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DIVÓRCIO LITIGIOSO
CONVOLAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
RECONVENÇÃO
Sumário
1. A resposta que excede o âmbito do artigo da base instrutória deve ser considerada não escrita, por analogia com o disposto no artigo 646º, nº 4, CPC. 2. É sobre o autor que impende o ónus da prova da culpa do cônjuge infractor do dever de coabitação. 3. Tendo a acção de divórcio sido intentada com fundamento, designadamente, em violação culposa do dever de coabitação, por o recorrido ter saído do lar conjugal há mais de um ano à data da propositura da acção, pode o tribunal decretar o divórcio, com fundamento na alínea b) do artigo 1781º CC., sem que isso implique convolação da causa de pedir ou excesso de pronúncia. 4. A circunstância de o réu ter contestado a acção de divórcio, deduzindo pedido reconvencional, não obsta a que se considere verificado o requisito da não oposição do cônjuge, previsto na alínea b) do artigo 1781º CC.. (M.P.)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa 1 - Relatório
A intentou acção declarativa especial de divórcio litigioso, contra L, pedindo que fosse decretado o divórcio entre ambos, declarando-se o R. exclusivo culpado.
Alega para tanto, e em síntese, que contraiu matrimónio com o R., e que este saiu de casa em Novembro de 2005, porque passou a viver com outra mulher, sendo vistos juntos e mantendo relacionamento sexual. E que, tendo a A. rescindido o seu contrato de trabalho e recebido a correspondente indemnização que depositou em conta pertencente a ambos, o R. levantou essa quantia, sem sua autorização e consentimento, sabendo que a mesma era essencial para a sua subsistência.
Frustrada a tentativa de conciliação, foi ordenada a notificação do R. para contestar.
Contestou o R. impugnando a factualidade invocada pela A. e afirmando que divergiram em diversos assuntos, tendo ajustado que iriam pôr termo à vida em comum, passando o R. a viver noutra casa pertencente ao casal, não tendo qualquer relação amorosa, e alegando que as quantias que transferiu foram utilizadas para efectuar pagamentos de despesas comuns do casal que a A. se recusava a assumir.
Deduziu reconvenção, pedindo que fosse decretado o divórcio com culpa exclusiva da A..
Replicou a A..
Foi proferido despacho saneador e fixada a matéria de facto relevante.
Efectuado julgamento, foi proferida sentença julgando a acção e a reconvenção improcedentes.
Inconformada, recorreu a A., apresentando alegações com as seguintes conclusões:
«I - Está gravada a prova donde resulta que o R. deixou o lar conjugal em Nov. de 2005; E
II - Que passou a ser visto em diversos locais acompanhado por outra mulher, tida por namorada dele.
III - O R. e essa mulher, uma tal V, passam fins de semana juntos e mantêm trato sexual recíproco.
IV - As respostas às conclusões II e III, que antecedem, devem resultar nos termos e ao abrigo do disposto pelo Art°. 712°, 1/a) do C.P.C..
V - O R. violou, ao longo de mais de dois anos, o dever de coabitação, tendo deixado de residir na casa de morada da família.
VI - O R. apoderou-se do valor indemnizatório arbitrado à A. por ter sido despedida, apesar de saber que a A. ficava desempregada e sem meios de subsistência; Por tal razão,
VII - O R. violou grosseiramente os deveres de cooperação e assistência.
VIII - A A. mantém o propósito de se divorciar, tal como o R..
IX - A grave e repetida violação dos deveres conjugais de coabitação, de cooperação e Assistência - e também de fidelidade ! - pelo R., torna inexigível à A. a possibilidade de vida em comum.
X - O R. deve ser declarado exclusivo culpado.
XI - A A. e o R. estão separados um do outro, a viver em casas separadas, há mais de um ano, sem oposição de qualquer deles.
Assim
Pela culpa reiterada do R. e ao abrigo do disposto pelo Art°. 1779°, n° 1 do C.C. deve ser decretado o divórcio.
O divórcio deveria ainda ser decidido com base na separação de facto dos cônjuges, pelo facto de o R. ter deixado o lar conjugal em Nov. de 2005 e assim se mantendo até ao presente, sem oposição quanto a este facto preciso, como decorre do disposto pelo Art°. 1781°, b) do C.C.».
Não houve contra-alegações.
2. Fundamentos de facto
São os seguintes os factos considerados provados pela 1ª instância:
2.1. A A. e o R. celebraram casamento católico e sem convenção antenupcial em 4 de Setembro de 1982 (alínea A).
2.2. Em Novembro de 2005, o R. saiu de casa (resp. facto 1º)
2.3. Em Novembro de 2006, a A. auferiu a importância de € 17.299,61 relativa a indemnização por rescisão de contrato de trabalho (resp. facto 6º).
2.4. O R. efectuou uma ordem de transferência relativa à importância de € 17.000,00 sem a autorização da A. (resp. facto 7º).
2.5. O R. tinha conhecimento que a A. havia ficado desempregada e que não dispunha de outros rendimentos (resp. facto 8º).
2.6. O agregado familiar da A. e do R. tinha um encargo mensal médio de € 1.500,00 (resp. facto 16º).
2.7. O R. auferia uma remuneração mensal de cerca de € 1.757,00 (resp. facto 17º)
2.8. E a A. auferia uma remuneração mensal de cerca de € 1.200,00 (resp. facto 18º).
2.9. A A. e o R. não pretendem reatar a vida em comum (resp. facto 20º).
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões:
- reapreciação da matéria de facto (artigos 2º a 5º da base instrutória);
- violação dos deveres de fidelidade, coabitação, cooperação e assistência – o ónus da prova da culpa;
- do preenchimento da previsão do artigo 1781, alínea b), CC: a problemática da causa de pedir na acção de divórcio e não oposição do cônjuge.
3.1. Da reapreciação da matéria de facto
Nos termos do artigo 712º, nº 1, alínea a), CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690ºA, CPC, a decisão com base neles proferida.
E, de acordo com o nº 2 do mesmo artigo, no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
O artigo 690º A CPC estabelece os ónus que impendem sobre o impugnante, sob pena de rejeição do recurso:
- especificar quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (nº 1, alínea a);
- especificar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b);
- indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2, do artigo 522º C, quando tenham sido gravados (nº 2).
Importa, pois, em primeiro lugar, verificar se a recorrente deu cumprimento aos ónus que sobre si impendiam.
Quer a matéria de facto impugnada – artigos 2º a 5º da base instrutória -, quer os concretos meios probatórios em que funda a sua pretensão, foram devidamente identificados pela recorrente.
Relativamente ao ónus previsto no nº 2 do artigo em causa, se é certo que a recorrente não indicou os depoimentos por referência à acta de julgamento, nos termos do artigo 522º C CPC, a verdade é que não o podia fazer por da acta apenas constar que o depoimento foi gravado em CD através do sistema Cícero.
Estamos, pois, em condições de apreciar o mérito do recurso.
Relativamente aos poderes conferidos à Relação pelo artigo 712º CPC, desenharam--se duas correntes.
A primeira, mais restritiva, na linha do defendido por Miguel Teixeira de Sousa,
Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pg. 348, resume os poderes do tribunal de recurso a uma intervenção meramente formal, residual, destinada a apurar apenas a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, bastando que a decisão da 1ª instância seja uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, intervindo o tribunal de recurso apenas em caso de erro manifesto, consistente na flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão.
Trata-se da corrente maioritária a nível da Relação, como dá conta o acórdão da Relação de Lisboa, de 08.05.06, Rui Vouga, www.dgsi.pt.jtrl , proc. 10362/2007-1, amplamente documentado.
A segunda corrente, menos representativa a nível jurisprudencial, defende uma leitura mais ampla dos poderes da Relação, considerando que, em sede de reapreciação da prova, a Relação tem os mesmos poderes que a 1ª instância, podendo formar convicção diversa relativamente à matéria impugnada. Neste sentido se pronunciaram, designadamente Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, 2ª edição, pg. 279 e ss., e Amâncio Ferreira, Almedina, 8ª edição, pg. 216 (embora as obras sejam relativas ao novo regime de recursos, reportam-se a jurisprudência anterior, sendo certo que não houve alteração nesta matéria). A nível da jurisprudência refiram-se os acórdãos do STJ, de 07.09.20, 04.10.19 e 03.07.08, CJSTJ, 07, III,58; 04.III,72; e 03, II, 151, respectivamente, e da Relação de Lisboa, 04.11.13, CJ, 04, V,84, todos citados por Abrantes Geraldes.
A segunda corrente é a que melhor se ajusta ao propósito de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, e, como bem observa Abrantes Geraldes, as limitações decorrentes da falta de imediação não devem esvaziar o regime da reapreciação da matéria de facto, mas tão só aconselhar especiais cuidados aquando da reapreciação dos meios de prova produzidos na 1ª instância «evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados» (op. cit., pg. 282).
Passemos então à reapreciação da matéria de facto.
Insurge-se a recorrente contra a resposta negativa à matéria dos artigos 2º a 5º da base instrutória.
É o seguinte o teor dos referidos artigos:
«2º
E [o R.] passou a ser visto em diversos locais acompanhado por outra mulher chamada V;
3º
E apresentam-se como namorados, acariciando-se;
4º
E passam fins-de-semana juntos;
5º
E o R. tem um relacionamento íntimo com essa mulher?»
Indica como meios de prova, a imporem resposta afirmativa aos referidos artigos da base instrutória, o depoimento das testemunhas (…), amigas da família.
Estes depoimentos foram objecto de uma apreciação criteriosa pelo Mmº Juiz a quo, que, a este propósito, escreveu:
«As respostas negativas aos factos 2º a 5º (…) derivaram da inexistência de qualquer prova directa sobre as questões neles vertidas uma vez que as testemunhas inquiridas sobre estes factos não revelaram qualquer conhecimento directo sobre o relacionamento amoroso que o réu tenha com outra pessoa, (…)»
A argumentação da recorrente em nada infirma a apreciação do Mmº Juiz a quo.
O conhecimento da testemunha I, de que o R. teria outra pessoa, advém-lhe de terceiros, já que nunca foi apresentada à D. V, nem viu o recorrido com ela.
A circunstância de terceiros – não indicados como testemunhas – referirem que o recorrido e a referida senhora estavam no Algarve «como um casal» a passar fins-de-semana, é irrelevante para a formação da convicção do tribunal. Como o é a afirmação da testemunha que sabe de casais que se encontravam com o recorrido e a D. V, chegando a ir a casa deles.
Igualmente irrelevante é o facto de a sobrinha, filha do casal, ter encontrado o pai e a referida senhora na Baixa. Para além se tratar de depoimento indirecto (embora se compreenda que a filha não tenha sido chamada a depor), daqui não é legítimo inferir qualquer tipo de relacionamento amoroso entre o recorrido e a referida senhora, sendo certo que a filha nem sequer permitiu que o recorrido lhe apresentasse a referida senhora.
A afirmação da testemunha de considerar natural que houvesse relacionamento sexual entre o recorrido e a referida senhora é de pouca valia, já que se trata de mera convicção, não suportada em termos factuais: a testemunha nada presenciou que pudesse levar a essa conclusão.
(…)
A prova, para ser relevante, tem de ter uma substanciação fáctica que transcenda meras conjecturas, hipóteses, convicções, falatórios, comentários.
Do depoimento destas testemunhas nada de concreto se pode extrair que permita responder afirmativamente aos artigos 2º a 5º da base instrutória.
Termos em que nada há a censurar à apreciação da matéria de facto levada a cabo pelo Mmº Juiz a quo.
3.2. Da alegada violação dos deveres de fidelidade, cooperação, assistência e coabitação
A acção de divórcio foi intentada com base na culpa do cônjuge, pretendendo recorrente e recorrido o decretamento do divórcio com base a culpa exclusiva do outro.
O sistema legal anterior à Lei 61/2008, de 31.10, que é o aplicável ao caso vertente por força do artigo 9º desta lei (o novo regime não se aplica às acções pendentes à data da sua entrada em vigor), configura-se como um sistema de compromisso, em que, ao lado dos fundamentos de divórcio fundado na violação dos deveres conjugais (artigo 1779º CC), encontramos também fundamentos objectivos, que operam independentemente de culpa (artigo 1781º CC).
Dispõe o 1779º, nº 1, CC, na versão aplicável, que qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade e reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum. Acrescenta o nº 2 deste artigo que, na apreciação da gravidade dos factos invocados, deve o tribunal tomar em conta, nomeadamente, a culpa que possa ser imputada ao requerente e o grau de educação e sensibilidade moral do cônjuge.
Constituem, pois, requisitos da procedência da acção de divórcio:
a) a violação culposa, por parte do outro cônjuge, de qualquer um dos deveres conjugais enunciados no artigo 1672º CC;
b) a gravidade ou reiteração do facto ofensivo do dever em causa, devendo, na apreciação dessa gravidade, entrar-se em linha de conta, quer com a eventual culpa do cônjuge requerente, quer com o grau de educação e sensibilidade moral dos cônjuges;
c) o comprometimento, por via disso, da possibilidade da vida em comum.
Os deveres conjugais encontram-se enunciados no artigo 1672º CC, cabendo à doutrina e jurisprudência a densificação dos conceitos.
O dever de fidelidade implica a abstenção do cônjuge de ter, com terceiros, relacionamento sexual ou condutas licenciosas e desregradas, ligação sentimental ou correspondência amorosa (cfr. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Coimbra Editora, 4ª edição, pg. 350-1).
Não logrou a recorrente provar, como lhe competia nos termos do artigo 342º, nº 1, CC., a matéria constante dos artigos 2º a 5º da base instrutória que, em seu entender, integrava a violação do dever de fidelidade: que o recorrido passou a ser visto em diversos locais acompanhado por outra mulher, apresentando-se como namorados, acariciando-se, passando fins-de-semana juntos e mantendo um relacionamento sexual.
Vejamos agora se a factualidade apurada relativamente ao levantamento de quantia que a recorrente recebera como indemnização pela cessação do contrato de trabalho é suficiente para integrar violação dos deveres de cooperação e assistência.
A este propósito são as seguintes as respostas da 1ª instância aos artigos 6º a 8º da base instrutória:
«2.3. Em Novembro de 2006, a A. auferiu a importância de € 17.299,61 relativa a indemnização por rescisão de contrato de trabalho (resp. facto 6º).
2.4. O R. efectuou uma ordem de transferência relativa à importância de dezassete mil euros sem a autorização da A. (resp. facto 7º).
2.5. O R. tinha conhecimento que a A. havia ficado desempregada e que não dispunha de outros rendimentos (resp. facto 8º)».
Segundo o disposto no artigo 1674º CC, o dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram.
Por seu turno, o dever de assistência previsto no artigo 1675º, nº 1, CC, compreende a obrigação de prestar alimentos e de contribuir para os encargos da vida familiar.
A recorrente alegara, o artigo 13º da petição inicial, que a quantia levantada pelo recorrido era necessária para a sua subsistência.
Tal alegação transitou para o artigo 8º da base instrutória, com a seguinte formulação:
«Apesar de saber que a mesma [quantia] era necessária para garantir os encargos da autora?»
E mereceu a seguinte resposta:
«Provado que o réu tinha conhecimento que a autora havia ficado desempregada e que não dispunha de outros rendimentos».
A alegação da recorrente peca por genérica, uma vez que não são individualizados os eventuais encargos que a recorrente tenha ficado impossibilitada de satisfazer em consequência do levantamento da referida quantia, como se impunha para que se pudesse aferir com um mínimo de rigor dessa impossibilidade.
Por outro lado, e abstraindo da problemática da alegação, sempre se dirá que a resposta excede o âmbito do artigo da base instrutória em causa, pois o que se pretendia saber era se a subsistência da recorrente tinha ficado comprometida, se esta tinha ficado impossibilitada de garantir os seus encargos.
É que a circunstância de estar desempregada e não ter rendimentos não implica necessariamente impossibilidade de satisfazer seus encargos: a pessoa pode não ter emprego nem rendimentos, mas ter património, ou beneficiar de rendimentos ou do património de terceiros.
Nessa medida, a resposta deve ser considerada não escrita, por analogia com o disposto no artigo 646º, nº 4, CPC (acórdãos do STJ, de 2008.12.11, Alberto Sobrinho, e de 2008.03.27, Pereira da Silva, www.dgsi.pt.jstj, proc. 08B3602 e 07B4149, respectivamente; da Relação de Lisboa, de 2006.07.06, Salazar Casanova, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 4031/2006, e da Relação do Porto, de 2005.05.19, Amaral Ferreira, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0530508).
Não resultaram, pois, provados factos que permitam concluir pela violação dos deveres de cooperação e assistência, não tendo a recorrente cumprido o ónus que sobre si impendia (artigo 342º, nº 1, CC)..
Resta analisar a alegada violação do dever de coabitação.
Este dever equaciona-se numa tripla vertente: comunhão de leito, mesa e habitação (tori mensae et habitationis) (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., pg. 352).
Nos termos do artigo 1673º, nº 1, CC, os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família, atendendo, nomeadamente às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar. E de acordo com o nº 2 do mesmo artigo, salvo motivos ponderosos em contrário, os cônjuges devem adoptar a residência de família.
A este propósito, apurou-se apenas que o recorrido, em Novembro de 2005, saiu de casa (ponto 2.2 da matéria de facto), e que não existe qualquer propósito de reatamento da vida em comum (ponto 2.9 da matéria de facto).
Para que releve enquanto fundamento justificativo do divórcio baseado na violação dos deveres conjugais, o abandono do lar deve ser injustificado.
Nada se provou relativamente às circunstâncias que levaram à saída do recorrido de casa, não sendo lícito a formulação de qualquer juízo de censura a esse respeito.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, O Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, pg. 66,
«Finalmente, noutros casos ainda o tribunal não pode extrair a culpa do cônjuge da violação do dever conjugal, porque não há qualquer regra de experiência ou standard social que justifique essa ilação. É o que acontece com o abandono do lar conjugal, dado que nenhuma regra de experiência ou critério social permite extrair com segurança a culpa do cônjuge da prova desse abandono, porque a observação sociológica demonstra que esse abandono tanto pode ser não culposo, se, por exemplo, o cônjuge abandona o lar para se proteger das ofensas físicas infligidas pelo outro, como ser culposo, se o cônjuge abandonado em nada contribuiu para a saída do lar conjugal do outro cônjuge. Assim, o tribunal não dispõe de qualquer regra de experiência que lhe permita concluir, sem deixar dúvidas, que as condutas do cônjuge abandonante são culposas. Para que o correspondente juízo de censurabilidade possa ser deduzido do próprio abandono é necessário considerar outros parâmetros».
E de acordo com o assento 5/94, de 26.01, publicado no DR, I série, de 24.03, agora com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, nos termos dos artigos 732º A e 732º B CPC, por força do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei 329 A/95, de 12.12, «no âmbito e para os efeitos do nº 1 do artigo 1779º do Código Civil, o autor tem o ónus da prova da culpa do cônjuge infractor do dever conjugal de coabitação».
Esta doutrina tem sido reiteradamente sufragada pelo STJ, quer quanto à violação do dever de coabitação, quer quanto aos outros deveres conjugais (cfr. acórdãos do STJ, de 2006.10.10, Afonso Correia, e de 2004.02.05, Salvador da Costa, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06A2736 e 04B047, respectivamente). Na doutrina, destacam-se Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., pg. 625 e ss..
Era, pois, à recorrente que cabia alegar e provar factos donde decorresse a culpa do recorrido. Não o tendo feito, não podia a sua pretensão ser atendida (artigo 342º, nº 1, CC).
Nesta parte improcedem as conclusões da recorrente.
3.3. Do preenchimento da previsão do artigo 1781, alínea b), CC: a problemática da causa de pedir na acção de divórcio e não oposição do cônjuge
A questão que importa agora resolver é a de saber se, tendo a acção de divórcio sido intentada com fundamento, designadamente, em violação culposa do dever de coabitação, por o recorrido ter saído do lar conjugal há mais de um ano à data da propositura da acção, pode o tribunal decretar o divórcio, com fundamento na alínea b) do artigo 1781º CC.
E ainda saber se a a falta de oposição do outro cônjuge é a falta de oposição ao processo, ou ao divórcio, atendendo a que o recorrido contestou a acção.
A primeira questão tem recebido respostas divergentes da jurisprudência.
Os que respondem negativamente à primeira questão consideram que não é lícito ao tribunal convolar a causa de pedir e decidir sobre objecto diverso do pedido.
Nesta linha de pensamento, refiram-se os acórdãos do STJ, de 2006.10.10, Afonso Correia, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06A2736, da Relação de Lisboa, de 2007.02.01, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 10337/2006, Vaz Gomes, e da Relação do Porto, de 2008.01.15, Guerra Banha, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0726339.
Não se afigura, contudo, ser esta a melhor solução, na esteira dos acórdãos do STJ, de 2007.03.06, Sebastião Póvoas, e de 2005.11.03, Lucas Coelho, www.dgsi.pt.jstj, proc. 07A297 e 05B2266, respectivamente; e da Relação do Porto, de 2007.04.17, Deolinda Varão, www.dgsi.ptjtrp, proc. 0736856.
Vejamos então como deve a questão ser equacionada.
Ao lado do divórcio com fundamento na violação culposa os deveres conjugais (divórcio-sanção), o legislador previu ainda, no artigo 1781º CC, o divórcio com base em fundamentos objectivos (divórcio constatação da ruptura do casamento): separação de facto, alteração das faculdades mentais e ausência.
Em causa no presente recurso está a alínea b), que estabelece como fundamento de divórcio litigioso a separação de facto por um ano se o divórcio for requerido por um dos cônjuges sem a oposição do outro.
Enquanto na situação prevista na alínea a) – separação de facto por mais de três anos – exige-se o propósito de ambos ou de um deles de não restabelecer a vida em comum (artigo 1782º, nº 1, CC), já no caso da alínea b) basta a não oposição do cônjuge.
Não oposição que se verifica no caso vertente. Com efeito, embora tenha contestado a acção, o recorrido não deduziu excepção de oposição ao divórcio, tendo mesmo deduzido pedido reconvencional.
Recorrente e recorrido convergem no propósito de se divorciarem; a divergência situa-se no plano da culpa, que pretendem seja imputada ao outro.
Passando à problemática da causa de pedir, não se afigura que o decretamento do divórcio com fundamento na separação de facto por mais de um ano sem oposição do cônjuge, importe convolação da causa de pedir por a acção ter sido intentada com fundamento na violação culposa dos deveres conjugais: trata-se tão só de diferente qualificação jurídica da mesma factualidade - saída do cônjuge contra quem se requer o divórcio do lar conjugal.
Acompanhamos o acórdão do STJ, de 2007.03.06, Sebastião Póvoas, citado:
«Nominou esta conduta de violação dos deveres de coabitação e de assistência e pediu, com esse (e outro) fundamento que fosse decretado o divórcio.
O pedido – efeito jurídico – é o divórcio, irrelevando ser sanção ou remédio para efeito de afirmação de identidade ou dissonância.
A causa de pedir – ou facto jurídico do qual procede o pedido, ou facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão – é, além do mais, a saída de casa do casal, protagonizada pela autora.
Só que, a saída de casa compreende não só o acto instantâneo – abandono – como a separação de facto – ausência.
E são esses dois elementos – abandono ou saída do lar e permanente ausência – que caracterizam a quebra do dever de coabitação e, simultaneamente, a separação de facto.
Não há abandono sem separação de facto e esta terá aquela atitude na sua origem.
Daí que o facto jurídico que é fundamento directo e imediato do pedido de divórcio, individualiza os mesmos factos e circunstâncias concretas, sendo irrelevante a diversa qualificação jurídica do demandante pois o tribunal é que pode qualificá-la em definitivo – “Da mihi factum dabo tibi jus” (A propósito, ensinava o Prof. Castro Mendes: “Assim na acção de divórcio, por exemplo, serão os factos concretos qualificados pelo autor como adultério (mas que o tribunal poderá qualificar como injúrias graves, etc…) Na acção de anulação, serão os factos concretos qualificados como dolo (podendo o tribunal aliás convolar para erro simples), etc.” – “Direito Processual Civil”, II, 1969, 62).
Sempre vale o princípio do artigo 664º do Código de Processo Civil que dá ao juiz liberdade plena de “indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
Há assim, aqui, uma única causa de pedir por qualificação diversa dos mesmos factos, permitindo se pondere a separação de facto a que se refere a alínea b) do artigo 1781º, assente, como atrás se referiu, a ausência de oposição ao divórcio do outro cônjuge.»
Trata-se de uma situação com algum paralelismo com as acções de indemnização por acidente de viação, em que doutrina e jurisprudência têm entendido que, tendo a acção sido intentada com fundamento na culpa, o tribunal pode decidir com base no risco, sem incorrer em excesso de pronúncia.
Preenchidos que se mostram os dois pressupostos enunciados na alínea b) do artigo 1781º, importa que seja decretado o divórcio entre recorrente e recorrido.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a sentença recorrida, decretando-se o divórcio entre requerente e requerido.
Custas pelo requerido.
Lisboa, 2009.03.12
Márcia Portela
Carlos Valverde
Granja da Fonseca