 492º nº 1 do Código Civil a presunção de culpa do proprietário ou do possuidor só funciona se a ruína total ou parcial do edifício ou da obra tiver sido causada por vício de construção ou defeito de conservação, competindo-lhe provar então que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.
2 - No art. 493º do Código Civil o funcionamento da presunção de culpa não tem como pressuposto qualquer vício de construção ou defeito de conservação mas tão só o dever de vigilância da coisa por parte de quem a tem em seu poder com o dever de a vigiar.
3 - Uma tubagem flexível de abastecimento de água embora deva considerar-se parte integrante do prédio pois está ligada à instalação de água do prédio, atento o disposto no art. 204º nº 3 do Código Civil, não é uma componente do prédio pois este continua a existir sem aquela tubagem.
4 - A ruptura de uma tubagem flexível de abastecimento de água no interior de uma habitação não é enquadrável no disposto no art. 492º mas sim no art. 493º, ambos do Código Civil.
(AC)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - A Companhia de Seguros Sa instaurou a presente acção declarativa com processo sumário contra A que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 9.474,50 € acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento.
Alega, em síntese:
- entre a A. e B foi celebrado um contrato de seguro de Multiriscos Estabelecimento com início em 10/8/2001 e que se encontrava em vigor em Setembro de 2002
- em Setembro de 2002 ocorreu uma inundação no estabelecimento do segurado da A. devido a rotura numa das tubagens flexíveis de abastecimento do lava-louça na fracção imediatamente superior propriedade da Ré
- o que causou danos na fracção segura e bem assim a inutilização de produtos, ascendendo os danos ao montante total de 11.030,62 €
- a rotura da tubagem deveu-se a falta de manutenção e conservação da mesma
- por isso, a Ré constituiu-se na obrigação de indemnizar os danos causados
- pelos danos sofridos pelo segurado a A. pagou-lhe a quantia de 9.927,56 €,
- tendo ficado subrogada nos direitos do segurado nos termos do art. 441º do Código Comercial
A Ré contestou invocando, em resumo:
- é parte ilegítima pois é apenas comproprietária do prédio, sendo exigível a presença de todos os interessados
- a existir seguro válido à data do sinistro o mesmo exclui da respectiva garantia as construções de reconhecida fragilidade ou degradação como é o caso do edifício dos autos, pombalino, sem placas de betão a dividir os pisos, que são apenas em madeira, bem como as paredes em ripas finas de madeira revestidas de material sem qualquer resistência
- sendo que, para aguentar o uso pelo decurso do tempo, tem o edifício sido reparado e remendado com materiais igualmente frágeis, que não oferecem segurança a quem quer que seja
- tendo a A. negligenciado, por sua conta e risco, apurar da real situação do prédio à data em que celebrou o contrato de seguro, não podendo imputar responsabilidades a quem quer que seja, quando não cuidou de cumprir as suas próprias normas
- ademais, à data dos factos estavam a decorrer obras pela Câmara Municipal de Lisboa para substituição de canalizações, com valas abertas durante vários dias no passeio, mesmo junto à entrada do prédio e do restaurante do segurado, o que originou alterações dos níveis de pressão de água, contribuindo ou mesmo motivando o desprendimento de bichas de ligação e tubagens em algumas habitações e comércio da zona
- o valor apresentado pela A. não tem fundamento
Conclui pugnando pela sua absolvição da instância por ser parte ilegítima ou, se assim não se entender pela absolvição do pedido e em qualquer caso, pela condenação da Autora como litigante de má fé
A A. respondeu à contestação onde sustentou que o prédio dos autos não se trata de uma construção de reconhecida fragilidade nem se encontra em estado de reconhecida degradação e deduziu incidente de intervenção principal provocada de (…), na qualidade de comproprietários do imóvel
Admitida a intervenção, apresentaram contestação J e M onde concluíram pela sua absolvição do pedido, alegando, no essencial:
- os andares destinados a habitação constituem unidades independentes entre si em termos de uso, pelo que os comproprietários acordaram, desde o início, uma divisão material do gozo do prédio, ao abrigo da faculdade conferida pelo nº 1 do art. 1406º do Código Civil
- a Ré Arminda utiliza em exclusivo o 1º andar, enquanto eles utilizam em exclusivo o 2º andar no qual fizeram obras tendo substituído canalizações de água e instalação eléctrica
- só as despesas decorrentes de zonas de uso ou proveito comum são suportadas por todos os comproprietários
- por isso, a existir responsabilidade pela inundação, apenas pode ser atribuída à Ré A
O interveniente V aderiu ao articulado da Ré A.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto sem reclamação. Foi depois proferida sentença que julgando a acção improcedente absolveu os Réus do pedido e bem assim absolveu a Autora e a Ré Arminda Miguel dos pedidos de condenação por litigância de má fé.

Da sentença interpôs a Autora o presente recurso de apelação apresentando na sua alegação as seguintes conclusões:
1º - Tendo ficado provado que o prédio, composto por três pavimentos (loja, 1º andar e 2º andar) tem mais de 70 anos de construção, que há sensivelmente 10 anos os residentes no 2º andar realizaram no mesmo obras de substituição das canalizações de água, renovação de toda a instalação eléctrica e substituição do soalho por placa de cimento porque as vigas de madeira de apoio existente partiram, é de presumir que o 1º andar, onde residia a Recorrida Arminda, também carecia do mesmo tipo de obras.
2º A recorrida não alegou nem provou que alguma vez procedeu a quaisquer obras de conservação ou manutenção no 1º andar.
3º - Tendo ocorrido uma inundação na loja por água provinda do 1º andar devido a uma ruptura numa das tubagens flexíveis de abastecimento de água, cabia à Recorrida alegar e provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua, nos termos do nº 1 do art. 493º do Código Civil.
4º - E ainda que se venha a entender que é aplicável ao caso dos autos o nº 1 do art. 492º do Código Civil, a Recorrida continua obrigada a indemnizar, já que não ilidiu a presunção de culpa ali prevista.
5º - Era à Recorrida A que cabia o dever de vigilância do andar, das canalizações e tubagens e evitar rupturas, o que não cumpriu.
6º - Tendo ficado provado que a inundação provocou danos que obrigaram à realização de obras, orçamentadas pela recorrente em 10.527,22 €, que esta pagou ao seu segurado em 4/7/2003 9.927,56 € a título de indemnização por tais danos e que ambos acordaram que esse valor correspondia ao valor dos mesmos danos, deve a Recorrida ser condenada a pagar tal quantia,
7º - Se assim não se entender, deve a indemnização ser fixada equitativamente ou, caso também assim não se entenda, deve ser remetida para liquidação em execução.
8º - Foi feita uma errada interpretação dos art. 483º, 492º nº 1 e 493º nº 1, todos do Código Civil
Foi apresentada contra-alegação pela Recorrida A em que são apresentadas as seguintes conclusões:
1º - A Autora não tem razão na pretensão de ver condenada a Ré.
2º - Pelo que bem andou o Mmo Juiz a quo, ao decidir e com os fundamentos ínsitos na mui douta sentença proferida, pela qual absolveu a Ré (e bem assim os restantes Réus)
3º - Ademais, é a própria apólice de seguro da Autora, sob o art. 3º nº 2 al a) das condições gerais, que “exclui da garantia dos danos em construções de reconhecida fragilidade (tais como madeira ou placas de plástico) assim como naquelas em que os materiais de construção ditos resistentes não predominem em, pelo menos 50% nos edifícios … (provado sob o nº 19 da sentença)
4º - E o edifício em questão foi concebido sem placas de betão a dividir os pisos, mas apenas em madeira (provado sob o nº 20 da sentença)
5º - E, à data do sinistro decorriam obras nas canalizações exteriores, com valas abertas durante vários dias mesmo junto à entrada do prédio e do restaurante do Segurado da Autora (provado sob o nº 21 da sentença)
6º - Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, hão-de ter-se por aceites os factos provados pelo Mmo Juiz em 1ª instância. E ficou por provar que a ruptura da tubagem se tenha ficado a dever a falta de conservação ou manutenção. E é esta ausência de prova que impede o funcionamento da presunção do art. 492º nº1 do C. Civil. E essa prova competia à Autora, uma vez que incide sobre factos constitutivos do seu direito de indemnização, em aplicação do disposto no art. 342º nº 1 do C. Civil (Ac. do STJ de 17/3/1977 – BMJ 265º, 233)
7º - O Mmo Juiz a quo fez uma correcta interpretação e aplicação do direito aos factos provados e não provados, não merecendo censura ou reparo a douta sentença proferida, que deverá manter-se

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
II - Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC) – sem prejuízo das questões que o Tribunal deva conhecer oficiosamente - pelo que no presente recurso impõe-se decidir:
a) se a responsabilidade pelos danos causados pela inundação resultante de uma ruptura numa tubagem de abastecimento de água existente no interior de uma fracção de um edifício deriva do disposto no art. 492º do Código Civil ou antes do art. 493º do mesmo diploma legal
b) se a recorrente pode imputar responsabilidades à recorrida Arminda Paula Miguel atenta a apólice de seguro que sob o art. 3º nº 2 al a) das condições gerais “exclui da garantia dos danos em construções de reconhecida fragilidade (tais como madeira ou placas de plástico) assim como naquelas em que os materiais de construção ditos resistentes não predominem em, pelo menos 50% nos edifícios
c) se a recorrida Arminda Paula Miguel deve ser condenada a pagar à Autora a quantia pedida ou, pelo menos uma indemnização fixada equitativamente ou se a sua fixação deve ser remetida para liquidação

III – Fundamentação
A) Os factos considerados provados na sentença são os seguintes:

1) Com base na proposta que se encontra junta aos autos por cópia a fls. 30 e 31, a Autora e A celebraram um contrato de seguro “Multiriscos Estabelecimento”, titulado pela apólice n.º 0000661463 MREST (cfr. o documento de fls. 6 a 29, que se dá por reproduzido).
2) Tal seguro garantia, entre outros, os danos sofridos no mobiliário e equipamento, até ao valor de € 14.963,94, nas máquinas eléctricas e outras, até € 14.963,64, e no recheio do estabelecimento em Lisboa, até ao valor de € 49.879,80 (cfr. o documento de fls. 6 a 29, que se dá por reproduzido).
3) O seguro garantia ainda os danos causados no imóvel onde funcionava o referido estabelecimento, até ao montante de € 64.843,73, incluindo os danos causados por água e inundações (idem).
4) O sobredito seguro foi celebrado por um ano, renovável por iguais períodos, com início em 10/08/2001, mantendo-se em vigor em Setembro de 2002.
5) Em 18 de Setembro de 2002, A participou à Autora que no dia 15 ou 16 desse mês tinha ocorrido um sinistro no referido estabelecimento (cfr. o documento de fls. 32, que se reproduz).
6) Com efeito, A, ao deslocar-se ao estabelecimento, que estivera encerrado para férias, deparou com o mesmo alagado, pingando água do tecto em alguns locais, e noutros escorrendo água pelas paredes.
7) Tal água provinha do andar imediatamente superior, onde tinha ocorrido uma ruptura numa das tubagens flexíveis de abastecimento de água.
8) A Ré não se encontrava no andar, tendo sido através de um familiar da mesma que foi possível aceder ao mesmo e fechar o abastecimento de água.
9) Da inundação resultou a danificação nos tectos e paredes em pladur pintado, descolamento de diversas zonas revestidas a azulejo na área da copa, assim como de mercadorias que se encontravam armazenadas na cave imediatamente abaixo da cozinha.
10) O prédio sito em Lisboa, tem mais de 70 anos de construção.
11) As aludidas danificações obrigaram à realização de obras no estabelecimento, nomeadamente a substituição de pladur nas salas de refeição e cozinha, pintura das áreas de refeição, da cozinha e do armazém, substituição de azulejos, aplicação de isolamentos e a refazer a instalação eléctrica.
12) O que foi orçamentado pela Autora em € 10.527,22.
13) O valor dos produtos alimentares e mercadorias inutilizados apurado pela Autora importou em € 503,40.
14) Em 19 de Dezembro de 2002, a Autora e A acordaram em fixar o valor da indemnização pelos danos ocasionados com a situação acima descrita em € 9.927,56, considerando a existência de uma franquia de 10% a cargo do segurado.
15) A Autora pagou esta quantia ao seu segurado, em 4 de Julho de 2003.
16) A Autora teve despesas com a peritagem do sinistro.
17) A Autora reclamou da Ré o pagamento destas quantias, obtendo dela o reembolso de € 639,52, em 25/03/2003, por conta das despesas com a peritagem do sinistro.
18) A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio sito na Rua Gilberto Rola, em Lisboa, encontra-se registada, na proporção de metade a favor da Ré A e de V, e de metade a favor de J (…) (cfr. a certidão de fls. 73 e 74, que se reproduz).
19) Sob o artigo 3.º, n.º 2, al. a) das Condições Gerais da apólice acima identificada, ficou estabelecido que «não ficarão garantidos os danos em construções de reconhecida fragilidade (tais como as de madeira ou placas de plástico), assim como naquelas em que os materiais de construção ditos resistentes não predominem em, pelo menos, 50%, nos edifícios que se encontrem em estado de reconhecida degradação no momento da ocorrência e, ainda, em quaisquer objectos que se encontrem no interior dos mesmos edifícios ou construções».
20) O edifício em questão foi concebido sem placas de betão a dividir os pisos, mas apenas em madeira.
21) À data do sinistro decorriam obras nas canalizações exteriores, com valas abertas durante vários dias mesmo junto à entrada do prédio e do restaurante do segurado da Autora.
22) O prédio sito na Rua Gilberto Rola, em Lisboa, é composto por três pavimentos: loja, primeiro e segundo andar, sendo estes dois últimos destinados a habitação.
23) O primeiro andar do referido prédio é unicamente habitado e utilizado pela Ré A, enquanto que o segundo andar é habitado e utilizado exclusivamente pelos intervenientes.
24) Com efeito, os co-titulares do referido prédio acordaram na utilização autónoma e independente de cada um dos andares destinados a habitação, celebrando separada e individualmente os contratos de fornecimento de água, electricidade e telefone.
25) Há sensivelmente dez anos, os intervenientes realizaram no segundo andar obras de substituição das canalizações de água e renovação de toda a instalação eléctrica do mesmo.
26) Mudaram a localização dos contadores da água e electricidade, colocando-os no lado exterior da parede de entrada do andar que habitam.
27) Substituíram o soalho, porque as vigas de madeira de apoio existentes partiram, por placa de cimento.
28) Todas estas obras foram feitas a expensas dos intervenientes.

B) O Direito
De harmonia com o art. 441º do Código Comercial o segurador que pagou a deterioração ou perda dos objectos segurados fica sub-rogado em todos os direitos do segurado contra terceiro causador do sinistro.
Por seu turno o art. 593º nº 1 do Código Civil determina que o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.
Como explica José Vasques, «O exercício da sub-rogação depende da verificação de determinadas condições, que passam a enunciar-se:
- que ao segurado assista o direito de acção contra o lesante, isto é,: que haja responsabilidade de terceiro;
- que a seguradora haja indemnizado o seu segurado (…);
- que não existam excepções à sub-rogação, designadamente inimputabilidade do lesante ou inaplicabilidade convencional, total ou parcial, da sub-rogação)» (in Contrato de Seguro, pág. 154/155).
Vejamos então se estão verificados os pressupostos para a sub-rogação invocada, já que a recorrente baseia o seu alegado direito de crédito no facto de ter pago ao seu segurado uma determinada quantia para o ressarcir de prejuízos cuja responsabilidade imputa à recorrida.
Determina o art. 483º nº 1 do Código Civil: «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da sua violação.»
De harmonia com o art. 342º nº 1 do Código Civil «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.»
Está provado que o estabelecimento do segurado da recorrente sofreu uma inundação devido à água que ali entrou proveniente do andar imediatamente superior onde tinha ocorrido uma ruptura numa das tubagens flexíveis de abastecimento de água, andar esse de que a recorrida é comproprietária e que unicamente por si é habitado e utilizado, com exclusão dos outros comproprietários.
Mas entendeu-se na sentença recorrida que as canalizações se inserem na previsão de “obra” contida no art. 492º do Código Civil e que, por não se ter provado qual foi a causa do rebentamento da tubagem de onde resultou a inundação, ou seja, por não se ter apurado em concreto a verificação do circunstancialismo de facto que permite presumir a culpa nem se poder estabelecer qualquer presunção de vetustez ou inadequação da tubagem afectada a partir da antiguidade do edifício e não sendo o caso de responsabilidade objectiva, falecem os pressupostos da responsabilidade civil.
As coisas móveis e imóveis são passíveis de causar dano, carecendo de vigilância com a inerente prevenção, através da sua manutenção e conservação.
O art. 492º do Código Civil, sob a epígrafe «Danos causados por edifícios ou outras obras» estabelece:
«1. O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.
2. A pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra, responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação.»
O art. 493º do mesmo Código, sob a epígrafe «Danos causados por coisas, animais ou actividades» dispõe:
«1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.»
Em nenhum destes normativos se consagra uma responsabilidade objectiva, antes se estabelece presunção de culpa. A presunção de culpa implica uma inversão do ónus da prova mas é ilidível mediante prova em contrário (art. 350º nº 1 do Código Civil).
No art. 492º nº 1 a presunção de culpa do proprietário ou do possuidor só funciona se a ruína total ou parcial do edifício ou da obra tiver sido causada por vício de construção ou defeito de conservação, competindo-lhe provar então que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos. No art. 493º o funcionamento da presunção de culpa não tem como pressuposto qualquer vício de construção ou defeito de conservação mas tão só o dever de vigilância da coisa por parte de quem a tem em seu poder com o dever de a vigiar.
Não é isento de controvérsia o campo de aplicação de cada um destes normativos.
No Ac do STJ de 15/11/2007 (CJ XV, 3º, 156) citado pela recorrente entendeu-se: «O art. 492º nº 1, reporta-se a edifício ou obra que “ruir” ou o edifício em si ou obra que lhe esteja ligada e não se trate de coisa móvel, como ensinam P.Lima e A. Varela.
Ora no caso, não houve ruína do edifício mas, antes, infiltração de água provinda do 1º andar, na sequência do rebentamento da canalização, o que constitui dano causado por coisa imóvel, previsto no art. 493º nº 1 do C.C. »
Também nos Ac da RP de 7/2/2006 (Proc. 0521217, www.dgsi.pt) e RL de 18/5/2006 (Proc. 3465/2006 – 6, www.dgsi.pt) se concluiu que o art. 492º do Código Civil regula no seu nº 1 a situação decorrente de danos causados por edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte não se aplicando às situações em que ocorre uma inundação devido à ruptura de água no interior de um edifício.
No Ac do STJ de 29/4/2008 (Proc. 08A867, www.dgsi.pt) considerou-se que a ruptura de condutas de água para abastecimento à cidade de Lisboa se enquadra no disposto no art. 492º, referindo-se porém: «Não repugnaria considerar que o transporte e abastecimento de água a uma cidade como Lisboa, feita através de condutas de fibrocimento, sendo a água conduzida através de tubagens subterrâneas, submetidas a altas pressões com o inerente risco de ruptura, não sendo facilmente monitorizável o estado da rede através de inspecção directa – o que poderia alertar para a iminência do acidente – constitui uma actividade perigosa pela natureza dos meios utilizados – a condução sob pressão», «Mas seguindo a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal, consideramos que não constitui actividade perigosa em si mesma a actividade da E …».
No Ac da RC de 30/5/2006 (Proc. 185/06 – www.dgsi) refere-se: «A propósito do articulado que esteve na origem do actual art. 492º escreveu Vaz Serra que: “(….) se o dono de uma casa, por exemplo, deve responder pelos danos causados por vícios de construção ou falta de manutenção dela, igualmente deve responder por tais vícios ou falta o proprietário de qualquer obra unida à casa ou ao solo (…). A doutrina legal seria, portanto, aplicável, por exemplo, também a muros de tapagem ou suporte, a diques, a monumentos, a pontes, a aquedutos, a pilares, a máquinas unidas ao prédio, a andaimes, a tendas, a poços, a passeios, a pontes, a canalizações, etc. (…)
Em face de tais considerações, não pode o termoacumulador deixar de cair na previsão do art. 492º ou por – (…) ser uma parte integrante do edifício (cfr art. 204º nº 3, do CC).
Isto é, a aplicabilidade do art. 492º não pode ser afastada.
O que não implica a automática inaplicabilidade do art. 493º. (Os art. 492º e 493º não são de aplicação alternativa).
Se os RR. B… e esposa, proprietários da fracção, vivessem nela, era indiscutível, a nosso ver, que também o art. 493º era ao caso aplicável; a dificuldade reside em a fracção estar, desde 2002, dada de arrendamento.
É que, no art. 493º não se responsabiliza o proprietário, mas sim “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar”.
Pode tratar-se do proprietário da coisa ou animal; mas não tem necessariamente de ser o proprietário (…). É a pessoa que tem as coisas ou animais à sua guarda quem deve tomar as providências indispensáveis para evitar a lesão. Pode tratar-se de um arrendatário, do depositário, do credor pignoratício, etc. (A. Varela CC Anotado, 1º. Vol., 2ª ed., pág. 430).
No caso, estamos, recorda-se, perante uma rotura, com fuga de água, num termoacumulador duma fracção habitacional dada de arrendamento.
Assim, não nos parece que estando a fracção, onde ocorreu a rotura do termoacumulador, dada de arrendamento se possa dizer que o senhorio continue a ter tal fracção em seu poder; uma vez que “poder” significa, aqui, “poder de facto” e não “poder jurídico”.
Quem tem a fracção em seu poder – justamente por lhe ter sido proporcionado o seu gozo (1022º do CC) – é o inquilino, que é a pessoa contra a qual, a nosso ver, pode ser usada a presunção de culpa constante do art. 493º do CC.
Em síntese, o art. 493º - embora aplicável às infiltrações de água provenientes de fracções superiores à do lesado – é apenas aplicável quando é accionado quem tiver o poder de facto sobre a fracção, o que não é o caso dos RR da acção.»
Voltando à concreta situação dos presentes autos temos que ocorreu uma ruptura numa das tubagens flexíveis de abastecimento de água. Uma tubagem flexível de abastecimento de água embora deva considerar-se parte integrante do prédio pois está ligada à instalação de água do prédio, atento o disposto no art. 204º nº 3 do Código Civil, não é uma componente do prédio pois este continua a existir sem aquela tubagem. Também não tem qualquer semelhança com as condutas de abastecimento de água mencionadas no acima citado Ac do STJ de 29/4/2008 ou com outras obras como aquedutos, canais ou albufeiras aludidas por Pires de Lima e Antunes Varela em Código Civil anotado, volt. I, 4ª ed., pág. 493 em anotação ao art. 492º. Considerar-se que a ruptura de um tubo flexível se enquadra na previsão do art. 492º levaria a considerar também que a avaria de uma torneira e a fuga de água daí resultante constitui uma ruína parcial de um edifício ou de uma obra. E isto quando o significado de “ruir” é «cair com estrondo; desmoronar-se», e «desmoronamento» é o mesmo que «desabamento; derrube; demolição» (cfr Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 7ª edição).
Portanto, é nosso entendimento, que a ruptura de uma tubagem flexível de abastecimento de água no interior de uma habitação não é enquadrável no disposto no art. 492º mas sim no art. 493º.
A recorrida Arminda Paula Miguel é comproprietária do primeiro andar onde ocorreu aquela ruptura da tubagem; mas esse andar é habitado e utilizado exclusivamente pela recorrida pois os co-titulares do prédio acordaram na utilização autónoma e independente de cada um dos andares destinados a habitação, celebrando separada e individualmente os contratos de fornecimento de água, electricidade e telefone. Resultando do disposto no art. 1406º nº 1 do Código Civil que os comproprietários podem acordar sobre o uso da coisa comum, é de concluir que a existirem danos causados por aquela ruptura, por eles apenas poderá responder a recorrida A nos termos do art. 493º nº 1 do Código Civil pois só ela tem o “poder de facto” sobre aquele andar de habitação e o dever de proceder à sua vigilância e manutenção.
Provou-se que em consequência da inundação o estabelecimento do segurado da Autora sofreu as danificações descritas no ponto 9 dos factos provados. Para afastar a sua responsabilidade cabia à recorrida A provar que nenhuma culpa houve da sua parte na ruptura da tubagem ou então provar que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua. Mas apenas logrou a recorrida fazer prova de que à data do sinistro decorriam obras nas canalizações exteriores, com valas abertas durante vários dias mesmo junto à entrada do prédio e do referido estabelecimento, não se tendo provado qualquer facto de onde resulte que foram essas obras que causaram a ruptura da tubagem ou sequer que para ela contribuíram.
E assim, perante os factos provados e o disposto nos art. 493º nº 1 e 1406º nº 1 do Código Civil, a recorrida é a responsável pelos danos sofridos no estabelecimento que sofreu a inundação.
Mas vejamos se a Seguradora ora recorrente pode exigir alguma quantia com o fundamento de ter sido accionado o contrato de seguro.
Sustenta a recorrida que a apólice de seguro exclui a garantia dos danos em edifícios como o dos autos pois o edifício em questão foi concebido sem placas de betão a dividir os pisos, mas apenas em madeira.
No artigo 3.º, n.º 2, al. a) das Condições Gerais da apólice acima identificada, ficou estabelecido que «não ficarão garantidos os danos em construções de reconhecida fragilidade (tais como as de madeira ou placas de plástico), assim como naquelas em que os materiais de construção ditos resistentes não predominem em, pelo menos, 50%, nos edifícios que se encontrem em estado de reconhecida degradação no momento da ocorrência e, ainda, em quaisquer objectos que se encontrem no interior dos mesmos edifícios ou construções».
Está provado que edifício em causa tem mais de 70 anos, é composto por três pavimentos – loja, primeiro e segundo andar, sendo estes dois últimos destinados a habitação – e foi concebido sem placas de betão a dividir os pisos, mas apenas em madeira. Desta matéria de facto, da qual apenas podemos afirmar, com certeza, que a divisão entre os pisos é de madeira e que tem mais de 70 anos, não é possível concluir que se trata de edifício de reconhecida fragilidade ou que se encontra em avançado estado de degradação pois nada mais se provou quanto às características desta construção. Por isso, os danos sofridos no estabelecimento estão abrangidos pela apólice em questão.
Dispõe o art. 562º do Código Civil: «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.»
De acordo com o nº 1 do art. 566º «A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor»
No caso dos autos estão provadas as danificações sofridas no estabelecimento do segurado da recorrente, que as mesmas obrigaram à realização de obras e que ficaram inutilizados produtos alimentares e mercadorias. Mas não se provou o custo das obras nem desses produtos e mercadorias, pois apenas se provou que a recorrente orçamentou as obras em 10.527,22 € e que apurou o valor dos produtos alimentares e das mercadorias inutilizados em 503,40 €.
Aliás, resulta da alegação da recorrente que esta admite que não ficou provado o valor dos danos mas apenas que acordou com o seu segurado em fixar o montante dos danos sofridos em 9.927,56 €.
Assim, não tem apoio nos factos provados a pretensão da recorrente no sentido de a recorrida ser condenada a pagar a quantia pedida na acção.
Ainda segundo a recorrente deve pelo menos ser a recorrida ser condenada mediante um juízo de equidade. Não invoca qualquer normativo legal. Mas prevê o nº 3 do art. 566º do Código Civil: «Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados».
Não resulta dos autos a impossibilidade de se determinar o valor exacto dos danos. Por isso, não se justifica o recurso à equidade para fixar o valor da indemnização.
Conclui a recorrente, por fim, que deverá então a recorrida ser condenada no que for liquidado em execução.
Estabelece o art. 661º nº 2 do Código de Processo Civil: «Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.»
Deve, pois a recorrida ser condenada, ao abrigo do disposto no art. 661º nº 2 do CPC na quantia que se liquidar nos termos dos art. 378º e seguintes do mesmo diploma legal, tendo por limite máximo a quantia pedida na petição inicial, ou seja, 9.474,50 € (art. 661º nº1 do CPC) acrescida de juros de mora à taxa legal que se vencerem desde a data da sentença que proceder à liquidação até efectivo e integral pagamento (art. 805º nº 3 – 1ª parte do Código Civil).


*
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação e condena-se a recorrida A a pagar à recorrente a quantia que vier a ser liquidada em sede de incidente de liquidação nos termos dos art. 378º e seguintes do Código de Processo Civil referente à indemnização pelos danos sofridos pelo segurado da recorrente mas tendo por limite máximo a quantia peticionada de 9.474,50 € acrescida dos juros de mora à taxa legal que se vencerem desde a data da sentença que proceder à liquidação e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias pela recorrente e pela recorrida Arminda Paula Miguel provisoriamente em partes iguais, relegando-se a fixação definitiva da responsabilidade por custas para a decisão a proferir no incidente de liquidação.
Lisboa, 11 de Novembro de 2008
Anabela Calafate
Antas de Barros
Folque de Magalhães