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REGIME PROCESSUAL EXPERIMENTAL
LEGITIMIDADE PASSIVA
LEI APLICÁVEL
Sumário
I – Nas acções instauradas ao abrigo do Regime Processual Experimental, na falta de normas específicas previstas naquele Regime relativamente aos pressupostos processuais, nomeadamente à legitimidade processual, deve procurar-se tais regras no Código de Processo Civil. II – Na falta de indicação da lei em contrário, é pela versão dos factos apresentada pelo autor que se afere a legitimidade das partes, nomeadamente do réu. III – Se eventualmente a prova produzida, nomeadamente a documental, contrariar o afirmado na petição inicial quanto à legitimidade do réu, tal não tem como efeito a absolvição da instância da parte demandada, por falta de legitimidade processual, mas a sua absolvição do pedido, por falta de prova do alegado pelo autor. (JL)
Texto Integral
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
Em 08.10.2007 M intentou nos Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca de Almada acção declarativa regulada pelo Dec.-Lei nº 108/2006, de 08 de Junho, contra Município .
Alegou, em síntese, ser rendeira/enfiteuta/cultivadora directa das “Terras da Costa” sitas na freguesia da, concelho de , há mais de quarenta anos. Tais terras foram compradas pelo R., por escrituras de 16.11.1971 e 17.3.1972. A A., por si e seus antecessores, é enfiteuta/arrendatária das referidas “terras” por contrato verbal, celebrado há mais de 100 anos, pagando as respectivas rendas, cultivando as terras e aí fazendo benfeitorias, gozando e fruindo as mesmas.
A A. terminou pedindo que seja declarado que a A. é legítima enfiteuta/rendeira/utilizadora/possuidora das referidas parcelas e edificações nelas existentes e que o Réu seja condenado a reconhecer à A. os referidos direitos e, por via desse reconhecimento, seja judicialmente declarada a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se depois os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando a A. na situação de plena proprietária, radicando a propriedade plena no enfiteuta.
O Réu contestou, negando os direitos que a A. diz ter sobre as terras adquiridas pela Câmara Municipal . Conclui pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.
Em 14.02.2008 foi proferido despacho no qual após se mencionar o teor de uma certidão predial junta ao processo pela A., da qual resultaria que desde 1992 o prédio em causa nos autos é propriedade de outrem que não a Câmara Municipal, ordenou-se a notificação das partes para dizerem o que tivessem por conveniente nomeadamente no que concerne à legitimidade passiva “da referida Ré nos autos”.
A Câmara Municipal pronunciou-se pela sua ilegitimidade passiva e consequente absolvição da instância, por haver contradição entre a acção interposta pela A. e a certidão junta por esta, pois da certidão resulta que a parcela de terreno cujo direito de propriedade se pretende ver reconhecido faz parte do prédio cuja aquisição se encontra registada a favor de C, Lda.
A A. declarou manter a legitimidade do Município e manter igualmente, nos seus precisos termos, todo o teor da petição inicial.
Em 22.4.2008 foi proferido despacho saneador no qual se declarou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva do Município e consequentemente absolveu-se o mesmo da instância.
A A. apelou da decisão, mas o recurso foi admitido como agravo.
A Autora apresentou alegações, em que formulou as seguintes conclusões:
1ª Está devidamente comprovado no presente processo que a C, LDA. não é, nunca foi, nem será proprietária do prédio dos autos e que a C. M. vendeu vários lotes -Docs. n°s 1, 2, e 3 a. até ddddd. )
2ª A C, LDA. apenas celebrou com o Município uma escritura de compra e venda de lote municipal designado por lote 7 que nada tem a ver com o prédio dos autos, conforme melhor consta da certidão junta ao presente processo em 12.2.08, a Fls., como doc. nº 3, ora junto como Doc. nº 1.
3ª Está provado por sentença de 11.10.96, inserida no presente processo em 12.2.08, a Fls., como Doc. nº 5, que:
a. A ré C, LDA. adquiriu o lote designado por nº 7; e
b. A ré C LDA, construiu no lote designado por nº 7.
4ª A documentação obtida recentemente na C. R. Predial comprova, de forma irrefutável a posição assumida pela A. na petição inicial e nos demais requerimentos apresentados ao longo dos presentes autos (Doc. 3 a. até ddddd.).
5ª A descrição na C. R. Predial sob o nº , freguesia , concelho e inscrita a favor da C, LDA. é distinta da descrição do prédio dos autos: são realidades distintas entre si, pelo que a C, LDA. não é, nem nunca foi, nem será a titular inscrita do prédio dos autos, mas sim e apenas do lote 7, pelo que não goza da presunção da titularidade do direito de propriedade do prédio dos autos, que presentemente pertence ao Réu Município e, em consequência não se pode falar de terceiros estranhos à acção, que não existem.
6ª A A. está a demandar o actual proprietário do prédio dos autos.
7ª O réu Município é o proprietário do prédio dos autos e nunca dos nuncas o anterior (!!!) proprietário, pelo que o réu é, assim, parte legítima, titular inscrito, melhor, o único e exclusivo titular inscrito do prédio dos autos.
A agravante terminou pedindo que seja revogada/anulada a decisão recorrida.
O Réu/agravado contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
A. A Autora intentou acção declarativa de condenação contra o Município peticionando a declaração da Autora como legítima enfiteuta/rendeira/utilizadora/possuidora das denominadas "Terras da Costa" e a condenação do Município a reconhecer à Autora os direitos invocados e declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse colocando a ora recorrente na situação de plena proprietária.
B. Proferida decisão pelo Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada foi absolvido o Município da instância com fundamento na sua ilegitimidade passiva.
C. Inconformada com a aludida decisão veio a Autora interpor o presente recurso.
D. Está devidamente provado que a C é a legítima proprietária da parcela de terreno dos autos.
E. Da certidão predial junta pela Recorrente com a Petição Inicial resulta que desde 1992 a proprietária do prédio em causa nos autos é a C - Sociedade de Construções e Empreitadas, Limitada e não a entidade recorrida.
F. A interposição da acção e a junção da certidão do Registo Predial são uma contradição.
G. Por inscrição n.° foi inscrita a aquisição de tal prédio a favor de C, Limitada, com sede em Lisboa, por compra.
H. O Município não é o titular inscrito do direito de propriedade sobre o mencionado prédio, tal direito não lhe pertence e, consequentemente, é parte ilegítima na acção interposta.
I. Em conformidade com o artigo 7° do Código de Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, logo, salvo prova em contrário, o titular do direito de propriedade sobre o prédio em causa pertence à C.
J. Não foram alegados factos pela Recorrente que ilidissem a presunção derivada do registo relativamente ao direito que se encontra inscrito no registo e não foi requerido o cancelamento do registo.
L. A Recorrente alega agora que o direito de propriedade que pretende ver reconhecido incide sobre uma parcela de terreno diferente daquela que foi identificada pela própria Recorrente na sua Petição Inicial, no entanto, continua a não identificar o prédio sobre o qual incide a sua pretensão.
M. O Município é parte ilegítima na acção, pelo que deve a decisão a quo manter-se na ordem jurídica, sem qualquer reparo.
O tribunal a quo sustentou a decisão impugnada.
Foram colhidos os vistos legais. FUNDAMENTAÇÃO
A questão a apreciar neste recurso é se o R./agravado tem legitimidade para ser parte nos autos.
A presente acção foi instaurada ao abrigo do Dec.-Lei nº 108/2006, de 8 de Julho, o qual instituiu um regime processual experimental (RPE) aplicável a acções declarativas cíveis a que não corresponda processo especial, a vigorar por ora em apenas alguns tribunais, entre os quais os Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca de Almada (art.º 21º nº 1 do Dec.-Lei nº 108/2006 e Portaria nº 955/2006, de 13.9).
Subsidiariamente aplicam-se ao aludido regime as disposições gerais e comuns do Código de Processo Civil e, naquilo que aí não vier regulado, o estabelecido para o processo ordinário no referido Código (seja por via do disposto no art.º 463º nº 1 do CPC, por se qualificar o RPE como um processo especial – neste sentido, Mariana França Gouveia, “Regime processual experimental anotado”, Almedina, 2006, pág. 25; Salvador da Costa, “A injunção e as conexas acção e execução”, Almedina, 6ª edição, pág. 41; Luís Filipe Brites Lameiras, “Comentário ao regime processual experimental”, Almedina, 2007, pág. 39; Sónia Alexandra Sousa de Moura, “Breve excurso sobre o regime processual experimental”, Boletim Informação & Debate, V série, nº 5 (Dezembro 2007), Associação Sindical dos Juízes Portugueses, pág. 136; seja por se entender que tal processo, embora comum, deve ser integrado, nas suas lacunas, na falta de disposições do Código de Processo Civil sobre a acção em geral, pelo processo ordinário, por este ser o padrão da acção declarativa – neste sentido, Luís Carvalho Ricardo, “Regime Processual Civil Experimental anotado e comentado”, Cejur, Julho 2007, páginas 7 a 9; António José Fialho, “Simplificação e gestão processual”, in “Regime Processual Civil Experimental”, Conferência na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 16 de Outubro de 2007, Cejur, pág. 68).
Na falta de normas específicas no Regime Processual Experimental, deve procurar-se, pois, no Código de Processo Civil as regras relativas aos pressupostos processuais, nomeadamente à legitimidade processual.
Aplica-se, pois, o disposto no art.º 26º do Código de Processo Civil, cuja redacção actual foi introduzida pelo Dec.-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro e tem o seguinte teor:
“1 – O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer; 2 – O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 – Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
Assim, na falta de indicação da lei em contrário, é pela versão dos factos apresentada pelo autor que se afere a legitimidade das partes, nomeadamente do réu. Ora, na petição inicial a Autora alega, nomeadamente, ser enfiteuta de terras pertencentes ao Réu, situação essa que pretende seja declarada e reconhecida pelo Réu, proprietário das terras, para que se processe a extinção da enfiteuse através da atribuição da propriedade plena à enfiteuta, a ora A.. Daqui decorre que o Réu tem interesse em contradizer, pois na versão da A. a procedência da acção implicará a extinção do seu direito de propriedade sobre as terras de que a A diz ser enfiteuta.
É certo que entre os quinze documentos que acompanham a petição inicial consta uma certidão do registo predial respeitante a um lote de terreno nº 7, com a área de 216 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº desanexado do prédio nº este que, segundo o registo predial, havia sido adquirido pela Câmara Municipal ao Estado) e que, segundo a certidão, foi vendido pela Câmara Municipal a “C, Lda”, conforme inscrição datada de 08.01.1992.
A pretensão do autor e os seus fundamentos devem, como foram, ser expostos na petição inicial, em articulado (art.º 8º nºs 1 e 4 do RPE). Ora, de acordo com o teor da petição inicial (aliás nesta parte não contraditada pelo R. na contestação), a autora tem interesse em demandar e o Réu em contradizer, pelo que ambos são partes legítimas. Se eventualmente a prova produzida, nomeadamente a documental, contrariar o afirmado na petição inicial, tal não tem como efeito a absolvição da instância da parte demandada, por falta de um pressuposto processual, mas uma decisão de mérito, a absolvição do pedido por falta de prova do alegado pelo autor.
De todo o modo, sempre se faz notar que na petição inicial a A. alegou que as parcelas de terreno objecto dos autos têm a área total de 8 278 m2 e de 28 593 m2, sendo 549,21 m2 área de construção (art.º 37º da p.i.). Daí que seja legítimo duvidar que o prédio (ou parcelas de terreno) de que a A. diz ser “enfiteuta” seja o mesmo a que se reporta a aludida certidão (o prédio mencionado na certidão tem, segundo o registo predial, 216 m2 de área).
A questão da exacta identificação do prédio objecto da acção deverá, certamente, ter no processo tratamento mais detalhado, mas não fundamenta, face ao teor da petição inicial, a negação da legitimidade do Município para ser demandado.
O recurso é, pois, procedente. DECISÃO
Pelo exposto, dá-se provimento ao agravo e consequentemente revoga-se a decisão recorrida na parte em que julgou o Réu parte ilegítima e o absolveu da instância e, em sua substituição, julga-se o Réu parte legítima.
As custas do agravo são a cargo do Réu.