ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
SENHORIO
COMUNICAÇÃO
Sumário

I – A cessão de exploração de estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado não necessita de autorização do senhorio, mas sim de comunicação pelo inquilino, sob pena de se constituir para aquele o direito à resolução do contrato de arrendamento.
II – É que, apesar de integrar a universalidade de direitos e obrigações que compõe o estabelecimento comercial, o arrendamento não perde a sua identidade nem o seu regime típico se dilui ou neutraliza no contrato de cessão de exploração.
III – A necessidade desta comunicação está agora prevista no n.º 2 do art.º 1109.º do código civil, com a redacção da lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), sendo uma norma interpretativa e retroactiva que veio resolver dúvidas de hermenêutica.
JAP

Texto Integral

Acordam os juízes na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
M e outros, a primeira residente em Estremoz, a segunda e o terceiro em Lisboa, instauraram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, na forma sumária, contra L, LDA., pedindo que:
a) seja declarado resolvido o contrato de arrendamento sub judice;
b) seja ordenado o despejo imediato do local arrendado.
A Ré contestou no sentido da improcedência. Respondeu o A. e concluiu pela improcedência da excepção.
No saneador foi dispensada a selecção da matéria de facto, com fundamento na sua simplicidade manifesta (fls. 131). Após a audiência, foi a acção julgada improcedente, por não provada, e a Ré absolvida do pedido.
Não conformados, os AA. apelaram, alegaram e concluíram de A) a G), omitindo a letra F):
A. A R. não impugnou os factos afirmados na petição inicial de que a cessão de exploração do estabelecimento instalado nas fracções arrendadas não foi autorizada pelos AA., nem lhes foi comunicada dentro do prazo legal, pelo que tais factos estão provados por acordo.
B. A "ratio legis" e a unidade do sistema jurídico impõem uma interpretação extensiva das disposições do art. 1038.°, f) e g) do Código Civil e do art. 64.°, nº 1, f) do RAU por forma a considerar abrangida por essas disposições a cessão de exploração de estabelecimento instalado em imóvel arrendado, tanto mais quanto é certo que essa cessão envolve, tal como a sublocação, a cedência a terceiro da utilização do local arrendado.
C. Se se entender que tal interpretação não é possível, estaremos perante uma lacuna da lei, que deverá ser preenchida por aplicação das disposições legais atrás citadas, dada a analogia existente entre a cessão de exploração do estabelecimento e a sublocação.
D. No que respeita à autorização pelo senhorio da cessão de exploração, a orientação predominante na Jurisprudência é a de que essa autorização não é necessária.
E. Porém, quanto à comunicação da cessão ao senhorio dentro do prazo estabelecido na lei, a orientação largamente maioritária da Jurisprudência é no sentido de que essa comunicação deve ser feita, sob pena de a cessão ser ineficaz em relação ao senhorio e, consequentemente, ser causa de resolução do contrato de arrendamento.
G. A sentença recorrida violou, por erro de interpretação, as normas legais atrás citadas, pelo que deve ser revogada.
NESTES TERMOS, deve ser concedido provimento ao recurso e, consequentemente, a sentença ser revogada e a acção julgada procedente, com as legais consequências.

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A recorrida apresentou as suas contra-alegações, que concluiu assim:
A. Como contrato atípico que é, a cessão de exploração de estabelecimento comercial não pode ser objecto do normativo constante da al. g) do Art.º 1038° do Cód. Civil,
B. As causas de resolução do contrato por parte do senhorio, constantes da al. f) do nº 1 do art. 64° do RAU, são enumeradas taxativamente, não se encontrando nessa enumeração a cessão de exploração de estabelecimento comercial, consequente mente, esta norma não tem aplicação ao caso em apreço;
C. O capital social da sociedade cessionária, é detido, na sua totalidade pela Ré e pelos seus sócios gerentes, o que permite, desde logo, aos senhorios conhecerem os cessionários;
Nos termos expostos deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a Douta Sentença recorrida, com as legais consequências, por ser de JUSTIÇA!
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
A única questão emergente das conclusões dos Apelantes é a de saber a cessão de exploração de estabelecimento instalado em imóvel arrendado deve ser comunicada ao senhorio.
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II – Fundamentação
A – Factos provados.
A) Encontra-se inscrita a favor dos Autores a propriedade das fracções autónomas identificadas pela letra B – primeiro andar, lado direito e pela letra C – primeiro andar, lado esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Lisboa, o qual se encontra inscrito na matriz predial da freguesia de N. Sra. de Fátima sob o artigo 457;
B) Por escritura notarial de 29.07.1965, a anterior proprietária das fracções identificadas em A), Maria deu-as de arrendamento a V;
C) Por escritura outorgada a 04.12.1981, no 20.º Cartório Notarial de Lisboa, a referida V trespassou o estabelecimento de ensino instalado nas fracções arrendadas, denominado “Externato”, a F;
D) Por escritura outorgada a 08.05.1987, no 20.º Cartório Notarial de Lisboa, F … trespassaram o mesmo estabelecimento de ensino à Ré;
E) Por efeito do mencionado trespasse, comunicado aos Autores, a Ré tornou-se inquilina das fracções referidas em A), passando a explorar o estabelecimento de ensino nelas instalado e a pagar a respectiva renda;
F) Encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa em 29.06.1995, a sociedade por quotas denominada “Externato, Limitada”, constando como sócios a ora Ré, C e I;
G) A sociedade referida em F) tem por objecto o ensino infantil, pré-primário e básico e a sua sede é na Avenida em Lisboa;
H) Por escritura outorgada em 30.05.1995, no 20.º Cartório Notarial de Lisboa, a Ré cedeu a exploração do estabelecimento de ensino denominado “Externato”, à sociedade “Externato, Limitada”;
I) Os Autores enviaram à Ré a carta datada de 31.12.2004, com o conteúdo constante de fls. 37, que aqui se dá por integralmente reproduzido, designadamente que: «na qualidade de senhorios, solicitamos que nos informem a que título os andares são utilizados pela sociedade Externato, Limitada»;
J) A Ré respondeu por carta datada de 25.01.2005, com o conteúdo constante de fls. 38, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente que: «foi realizada uma cessão de exploração da locatária sociedade L, Lda.»;
K) Os Autores enviaram à Ré e esta recebeu, a carta registada com aviso de recepção, datada de 14.04.2005, com o conteúdo constante de fls. 44, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente que: «a cessão de exploração … não foi por nós autorizada, nem nos foi comunicada”;
L) A renda actual das fracções identificadas em A) é de 478,02 euros por mês;
M) Desde 30.05.1995, e já anteriormente, alguns familiares dos Autores, nomeadamente de Maria e de F, frequentaram o externato “O …”;
N) Os Autores Maria e F residem no prédio onde funciona o estabelecimento de ensino em causa;
B – Apreciação jurídica
Como se vê, pela matéria de facto provada, através de uma sucessão de trespasses, em 8 de Maio de 1987, a Ré tornou-se arrendatária comercial das fracções autónomas a que estes autos se reportam. Alguns anos mais tarde, em 30 de Maio de 1995, a Ré cedeu em locação o estabelecimento de ensino ali instalado à sociedade Externato, Limitada. Através deste tipo de contrato transfere-se temporária e onerosamente para outrem o gozo de um prédio e a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, nos termos do art.º 111.º do R.A.U..
Também resulta provado que esta locação de estabelecimento não foi pela Ré comunicada aos AA., a não ser vários anos depois, quando estes a interpelaram sobre a que título estavam os referidos andares a ser utilizados por aquela sociedade (facto I).
Os AA., ora recorrentes, defendem que, embora para a cessão não seja necessária a autorização do senhorio, segundo a jurisprudência, a comunicação deve ser feita, sob pena de a cessão ser ineficaz em relação ao senhorio e, por isso, ser causa de resolução do contrato de arrendamento (conclusões D e E). Por outro lado, na sua conclusão B, os Recorrentes sustentam que a ratio legis e a unidade do sistema jurídico impõem uma interpretação extensiva do art.º 1038.º, als. f) e g), do código civil, e do art.º 64.º, n.º 1, al. f), do RAU, para se considerar aí abrangida a cessão de exploração, uma vez que ela também envolve, tal como a sub-locação, a cedência a terceiro da utilização do local arrendado.
Nas contra-alegações, a Recorrida opõe que, sendo a cessão um contrato atípico, não pode estar sujeita à al. g) do art.º 1038.º do código civil, e que as causas de resolução do arrendamento são as taxativamente enumeradas na al. f) do n.º 1 do art.º 64.º do RAU.
Na sentença recorrida também se entendeu não ser a comunicação necessária e, por conseguinte, julgou-se improcedente a pretensão dos AA., ora recorrentes.
Vejamos quem tem razão.
Dispõe o referido art.º 1038.º que são obrigações do locatário, entre outras, a de não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou autorizar (al. f). Este preceito corresponde ao art.º 64.º, n.º 1, al. f), do Regime do Arrendamento Urbano, segundo o qual, o senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário, nomeadamente, «subarrendar ou emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049.º do Código Civil». Esta enumeração de situações que dão ao senhorio o direito de resolver o contrato de arrendamento não é taxativa (v. entre outros, Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 440).
É também obrigação do locatário, nos termos daquele art.º 1038.º, comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada (al. g).
No entanto, a autorização do senhorio para a celebração do contrato de locação de estabelecimento entre o inquilino e um terceiro tem-se revelado desnecessária, não só como defende a jurisprudência (v.g. ac. do STJ de 24-10-2006, proc.º n.º 2756/06, 1.ª sec., www.dgsi.pt/jstj), mas também segundo a lógica do sistema. Com efeito, se nem para o trespasse, que implica uma mudança de inquilino, essa permissão é requerida, por que haveria ela de ser exigida para a locação do estabelecimento? Se tal autorização fosse necessária, isso constituiria um sério entrave ao desenvolvimento económico por limitar a dinâmica comercial, inclusive a iniciativa empresarial e até mesmo o direito e a liberdade de estabelecimento. Porém, a circunstância de tal autorização não ser obrigatória, não impede que as partes, voluntariamente, estipulem a sua necessidade, não sendo, porém, aqui o caso.
Já a comunicação da cessão ao senhorio tem de ser encarada de maneira diferente, pois trata-se de proteger os interesses do locador sem custos para o locatário cedente. O negócio da cessão em causa implica uma variação na economia do arrendamento, traduzida na cedência do uso do imóvel a outrem, que passa a explorá-lo, sem que o locador saiba que tipo de utilização ali vai ser desenvolvida, a não ser que disso seja devidamente informado pelo inquilino cedente. Além disso, continuando o locador a ser o proprietário, com todos os direitos inerentes a essa sua qualidade, deve ele ser posto ao corrente dos termos e condições em que foi firmado esse contrato, nomeadamente que ramo de negócio vai ser prosseguido na sua propriedade, pois pode existir uma situação que descaracterize a cessão de exploração e a transforme em arrendamento.
É o que acontece quando a cedência do imóvel não seja acompanhada da transferência, em conjunto, das instalações, dos utensílios, das mercadorias ou doutros elementos que integram o estabelecimento. O contrato de cessão também será convertido em arrendamento se, depois de cedido o gozo do prédio, nele passar a exercer-se outro ramo de comércio ou indústria, ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro destino – tudo nos termos do art.º 115.º, n.º 2 ex vi art.º 111.º, n.º 2, do RAU.
Os Recorrentes defendem a interpretação extensiva das als. f) e g) do art.º 1038.º do código civil, a fim de abranger a obrigatoriedade da referida comunicação. E, realmente, o Supremo também já decidiu que «a letra e o escopo finalístico dos mencionados normativos comportam a sua interpretação extensiva» em termos de abrangerem a locação de estabelecimento (acs. cits., proc.ºs n.ºs 1532/07 e 2409/07).
Todavia, salvo o devido respeito, afigura-se questionável a necessidade de interpretação extensiva para impor a obrigatoriedade da dita comunicação à luz dos preceitos em causa. Efectivamente, o arrendamento, apesar de integrar a universalidade de direitos e obrigações que compõem o estabelecimento comercial, não perde a sua identidade nem o seu regime típico se dilui ou neutraliza no contrato de cessão de exploração. A relação jurídica de arrendamento permanece individualizada, sem qualquer modificação subjectiva, continuando assim a implicar direitos e obrigações entre o cedente e o senhorio, que não podem ser desprezados. Por isso, os referidos preceitos nunca deixam de se aplicar directamente logo que se verifique a cedência da coisa locada, quer esta cedência seja ou não integrada numa universalidade.
Noutra perspectiva, sendo o arrendamento um contrato intuito personae, o que significa não ser indiferente ao locador a pessoa do locatário, também não é despiciendo para aquele saber a quem foi cedida a utilização do prédio. Este conhecimento é importante, além do mais, para o senhorio controlar a regularidade da situação fáctica e jurídica do imóvel. Só assim ele poderá acautelar o seu próprio interesse, por exemplo, quanto a um eventual fundamento para transfigurar a cessão em arrendamento, um maior desgaste do prédio, sua degradação e necessidade de obras de conservação. Acresce que, não obstante a importância económica da cessão de exploração, as referidas normas contidas nos citados art.ºs 1038.º do código civil e 64.º do R.A.U., bem como as do art.º 1083.º do código civil, não tutelam só o interesse do locador e o do arrendatário. Subjacente a tais preceitos está igualmente um interesse sócio-económico geral no fomento e na estabilidade do arrendamento, sem oblívio do respeito devido à propriedade privada (art.º 62.º da Constituição), pelo que não podem aquelas disposições ser facilmente postergadas ante um interesse comercial particular do inquilino locador do estabelecimento (cf. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2,ª ed., Almedina, 2006, 350-351). Mais: sendo desnecessária a autorização do senhorio, não se vê como é que a simples comunicação da cessão de exploração do estabelecimento ao senhorio pelo inquilino possa comprometer a dinâmica económica deste negócio ou limitar o exercício da liberdade contratual (a que se refere o ac. do STJ de 16-11-2004, proc.º 2908/04, 1.ª sec., www.dgsi.pt/jstj). Por outro lado, em nome de que princípio económico, social ou político ou ao abrigo de que norma se justifica conceder tão elevadas protecção e desresponsabilização do inquilino e um tão forte constrangimento ao exercício do direito de propriedade do senhorio? Isto porque, na prática, muitas vezes, o que é cedido em exploração não é um verdadeiro estabelecimento comercial, mas apenas o local arrendado, ou pouco mais, sem existir o tal universo de bens materiais e imateriais que caracterizam o aviamento.
Portanto, afigura-se manifestamente indispensável que o senhorio seja informado pelo inquilino da cedência do locado, no âmbito de um contrato de cessão de exploração, sob pena de, como é entendimento maioritário, se constituir para ele um direito à resolução do contrato de arrendamento, nos termos dos art.ºs 64.º, n.º 1, al. f), do R.A.U., e 1038.º, als. f) e g), do código civil (neste sentido, acs. do STJ de: 9-10-2006, proc.º n.º 2463/06, 1.ª sec.; 28-6-2007, proc.º 1532/07, 7.ª sec.; 10-7-2007, proc.º n.º 2409/07, 7.ª sec., www.dgsi.pt/jstj; Manuel Januário Costa Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª edição, remodelada, Almedina, Coimbra, 1991, p. 77; António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), 6.ª ed., Rei dos Livros, Lisboa, 2001, p. 324; Soares Machado e Regina Santos Pereira, Arrendamento Urbano, 2.ª ed., Petrony, Lisboa, 2007, p.183).
Aliás, a desnecessidade de autorização e a obrigatoriedade de comunicação da cessão de exploração ao senhorio constam agora do n.º 2 do art.º 1109.º do código civil, introduzidas pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU). Nesta parte, não há inovação, trata-se antes de uma norma interpretativa que veio resolver as dúvidas de hermenêutica que se colocavam sobre a obrigatoriedade ou não, quer da autorização do senhorio, quer da comunicação a este pelo inquilino. E, sendo interpretativa, a nova disposição integra-se retroactivamente na norma interpretada (art.º 13.º do código civil), razão por que é aplicável no caso destes autos.
Ora, na situação em apreço, não tendo a Ré comunicado aos AA., no prazo legal, a cessão de exploração do estabelecimento instalado no arrendado, deu fundamento à resolução do contrato de arrendamento e ao consequente despejo. Deste modo, o recurso procede e a sentença recorrida tem de ser revogada, declarando-se a resolução do contrato e decretando-se o despejo.
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II – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência:
1) revoga-se a sentença recorrida;
2) declara-se resolvido o contrato de arrendamento dos autos; e
3) ordena-se o despejo imediato do local arrendado.
Custas pela Ré.
Notifique.
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Lisboa, 16-12-2008
João Aveiro Pereira
Rui Moura
Anabela Calafate