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SOCIEDADE POR QUOTAS
ACORDO PARASSOCIAL
CLÁUSULA
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
Sumário
1 –A “C”, tendo por escopo a prestação duma determinada actividade (o abate de animais, industrialização e comercialização de derivados), com vista à obtenção de lucro, é uma sociedade comercial por quotas, e foi isso mesmo que os sócios fundadores pretenderam, o que demonstra a inconsistência de que a “C” seja uma cooperativa. 2ª – Os acordos parassociais são convenções celebradas entre todos ou alguns dos sócios relativos ao funcionamento da sociedade, ao exercício dos direitos sociais ou à transmissão das quotas ou acções. 3ª – Assim, a administração e a fiscalização duma sociedade ficam fora do universo aberto aos acordos parassociais, pelo que as cláusulas neles apostas que pretendam determinar a conduta dos administradores duma sociedade, bem como a sua fiscalização, não são permitidas por lei, pelo que, contrárias à lei, devem considerar-se nulas. 4ª – Para se saber se uma dada cláusula de um acordo parassocial condiciona, limita ou determina actos que sejam da competência exclusiva da administração e assim aferir da sua conformidade ou não com o artigo 17º, n.º 2 CSC, importa determinar a competência entre os órgãos sociais. 5ª – No que respeita às sociedades por quotas, a administração e a representação da sociedade competem aos gerentes, os quais devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios, o que significa que a gerência da sociedade abrange o conjunto de actuações materiais e jurídicas imputáveis a uma sociedade que não estejam por lei reservadas a outros órgãos. 6ª – A cláusula 1ª do acordo parassocial, visando a determinação das tabelas de preços é nula, quer por violar a legislação da livre concorrência, quer por invadir uma área de competência exclusiva do órgão de administração. 7ª – Pela mesma razão – invasão duma área de competência exclusiva do órgão de administração – é nula a cláusula 2ª do acordo parassocial. 8ª – A cláusula 9ª do mesmo acordo é igualmente nula, por manifesta violação do preceituado no artigo 17º, n.º 2 e artigo 64º, ambos do CSC. 9ª – Não constitui abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, a conduta das autoras que, apesar de terem outorgado como partes no contrato parassocial, vieram, volvidos alguns anos, invocar a nulidade de algumas das cláusulas desse contrato. G.F.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
[D] e [G] intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra [C], [AF], [I] e [M], pedindo que:
a) - seja declarada a nulidade das cláusulas 1ª, 2ª e 9ª do acordo parassocial celebrado entre as Autoras e as 2ª, 3ª e 4ª Rés constante do documentos de fls. 90 a 100 dos autos;
b) - sejam as 2ª, 3ª e 4ª Rés condenadas a absterem-se de qualquer comportamento que, com fundamento na alegada violação das referidas cláusulas 1ª, 2ª e 9ª, perturbe o normal funcionamento da sociedade, em particular a convocação da assembleia geral, visando a destituição da gerência, conforme previsto na dita cláusula 9ª;
c) - seja a 1ª Ré condenada a abster-se de dar cumprimento ao previsto nas referidas cláusulas 1ª e 2ª do acordo parassocial.
Fundamentando a sua pretensão, alegam, em síntese, que a cláusula 1ª do acordo parassocial em causa, visando a determinação das tabelas de preços, é nula, quer por violar a legislação da livre concorrência, quer por invadir uma área de competência exclusiva do órgão de administração e, por esta mesma razão – invasão duma área de competência exclusiva do órgão de administração –é nula a cláusula 2ª do mesmo acordo, sendo também nula a cláusula 9ª, por manifesta violação do preceituado nos artigos 17º, nº 2 e 64º, ambos do Código das Sociedades Comerciais (CSC), pelo que não pode a gerência da 1ª Ré estar/continuar vinculada a tais disposições contratuais.
A Ré [MA] contestou, contrapondo que as Autoras não dispõem do necessário interesse de agir, nem possuem legitimidade para a demanda e, face à relação controvertida “desenhada” pelas Autoras, também a Ré C não tem interesse em contradizer a presente acção, não podendo, em C algum, o acordo parassocial (ou algumas das suas cláusulas) serem declarados nulos, considerando que tal acordo é a própria affectio societatis, visando os contratantes com as cláusulas agora postas em crise comprometer-se reciprocamente a actuar contra a gerência da C, para impedir que esta os prejudique ao nível da fixação dos preços a pagar pelos serviços de abate e desmancha e da distribuição dos espaços nas instalações do matadouro, sendo que a vontade das sócias no acordo parassocial foi, afinal, constituir uma pessoa colectiva, cuja administração velasse pelos seus interesses individuais.
Alegou ainda a Ré que a instauração da acção pelas Autoras representa um verdadeiro abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
Termina, pedindo que a acção seja julgada improcedente e procedentes as excepções invocadas.
Responderam as Autoras, opondo-se à procedência das excepções aduzidas pela Ré e concluindo como na petição inicial.
Dispensada a audiência preliminar, foi elaborado despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade activa e passiva suscitadas pela 4ª Ré, concluindo-se desse modo pela existência de todos os pressupostos processuais e pela validade e consistência da instância, com subsequente enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória, com reclamação das Autoras, totalmente desatendida.
Procedeu-se a julgamento, tendo oportunamente sido proferido o despacho que fixou a matéria de facto apurada na audiência, do qual reclamou a Ré, sem sucesso.
Proferida a sentença, foi a acção julgada procedente e, consequentemente, decidiu-se:
a) - Declarar nulas as cláusulas 1ª, 2ª e 9ª do Acordo Parassocial de 29 de Maio de 1996, celebrado entre as Autoras e as 2ª, 3ª, e 4ª Rés;
b) - Condenar as 2ª, 3ª e 4ª Rés a absterem-se de qualquer comportamento que, com fundamento na violação de tais cláusulas, perturbe o funcionamento da sociedade, nomeadamente a convocação da Assembleia Geral com vista à destituição da gerência, conforme previsto na dita cláusula 9ª;
c) - Condenar a 1ª Ré (C) a abster-se de dar cumprimento ao previsto nas cláusulas 1ª e 2ª do dito Acordo Parassocial.
A Ré [MA] recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª – O Tribunal a quo deu como não provados os “quesitos” 6º, 7º e 8º que se mostram suficientemente provados.
2ª – Assim, devidamente valorados esses meios de prova, deverão ser considerados provados os seguintes factos:
a) - «A criação e manutenção da C pelas respectivas sócias tem como único objectivo a utilização comum dos escritórios, do espaço de matadouro, do equipamento e tecnologia para a execução dos abates e dos trabalhadores por conta da C».
b) – «De forma instrumental à satisfação das necessidades individuais das suas sócias».
c) – Vontade e objectivo que se traduziu no acordo parassocial celebrado».
3ª – A Recorrente discorda também da resposta dada pelo Tribunal a quo aos “quesitos”1º e 3º, devendo tais quesitos ser respondidos da forma seguinte:
a) – A principal actividade da C é a prestação de serviços de abate de animais às suas sócias.
b) – O abate de animais é executado por trabalhadores da C e a desmancha de animais é executada por trabalhadores dos sócios.
4ª – A Sociedade C face à estrutura adoptada pelos seus sócios, espelhada no Acordo Parassocial, deverá ser qualificada e entendida nas suas relações internas como Cooperativa.
5ª – O Acordo Parassocial, tal qual foi livremente acordado, revela-se essencial para a existência e determinação do funcionamento da sociedade C, sendo in casu a “affectio societatis”.
6ª – Ao não ter qualificado a C como cooperativa, o Tribunal a quo não fez uma correcta aplicação dos artigos 2º e 3º do Código Cooperativo.
7ª – As cláusulas 1º, 2ª e 9ª do Acordo Parassocial não violam qualquer preceito legal, designadamente não violam os artigos 17º, n.º 2 e 64º do CSC, nem mesmo o artigo 335º do Código Civil, por conseguinte, tendo o Tribunal a quo feito uma incorrecta aplicação desses preceitos no C concreto.
8ª – As referidas cláusulas do Acordo Parassocial deverão manter-se válidas e eficazes perante todas as partes outorgantes.
9ª – A conduta das Autoras configura inequivocamente uma situação de abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, violando assim a decisão do Tribunal a quo o artigo 334º do Código Civil.
As recorridas D e G contra – alegaram, defendendo a bondade da decisão recorrida.
Cumpre decidir:
2.
Na 1ª instância, consideraram-se provados os seguintes factos:
1º - A [D] é uma sociedade anónima resultante da transformação de sociedade por quotas em sociedade anónima da [A] (A).
2º - A C foi constituída por escritura pública de 23 de Maio de 1986, outorgada no 19º Cartório Notarial de Lisboa (B).
3º - A D, a G, a [AF], a I, a [MA] e a Fazenda Nacional são sócias da C (C).
4º - O capital social da C encontra-se representado por 16 quotas, assim distribuídas e tituladas: a D é titular de cinco quotas no valor nominal de € 99.759,58 cada uma; a G é titular de quatro quotas no valor nominal de € 99.759,58 cada uma e de uma 5ª quota no valor nominal de € 5.985,57; A Fazenda Nacional é titular de duas quotas no valor nominal de € 99.759,58 cada uma e de uma 3ª quota no valor nominal de € 93.774,00; a [AF] é titular duma quota no valor nominal de € 99.759,58; a I é titular duma quota no valor nominal de € 99.759,58; a [MA] é titular duma quota no valor nominal de € 99.759,58 (D).
5º - A C tem por objecto o abate de animais, industrialização e comercialização de carnes e derivados e prestação de serviços (E).
6º - A C possui um matadouro, no Milharado, Póvoa da Galega (F).
7º - A G, D, [AF], I e [MA] dedicam-se a actividades relacionadas com o abate de animais, indústria ou comércio de talho (G).
8º - As autoras, e as 2ª, 3ª e 4ª rés, então na qualidade de únicas sócias da C, celebraram, em 29 de Maio de 1996, um acordo escrito, denominado “ Acordo Parassocial” (H).
9º - No referido acordo, as autoras aparecem conjuntamente identificadas como Primeiros Outorgantes, estando as rés, respectivamente identificada como Segundo, Terceiro e Quarto Outorgantes (I).
10º - Após identificação dos outorgantes, determina-se no referido acordo o seguinte:
“Considerando que os primeiros outorgantes constituem um grupo societário que domina a sociedade “C”, detendo cerca de 80% do seu capital social;
Considerando que o segundo, terceiro e quarto outorgantes são sócios minoritários da “C”;
Considerando que as partes contratantes estão empenhadas em viabilizar a “C”;
Considerando que entre os sócios deverá vigorar o princípio da igualdade consignado no Código das Sociedades Comerciais;
Considerando que para o equilíbrio societário é conveniente estabelecer regras de relacionamento dos sócios;
Entre os primeiro, segundo, terceiro e quarto outorgantes é estabelecido e reduzido a escrito o seguinte acordo parassocial:
1ª
1 – As partes contratantes comprometem-se a votar e fazer aprovar em assembleia geral as deliberações que forem necessárias para que as tabelas de preços a praticar pela “C” para com os sócios, para serviços de abate e desmancha, obedeçam aos seguintes requisitos:
a) - Não tenham um diferencial superior a vinte cinco por cento entre o mais baixo e o mais elevado preço por quilo, para o mesmo tipo de animais, sejam quais forem as quantidades de animais abatidos por cada um dos sócios, desde que superiores a um milhão de quilos por ano;
b) - Para os sócios cujos abates não ultrapassem o milhão de quilos/ano, o preço a praticar não poderá exceder um diferencial de vinte seis por cento em relação ao preço por quilo mais baixo praticado para com sócios para o mesmo tipo de animais;
c) - Os preços a praticar para com sócios em C algum poderão exceder os preços de abate a vigorar para com os clientes não sócios para idênticas quantidades, excepto se o contrário for deliberado por maioria não inferior a noventa por cento do capital social;
d) - Os preços a praticar para com os sócios não podem ser inferiores ao custo económico dos serviços prestados, salvo se houver alterações substanciais das condições de mercado e o preço praticado neste for inferior àquele para idênticas quantidades.
2 – Por preços a praticar entendem-se os preços efectivos, abrangendo nomeadamente prémios, “rappelles” ou quaisquer outros benefícios económicos.
2ª
1 – As partes contratantes comprometem-se a votar e fazer aprovar em assembleia geral as deliberações que forem necessárias para:
a) - Manter o uso exclusivo de cada um dos sócios dos espaços de desmancha com as dimensões que actualmente utilizam.
b) - Manter o uso exclusivo de cada um dos sócios dos espaços de escritório e atendimento privado que actualmente utilizam.
2 – Quaisquer alterações às situações descritas nas alíneas do número precedente só poderão ser deliberadas por maioria superior a noventa por cento do capital social, salvo o disposto no número seguinte.
3 – No C de algum sócio reduzir a sua participação no capital da “C”, o espaço a cuja utilização terá direito será apenas o que corresponda à proporção da sua participação no capital social da “C” e desde que mantenha a actividade actual.
3ª
As partes contratantes comprometem-se a não facturar a terceiros serviços de abate directamente prestados pela “C”, excepto nos Cs em que os serviços a prestar impliquem cortes especiais que não podem ser prestados directamente pela “C” em condições de rentabilidade.
4ª
Os primeiros outorgantes comprometem-se a diligenciar para que as sociedades a seguir indicadas continuem a recorrer aos serviços da “C”, a preços de tabela para público, com facturação directa por esta última sociedade: [M]; [CN]; [SCS]; [BR].
5ª
1 – As partes contratantes comprometem-se a votar e fazer aprovar em assembleia geral orçamentos e princípios de gestão com pressupostos realistas tendentes à viabilização da “C”.
2 – Com ressalva do estipulado no número anterior, as partes contratantes comprometem-se a dar prioridade aos sócios na execução dos serviços diários de abate.
6ª
1 - As partes contratantes comprometem-se a votar e fazer aprovar em assembleia geral as deliberações que forem necessárias para pôr em vigor a partir de 1 de Junho de 1996 a tabela de preços em anexo (Anexo I).
2 – Os preços de abate e desmancha a praticar para com os primeiros outorgantes, a partir da presente data e até ao fim do ano de 1997, não poderão ser inferiores a Esc. 15$00 por quilo, tendo em conta prémios, “rappelles” e quaisquer outros benefícios económicos, excepto se for deliberado diversamente por maioria não inferior a noventa por cento de capital social.
3 – Não obstante a tabela de preços referida no número 1 desta cláusula só entrar em vigor no dia 1 de Junho de 1996, as partes contratantes comprometem-se a votar e fazer aprovar em assembleia geral as deliberações que forem necessárias para os seus efeitos se retrotraírem a 1 de Abril de 1996, procedendo-se às correspondentes correcções de facturação.
4 – Os valores indicados nas cláusulas 7ª e 8ª deste contrato já incluem a correcção de facturação indicada no número anterior relativamente ao mês de Abril de 1996, pelo que os referidos valores deverão ser aditados apenas das correcções de facturação correspondentes ao mês de Maio de 1996.
7ª
As partes contratantes reconhecem que nos anos de 1995 e 1996 vigoraram, na “C”, tabelas de preços, que implicaram pagamentos dos outorgantes, que devem ser corrigidos nos termos a seguir indicados:
a) - O primeiro outorgante A tem direito a uma correcção da facturação que lhe conceda um crédito total de 12.129.570$00 correspondente ao mês de Abril de 1996.
b) - O segundo outorgante tem direito a uma correcção da facturação que lhe conceda um crédito total de 20.941.829$00, correspondente aos seguintes anos:
Ano de 1995: Esc. 15.801.941$00
Ano de 1996: Esc. 5.139.888$00
c) - O terceiro outorgante tem direito a uma correcção da facturação que lhe conceda um crédito total de 10.201.134$00, correspondente aos seguintes anos:
Ano de 1995: Esc. 7.331.732$00
Ano de 1996: Esc. 2.869.402$00
d) - O quarto outorgante tem direito a uma correcção da facturação que lhe conceda um crédito total de 6.711.351$00, correspondente aos seguintes anos:
Ano de 1995: Esc. 3.849.792$00
Ano de 1996: Esc. 2.861.559$00
8ª
1 – As partes contratantes comprometem-se a votar e fazer aprovar em assembleia geral as deliberações necessárias para que sejam emitidas notas de crédito a favor dos outorgantes, dos montantes indicados na cláusula precedente, a aplicar aos pagamentos que estes tenham de efectuar à “C”, até ao fim do ano de 1997, da seguinte forma:
a) – Ao primeiro outorgante ARLOP será creditada mensalmente a importância de 606.479$00, a partir de Maio de 1996 até 31 de Dezembro de 1997, nas facturas da “C” relativas a serviços de abate e desmancha;
b) - Ao segundo outorgante será creditada mensalmente a importância de 1.047.091$00, a partir de Maio de 1996 até 31 de Dezembro de 1997, nas facturas da “C” relativas a serviços abate e desmancha;
c) - Ao terceiro outorgante será creditada mensalmente a importância de 510.057$00, a partir de Maio de 1996 até 31 de Dezembro de 1997, nas facturas da “C” relativas a serviços abate e desmancha.
d) - Ao quarto outorgante será creditada mensalmente a importância de 335.568$00, a partir de Maio de 1996 até 31 de Dezembro de 1997, nas facturas da “C” relativas a serviços abate e desmancha.
2 – Os valores indicados nas alíneas do número precedente deverão ser aditados das correcções de facturação resultantes do estipulado no número 4 da precedente cláusula 6ª.
9ª
No C de a administração da sociedade não actuar em conformidade com o estipulado nos artigos anteriores, as partes contratantes comprometem-se a diligenciar para que sejam aplicados e respeitados os princípios e medidas estabelecidos no presente acordo e, C assim não aconteça, a destituir imediatamente os gerentes ou administradores que a tal se oponham e a fazer eleger outros que se comprometam a actuar em conformidade com o presente acordo.
10ª
O segundo outorgante obriga-se a desistir do pedido do processo n.º 20/96, que corre seus termos pela 1ª secção do Tribunal Judicial de Mafra.
11ª
As partes contratantes comprometem-se a não deliberar nenhum aumento de capital social da “C”, sem que seja reconhecido o direito de preferência dos sócios na proporção das respectivas quotas ou acções, a menos que a deliberação seja tomada com o acordo unânime das partes contratantes.
12ª
1 – As partes contratantes comprometem-se, em qualquer cessão total ou parcial das respectivas quotas, a incluir uma cláusula que vincule os cessionários às obrigações decorrentes do presente acordo parassocial.
2 – O estipulado no número precedente aplicar-se-á igualmente às acções no C de a “C” se vir a transformar em sociedade anónima.
13ª
Qualquer violação, por acção ou omissão, ao presente acordo parassocial fará incorrer solidariamente a parte ou partes faltosas na obrigação de indemnização aos outros outorgantes do prejuízo efectivo (danos emergentes e lucros cessantes) que sofreram com a falta cometida.
14ª
A eventual nulidade de algumas participações ou cláusulas do presente acordo parassocial não determina a invalidade das restantes.
15ª
Quaisquer alterações ao presente acordo só serão válidas se constarem de documento escrito assinado por todas as partes.
16ª
O presente acordo social vigorará, com as necessárias adaptações, em C de transformação da “C” em sociedade anónima.
17ª
Para todas as questões emergentes da interpretação ou aplicação do presente acordo será competente o foro da comarca de Lisboa com renúncia expressa a qualquer outro.
Feita em Milharado, aos 29 de Maio de 1996
(...)
11º - As sócias da C dispõem, nas instalações desta, de espaços para seu uso exclusivo, quer na parte dos escritórios, quer na parte do matadouro (K).
12º - A principal actividade da Ré C consiste no abate de animais dos sócios e, presentemente, destes, apenas as Autoras aí abatem suínos, representando esse abate mais de 90% do total dos abates realizados (quesito 1º).
13º - Menos de 10% dos abates realizados na C respeitam a animais de terceiros (quesito 2º).
14º - A desmancha de animais das sócias da C é executada por trabalhadores destas ou por elas contratados para o efeito (quesito 3º).
15º - Nos últimos exercícios, a C não tem gerado lucros (quesito 4º).
16º - Nos anos em que a C gerou lucros, o seu volume era insignificante para efeitos de distribuição de dividendos às suas sócias (quesito 5º).
3.
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, n.º 3 e 690º, n. os 1 e 3), salvo questões de conhecimento oficioso (artigo 660º, n.º 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões:
a) – Reapreciação da matéria de facto;
b) – Saber se a Sociedade C, face à estrutura adoptada pelos seus sócios, espelhada no Acordo Parassocial, deverá ser qualificada e entendida nas suas relações internas como Cooperativa.
c) - Saber se são ou não nulas as cláusulas 1ª, 2ª e 9ª do acordo parassocial em discussão nos autos;
d) - C se conclua pela nulidade destas cláusulas, saber se a invocação desta nulidade por parte das Autoras se traduz numa situação de abuso de direito, nomeadamente na vertente do venire contra factum proprium.
3.1. Da impugnação da matéria de facto.
Tendo a prova sido objecto de gravação e tendo a recorrente dado cumprimento aos ónus previstos no artigo 690º-A CPC, cumpre conhecer da impugnação da matéria de facto (artigo 712º, n.º 1, alínea a).
A recorrente discorda da resposta dada pelo Tribunal a quo aos “quesitos” 1º e 3º e considera ainda que deveriam ter sido considerados provados os “quesitos” 6º, 7º e 8º.
Os factos que estes “quesitos” consubstanciam foram alegados pela ré, como matéria de excepção, sobre ela recaindo consequentemente, o ónus da prova (artigo 342º, n.º 2 do Código Civil).
Sustenta a Ré que, atendendo ao seu funcionamento, actividade e gestão, a C não é uma sociedade comercial mas sim uma cooperativa.
Defendendo esta tese, alega que “o cerne da actividade da «C» é a prestação de serviços de abate e desmancha de animais, às suas sócias G e D, as Autoras, e [AF], I e [MA], ora ré” (quesito 1º).
E acrescenta que “os abates e a desmancha de animais dos sócios da «C» são essencialmente executados por trabalhadores contratados por estes” (quesito 3).
À primeira questão respondeu o Tribunal a quo que “a principal actividade da «C» consiste na prestação de serviços de abate de animais dos sócios, sendo que, presentemente, destes apenas as Autoras aí abatem suínos, representando esse abate mais de 90% do total dos abates realizados”.
A discordância da recorrente em relação à resposta dada a este quesito prende-se com o esclarecimento que é feito quanto à realidade presente, a saber, que, “no presente, a C só presta serviços de abate às autoras”. Segundo ela, este esclarecimento não é determinante do ponto de vista jurídico para a boa decisão da causa, (aferir da affectio societatis da C), porquanto “para a boa decisão da causa há que atentar na realidade ao tempo da constituição da C e desde então».
Ora, salvo o devido respeito, foi essa realidade que o Tribunal a quo quis transmitir de forma inequívoca. A resposta explicativa do Tribunal foca não só a realidade presente como também a realidade que vigorou desde o tempo da constituição da C.
Embora a C tenha sido constituída para servir os sócios, todos eles e não apenas alguns, o certo é que, no momento presente, apenas as Autoras aí abatem suínos, representando esse abate mais de 90% do total dos abates realizados.
À segunda questão, «se os abates e a desmancha de animais dos sócios da C são essencialmente executados por trabalhadores contratados por estes», respondeu o Tribunal de forma restritiva, considerando apenas provado que “a desmancha de animais dos sócios é executada por trabalhadores destes ou por eles contratados para o efeito”.
E com razão. As testemunhas ouvidas referem de forma clara e em uníssono que apenas o trabalho de desmancha de animais era executado por trabalhadores dos sócios ou por trabalhadores contratados pelos sócios, que laboravam nas instalações da C, usando equipamento e instrumentos de trabalho da C.
Quesitos 6º, 7º e 8º:
Segundo defende a Recorrente, estes quesitos deveriam ter sido considerados provados.
A Recorrente, ao alegar a matéria em que se decompõem estes quesitos, visava demonstrar que o interesse dos sócios da “C”, que os leva a manter esta sociedade em actividade, não é a realização do lucro, mas utilizar, comummente , os escritórios, o espaço de matadouro, o equipamento e tecnologia para a execução dos abates, os trabalhadores por conta da “C”, etc.
Enfim, é cooperar esforços e recursos para obter a satisfação imediata das suas (deles, sócios) necessidades individuais.
Ora, tendo resultado provado que a “C” se destinava a geral lucros, como se infere da resposta dada aos quesitos 4º e 5º, não podia considerar-se provado o seu contrário, consubstanciado nos quesitos 6º, 7º e 8º.
Aliás, no sentido que a “C” se destinava a dar lucros, são claros os depoimentos de (...), que depuseram com conhecimento dos factos e isenção.
Improcede, portanto, esta primeira pretensão da recorrente, confirmando-se a decisão proferida acerca da matéria de facto pelo Tribunal a quo.
3.2.
Considera a Recorrente que, aquando da constituição da «C» não se tinha pretendido constituir uma sociedade comercial por quotas mas sim uma cooperativa, adiantando que o Acordo Parassocial é o reflexo desta intenção.
Todavia, a Recorrente, embora pareça pretender sufragar a existência de vícios de vontade por parte dos quinze sócios fundadores da sociedade, o certo é que não define se estaríamos perante uma divergência entre declarações negociais dos contraentes, que declararam constituir entre si uma sociedade comercial por quotas, e a vontade real dos mesmos, que, afinal, não queriam constituir aquela figura societária, mas uma outra, uma cooperativa, com o intuito de enganar terceiros ou se perante um erro na declaração.
Atendo-nos, assim, aos elementos constantes dos autos, poder-se-á dizer que a Recorrente não tem manifestamente razão.
Aliás, como a Ré reconhece, seria determinante para a procedência desta sua pretensão a alteração da resposta dada aos “quesitos” 6º a 8º.
Continuando a considerar-se tais quesitos como não provados, desde logo deixe de ter qualquer suporte a pretensão da Ré.
Pelo contrário, os factos considerados provados fazem-nos concluir que a “C” é uma sociedade comercial.
O nosso direito positivo não nos fornece um conceito completo de sociedade comercial. Com efeito, o n.º 2 do artigo 1º do CSC considera que “são sociedades comerciais aquelas que tenham por objecto a prática de actos de comércio e adoptem o tipo de sociedade em nome colectivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em comandita por acções”.
Este preceito apenas refere quais são os requisitos para que uma sociedade se considere comercial (objecto comercial e tipo comercial), mas não nos diz o que é uma sociedade.
Temos, pois, que recorrer à lei civil, como direito subsidiário (artigo 3º do C. Comercial). “Parece, com efeito, que o legislador comercial subentendeu que o conceito de sociedade pertence ao direito privado geral, sendo válido tanto para o direito civil como para o direito comercial. E, assim, a sociedade comercial é uma sociedade, obedecendo às características definidoras do artigo 980º do C. Civil, acrescidas dos requisitos específicos constantes do n.º 2 do artigo 1º do CSC[1]”.
Quer isto dizer que a sociedade comercial é uma espécie dentro do género sociedade, configurado pelo direito civil, como direito privado comum: é uma sociedade (nos termos concebidos pelo artigo 980º do C. Civil) com objecto e tipo comerciais (caracteres a que se reconduzem os requisitos do n.º 2 do artigo 1º do CSC.
Assim, em face do artigo 980º do C. Civil, deparam-se-nos quatro elementos do conceito geral de sociedade:
a) – Elemento pessoal: pluralidade de sócios;
b) – Elemento patrimonial: obrigação de contribuir com bens ou serviços;
c) – Elemento finalístico (fim imediato ou objecto): exercício em comum de certa actividade económica que não seja de mera fruição;
d) – Elemento teleológico (fim mediato ou fim stricto sensu): repartição dos lucros resultantes dessa actividade.
“Note-se que a circunstância de o fim lucrativo ser da essência do conceito de sociedade não implica que esta tenha necessariamente de produzir lucros. Uma sociedade não deixa de o ser se e enquanto não produzir lucros, mesmo que a não lucratividade efectiva perdure por muitos anos, ou mesmo por toda a sua existência. O que é essencial é que os sócios tenham o intuito de conseguir lucros, que essa seja a sua finalidade última, através da actividade social a ela apta e predisposta”[2].
Por sua vez, o artigo 1º, n.º 2 do CSC indica dois elementos específicos do conceito de sociedade comercial:
a) – Objecto comercial: prática de actos de comércio;
b) – Tipo comercial: adopção de um dos tipos configurados e disciplinados na lei comercial.
Cooperativa é uma associação autónoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades económicas, sociais e culturais comuns, por meio de uma empresa de propriedade colectiva e democraticamente gerida. As cooperativas baseiam-se em valores de ajuda mútua e responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Ou, no dizer do artigo 2º, n.º 1 da Lei n.º 51/96, de 7 de Setembro, cooperativas são pessoas colectivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles.
Assim, enquanto a sociedade cooperativa é uma sociedade de pessoas, a sociedade mercantil é uma sociedade comercial.
A sociedade cooperativa tem como objectivo principal a prestação de serviços económicos ou financeiros, o objectivo principal da sociedade mercantil é o lucro.
A sociedade cooperativa tem um número ilimitado de cooperantes. A sociedade mercantil (anónima) tem um número ilimitado de accionistas.
Nas cooperativas, há um controle democrático, pois que uma pessoa tem apenas um voto. Em contrapartida, na sociedade anónima cada acção representa um voto.
Nas assembleias das cooperativas, o quorum é baseado no número de cooperantes, enquanto nas sociedades mercantis o quorum é baseado no capital.
Nas cooperativas, não é permitida a transferência das quotas – partes a terceiros, estranhos à sociedade. Nas sociedades mercantis, é permitida a transferência de acções a terceiros.
Nas cooperativas, o retorno dos excedentes é proporcional ao valor das operações. Nas sociedades mercantis, o lucro é proporcional ao número de acções ou ao valor das quotas.
In casu, ficou provado que a sociedade “C» foi constituída por escritura pública de 23 de Maio de 1986, outorgada no 19º Cartório Notarial de Lisboa, então por quinze sócios (Fls. 197 a 215).
O Acordo Parassocial só viria a ser outorgado em 29 de Maio de 1996, ou seja, mais de dez anos depois da constituição da sociedade e apenas por cinco dos quinze sócios que haviam outorgado a escritura de constituição de sociedade.
Este facto só por si demonstra a inverdade da tese defendida pela Recorrente.
Nos termos da aludida escritura, a «C» é uma sociedade comercial por quotas e foi isso mesmo que os sócios fundadores pretenderam, tendo como objecto a prestação duma determinada actividade (abate de animais, industrialização e comercialização de derivados), com vista à obtenção de lucros.
Atendendo, assim, ao escopo da «C», tanto basta para demonstrar a inconsistência da tese sufragada pela Recorrente, no sentido de que a «C» seria uma cooperativa.
3.3.
Em 29 de Maio de 1996, os então sócios da sociedade C outorgaram o acordo parassocial (fls. 90 a 99 dos autos), contendo dezassete cláusulas, através do qual visavam criar regras que disciplinassem o direito de voto em assembleia geral, em relação, entre outros, aos seguintes assuntos:
a) – Tabelas de preços a praticar pela sociedade relativamente aos serviços de abate de animais, criando-se um complexo sistema de cálculo dessas tabelas em nome duma pretendida igualdade entre sócia maioritária – que abate um grande número de animais – e os sócios minoritários – que, comparativamente, abatem um número de animais muito inferior ao dos sócios maioritários – Cláusula 1ª.
b) – O uso exclusivo por cada um dos sócios dos espaços de desmancha, escritório e atendimento privado que, à altura da subscrição do acordo, já usavam – Cláusula 2ª.
c) – A obrigatoriedade de destituição dos gerentes da «C» que não dessem ou não viessem a dar cumprimento às disposições contratuais constantes do ACORDO – Cláusula 9ª.
A pretensão dos Autores em ver declarada judicialmente a nulidade das cláusulas – 1ª, 2ª e 9ª – do mencionado acordo parassocial foi acolhida, tendo a acção sido julgada procedente.
Discorda da decisão a Recorrente. Sustenta que as aludidas cláusulas não violam os artigos 17º, n.º 2 e 64º do CSC, nem mesmo o artigo 335º do Código Civil, como a sentença considerou, pelo que não seriam nulas.
Também nesta parte não tem a Recorrente razão.
Os acordos parassociais são convenções celebradas entre todos ou alguns dos sócios relativos ao funcionamento da sociedade, ao exercício dos direitos sociais ou à transmissão das quotas ou acções[3].
O artigo 17º CSC, epigrafado «acordos parassociais», estabelece o seguinte:
1 - Os acordos parassociais celebrados entre todos ou entre alguns sócios pelos quais estes, nessa qualidade, se obriguem a uma conduta não proibida por lei têm efeitos entre os intervenientes, mas com base neles não podem ser impugnados actos da sociedade ou dos sócios para com a sociedade.
2 - Os acordos referidos no número anterior podem respeitar ao exercício do direito de voto, mas não à conduta de intervenientes ou de outras pessoas no exercício de funções de administração ou de fiscalização.
3. São nulos os acordos pelos quais um só sócio se obriga a votar:
a) - Seguindo sempre as instruções da sociedade ou de um dos seus órgãos;
b) - Aprovando sempre as propostas feitas por estes;
c) - Exercendo o direito de voto ou abstendo-se de o exercer em contrapartida de vantagens especiais.
Passando a analisar o preceito, nota-se em primeiro lugar a equiparação, para este efeito, dos acordos celebrados entre todos os sócios e os acordos celebrados entre alguns sócios. Ficam assim excluídos do âmbito do preceito os acordos celebrados, entre, por um lado, todos ou alguns sócios e, por outro lado, um terceiro não sócio, ou a própria sociedade.
Torna o preceito claro que do acordo deve resultar uma obrigação. Obrigam-se os intervenientes a uma conduta. A única especificação dessas possíveis condutas é a não proibição por lei, o que parece supérfluo dizer, pois não seria razoável supor que, por o acordo ser parassocial, a sua validade não dependeria da licitude do objecto.
Assim, os acordos parassociais apenas têm eficácia obrigacional, isto é, apenas produzem efeitos entre os sócios subscritores, pelo que, sendo a sociedade um terceiro em relação ao acordo, não podem ser impugnados actos da sociedade ou dos sócios para com a sociedade, com fundamento na eventual violação desse mesmo acordo.
O n.º 2 do artigo 17º, após ter declarado peremptoriamente a licitude dos acordos parassociais respeitantes ao exercício do direito de voto, dispõe que tais acordos não podem respeitar à conduta de intervenientes ou de outras pessoas no exercício de funções de administração ou fiscalização. “Mas esta disposição deverá ser interpretada restritamente no sentido de só não serem permitidas as cláusulas que imponham aos titulares dos referidos órgãos condutas concretas, pois, aí estariam a ser desviados poderes legais dos referidos órgãos”[4].
Tal como considerou a sentença recorrida, aderindo aos doutos argumentos aduzidos pelos autores nos articulados, a razão de ser deste preceito afigura-se clara. Admitir acordos parassociais com incidência na administração e na fiscalização da sociedade equivaleria a permitir, de forma indirecta, uma organização diferente da constante do pacto social, a qual estaria/ficaria incólume ao crivo das instâncias fiscalizadoras e cuja verdadeira orgânica escaparia ao controlo de terceiros, nomeadamente os credores sociais.
A tipicidade societária deixaria de fazer sentido, porquanto a verdadeira orgânica seria a resultante do acordo parassocial, podendo assim ser iludidas todas as disposições legais relativas ao pacto social e às suas alterações: escritura, registo, etc.
A limitação prevista pelo nº 2 do artigo 17º do CSC impõe-se ainda por uma outra ordem de razões: o princípio basilar do direito societário, de acordo com o qual os membros dos órgãos sociais devem actuar no exercício das suas funções prosseguindo o interesse da sociedade.
Com efeito, nos termos do artigo 64º do CSC, “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.
A estas vinculações, instruções ou interferências externas ao comportamento dos membros da administração, opõe-se ainda a natureza pessoal das obrigações legais dos administradores para com a sociedade, a ponto de o cargo ter de ser desempenhado por pessoa singular em nome próprio e não em representação do accionista que o indica (artigos 390º, nº 4 e 434º, nº 3, do CSC).
É por isso que, na hipótese de haver acordo parassocial que imponha à administração comportamentos não conformes ao interesse social, não só tais comportamentos são inexigíveis, como há um verdadeiro dever por parte dos administradores de não os cumprir, vinculados que estão, em primeiro lugar, à prossecução dos interesses da sociedade.
Ademais, privilegiando os administradores ou gerentes o cumprimento do acordo parassocial que lhes imponha comportamentos desconformes ao interesse social, correm o risco de incorrer em responsabilidade civil para com a própria sociedade e para com os sócios e terceiros (artigos 72º e 79º, respectivamente).
Em suma: a administração e a fiscalização duma sociedade ficam assim fora do universo aberto aos acordos parassociais, pelo que as cláusulas neles apostas que pretendam determinar a conduta dos administradores duma sociedade (bem como a da sua fiscalização) não são permitidas por lei (artigo 17º, n.º 2 CSC), pelo que, contrárias à lei, devem considerar-se nulas (artigos 280º e 294º Código Civil).
Determinada esta questão, outra há, com ela correlacionada, que consiste em determinar a delimitação da competências entre os órgãos sociais. De facto, só assim se pode saber se uma dada cláusula de um acordo parassocial condiciona, limita ou determina actos que sejam da competência exclusiva da administração e assim aferir da sua conformidade ou não com o artigo 17º, nº 2 CSC.
A este respeito, preceitua o Código das Sociedades Comerciais, no que toca às sociedades por quotas que “a administração e a representação da sociedade competem aos gerentes” (artigo 192º, n.º 1), dispondo o artigo 259º que “os gerentes devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios”.
Donde, perante este quadro, há que concluir que a administração ou gerência da sociedade abrange o conjunto de actuações materiais e jurídicas imputáveis a uma sociedade que não estejam por lei reservadas a outros órgãos.
Em suma: A competência genérica e residual para agir, por parte da sociedade, cabe à administração. É o que resulta dos artigos 259º, para as sociedades por quotas e 405º, nº 1, para as sociedades anónimas.
O exercício acabado de desenvolver tem implicações, não só na análise da legalidade ou ilegalidade das cláusulas constantes dum acordo parassocial, mas também na validade ou invalidade das deliberações sociais tomadas em obediência ao determinados nessas mesmas cláusulas, como muito bem referem as autoras/recorridas.
De facto, preceitua ainda o n.º 1 do artigo 56º CSC:
1 - São nulas as deliberações sociais dos sócios:
(...)
c) - Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;
d) - Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.
Donde, uma eventual deliberação em assembleia geral de matérias de gestão da sociedade (sobre as quais os sócios só podem deliberar a pedido do órgão de administração) está ferida de nulidade sempre que essa deliberação não haja sido tomada a pedido da própria administração.
Aqui chegados, importa, então, indagar se as aludidas cláusulas 1ª, 2ª e 9ª do acordo parassocial atrás referido serão nulas.
O referido acordo visou criar regras que disciplinassem o direito de voto em assembleia geral em relação, entre outros, às seguintes matérias:
a) - Tabelas de preços a praticar pela sociedade relativamente aos serviços de abate de animais, criando-se um complexo sistema de cálculo dessa tabelas em nome duma pretendida igualdade entre a sócia maioritária (que abate um grande número de animais) e os sócios minoritários, que, comparativamente, abatem um número de animais muito inferior aos dos sócios maioritários (cfr. cláusula 1ª);
b) - O uso exclusivo por cada um dos sócios dos espaços de desmancha, escritório e atendimento privado que à altura da subscrição do acordo já utilizavam (cfr. cláusula 2ª);
c) - A obrigatoriedade de destituição dos gerentes da sociedade que não dessem, ou não viessem a dar cumprimento às disposições contratuais constantes do acordo (cfr. cláusula 9ª).
Importa, então, analisar cada uma das referidas cláusulas:
Cláusula 1ª – Tabela de preços.
Ao celebrarem o acordo escrito, denominado acordo parassocial, as partes contratantes, isto é, os sócios da “C”, obrigaram-se, nomeadamente, a votar e fazer aprovar em assembleia geral as deliberações que forem necessárias para que as tabelas de preços a praticar pela “C” para com os sócios, para serviços de abate e desmancha, obedeçam aos seguintes requisitos:
a) - Não tenham um diferencial superior a vinte cinco por cento entre o mais baixo e o mais elevado preço por quilo, para o mesmo tipo de animais, sejam quais forem as quantidades de animais abatidos por cada um dos sócios, desde que superiores a um milhão de quilos por ano;
b) - Para os sócios cujos abates não ultrapassem o milhão de quilos/ano, o preço a praticar não poderá exceder um diferencial de vinte seis por cento em relação ao preço por quilo mais baixo praticado para com sócios para o mesmo tipo de animais;
c) - Os preços a praticar para com sócios em C algum poderão exceder os preços de abate a vigorar para com os clientes não sócios para idênticas quantidades, excepto se o contrário for deliberado por maioria não inferior a noventa por cento do capital social;
d) - Os preços a praticar para com os sócios não podem ser inferiores ao custo económico dos serviços prestados, salvo se houver alterações substanciais das condições de mercado e o preço praticado neste for inferior àquele para idênticas quantidades.
2 – Por preços a praticar entendem-se os preços efectivos, abrangendo nomeadamente prémios, “rappelles” ou quaisquer outros benefícios económicos.
Esta cláusula visa determinar os preços a serem praticados pela «C» como contrapartida dos serviços por si prestados aos sócios no abate de animais, fixando as seguintes limitações:
a) - Os preços para os clientes (não sócios) não podem, em C algum, ser inferiores aos dos sócios para a mesma quantidade de animais (cfr. alínea c) do n.º 1, da cláusula 1ª).
b) – Os preços entre sócios não podem (independentemente da quantidade de animais, mas desde que superiores ou inferiores a um milhão de quilos/ano) ter, entre si, um diferencial, respectivamente, de 25% ou 26% entre o mais baixo e o mais elevado preço por quilo (cfr. alíneas a) e b) do n.º 1, da cláusula 1ª).
Daqui resulta que, ao fixar preços diferenciados de acordo com a quantidade de animais abatidos, em que quanto maior for o número de animais, menor será o preço unitário por quilo abatido, e atentas as limitações atrás referidas e também a circunstância do sócio DILOP abater grandes quantidades e os restantes sócios quantidades bem mais pequenas, a gerência da C, sempre que pretender alterar os preços unitários por quilo (em que, quanto maior for o número de quilos abatidos, menor será o custo unitário por quilo), ver-se-á obrigada a criar:
1 – Uma tabela de preços em harmonia com os escalões de quantidades/preços por si determinada, tabela essa aplicável a todos os clientes e à sócia D;
2 – Sempre que dessa tabela resulte para os restantes sócios subscritores um diferencial superior a 25% ou 26% relativamente ao preço praticado para a D, a criação duma segunda tabela de preços, exclusiva para os sócios com menores abates (tabela essa com preços mais baixos que os praticados para não sócios com a mesma capacidade de abate).
Temos, assim, que o mecanismo criado no acordo parassocial para determinação dos preços a serem praticados pela C aos sócios poderá implicar a existência de preços diferentes entre sócios e não sócios para a mesma prestação de serviços.
Tal situação configura uma violação do artigo 1º do DL nº 370/93, de 29/10, diploma que proíbe práticas individuais restritivas ao comércio, quando determina:
“É proibido ao mesmo agente económico praticar preços ou condições de venda discriminatórias relativamente a prestações equivalente, nomeadamente quando tal prática se traduza na aplicação de diferentes prazos de execução de encomendas ou de diferentes modalidades de embalamento, entrega transporte e pagamento, não justificadas por diferenças correspondentes no custo de fornecimento ou serviço”.
Dispõe, por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo que “são prestações equivalentes aquelas que respeitam a bens ou serviços similares e que não defiram de maneira sensível nas características comerciais essenciais, nomeadamente naquelas que tenham repercussão nos correspondentes custos de produção ou de comercialização”.
Por outro lado, dispõe o n.º 1 do artigo 4º da Lei 18/2003, de 11 de Junho:
“São proibidos os acordos entre empresas, as decisões de associações de empresas e as práticas concertadas entre empresas, qualquer que seja a forma que revistam, que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que se traduzem em:
(...)
e) - Aplicar, de forma sistemática ou ocasional, condições discriminatórias de preços ou outras relativamente a prestações equivalentes”;
Dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que, “excepto nos Cs em que se consideram justificadas, nos termos do nº 5, as práticas proibidas pelo nº 1 são nulas”.
Assim, atendo-nos ao C em apreço, visa-se no acordo parassocial o estabelecimento dum conjunto de regras determinativas do preço pela prestação dum serviço pela C, preço esse que, assim determinado, poderá implicar a existência de preços diferenciados em relação a prestações equivalentes.
Logo, tais disposições são proibidas por lei e, em consequência, nulas.
Ademais, constituindo a determinação do preço de venda das mercadorias ou serviços prestados um acto da exclusiva competência da gerência/administração da sociedade (artigos 259º e 405º do CSC), também por aqui seria nula a cláusula em apreço por violação do disposto no nº 2 do artigo 17º do CSC.
Cláusula 2ª – Utilização dos Espaços.
Nos termos desta cláusula:
1 – As partes contratantes comprometem-se a votar e fazer aprovar em assembleia geral as deliberações que forem necessárias para:
a) - Manter o uso exclusivo de cada um dos sócios dos espaços de desmancha com as dimensões que actualmente utilizam;
b) - Manter o uso exclusivo de cada um dos sócios dos espaços de escritório e atendimento privado que actualmente utilizam.
2 – Quaisquer alterações às situações descritas nas alíneas do número precedente só poderão ser deliberadas por maioria superior a noventa por cento do capital social, salvo o disposto no número seguinte.
3 – No C de algum sócio reduzir a sua participação no capital da “C”, o espaço a cuja utilização terá direito será apenas o que corresponda à proporção da sua participação no capital social da “C” e desde que mantenha a actividade actual.
Relativamente a esta cláusula, que se reporta à utilização dos espaços por parte dos sócios minoritários nas instalações que pertencem à C, valem naturalmente aqui, mutatis mutandis, as considerações feitas relativamente à tabela de preços.
Efectivamente, cabe à gerência/administração disciplinar o uso dos equipamentos sociais e permitir ou não, seja a sócios, seja a terceiros, a sua utilização.
Como tal, tratando-se de uma questão que está na esfera da competência exclusiva da gerência/administração, são nulas as disposições contidas na cláusula 2ª do acordo parassocial, na qual se pretende impor à gerência da C o uso exclusivo por cada um dos sócios dos espaços de desmancha, escritório e atendimento privado que à altura da subscrição do acordo já utilizavam, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 17º do CSC.
Cláusula 9ª – Destituição da Gerência que incumprir o Acordo.
Segundo determina esta cláusula, “no C de a administração da sociedade não actuar em conformidade com o estipulado nos artigos anteriores, as partes contratantes comprometem-se a diligenciar para que sejam aplicados e respeitados os princípios e medidas estabelecidos no presente acordo e, C assim não aconteça, a destituir imediatamente os gerentes ou administradores que a tal se oponham e a fazer eleger outros que se comprometam a actuar em conformidade com o presente acordo.
Esta cláusula é claramente inadmissível face ao preceituado nos artigos 17º, nº 2 e 64º, do CSC, pois que se traduz numa clara intromissão em áreas funcionais da exclusiva competência da gerência da C.
Para além do mais, a aceitação da obrigatoriedade das actuações previstas nessa cláusula configurar-se-ia como uma destituição de gerente sem justa causa e como tal geradora de responsabilidade para a sociedade (cfr. artigo 257º, n.º 7 CSC).
Porém, mesmo que se admitisse estarem os sócios subscritores obrigados a agir em conformidade com o clausulado, sempre estaríamos perante uma situação de conflito de deveres/direitos, com prevalência do direito que deva considerar-se superior, o que, no C concreto, é o direito da sociedade em detrimento dos direitos dos sócios.
Na verdade, perante a colisão ou conflito de deveres que obstem ao cumprimento de um deles ou impeçam o pleno cumprimento de ambos, o devedor deverá cumprir aquele que, atendendo à sua natureza ou características, se deva considerar superior, podendo, para a graduação dos deveres conflituantes, o artigo 335º do CC, servir de referência legal[5].
Conclui-se, assim, que a aludida cláusula é nula (artigo 280º, nº 1, do CC).
3.4. Abuso de direito.
Pretende finalmente a recorrente que o recurso das autoras ao Tribunal, tendo em vista obter a declaração da nulidade das cláusulas em questão, configura uma situação de abuso de direito.
De acordo com o estatuído no artigo 334º do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Assim, para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder[6]. É preciso que o direito seja exercido, em termos clamorosamente ofensivos da justiça[7].
A doutrina tem decomposto o instituto do abuso do direito em várias figuras parcelares, cada uma delas traduzindo um conjunto específico (com características particulares que permitem o seu agrupamento e a sua destrinça dos demais) de comportamentos abusivos e, por isso, inadmissíveis.
Entre tais figuras, temos o venire contra factum proprium, situação em que o exercente deixa entender, ou declara, ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária ou diversa[8].
Em qualquer manifestação de venire contra factum proprium existem dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo, vindo o primeiro - o factum proprium - a ser contrariado pelo segundo. E esta divergência de comportamentos poderá verificar-se quando o decurso do tempo se assuma como expressão da inactividade do titular do direito (factum proprium), suscitando o seu não exercício expectativas sociais de que essa auto – representação se mantém, vindo, em seguida, a verificar-se o facto de sinal contrário com o exercício do direito por parte do seu titular[9].
Nesta vertente, o abuso de direito manifesta-se quando a conduta do seu titular viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou.
Assim, para haver abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, será necessário apurar que a conduta do abusador foi no sentido de criar na outra parte uma expectativa factual, sólida, de poder confiar na manutenção do status quo, vindo o exercício do direito a trair o investimento de confiança feito no âmbito de uma situação concreta onde se demonstre que o resultado da conduta do abusador constitui uma clara injustiça.
Deste modo, a protecção da confiança conferida pela figura do venire contra factum proprium tem como pressupostos uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; e uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no pactum proprium) lhe seja de algum modo reprodutível[10].
Em suma: Como sublinha Baptista Machado[11], o venire contra factum proprium manifesta-se com a verificação dos seguintes pressupostos:
1º - Uma situação objectiva de confiança (uma conduta de alguém que, de facto, possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante e dada a situação futura);
2º - Investimento de confiança (o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma posições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada);
3º - Boa fé da contraparte que confiou (a confiança de terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais do tráfego jurídico.
Segundo a Recorrente, a conduta das Autoras, ao virem invocar a nulidade das aludidas cláusulas, volvidos mais de dez anos sobre a celebração do acordo parassocial, configura uma situação de abuso de direito consubstanciado num venire contra factum proprium.
Ao contrário do pretendido pela recorrente, considerou a sentença, e em nosso entender, bem, que o facto de, só passados mais de dez anos depois de celebrado o acordo parassocial, as Autoras terem vindo a juízo fazer valer os seus direitos, em nada colide com o instituto do abuso de direito.
De facto, não há, em nosso entender, uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.
Na verdade, o artigo 286º do CC consagra a regra de que a nulidade é invocável a todo o tempo, sendo certo que as Autoras, ao pedirem a declaração de nulidade das cláusulas 1ª, 2ª e 9ª do acordo parassocial, nada mais fazem do que exigir que fosse respeitada a legalidade.
O acordo parassocial e, em concreto, as referidas cláusulas não foram estipuladas no interesse das autoras que delas se serviram, enquanto quiseram, para depois virem questioná-las.
Não vemos, pois, como se possa, in casu, fazer apelo aos à boa fé, aos bons costumes e ao fim social e económico para contrariar aquele direito.
O fim social só não seria alcançado se as Autoras não tivessem em devida conta o superior interesse da sociedade.
Os bons costumes só seriam ofendidos se as Autoras com a sua pretensão violassem os ditames da Ética.
Nada, a este respeito, ficou provado.
A invocação do abuso do direito por parte dos recorrentes com vista a obterem a consagração das suas pretensões é, pois, injustificada. Ao proclamarem em vão tal instituto, acabaram, ao cabo e ao resto, por reconhecer o direito que assiste à Autora e traduzido na declaração da nulidade das referidas cláusulas.
A conduta das autoras não permite, assim, concluir que elas actuaram de má fé, com abuso de direito, nem há motivos para se entender que criaram aos restantes sócios da sociedade expectativas e confiança que depois frustraram com a presente acção, abusando do seu direito na vertente do venire contra factum proprium.
Ao contrário do pretendido pela Recorrente, nenhum comportamento das Autoras se provou que permita concluir que aquelas tenham criado nas Rés a ideia de que jamais pediriam a declaração de nulidade das cláusulas em questão.
Poder-se-á, pois, considerar, com garantia, que a conduta das Autoras não caracteriza abuso de direito, tal como ele se encontra plasmado no artigo 334º do Código Civil, sendo pois injustificada a sua invocação pela Ré.
Concluindo:
1 –A “C”, tendo por escopo a prestação duma determinada actividade (o abate de animais, industrialização e comercialização de derivados), com vista à obtenção de lucro, é uma sociedade comercial por quotas, e foi isso mesmo que os sócios fundadores pretenderam, o que demonstra a inconsistência de que a “C” seja uma cooperativa.
2ª – Os acordos parassociais são convenções celebradas entre todos ou alguns dos sócios relativos ao funcionamento da sociedade, ao exercício dos direitos sociais ou à transmissão das quotas ou acções.
3ª – Assim, a administração e a fiscalização duma sociedade ficam fora do universo aberto aos acordos parassociais, pelo que as cláusulas neles apostas que pretendam determinar a conduta dos administradores duma sociedade, bem como a sua fiscalização, não são permitidas por lei, pelo que, contrárias à lei, devem considerar-se nulas.
4ª – Para se saber se uma dada cláusula de um acordo parassocial condiciona, limita ou determina actos que sejam da competência exclusiva da administração e assim aferir da sua conformidade ou não com o artigo 17º, n.º 2 CSC, importa determinar a competência entre os órgãos sociais.
5ª – No que respeita às sociedades por quotas, a administração e a representação da sociedade competem aos gerentes, os quais devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios, o que significa que a gerência da sociedade abrange o conjunto de actuações materiais e jurídicas imputáveis a uma sociedade que não estejam por lei reservadas a outros órgãos.
6ª – A cláusula 1ª do acordo parassocial, visando a determinação das tabelas de preços é nula, quer por violar a legislação da livre concorrência, quer por invadir uma área de competência exclusiva do órgão de administração.
7ª – Pela mesma razão – invasão duma área de competência exclusiva do órgão de administração – é nula a cláusula 2ª do acordo parassocial.
8ª – A cláusula 9ª do mesmo acordo é igualmente nula, por manifesta violação do preceituado no artigo 17º, n.º 2 e artigo 64º, ambos do CSC.
9ª – Não constitui abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, a conduta das autoras que, apesar de terem outorgado como partes no contrato parassocial, vieram, volvidos alguns anos, invocar a nulidade de algumas das cláusulas desse contrato.
4º.
Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Lisboa, 5 de Março de 2009
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela dos Santos Gomes
______________________________________ [1] Pupo Correia, Direito Comercial, 6ª edição, 376. [2] Pupo Correia, obra citada, 393. [3] António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, 2ª edição, 167. [4] António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, 2ª edição, 69. [5] Fernando Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Requisitos da Responsabilidade Civil, Lisboa, 1968, 167 e seguintes. [6] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 10ª edição, 544 e seguintes. [7] Manuel de Andrade, citado por Antunes Varela, obra citada, 545. [8] Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1º Volume, 373.
Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 275 e seguintes. [9] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 813. [10] Menezes Cordeiro, ROA, Ano 58º, Julho de 1998, 964. [11] Tutela de Confiança e Venire contra Factum Proprium, Obra Dispersa, Volume I, 385.