PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
PROVA TESTEMUNHAL
Sumário

I – O sociologicamente típico “contrato de utilização de loja em centro comercial” é um contrato legalmente atípico, inominado, e não um contrato de arrendamento;
II – A cláusula contratual que confere à gestora do centro comercial o direito de, uma vez resolvido o contrato de utilização de loja, reassumir a detenção da loja com recurso aos meios extrajudiciais que entenda necessários e adequados para o efeito, mesmo contra a vontade do lojista, é nula, por violar o disposto nos artigos 1º do Código de Processo Civil e 336º nº 1 do Código Civil;
III – O direito de utilização de espaço em centro comercial, emergente de contratos como o referido em I, não pode ser defendido mediante a providência cautelar de restituição provisória de posse;
IV – Porém, o lojista pode requerer a restituição provisória de posse do estabelecimento comercial instalado no aludido espaço sito no centro comercial, se tiver sido esbulhado violentamente da posse daquele;
V - No procedimento de restituição provisória de posse está em causa a reacção contra um acto de violência, que requer pronta reposição do statu quo ante, demonstrada que esteja a posse de uma coisa e o esbulho violento da mesma; depois, noutra sede, discutir-se-ão os exactos termos dos direitos de cada uma das partes em conflito, proferindo-se as decisões convenientes para a justa e legal composição dos interesses em presença.
(JL)

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
Em 26.8.2008 B...., Lda, intentou nas Varas Cíveis da comarca de Lisboa procedimento cautelar de restituição provisória de posse, contra C....., com sucursal em Portugal sita na ....... Lisboa.
A Requerente alegou, em síntese, que dedica-se à actividade de restauração, actividade essa que exerce apenas no estabelecimento comercial sito ......, em Lisboa. No local a Requerente instalou um estabelecimento comercial de restauração, constituído por um restaurante e um balcão de serviço de refeições, pronto a comer. A utilização de tal espaço comercial foi-lhe atribuída por contrato de utilização de espaço em Centro Comercial, celebrado a 9 de Dezembro de 2003, entre a Requerente e a D......, S.A.. Tal contrato foi celebrado, entre outros, no pressuposto de que a loja se integrava, não num centro comercial “tout court”, mas sim num Centro Empresarial composto por lojas, escritórios, hotel e health-club. Porém, desde a data da abertura do Centro Empresarial, a 21 de Maio de 2004, a sociedade exploradora do Centro Empresarial não cumpriu com as poucas obrigações que para ela resultavam do contrato, nem sequer os objectivos a que se propôs, designadamente de construção de um centro empresarial, com lojas criteriosamente seleccionadas com capacidade de angariação de muita clientela conforme anunciara. Pelo que os lojistas apresentaram as suas reclamações junto da Administração, tendo inclusive proposto uma redução do valor da renda até que se encontrassem reunidos todos os pressupostos que levaram pelo menos grande parte dos lojistas a contratar. Como não obtiveram resposta, a Requerente e outros lojistas passaram a não pagar as contrapartidas mensais devidas pela utilização das lojas, enquanto não lhes fosse assegurada a dotação em lojas e ocupação de escritórios que canalizasse para as lojas o volume de clientes necessários a uma exploração equilibrada. A D......, S.A. intentou acção contra a ora Requerente peticionando o pagamento das contrapartidas mensais relativas à utilização da loja e às despesas de condomínio. Nessa acção, que se encontra pendente, a ora Requerente alegou a excepção de não cumprimento do contrato e deduziu pedido reconvencional em que peticiona a redução das rendas e a nulidade de cláusulas contratuais. Por acordo celebrado entre a D......, S.A. e a ora Requerida, aquela cedeu a esta a sua posição no contrato celebrado com a Requerente, com efeitos a partir de 01 de Julho de 2007. A Requerida nada fez para inverter a atitude de inactividade da anterior exploradora do Centro Empresarial. No dia 28 de Fevereiro de 2008 a Requerente recebeu uma carta nos termos da qual a ora Requerida notificava a Requerente para no prazo de 8 dias proceder ao pagamento das contrapartidas em atraso sob pena de resolução do contrato, sem mais qualquer formalismo legal. A Requerente respondeu nos termos de uma carta em que defende que não havia fundamento válido para tal resolução, muito menos ao abrigo da cláusula 15ª do contrato, uma vez que tal cláusula é nula e, por outro lado, quem estava em incumprimento era a ora Requerida. A 24 de Março de 2008 a Requerente recebeu nova carta da Requerida, nos termos da qual resolvia unilateralmente o contrato de utilização de loja em centro comercial com efeitos a partir de 12 de Março de 2008. A Requerente respondeu nos termos de carta que junta e continuou a exercer a sua actividade no local. A partir do dia 31 de Março de 2008 a ora Requerida deu ordens para que cessassem as limpezas do “food-court”, das casas de banho da área da restauração, fechou todas as casas de banho do empreendimento, retirou a segurança do piso do “food-court”, encerrou as escadas rolantes, fechou o elevador, reduziu as luzes ao mínimo e fechou a porta de acesso directo à área da restauração (zona por onde entram a maior parte dos clientes na hora da refeição). Os lojistas tiveram então de se organizar, procedendo eles próprios à limpeza do food-court e das casas de banho do piso 0. No dia 11 de Agosto os gerentes da Requerente tiveram conhecimento de que a sua loja havia sido vandalizada, destruída e que dela haviam sido retirados todos os bens de sua propriedade e outros de que eram fiéis depositários, assim como os víveres que se encontravam dentro do estabelecimento haviam sido consumidos, pelo menos parcialmente. Na mesma altura verificaram que estava colada nos taipais uma carta subscrita por dois advogados que informavam que enquanto legais representantes da ora Requerida haviam retirado todas as mercadorias, móveis, máquinas e outros produtos existentes, invocando tê-lo feito ao abrigo da cláusula 15ª do contrato de utilização celebrado pela Requerente. Em 26 de Agosto de 2008 os responsáveis da Requerente constataram que os poucos bens que tinham ficado na loja haviam sido furtados e ainda que a loja havia sido totalmente entaipada e nos taipais encontrava-se colada uma outra carta de conteúdo idêntico à primeira. A cláusula 15ª do contrato sub judice, invocada para acobertar a conduta supra descrita, é uma cláusula contratual geral nula, já que as sanções aplicáveis à Requerente em caso de resolução do contrato são manifestamente abusivas e desproporcionadas relativamente aos danos que se visa acautelar. De resto, mesmo que a aludida cláusula não fosse nula, a sua redacção não permite à Requerida agir como agiu. Acresce que o recurso à acção directa apenas é lícito se for impossível recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais. A Requerente foi esbulhada, com violência, da posse da sua loja.
A Requerente terminou pedindo que fosse decretada a restituição provisória da posse (e bens) da loja nº .... sita no ....... em Lisboa no mesmo estado em que se encontrava e, acessoriamente, que fosse fixada uma sanção pecuniária compulsória em valor não inferior a € 1000,00.
Procedeu-se à inquirição de testemunhas, sem citação e audiência prévia da Requerida. A final, foi proferida decisão que julgou procedente a providência cautelar e em consequência:
a) Ordenou a restituição provisória à Requerente da posse sobre a Loja ....., sita no piso 0 (zero), do ........, em Lisboa, e respectivos bens;
b) Condenou a Requerida, em caso de incumprimento do disposto na alínea anterior, numa sanção pecuniária compulsória de € 500,00, por cada dia que impeça a restituição ordenada.
Notificada da decisão, a Requerida apelou da mesma, tendo apresentado alegação em que formulou as seguintes conclusões:
1) O esbulho existe sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, contra sua vontade, do exercício de retenção ou fruição do objecto possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício.
2) Ora entende a Meritíssima Juiz "a quo", que a ora Recorrente ao retirar da loja que era ocupada ilícita e ilegitimamente pela Recorrida os bens móveis que lá se encontravam, encerrando a loja e assumindo a posse da mesma, é um esbulho violento, uma vez que para tal não estava legitimada, substantiva ou objectivamente.
3) Mas a questão é que a ora Recorrente agiu ao abrigo de uma cláusula do contrato de utilização de loja em centro comercial, cláusula essa que foi livremente percebida, apreendida e aceite pela Recorrida.
4) Entende a ora Recorrente que há esbulho violento, quando a acção, não tem qualquer alicerce, qualquer fundamento jurídico (seja ele legal, contratual ou judicial), sendo portanto um exercício ilícito e ilegítimo do direito que se pretende valer.
5) Acontece que a ora Recorrente, para além do direito de gerir e explorar o centro comercial (direito contratualmente previsto), tem ainda um direito que lhe permite, em caso de resolução e caso o lojista não entregue voluntariamente a loja, proceder ao levantamento, remoção, transporte e armazenamento dos bens, direito esse que resulta do contrato de utilização de loja em centro comercial livremente discutido, avaliado e celebrado pelos lojistas, nomeadamente pela ora Recorrida.
6) Foi a própria Recorrida que, ao aceitar e ao assinar o contrato de utilização de loja em centro comercial permitiu, conferiu, à ora Recorrente, o referido direito no levantamento, remoção, transporte e armazenamento dos bens,
7) Assim sendo, não pode a ora Recorrente concordar com a postulação de que agiu com esbulho violento, pois nem sequer esbulho houve, entendendo humildemente que houve uma errada aplicação e interpretação do postulado no art. 393º do CPC.
8) Assim, entende a ora Recorrente que houve uma errónea aplicação e interpretação do direito, mormente do disposto no art.º 3930 do CPC, que não tem qualquer aplicabilidade nos presentes Autos pois a ora Recorrente não agiu com esbulho violento.
9) Nesse sentido, deve tal decisão ser revogada, substituindo-se por outra a proferir por Douto Acórdão deste Tribunal no sentido de julgar o levantamento, remoção, transporte e armazenamento dos bens, feito ao abrigo de uma disposição jurídica contratual válida.
10) Foi esse o entendimento, Doutíssimo entendimento propalado no Douto Acórdão desta Veneranda Relação de Lisboa, a 16 de Novembro de 2004 no âmbito do processo 7184/04-4 segundo o qual:
11) “Tendo sido declarada a resolução do contrato em conformidade com o que havia sido estabelecido na cláusula 19ª, a partir daí não tem a agravada (entidade gestora do centro comercial) necessidade de obter decisão judicial para esse efeito. Foi a própria Agravante (lojista) que concedeu à ora Agravada a faculdade de resolver o contrato nas condições em que a mesma teve lugar” (parênteses e sublinhado da Apelante).
12) “A Agravante não pode ignorar o conteúdo das cláusulas do contrato por si subscrito.”
13) Pelo exposto, não se pode a ora Recorrente conformar com a decisão do Tribunal "a quo" no sentido de dizer que houve um esbulho violento e que a conduta foi ilícita e ilegítima, pois tal corresponde a uma errada aplicação e interpretação do disposto no art. 393° do CPC, pelo que tal decisão deve ser revogada e substituída por outra que julgue válida a conduta da ora Recorrente ao reassumir a detenção da loja que a Recorrida utilizava, após a resolução contratual operada.
14) De outro modo, e sem prejuízo de todo o que já se disse, entende a ora Recorrente que, nos termos do art. 675°, 1 do CPC, o Despacho ora recorrido não pode ser cumprido, e aqui sem qualquer culpa do Tribunal "a quo".
15) De facto, em de Abril de 2008 a ora Recorrida intentou junto da ....Vara Cível de Lisboa, .....Secção um procedimento cautelar inominado, sendo uma das Requeridas a ora Recorrente, pedindo:
16) a) que as Requeridas se abstivessem da prática de todo e quaisquer actos perturbadores que possam determinar o encerramento do Centro Comercial;
17) b) que as então Requeridas se abstivessem de todo e quaisquer actos perturbadores da posse da loja .... (sublinhado nosso);
18) c) e que, finalmente, as Requeridas repusessem, de imediato, os serviços essenciais ao funcionamento do Centro, designadamente no que diz respeito aos serviços de limpeza, de segurança e de electricidade,
19) Tentava assim a ora Recorrida, bem sabendo o contrato que tinha assinado e bem sabendo dos direitos que assistiam e assistem à ora Recorrente, obstar ao cumprimento do contrato de utilização de loja em centro comercial.
20) O douto Despacho emitido no âmbito de tal procedimento cautelar instaurado pela ora Recorrida, que será objecto de melhor e profícua análise de V.Ex.as., postula, no que ao presente recurso mais importa, que a ora Recorrida não tem qualquer direito de utilizar a loja ..., que a resolução contratual é válida e que a cláusula 15ª é, também ela, lícita.
21) A decisão de que ora se recorre diz absolutamente o contrário.
22) Ora, nos termos do disposto no art. 675°, n.º 1 do CPC, cumprir-se-á a decisão que passou em julgado em primeiro lugar, sendo que a única que já transitou em julgado é precisamente o douto Despacho já junto como doc. 3,
23) Nesse sentido, desde já se requer a V.Exas, que determinem a aplicação do Despacho proferido pela ....Vara Cível de Lisboa, .... Secção, no âmbito do processo n. ......TVLSB, em detrimento do Despacho ora recorrido, nos termos do disposto no art. 675°, n.° 1 do CPC, validando-se assim a resolução contratual e, consequente, o reassumir da detenção da loja por parte da ora Recorrente.
24) Era essencial, que a ora Recorrida tivesse demonstrado, nos presentes Autos, mesmo que indiciariamente, que tem um direito, que não excede os limites desse direito, e que o mesmo se encontra ameaçado.
25) O Tribunal “a quo” entendeu que sim.
26) A ora Recorrente entende que a ora Recorrida não tem qualquer direito e, mesmo que por mera hipótese de raciocínio o tivesse, age em manifesto abuso.
27) Está provado nos presentes Autos (alínea R) da matéria dada como provada) que a ora Recorrente enviou à ora Recorrida uma carta datada de 28 de Fevereiro de 2008, solicitando o cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo lojista, ora Recorrida e, caso isso não acontecesse, o contrato considerar-se-ia automaticamente resolvido, sem recurso a qualquer outra formalidade.
28) Está também provado (alínea U da matéria dada como provada), que tal resolução contratual foi reafirmada em carta enviada pela ora Recorrente à Recorrida em 24 de Março de 2008, afirmando que a resolução operou os seus efeitos com data a 12 de Março de 2008.
29) Tendo em conta que uma das causas para a resolução contratual do contrato de utilização de loja em centro comercial é precisamente a falta de pagamento das contrapartidas pelo lojista pela utilização da loja, de direito constituído tem de considerar-se que o contrato foi legalmente resolvido.
30) Ficando indiciariamente provado que há cerca de três anos que a ora Recorrida não paga as contrapartidas que contratualmente se obrigou (alínea I) da matéria dada como provada), tem de se aceitar que esta é uma das causas de resolução do contrato de utilização de loja em centro comercial.
31) Tendo sido resolvido o contrato que havia entre a Recorrente e a Recorrida, não assiste a este qualquer direito que pretenda defender através da instauração do procedimento cautelar de restituição provisória da posse.
32) Ou seja, tendo ficado indiciariamente provado:
33) Que a ora Recorrida não paga, há cerca de três anos, qualquer contrapartida pela utilização da loja em centro comercial (alínea I da matéria dada como provada no Despacho sob recurso),
34) Que a ora Recorrente operou a resolução contratual do contrato de utilização de loja em centro comercial (alíneas R) e U) da matéria dada como provada no Despacho sob recurso)
35) Que a Cláusula 15a do contrato de utilização de loja e centro comercial é válida e legal,
36) O único resultado aceitável é entender que à ora Recorrida não assiste qualquer direito, tendo aliás ficado claramente demonstrado que, na esfera jurídica da ora Recorrida, não existe a aparência séria da presença de qualquer um direito.
37) Assim desde já se requer e pede que o Despacho ora recorrido, seja também revogado por errada aplicação e interpretação do disposto nos arts. 381º e 387º, ambos do CPC, substituindo-se por Douto Acórdão a emitir, que julgue não verificado a probabilidade ou a aparência séria da existência de um direito por parte da ora Recorrida e, consequentemente, seja revogado o procedimento cautelar de restituição provisória da posse.
38) Noutra questão, entende-se também que o Despacho recorrido, violou disposições legais e não fez uma correcta interpretação e aplicação da lei (arts. 1253° e 1307º, ambos do CC).
39) Nesta questão da inexistência de posse da ora Recorrida para intentar o procedimento cautelar de restituição provisória da posse, bastaria para a ora Recorrente citar os Doutos Acórdãos desta Veneranda Relação de Lisboa de 23 de Abril de 2002, de 30 de Maio de 2000 que postulam e defendem a boa aplicação de Direito e a boa interpretação das normas jurídicas e das mesmas enquadradas no seu todo.
40) A nossa lei civil (Código Civil) defende uma concepção subjectiva da posse, diferenciada pelo postulado nos arts. 1251° e 1253°, ambos do CC.
41) Esta concepção subjectiva defendida pelo reputado jurista alemão do séc. XIX Friedrich Savigny, entende que para haver posse é necessária a conjugação de dois elementos,
42) Esses dois elementos são revelados, pelo corpus possessório, que consiste no exercício do poder de facto sobre a coisa, poder de facto esse que pode ser actual ou potencial, e pelo animus possidendi, que se revela na vontade específica do possuidor, vontade essa que não basta ser de actuar sobre a coisa.
43) Figura diferente da posse, com todas as consequências que daí advêm, é a mera detenção (art. 1253° do CC).
44) Nesta o animus possidendi é substituído pelo animus detenendi que se projecta numa situação onde há apreensão material (corpus), mas o ânimo, a convicção, é traduzida pelo referido animus detenendi.
45) Nestes casos de mera detenção ou posse precária (como alguma doutrina lhe chama) não há intenção de quem tem essa detenção, de ser, ou vir a ser, titular de um direito real de gozo.
46) É exactamente isso que se passa relativamente à ora Recorrida que, não tendo posse, não se pode fazer valer dos direitos de defesa possessória.
47) Até porque não tem a expectativa de vir a ser titular de qualquer direito real que seja conhecido da ora Recorrente, tendo em conta o princípio da tipicidade dos direitos reais (numerus clausus - art. 1306º do CC).
48) Por outro lado, nem mesmo o disposto no art. 1037º, n.º 2 do CC, pode servir de argumento para as pretensões, sejam elas quais forem, da ora Recorrente.
49) Para um contrato atípico, inominado, como é o caso do contrato de utilização de loja em centro comercial, deve-se encontrar a sua regulação nas respectivas cláusulas contratuais, pelos princípios gerais dos contratos e pelos contratos afins que não contrariem a vontade das partes.
50) Ora, contraria, clara e inequivocamente a vontade das partes no âmbito de um contrato de utilização de loja em centro comercial, a aplicação do regime da locação, considerado no seu todo, e ainda mais a previsão do art. 1037º, n.º 2 do CC. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2007).
51) Assim sendo, a aplicabilidade do disposto no art. 1037º, n.º 2 do CC defendida pelo Tribunal "a quo", extrapola, em muito, o âmbito e os limites do contrato de utilização de loja em centro comercial, pelo que, tal dispositivo legal, não deve, não pode, ser aplicado.
52) Neste sentido, e na humilde opinião da ora Recorrente, houve um claro e inequívoco erro na qualificação jurídica dada a utilização que a ora Recorrida fazia da loja, não se aplicando assim os preceitos legais que regulam e tutelam a figura da posse (nomeadamente os citados arts. 1259°, n.º 1, 1260º, n.º 1, 1261º, n.º 1, 1262° e 1307º todos do CC), devendo antes ter sido aplicado o disposto no art. 1253º do CC, pois entende-se que a utilização que a Recorrida fazia da loja e as expectativas que tinha dessa utilização configuram apenas uma situação de mera detenção (posse precária), figura que exclui o uso dos meios de defesa próprios e características dos possuidores.
53) Merece assim, o Despacho ora recorrido, um juízo de censura e reparo, também relativamente a esta questão, pelo que deve, o referido Despacho, ser revogado, sendo emitido Douto Acórdão que ora se requer, no sentido de que nos contratos de utilização de loja em centros comerciais os lojistas agem ao abrigo de mera detenção (posse precária) e não com uma verdadeira posse, estando-lhes assim vedado o recurso às acções possessórias para defesa da posse, mormente, ao procedimento cautelar de restituição provisória da posse.
54) Mas mesmo que houvesse um direito da ora Recorrida, o que não se aceita e se equaciona por mero dever de patrocínio e por hipótese de raciocínio, o exercício desse direito em muito extrapola os limites impostos pela boa fé, pelo bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334º do CC).
55) E esse abuso de direito da ora Recorrida concretiza-se na verificação do brocado "tu quoque".
56) É manifesto e inequívoco que, nos presentes Autos, a ora Recorrida agiu em abuso de direito pela aplicação da fórmula "tu quoque".
57) A Recorrida reconhece o seu incumprimento no não pagamento, quer da contrapartida pela utilização da loja, quer a parte que lhe competia nas despesas comuns (art. 180 do requerimento inicial).
58) Tal incumprimento é considerado provado no Despacho recorrido.
59) O abuso de direito na modalidade "tu quoque" tem subjacente a invocação ou aproveitamento de um acto ilícito por parte de quem o cometeu.
60) Trata-se da violação clara do dever de honestidade, que é inaceitável para o direito.
61) Ocorre pois assim a excepção dilatória material de abuso de direito (art. 334° do CC), pela fórmula "tu quoque" que ora se invoca.
62) Ora nos termos do disposto no art. 495° do CPC, as excepções dilatórias são do conhecimento oficioso do Tribunal (não só as nulidades), pelo que deveria ter o Tribunal tomado conhecimento desta questão, mesmo sem contraditório da ora Recorrente.
63) Assim sendo, e também por esta razão da verificação da excepção dilatória material de abuso de direito (art. 334º do CC), pela fórmula "tu quoque", deve o despacho recorrido ser revogado e, consequentemente, ser revogado o procedimento cautelar, como ora se requer.
64) Por último, nos termos do disposto no art. 394º, n.º 1 do CC, "é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo (...) dos documentos particulares mencionados nos arts. 373° a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação de documentos ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores."
65) Ora o contrato de utilização de loja em centro comercial constante dos Autos é qualificado como um documento particular previsto nos arts. 373º a 379° do CC.
66) Assim, não podiam ser considerados indiciariamente provados (e não provados como diz o Tribunal "a quo"), como foram, as alíneas D), F) e H) da matéria dada como provada, pois a única prova que serviu de base a tal resultado positivo foi a prova testemunhal.
67) Voltando à questão da inadmissibilidade da prova testemunhal, a ora Recorrente volta a invocar o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2007 (Revista de Legislação e Jurisprudência, n.° 3945 — págs. 329 e segs.), bem como a douta anotação ao mesmo do Ilustre Professor Dr. Calvão da Silva.
68) De facto, a falibilidade da prova testemunhal é um dado concreto, ainda mais quando as testemunhas dos presentes Autos, todas elas, intentaram, na mesma data, procedimentos cautelares exacta e absolutamente iguais aos dos presentes Autos, pese embora essa questão, estranhamente, não conste dos costumes.
69) Ao incluir como provado, apenas pela produção da prova testemunhal, factos que dizem respeito a alegadas promessas prévias ao contrato, que dizem respeito à fase de negociação do contrato, que dizem eventualmente respeito a convenções verbais que terão alegadamente sido assumidas, o Tribunal "a quo” violou o disposto no art. 394º, n.º 1 do CC.
70) E tal é verdade mesmo no caso da defesa da ora Recorrida vir falar em cláusulas contratuais gerais.
71) Assim sendo, esteve mal o Tribunal "a quo”, merecendo censura o facto de considerar indiciariamente provados as alíneas D), F) e H) da matéria dada como provada, com base apenas na prova testemunhal produzida, violando assim o disposto no art. 394º do CC, pelo que os referidos artigos devem ser dados como não provados, revogando-se assim a decisão ora recorrida.
A recorrente terminou pedindo que o despacho recorrido seja revogado, por qualquer um dos fundamentos supra referidos, que reiterou.
A Requerente/Recorrida contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
a) As extensas alegações apresentadas pela recorrente são totalmente desprovidas de fundamento e limitam-se como a própria afirma ao local do estabelecimento comercial e não aos bens que aí se encontravam.
b) Nesta data em que as presentes alegações são entregues, e que dista já muitas semanas após a notificação da requerida para que cumprisse com o decidido, ela ainda não o fez, incorrendo claramente num crime de desobediência, para além de estar a ser sujeita à obrigatoriedade do pagamento de sanção compulsória.
c) Daí que a recorrida esteja neste momento plenamente convencida que a redução da sanção compulsória que na sentença ocorreu relativamente ao que tinha sido peticionado, não terá constituído a melhor solução, uma vez que apesar de essa redução se ter operado, ou talvez por causa dela, a recorrente, que tem um poderio económico enorme em relação à recorrida, pelo menos na aparência do grupo empresarial em que se encontra integrada, demonstra com a sua actuação o desrespeito com que olha, de modo sobranceiro para com as decisões judiciais.
d) Demonstra a recorrente com a sua actuação que ao invés de querer uma justiça decisiva, certa, segura, e responsável, apenas o quer se essa justiça servir os seus intentos; caso contrário não a cumpre e ignora-a.
e) Em face do exposto, nenhuma censura merece a douta decisão que demonstrou uma correctíssima aplicação do direito aos factos provados.
A Recorrida concluiu pedindo que seja negado provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões a tratar neste recurso, conforme emergem das conclusões da apelação (artigos 684º nº 3, 684º-A nºs 1 e 2, 685º-A nº 3, do Código de Processo Civil), são as seguintes (por ordem lógica): se não deve dar-se como provada a matéria das alíneas D), F) e H), por assentar apenas em prova testemunhal, violando o disposto no art.º 394º do Código Civil); se existe decisão transitada em julgado, proferida em sentido contrário ao da decisão recorrida, que deve prevalecer sobre esta; se a Requerente/Apelada não é titular de qualquer direito, que deva ser acautelado pela providência decretada; se a Requerente/Apelada não tem posse ou sequer detenção a que seja aplicável a previsão do art.º 1037º nº 2 do C.C., pelo que lhe é vedado o recurso ao procedimento cautelar de restituição provisória de posse; se a Requerente/Apelada actua com abuso de direito.
Primeira questão (se não deve dar-se como provada a matéria das alíneas D), F) e H))
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de Facto
A) A requerente dedica-se à actividade de restauração, actividade essa que exerce apenas no estabelecimento comercial sito no ..... em Lisboa.
B) No local, a requerente instalou um estabelecimento comercial de restauração, constituído por um restaurante e um balcão de serviço de refeições, “pronto a comer” que se encontrava em pleno funcionamento até ao passado dia 9 de Agosto.
C) Por contrato de utilização de espaço em Centro Comercial, celebrado a 9 de Dezembro de 2003, entre a requerente e a D....., S.A., esta concedeu àquela o direito à utilização da loja ...., sita no piso O do Centro Comercial, nos termos e condições daquele constantes e junto a fls. 16 a 36 dos autos.
D) Tal contrato foi celebrado pela requerente no pressuposto de que tal loja se integrava, não num centro comercial "tout court", mas sim num Centro Empresarial composto por lojas, escritórios, hotel e health-club.
E) A sociedade D...., S.A. estabeleceu prévia e unilateralmente todas as cláusulas do referido contrato, não dando qualquer possibilidade à requerente de as discutir, que mais não pode fazer do que aceitar ou recusar o conteúdo total e global da proposta.
F) A sociedade exploradora do Centro Empresarial propunha-se construir um centro empresarial, com lojas criteriosamente seleccionadas com capacidade de angariação de muita clientela.
G) O Centro Empresarial abriu em ..... 2004 e nunca a sociedade exploradora daquele conseguiu geri-lo como um todo harmónico, deixando por comercializar espaços que nunca foram comercializados e outros que entretanto deixaram de estar ocupados.
H) Em face de tal actuação, desde cedo os lojistas apresentaram as suas reclamações junto da Administração, tendo inclusive proposto à Administração que, dadas as circunstâncias (a maior parte das lojas, designadamente os espaços âncoras, não se encontravam em funcionamento, não havia publicidade ou era insuficiente, etc), deveria haver lugar a uma redução do valor da renda até que se encontrassem reunidos todos os pressupostos que levaram, senão a maioria pelo menos grande parte dos lojistas a contratar e que consistia na existência de um complexo empresarial, composto por comércio, escritórios, hotel, health-club e restaurante de luxo a funcionar em pleno.
I) Por não terem obtido qualquer resposta à supra mencionada carta, e, perante o silêncio da A., a persistência da sua passividade em tomar as medidas necessárias ao bom funcionamento do Centro, os lojistas, designadamente a requerente, assumiram a posição de não pagar as contrapartidas mensais devidas pela utilização das lojas, enquanto não lhes fosse assegurada a dotação em lojas e ocupação de escritórios que canalizasse para as lojas o volume de clientes necessários a uma exploração equilibrada.
J) Perante a inércia da sociedade D....., S.A., e entendendo que esta não geria o Centro de acordo com as expectativas que criara aos lojistas, ela própria incluída, a requerente entendeu que, ao abrigo do disposto no artigo 428° do Código Civil, não devia pagar, nem estava obrigada a pagar, as contrapartidas mensais constantes do contrato celebrado, relativas à utilização da loja e às despesas de condomínio, do que por diversas vezes deu conhecimento à entidade gestora.
L) Face à posição assumida pela requerente, a sociedade D......, S.A., intentou acção contra aquela peticionando o pagamento das contrapartidas mensais relativas à utilização da loja e às despesas de condomínio.
M) A requerente, por seu turno, contestou alegando a excepção de não cumprimento do contrato, e deduziu pedido reconvencional em que peticiona a redução das rendas e a nulidade de cláusulas contratuais.
N) Esta acção encontra-se a correr os seus termos na ... Vara, ... Secção, Proc...... TVLSB, não tendo ainda julgamento agendado.
O) Por acordo de 27 de Junho de 2007, que denominaram de "Contrato de Exploração", a sociedade D....., S.A., cedeu a sua posição no contrato celebrado com a requerente à C....., S.A., Sucursal em Portugal, retroagindo-se os seus efeitos ao dia 1 de Julho de 2007.
P) Após a celebração do dito contrato a requerida C..... nada fez: não promoveu nenhuma acção publicitária, não comercializou um único espaço, sendo que desde que assumiu a sua gestão, encerraram muito mais lojas ficando o centro praticamente reduzido a 8 espaços comerciais (das 70/80 publicitadas inicialmente).
Q) Quando a requerida C.... sucedeu na posição contratual da sua antecessora já a maioria (senão a totalidade) dos lojistas se encontravam com acções judiciais pendentes e ao abrigo da excepção do não cumprimento do contrato não liquidavam as contrapartidas mensais constantes do contrato, situação que a requerida não ignorava até porque os serviços administrativos continuaram a ser prestados à C.... pela sociedade cedente, D....., S.A. pelo preço mensal de € 10.000.
R) No passado dia 28 de Fevereiro de 2008, a requerente recebeu uma carta, nos termos da qual a requerida a notificava para no prazo de 8 dias proceder ao pagamento das contrapartidas em atraso sob pena de resolução do contrato, sem mais qualquer formalismo legal.
S) A requerente respondeu nos termos da carta junta a fls. 71 e 72, defendendo perante a requerida que não havia fundamento válido para tal resolução, muito menos ao abrigo da cláusula 15a do contrato já que tal cláusula é nula, mas também pelo facto de ser a requerida que se encontrava em incumprimento.
T) Na mesma carta, a requerente relembrou ainda a requerida que o pagamento ou não, e eventualmente quais os valores a liquidar são questões cuja discussão se encontra igualmente em apreciação nas instâncias próprias pelo que seria, evidentemente, prematuro, considerar uma resolução do contrato com base em incumprimento da requerente.
U) A 24 de Março, a requerente recebeu nova carta da requerida, nos termos da qual esta resolvia unilateralmente o contrato de utilização de loja em centro comercial com efeitos a partir de 12 de Março de 2008.
V) A requerente respondeu nos termos da carta junta a fls. 73 e continuou a exercer a sua actividade no local.
X) A partir de 31 de Março, a requerida deu ordens para que cessassem as limpezas do "food-court" e das casas de banho da área da restauração, fechou todas as outras casas de banho do empreendimento, retirou a segurança do piso do “food-court”, encerrou as escadas rolantes, fechou o elevador, reduziu as luzes ao mínimo (não se vendo nada em algumas zonas do “food-court” principalmente a partir de determinada hora) e fechou a porta de acesso directo à área da restauração (zona por onde entram a maior parte dos clientes na hora da refeição).
Z) Os lojistas organizaram-se e passaram a proceder eles próprios à limpeza do food-court e das casas de banho do piso 0, tentando manter em actividade os seus espaços comerciais para, pelo menos, conseguirem ir fazendo face aos compromissos que tem para com os seus fornecedores, as empresas que as financiaram e para com os seus trabalhadores.
AA) No passado dia 11 de Agosto, os gerentes da requerida tiveram conhecimento de que a sua loja havia sido vandalizada, destruída, e que dela haviam sido retirados todos os bens de sua propriedade e outros de que eram fiéis depositários.
BB) De imediato dirigiram-se ao local, tendo constatado que este se encontrava tapado com umas tábuas que aí teriam sido postas no decorrer da madrugada de 9 para 10 de Agosto de 2008.
CC) Ao tentarem entrar no seu estabelecimento, constataram que a quase totalidade dos bens de sua propriedade bem como aqueles que se encontravam à sua guarda, haviam sido retirados do estabelecimento e levados para sítio que ignoravam.
DD) Constataram igualmente que do seu estabelecimento haviam sido arrancados todos os elementos que se encontravam colocados nas paredes, chão e tecto, tais como torneiras, lâmpadas (havendo vários estilhaços de vidro espalhados pelo chão), balcões, bancadas, prateleiras, armários, detectores de incêndio, contador de água, etc.
EE) Constataram ainda que os víveres que se encontravam dentro do seu estabelecimento foram (pelo menos parcialmente) consumidos pelas pessoas que aí haviam entrado já que ainda se encontravam vestígios de comida e principalmente de bebidas espalhados pelo chão e que a requerente sabia ter deixado no local.
FF) Desapareceu também a máquina registadora, dinheiro, o livro de actas da sociedade e demais documentação contabilística, o que prejudica o cumprimento pela requerente das suas obrigações fiscais.
GG) Todos os equipamentos, mobiliário, pratos, copos, talheres e todos os demais bens do estabelecimento foram tirados do local.
HH) Por este motivo, de imediato apresentou na .... Esquadra da PSP de Lisboa, participação crime contra incertos, participação essa que se tem o NUIPC ..... e que se encontra a correr os seus trâmites.
II) Na mesma altura, as responsáveis da requerente, verificaram que colado nos taipais se encontrava uma carta subscrita pelo Sr. Dr. E..... e Sra. Dra. F......, que informavam que enquanto legais representantes da C...., S.A. (....) haviam retirado todas as mercadorias, móveis, máquinas e outros produtos existentes.
JJ) Na mesma missiva invocavam que o tinham feito ao abrigo da cláusula 15ª do Contrato de Utilização de Loja em Centro Comercial, contrato esse celebrado entre a requerente e a D...... que em 1 de Julho de 2007, conforme supra referido, cedeu a sua posição contratual à sociedade C......
LL) No passado dia 26 de Agosto, ao deslocarem-se à sua loja constataram novamente que os poucos bens que lá tinham ficado foram igualmente de lá retirados, motivo pelo qual foi feito um aditamento à supra referida queixa crime.
MM) Nessa altura constataram novamente que a sua loja havia sido totalmente entaipada, e nos taipais encontrava-se colada uma outra carta subscrita pelas mesmas pessoas referidas em II), de conteúdo idêntico à primeira, e junta a fls. 78 e 79 dos autos.
NN) Ao tapar a loja .... a requerida pretendeu privar a requerente de aceder ao espaço (loja e bens que se encontram no seu interior) e impedi-la de exercer a sua actividade.
O Direito
A Apelante entende que o tribunal a quo não podia dar como provada a matéria contida nas alíneas D), F) e H), uma vez que, por consubstanciar alegada convenção adicional a contrato reduzido a escrito, a sua prova não podia fazer-se, como se fez, por mero recurso à prova testemunhal.
Vejamos.
Está provado que entre a ora Requerente/Apelada e a D....., S.A. foi celebrado o contrato de utilização de espaço em Centro Comercial, a que se refere a alínea C) da matéria de facto. Tal contrato foi reduzido a escrito, constituindo um documento particular (artigos 363º e 373º do Código Civil). A sua autoria não foi impugnada, pelo que faz prova plena quanto às declarações atribuídas às partes e consideram-se provados os factos compreendidos na declaração, na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (art.º 376º nºs 1 e 2 do Código Civil). Ora, o art.º 394º nº 1 do do Código Civil estipula que “é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
A doutrina e a jurisprudência têm entendido, cremos que com razão, que a proibição contida nestes preceitos não tem carácter absoluto, sob pena de conduzir a resultados iníquos (cfr., v.g., Vaz Serra, RLJ, 103º, pág. 10 e seguintes e RLJ, 107º, pág. 309 e seguintes; Mota Pinto, Col. Jur, ano X, tomo 3, pág. 11 e ss; STJ, 29.11.2005, processo 05A3283; STJ, 19.2.2004, processo 03A4457 – ambos os acórdãos na internet, dgsi-itij). A prova testemunhal (assim como a prova por presunções judiciais – art.º 351º do Cód. Civil) será admissível quando se destine a complementar a convicção do tribunal, esclarecendo-a, quando esta já está parcialmente formada com base em circunstâncias objectivas ou documentos que tornam verosímil a convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documento. Nessa situação a prova testemunhal não encerra os perigos que o disposto nos artigos 393º e 394º do Cód. Civil visa evitar (a sua falibilidade), pois o juízo do tribunal sobre a matéria de facto não assentará exclusivamente, nem principalmente, nesses depoimentos. Aliás, no que concerne à inadmissibilidade de provar por testemunhas factos que já estejam plenamente provados por documento ou por qualquer outro meio de prova plena, ou declarações negociais que por disposição negocial ou estipulação das partes, devam ser reduzidas a escrito ou provadas por escrito, consignada nos números 1 e 2 do art.º 393º do C. Civil, aceita-se a produção de prova testemunhal tendo em vista a simples interpretação do contexto do documento (nº 3 do art.º 393º).
As alíneas D), F) e H) da matéria de facto, questionadas pela Apelante, têm o seguinte teor (inclui-se aqui a alínea G), para melhor compreensão da alínea H)):
D) Tal contrato foi celebrado pela requerente no pressuposto de que tal loja se integrava, não num centro comercial "tout court", mas sim num Centro Empresarial composto por lojas, escritórios, hotel e health-club.
F) A sociedade exploradora do Centro Empresarial propunha-se construir um centro empresarial, com lojas criteriosamente seleccionadas com capacidade de angariação de muita clientela.
G) O Centro Empresarial abriu em ..... 2004 e nunca a sociedade exploradora daquele conseguiu geri-lo como um todo harmónico, deixando por comercializar espaços que nunca foram comercializados e outros que entretanto deixaram de estar ocupados.
H) Em face de tal actuação, desde cedo os lojistas apresentaram as suas reclamações junto da Administração, tendo inclusive proposto à Administração que, dadas as circunstâncias (a maior parte das lojas, designadamente os espaços âncoras, não se encontravam em funcionamento, não havia publicidade ou era insuficiente, etc), deveria haver lugar a uma redução do valor da renda até que se encontrassem reunidos todos os pressupostos que levaram, senão a maioria pelo menos grande parte dos lojistas a contratar e que consistia na existência de um complexo empresarial, composto por comércio, escritórios, hotel, health-club e restaurante de luxo a funcionar em pleno.
A Apelante entende que se dão aí como provados, com exclusivo recurso a prova testemunhal, “factos que dizem respeito a alegadas promessas prévias ao contrato, que dizem respeito à fase de negociação do contrato, que dizem eventualmente respeito a convenções verbais que terão alegadamente sido assumidas” (conclusão 69).
Aceita-se que o teor dessas alíneas inculca a ideia de que a D....., S.A. se obrigou, para com a Requerente (e pelo menos perante parte dos outros lojistas) a abrir e a manter em pleno funcionamento um centro empresarial composto por lojas criteriosamente seleccionadas, com capacidade de angariação de muita clientela, escritórios, hotel, health-club.
Aliás, o tribunal a quo fundamentou a decisão sobre a matéria de facto pela seguinte forma:
“Não se provaram quaisquer outros factos e, para apoio dos que se deixam extractados atentou-se:
no depoimento das testemunhas (…).
As testemunhas descreveram o processo de contratação com a promotora do Centro, o projecto apresentado, e o contrato, que lhes foi apresentado como não susceptível de negociação, excepção feita a um ou outro pormenor.
Descreveram os sucessivos incumprimentos da promotora e dos que tiveram origem na actuação da requerida, a falta de diálogo e a reacção dos lojistas suspendendo os pagamentos.
Confirmaram a recepção das cartas enviadas pela requerida, a resposta que foi dada e relataram os factos ocorridos na noite de 9 para 10 de Agosto, a forma como deles tiveram conhecimento, a sua deslocação ao local e descreveram o estado em que se encontrava aquele.
As testemunhas demonstraram conhecer os factos a que depuseram e fizeram-no de forma tida como objectiva, isenta e credível.
Considerou-se também toda a prova documental junta, nomeadamente a relativa aos contratos, cartas recebidas pela requerente provenientes da requerida e a resposta enviada” (sublinhados nossos).
Assim, estas alíneas têm um alcance diverso da mera invocação da base do negócio, das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, nos termos e com as consequências previstas no artº 437º do Código Civil (direito à resolução do contrato ou à sua modificação segundo a equidade).
Há que averiguar se tal convenção é algo que não consta do contrato ou que não se pode extrair do seu teor.
Ora, com relevo para este caso, cabe reproduzir do mesmo as seguintes passagens (sublinhados nossos):
“Considerando que:
A) A Primeira Contraente está a promover a construção de um empreendimento imobiliário, adiante sempre denominado por "......" ou "Empreendimento", situado em Lisboa,...., constituído por um centro comercial, escritórios, hotel e parques de estacionamento;
B) O referido centro comercial (de ora em diante designado por "Centro Comercial") constitui, no seu conjunto, um estabelecimento comercial, composto por lojas e espaços destinados ao exercício de actividades comerciais de retalho, restauração e prestação de serviços, distribuídos de acordo com uma cuidada planificação técnica, e espaços comuns de circulação e lazer, com todas as infra-estruturas de apoio necessárias ou convenientes ao exercício das actividades comerciais que nele serão desenvolvidas, assegurando, igualmente, o acesso às restantes partes do Empreendimento;
C) A PRIMEIRA CONTRAENTE tem vindo a diligenciar no sentido de proceder à divisão do Empreendimento em propriedade horizontal, por forma a que o Centro Comercial venha a constituir uma fracção autónoma das demais partes que integram o Empreendimento;
D) A PRIMEIRA CONTRAENTE promoveu a realização de estudos técnicos, com vista à concepção e implementação do Centro Comercial de acordo com os mais elevados padrões de qualidade e à criação de uma estrutura adequada ao funcionamento do Centro Comercial;
E) Essa estrutura é um factor decisivo na valorização do Centro Comercial e de toda e cada uma das lojas e espaços nele integrados, no âmbito do respectivo mercado;
F) A PRIMEIRA CONTRAENTE, exercerá por si ou cometerá a uma empresa — adiante designada por Entidade Gestora — a exploração do Centro Comercial, sob a forma de comércio integrado, incluindo a exploração, em proveito próprio, de áreas comuns do Centro Comercial, inclusive as de circulação;
G) A PRIMEIRA CONTRAENTE, ou a Entidade Gestora por si designada, exercerá o direito e o dever de gerir o Centro Comercial, incluindo, nomeadamente, a organização e administração do seu funcionamento e utilização pelos lojistas nele instalados e, de um modo geral, a promoção, organização, administração, direcção e fiscalização do funcionamento e utilização do Centro Comercial;
H) Para simplificação e harmonização dos direitos e obrigações dos lojistas, enquanto utilizadores, a qualquer título, das lojas ou de quaisquer outros espaços ou dependências que integrem o Centro Comercial, bem como para permitir o seu bom e normal funcionamento, indispensável ao seu sucesso, e, assim, também, no interesse de todos os lojistas e utilizadores do Centro Comercial e, ainda, para viabilizar aquela administração, a PRIMEIRA CONTRAENTE aprovou um Regulamento de Funcionamento e Utilização do Centro Comercial, a seguir abreviadamente designado por Regulamento, cujo texto a Entidade Gestora se vinculará a respeitar e a fazer respeitar por todos os lojistas (Anexo II);
I) O Centro Comercial deve funcionar como um todo harmónico, subordinado a normas técnicas de manutenção e melhoramento da sua qualidade e operacionalidade, e sujeito a constante acompanhamento por parte da PRIMEIRA CONTRAENTE ou da Entidade Gestora, para o que é indispensável a prestação dos serviços a efectuar por aquela ou por esta e descritos no presente contrato e no Regulamento, sendo essas prestações indissociáveis da utilização, a qualquer título, das lojas e espaços pelos lojistas;
J) O funcionamento optimizado do Centro Comercial, designadamente a necessidade de manutenção de elevados padrões de qualidade e das características inerentes ao comércio integrado, bem como a plena operacionalidade do Centro Comercial, obrigam ao efectivo exercício da actividade a que as lojas se destinam, não se coadunando com qualquer encerramento destas, salvo em casos excepcionais previstos no presente contrato;
L) O SEGUNDO CONTRAENTE é pessoa idónea e com capacidade para ser admitido como utilizador de uma loja/espaço integrante do Centro Comercial, obrigando-se a manter e respeitar os elevados padrões que presidem ao funcionamento e exploração do mesmo;
M) O SEGUNDO CONTRAENTE propõe-se exercer no CENTRO COMERCIAL a sua actividade comercial, de acordo com os condicionamentos inerentes e característicos do comércio integrado, em particular dos expressos no presente contrato e no Regulamento, usufruindo dos respectivos benefícios e sujeitando-se às correspondentes obrigações;
N) O TERCEIRO CONTRAENTE é pessoa idónea, indicada pelo SEGUNDO CONTRAENTE e aceite peia PRIMEIRA CONTRAENTE, com comprovada capacidade económica e financeira para garantir o bom cumprimento, pelo SEGUNDO CONTRAENTE, das obrigações emergentes do presente contrato;
O) As partes reconhecem que a especificidade inerente à exploração, gestão, funcionamento e utilização do Centro Comercial e das lojas e espaços que o integram, designadamente as decorrentes das características próprias do comércio integrado que se desenvolverá no mesmo Centro Comercial, e que a integral satisfação dos diversos interesses que se conjugam, estão presentes e são determinantes da vontade de contratar, não se compadecendo com a disciplina própria dos contratos tipificados na lei portuguesa e só podendo ser prosseguidos no âmbito das cláusulas que por comum acordo aqui se estabelecem, como manifestação pura da real vontade das partes, e que dão corpo a um contrato, por natureza e essência, atípico.
É, LIVREMENTE E DE BOA FÉ, CELEBRADO O PRESENTE CONTRATO QUE SE REGERÁ PELO DISPOSTO NAS CLÁUSULAS SEGUINTES:

Cláusula 1ª (Objecto do contrato)
1. A PRIMEIRA CONTRAENTE confere, nos termos do presente contrato e dos anexos que dele fazem parte integrante, ao SEGUNDO CONTRAENTE, que nos mesmos termos aceita, os seguintes direitos, a exercer durante o horário de funcionamento do Centro Comercial
a) O direito à utilização da loja n.° .... (o número poderá variar já que tem apenas funções de identificação face a um plano de numeração que pode ser alterado), daqui em diante abreviadamente referida por LOJA, com a área de cerca de 55,15 m2 (cinquenta e cinco vírgula quinze metros quadrados), sita no piso O (zero) do Centro Comercial, a qual melhor se identifica na planta que constitui o Anexo I a este contrato e dele faz parte integrante,
b) Acesso, unicamente para os fins apropriados, às áreas de uso comum, designadamente corredores, escadas, escadas rolantes, elevadores, instalações sanitárias e cais de carga e descarga de mercadorias, bem como ao estacionamento, nas condições de operação que, em cada momento, estiverem em vigor;
c) Beneficio dos diversos serviços e estrutura de apoio do Centro Comercial, nomeadamente serviços de limpeza, manutenção e conservação das partes e equipamentos de uso comum do Centro Comercial, segurança, consultadoria e promoção do mesmo;
d) Benefício, em especial, do fornecimento de energia eléctrica e de água potável;
e) Uso, em conjunto com as da sua LOJA, da denominação e da insígnia ou logotipo do próprio Centro Comercial.
Cláusula 2a
(Exercício do direito de utilização)
1. A LOJA terá a denominação comercial de "......", obrigando-se o SEGUNDO CONTRAENTE a não a modificar sem o prévio consentimento, dado expressamente e por escrito, da PRIMEIRA CONTRAENTE.
2. A LOJA destina-se exclusivamente ao exercício, pelo SEGUNDO CONTRAENTE, da actividade comercial de restauração, a qual deverá ser exercida de forma continuada e ininterrupta durante todo o período de abertura ao público do Centro Comercial, nos termos do Regulamento de Funcionamento e Utilização do Centro Comercial (o "Regulamento") que constitui o Anexo II, não podendo ser-lhe atribuído destino diferente sem o acordo prévio da PRIMEIRA CONTRAENTE, dado expressamente e por escrito.
3. O SEGUNDO CONTRAENTE não terá qualquer direito de exclusividade para exercer, no Centro Comercial, a actividade comercial prevista no número anterior.
4. Se, violando a obrigação referida no número dois de exercício da actividade por forma continuada e ininterrupta, o SEGUNDO CONTRAENTE mantiver a sua loja encerrada por um período contínuo superior a 30 (trinta) dias, ou por mais de 60 (sessenta) dias intercalados, a PRIMEIRA CONTRAENTE poderá resolver o presente contrato nos termos previstos na Cláusula 15a, sem prejuízo da obrigação de pagamento da penalidade prevista na cláusula 14ª
5. O SEGUNDO CONTRAENTE obriga-se a promover e a assegurar o funcionamento da LOJA segundo as boas regras do comércio, de acordo com os condicionamentos inerentes e característicos do comércio integrado, em particular dos expressos no presente contrato e no Regulamento que constitui o Anexo II, e mantendo os mais elevados padrões de qualidade.
6. O SEGUNDO CONTRAENTE, na exploração da LOJA, na utilização das zonas comuns do Centro Comercial e em todos os aspectos relacionados com a LOJA e o Centro Comercial, obriga-se, por si, pelos seus empregados e pelos utentes da sua LOJA, a cumprir e fazer cumprir integralmente o disposto no presente contrato e no Regulamento que constitui o Anexo II.
Cláusula 3ª
(Duração do contrato)
1. O direito de utilização da LOJA tem início na data de inauguração do Centro Comercial e termo 5 (cinco) anos após aquela data, não assistindo, em caso algum e a qualquer das partes, o direito de denúncia, que o presente contrato não admite, por ser celebrado por prazo certo, de período único e sem renovações.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, a PRIMEIRA e o SEGUNDO CONTRAENTES podem, até ao termo do prazo de duração do contrato, dirigir-se reciprocamente propostas de celebração de novo contrato que tenha por objecto a utilização da mesma LOJA.
Cláusula 4a
(Remuneração)
1. O SEGUNDO CONTRAENTE pagará mensalmente à PRIMEIRA CONTRAENTE, ou a quem esta em qualquer momento lhe indicar, pela utilização da LOJA e demais serviços facultados nos termos do presente contrato, uma contrapartida de 2.206,00 Euros (dois mil duzentos e seis Euros), acrescida de IVA à taxa legal em vigor.
(…)
Cláusula 5a
(Encargos comuns)
1. Para além da contrapartida mensal e do valor dos fornecimentos referidos na cláusula anterior, o SEGUNDO CONTRAENTE obriga-se a comparticipar nas despesas e encargos com o funcionamento e utilização do Centro Comercial e com a promoção deste, conforme previsto no Regulamento, que lhe venham a ser debitados pela PRIMEIRA CONTRAENTE.
2. As despesas comuns a que se refere a presente cláusula serão, entre outras, as relacionadas com o fornecimento de energia eléctrica, que inclui iluminação e ar condicionado, água, serviços de limpeza, serviços de segurança, manutenção e consumos energéticos de todas as máquinas instaladas no Centro Comercial para serviço do mesmo, tais como elevadores, escadas rolantes, ar condicionado, sistemas de segurança e emergência, sistemas de limpeza, honorários e remuneração de pessoal contratado para a prestação de serviços administrativos, de consultadoria ou outros relacionados com o funcionamento do Centro Comercial, e despesas conexas com a sua contratação, seguros do edifício, substituição de equipamentos e peças, reparações diversas, licenças camarárias, taxas de publicidade ou outras similares que incidam sobre iniciativas e acções de interesse comum.
(…)
5. A promoção do Centro Comercial será confiada à Entidade Gestora, com a supervisão da PRIMEIRA CONTRAENTE, nos termos previstos no presente contrato e no Regulamento. Para os efeitos da referida promoção será criado um fundo especial para o qual o SEGUNDO CONTRAENTE contribuirá nos termos fixados no número 3 desta cláusula.
6. O SEGUNDO CONTRAENTE deverá pagar as comparticipações referidas nos números anteriores até ao dia 5 do mês anterior àquele a que as mesmas disserem respeito, nos termos previstos no número 2 da cláusula 4a.
(…)
9. Os fornecimentos poderão ser interrompidos pela PRIMEIRA CONTRAENTE no caso de o SEGUNDO CONTRAENTE não efectuar atempadamente os pagamentos correspondentes e não regularizar a situação no prazo de 8 (oito) dias após a notificação escrita da PRIMEIRA CONTRAENTE.
Cláusula 6a
(Entrega provisória da LOJA)
1. Até 90 (noventa) dias antes da data prevista para a inauguração do Centro Comercial, a PRIMEIRA CONTRAENTE fornecerá, ao SEGUNDO CONTRAENTE, o Manual de instalação de Lojas, cópia dos elementos do projecto de arquitectura e de instalações especiais do Centro Comercial, na parte relevante para a LOJA, e as especificações técnicas do projecto necessárias para o SEGUNDO CONTRAENTE elaborar os projectos da LOJA.
2. O SEGUNDO CONTRAENTE obriga-se a submeter à PRIMEIRA CONTRAENTE, nos 30 (trinta) dias seguintes à recepção dos elementos referidos no número anterior, para prévia aprovação por esta, os projectos de arquitectura, de instalações especiais e dos trabalhos de acabamento e decoração que pretenda efectuar, devidamente instruídos com uma Memória Descritiva e elaborados de acordo com o Manual de Instalação de Lojas, os quais deverão respeitar as normas legais e regulamentares que forem aplicáveis, os padrões de qualidade dos materiais adoptados para o Centro Comercial e os padrões estéticos impostos pela PRIMEIRA CONTRAENTE na decoração do mesmo.
3. A PRIMEIRA CONTRAENTE deverá pronunciar-se sobre os referidos projectos e comunicar ao SEGUNDO CONTRAENTE a sua aprovação ou rejeição dos mesmos, no prazo de 30 (trinta) dias a contar da sua recepção.
(…)
Cláusula 7ª
(Obrigações acessórias)
1. O SEGUNDO CONTRAENTE obriga-se a manter a LOJA e todos os seus pertences, incluindo canalizações de água e esgotos. instalações eléctricas, de segurança, telefones e ar condicionado, em bom estado de conservação, apresentação e funcionamento, e a suportar o custo de quaisquer obras de reparação tornadas necessárias, quer pelo funcionamento da LOJA, quer pela sua devolução quando o presente contrato deva ter-se por extinto.
2. Havendo lugar à devolução da LOJA por efeito da verificação de qualquer facto extintivo do presente contrato, o SEGUNDO CONTRAENTE obriga-se a entregar todas as chaves da LOJA à PRIMEIRA C0NTRAENTE, designadamente a fim de esta verificar o seu estado, no tocante à conservação e funcionamento dos aparelhos e instalações existentes, sem prejuízo de se manter a sua responsabilidade pelo cumprimento de todas as obrigações decorrentes do presente contrato e da obrigação de ressarcir a PRIMEIRA CONTRAENTE por eventuais danos emergentes, lucros cessantes ou prejuízos de qualquer natureza a que o seu procedimento der causa.
3. O SEGUNDO CONTRAENTE reconhece expressamente o direito da PRIMEIRA CONTRAENTE inspeccionar quaisquer equipamentos que se encontrem instalados ou que atravessem a LOJA e de nestes realizar quaisquer obras que se mostrem necessárias, acautelando, na medida do possível, o funcionamento da LOJA.
(…)
Cláusula 18a
(Impossibilidade de cumprimento)
1. Caso se verifique a impossibilidade absoluta e definitiva de inaugurar o Centro Comercial, decorrente de facto directamente imputável à PRIMEIRA CONTRAENTE, não sendo como tal considerado qualquer atraso na inauguração do mesmo, por qualquer causa, nomeadamente, por atraso na conclusão das obras de construção ou na obtenção das licenças ou outras autorizações que se mostrem necessárias, o SEGUNDO CONTRAENTE terá direito ao reembolso de todas as quantias pagas à PRIMEIRA CONTRAENTE, ao abrigo do presente contrato, exceptuadas aquelas que o tenham sido a título de juros ou por força de qualquer sanção pecuniária que lhe tenha sido aplicada.
2. Sobre as quantias de que, nos termos do número anterior, o SEGUNDO CONTRAENTE deva ser reembolsado acrescem juros à taxa legal, contados desde a data em que aquelas quantias foram recebidas pela PRIMEIRA CONTRAENTE e até à data do seu oferecimento ao SEGUNDO CONTRAENTE.
3. Para além dos direitos consagrados nos números anteriores não terá o SEGUNDO
CONTRAENTE o direito de reclamar quaisquer outros com fundamento na não inauguração da LOJA, excepto se já tiver iniciado as obras de montagem da LOJA nos temos da cláusula 6ª, havendo, nesse caso, o direito de ser indemnizado pela PRIMEIRA CONTRAENTE dos custos suportados com projectos, obras e materiais, no montante que o SEGUNDO CONTRAENTE prove ter despendido mediante a apresentação dos correspondentes recibos.
(…).”
O contrato contém, pois, considerandos que fazem luz sobre qual o pano de fundo do negócio, os objectivos por este visados e o que se espera de cada uma das partes. Ora, se bem que nos considerandos se diga que a Primeira Contraente (no caso, a antecessora da Apelante, D....., S.A.) está a promover “a construção de um empreendimento imobiliário, adiante sempre denominado por "....." ou "Empreendimento", situado em Lisboa, ....., constituído por um centro comercial, escritórios, hotel e parques de estacionamento” (considerando A), logo de seguida, no considerando B, destrinça-se dentro do Centro Empresarial o Centro Comercial, o qual passará a ser exclusivamente referido como a unidade (estabelecimento comercial) em que se integrará a Loja da Requerente. Fora do Centro Comercial estão, nomeadamente, os escritórios e o hotel (considerandos A e B). Porém, no que concerne ao Centro Comercial, reconhece-se expressamente que a sua valorização bem como de cada uma das lojas nela integradas depende da actuação dos lojistas e da entidade gestora do centro comercial, sobre quem recai, nomeadamente, o dever de promover o centro, organizar e fiscalizar o seu funcionamento e utilização (considerandos D a G e I). Mais, aí se declara que o funcionamento optimizado do Centro, ”designadamente a necessidade de manutenção de elevados padrões de qualidade e das características inerentes ao comércio integrado, bem como a plena operacionalidade do Centro Comercial, obrigam ao efectivo exercício da actividade a que as lojas se destinam, não se coadunando com qualquer encerramento destas, salvo em casos excepcionais previstos no presente contrato”. À entidade gestora do Centro Comercial cabia a promoção do mesmo (cfr. clª 5, nº 5), devendo a Requerente contribuir para um fundo destinado a suportar os respectivos encargos (idem).
Trata-se, afinal, de um quadro de direitos e deveres típico da realidade jurídico-económica designada por centro comercial, que se vulgarizou no nosso país, e a propósito do qual pode citar-se a anotação do Prof. Calvão da Silva, mencionada nos autos pela própria Apelante (RLJ, ano 136º, Julho-Agosto de 2007, nº 3945, pág. 366):
Não pode deixar de ter-se presente, em todo o contrato complexivamente visto, a prestação complexa a cargo do organizador/explorador do Centro Comercial, em que se destaca: o dever de conceder ao lojista o acesso às áreas de utilização comum bem como ao estacionamento; o dever de proporcionar ao lojista os benefícios dos diversos serviços e estruturas de apoio do Centro Comercial, tais como limpeza, manutenção, conservação, segurança; a obrigação de permitir o uso pelo lojista da denominação e insígnia do Centro Comercial.
Obrigação complexa e duradoura, a fazer do organizador/explorador o segredo e a alma do Centro Comercial, sem o dinamismo e eficiência do qual rapidamente morre esse local como empresa global integrada por várias empresas ou estabelecimentos comerciais, em que o todo vale mais que a soma das partes.
Dizer isto equivale a afirmar a obrigação continuada de o organizador/explorador manter e conservar o Centro como local vivo, dinâmico e aprazível, a passar necessariamente pela cooperação de todos e cada um dos lojistas sob a proporcionada e adequada coordenação daquele.
Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Janeiro de 2000 (Processo nº 99A1080),
“O dono de um Centro Comercial tem o dever de diligenciar para o manter em condições de plena vivência e rentabilidade normal”.
Posto isto, entende-se que:
- No contrato não se mostra, sequer indiciariamente, que a sociedade D....., S.A. se vinculou perante a Requerente e outros lojistas, a colocar em funcionamento os escritórios e hotel, ou seja, estruturas exteriores ao Centro Comercial;
- Também nele não se refere a obrigação de instalar um health-club ou um restaurante de luxo;
- Assim, na falta de qualquer outro elemento probatório escrito, as referidas alíneas deverão ser modificadas, de molde a delas se extirpar a menção a uma eventual obrigação da D...., S.A. e/ou da Requerida naquele sentido;
- No mais, a prova testemunhal limitou-se a corroborar algo que era indiciado pelo teor do próprio contrato.
Assim:
- elimina-se a alínea D) da matéria de facto;
- a alínea H) da matéria de facto passará a ter a seguinte redacção:
“Em face de tal actuação, desde cedo os lojistas apresentaram as suas reclamações junto da Administração, tendo inclusive proposto à Administração que, dadas as circunstâncias (a maior parte das lojas, designadamente os espaços âncoras, não se encontravam em funcionamento, não havia publicidade ou era insuficiente, etc), deveria haver lugar a uma redução do valor da renda até que se encontrassem reunidos todos os pressupostos que levaram, senão a maioria pelo menos grande parte dos lojistas a contratar e que consistia na existência de um centro comercial a funcionar em pleno.”
Segunda questão (se existe decisão transitada em julgado, proferida em sentido contrário ao da decisão recorrida, que deva prevalecer sobre esta)
A Apelante/Requerida alega que a .... Vara Cível de Lisboa, .... secção, proferiu decisão que contraria a proferida pelo tribunal a quo. Uma vez que aquela decisão transitou em julgado, deve prevalecer, nos termos do disposto no art.º 675º nº 1 do Código de Processo Civil.
Vejamos.
Versando a existência de casos julgados contraditórios, dispõe-se no art.º 675º nº 1 do Código de Processo Civil:
Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar.”
Das certidões juntas aos autos resulta o seguinte:
Em 09.4.2008 a ora Requerente instaurou nas Varas Cíveis de Lisboa procedimento cautelar comum contra D...., S.A. e a ora Apelante/Requerida, C...., S.A. – Sucursal de Portugal. Alegou factos idênticos aos já supra relatados, no que concerne à celebração de um contrato de utilização de loja em centro comercial, sito no Centro Empresarial....., bem no que diz respeito ao alegado incumprimento, pela 1ª Requerida, das obrigações assumidas e à consequente suspensão do pagamento das rendas por parte dos lojistas, entre os quais a Requerente, seguida da declaração de resolução do contrato por parte da 2ª Requerida, cuja validade a Requerente questiona. A Requerente alegou ainda que a partir de 31 de Março de 2008 a Requerida deu ordens para que cessasse a prestação de uma série de serviços no centro comercial, atinentes à limpeza, casas de banho, iluminação, segurança e acessos, criando o receio de que as Requeridas encerrem o centro comercial antes do termo do contrato (Maio de 2009), causando-lhe assim lesão grave e dificilmente reparável.
A Requerente terminou pedindo que as Requeridas sejam notificadas para:
a) Absterem-se da prática de todo e quaisquer actos que possam determinar o encerramento do Centro Comercial;
b) Absterem-se de todo e quaisquer actos turbadores da posse da loja ....;
c) Reporem de imediato os serviços essenciais ao funcionamento do Centro, designadamente no que diz respeito à reposição dos serviços de limpeza, de segurança e de electricidade.
Distribuído o procedimento cautelar à ... Vara, ... secção, deduzida oposição pelas Requeridas e ouvidas as testemunhas, em 07 de Agosto de 2008 foi proferida decisão que julgou o procedimento improcedente, por não provado, e consequentemente não decretou a providência requerida.
A decisão em causa sustentou-se no facto de não estar demonstrada a possibilidade séria da existência de um direito da Requerente, no caso o direito de manter a utilização da loja em causa. Isto porque, de acordo com uma análise perfunctória, a Requerida terá exercido validamente o direito de resolver o contrato de utilização da loja.
É patente que entre as duas decisões em causa não existe qualquer conflito relevante.
Na decisão que se diz ter transitado em julgado foi julgada improcedente uma providência cautelar não especificada, que tinha em vista intimar a requerida a realizar determinadas prestações e a abster-se de praticar determinados actos, a fim de se satisfazerem os direitos emergentes para a Requerente da celebração de um determinado contrato. Neste recurso tem-se por objecto uma providência cautelar especificada, de defesa da posse. Pretende-se que seja ordenada a restituição à Requerente da posse de bens, de que alegadamente foi desapossada, violentamente, pela Requerida, em momento posterior à primeira decisão.
O facto de na primeira decisão se ter ajuizado que o direito de utilização da loja estava extinto por resolução não colide com o supra exposto. Por um lado, a segunda decisão assentou, também, na defesa da posse do estabelecimento comercial da Requerente e dos bens móveis que aí se encontravam, dos quais era proprietária, independentemente de ter ou não existido resolução válida do contrato de utilização. Depois, o referido juízo, proferido na primeira decisão, sobre a questão, que constitui pressuposto lógico da decisão de indeferimento da providência, da validade da resolução do contrato, não tem força de caso julgado fora do respectivo procedimento: trata-se de uma apreciação precária, que não tem qualquer influência no julgamento da acção principal (art.º 383º nº 4 do Código de Processo Civil) nem, pelo menos por identidade de razão, noutra providência cautelar, com as diferenças de causa de pedir e de pedido já patenteadas.
O recurso improcede, pois, nesta parte.
Por estarem interligadas, apreciar-se-ão conjuntamente a terceira e a quarta questão: se a Requerente/Apelada não é titular de qualquer direito, que deva ser acautelado pela providência decretada e se a Requerente/Apelada não tem posse ou sequer detenção a que seja aplicável a previsão do art.º 1037º nº 2 do C.C., pelo que lhe é vedado o recurso ao procedimento cautelar de restituição provisória de posse
Além dos excertos do contrato acima transcritos, relevam ainda os seguintes:
Cláusula 12ª
(Cessão ou transmissão para terceiros)
1. O presente contrato é celebrado, pela PRIMEIRA CONTRAENTE com o SEGUNDO CONTRAENTE, intuitu personae, nomeadamente tendo em conta o perfil, qualidades e garantias por este oferecidas.
2. O SEGUNDO CONTRAENTE não podem, salvo consentimento prévio, dado por escrito, da PRIMEIRA CONTRAENTE:
a) Ceder a sua posição no presente contrato;
b) Permitir a outrem o uso, total ou parcial, da LOJA, a qualquer título e para qualquer finalidade;
c) Trespassar ou ceder, no todo ou em parte, temporária ou definitivamente, qualquer dos elementos integrantes da LOJA, o estabelecimento comercial nela instalado ou a sua exploração.
3. A PRIMEIRA CONTRAENTE poderá condicionar a prestação do consentimento à realização, pelo SEGUNDO CONTRAENTE, de qualquer dos negócios referidos no número anterior, à aceitação pelo adquirente ou cessionário das condições que, no caso concreto, entenda adequadas e convenientes, independentemente de o negócio visado pressupor ou não a introdução de alterações no presente contrato, nomeadamente no que respeita ao período de vigência e à actividade comercial a prosseguir na LOJA.
4. A PRIMEIRA CONTRAENTE obriga-se a prestar o seu consentimento à cessão da posição contratual do SEGUNDO CONTRAENTE para sociedade de direito português, na qual este detenha uma participação no capitai social correspondente a, pelo menos, 50,1% (cinquenta vírgula um por cento), não sendo, nesse caso, aplicável o regime previsto na cláusula 13a.
5. Para efeitos de obtenção do consentimento à cessão da posição contratual nos termos do número anterior, o SEGUNDO CONTRAENTE notificará da sua intenção a PRIMEIRA CONTRAENTE, por escrito, por meio de carta registada com aviso de recepção, e acompanhada dos seguintes documentos:
(…)
7. O SEGUNDO CONTRAENTE aceita, de forma irrevogáve!, ser-lhe vedada, salvo acordo prévio, dado por escrito, da PRIMEIRA CONTRAENTE, a constituição, por qualquer forma, a favor de terceiros:
a) Qualquer direito de preferência na transmissão da sua posição contratual;
b) Qualquer poder de limitar ou condicionar as condições de exercício dos direitos conferidos pelo presente contrato aos SEGUNDOS CONTRAENTES, incluindo o de propor ou acordar com a PRIMEIRA CONTRAENTE alterações ao presente contrato,
c) Qualquer ónus ou encargo sobre qualquer dos direitos adquiridos pelos SEGUNDOS CONTRAENTES ao abrigo do presente contrato.
8. A violação pelo SEGUNDO CONTRAENTE, do disposto no número anterior confere à PRIMEIRA CONTRAENTE o direito de resolver o presente contrato.
Cláusula 13ª
(Direito de preferência)
1. A PRIMEIRA CONTRAENTE tem direito de preferência na eventual celebração pelo SEGUNDO CONTRAENTE de quaisquer actos ou contratos cuja finalidade enquadre o previsto nas alíneas a), b) e c) do número 2 da cláusula anterior.
2. No caso de a PRIMEIRA CONTRAENTE optar por exercer o seu direito de preferência fá-lo-á em igualdade de condições com o terceiro indicado como interessado adquirente/cessionário, com excepção do preço proposto, ao qual será deduzida a quantia equivalente a 6 (seis) vezes o valor da contrapartida mensal prevista na cláusula 4a.
(…).
Cláusula 15ª
(Resolução do Contrato)
1. Sem prejuízo do disposto na cláusula anterior, nas demais cláusulas do presente contrato e no Regulamento, no que respeita ao pagamento de penalidades pela mora no cumprimento de qualquer das obrigações do SEGUNDO CONTRAENTE, a PRIMEIRA CONTRAENTE tem o direito de resolver o presente contrato em caso de incumprimento pelo SEGUNDO CONTRAENTE dos deveres e obrigações decorrentes do presente contrato e do Regulamento.
2. Se a PRIMEIRA CONTRAENTE pretender exercer o seu direito de resolução comunicará essa sua intenção ao SEGUNDO CONTRAENTE, fixando-lhe um prazo, não inferior a 8 (oito) dias nem superior a 30 (trinta) dias, para, sem prejuízo da sua responsabilidade pela eventual mora no cumprimento, oferecer este, sob pena de, esgotado o prazo fixado, se haver o incumprimento por definitivo e a resolução do contrato produzir os seus efeitos, sem necessidade de quaisquer outras formalidades, no primeiro dia seguinte ao termo daquele prazo.
3. Em caso de resolução do contrato, o SEGUNDO CONTRAENTE ficará obrigado a pagar à PRIMEIRA CONTRAENTE, a título de penalidade, uma quantia correspondente a duas vezes o valor anual da contrapartida prevista na cláusula 4a, número 1, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
4. A penalidade a pagar pelo SEGUNDO CONTRAENTE em caso de resolução do contrato com fundamento em qualquer dos casos previstos nas cláusulas 2ª, número 4, 6a, número 11, e 8a, número 3, será correspondente a cinco vezes o valor anual da contrapartida prevista na cláusula 4ª, número 1.
5. As penalidades previstas nos números anteriores não prejudicam o direito da PRIMEIRA CONTRAENTE a exigir do SEGUNDO CONTRAENTE indemnização pelo dano excedente que tal incumprimento lhe tenha causado.
6. O exercício, pela PRIMEIRA CONTRAENTE, do direito de resolução não a impede de executar a garantia bancária em seu poder como forma de obter a satisfação, ainda que parcial, dos seus créditos, incluindo os que resultem da aplicação de penalidades em consequência da resolução.
7. Resolvido o contrato, a PRIMEIRA CONTRAENTE tem o direito de utilizar a chave, em seu poder, da porta exterior da LOJA para reassumir a detenção da mesma LOJA, ou de, não lhe tendo sido entregue aquela chave, usar os meios que se mostrem necessários e adequados para reassumir a detenção da mesma loja.
8. A não aceitação pelo SEGUNDO CONTRAENTE do fundamento invocado pela PRIMEIRA CONTRAENTE para o exercício do direito de resolução apenas confere àquele o direito de accionar judicialmente a PRIMEIRA CONTRAENTE, não podendo opor-se à produção dos efeitos próprios da resolução operada que se haverá por válida e eficaz e, designadamente, não podendo impedir ou dificultar os actos que a PRIMEIRA CONTRAENTE desenvolva como meio de reassumir a detenção da LOJA ou, posteriormente, no âmbito do exercício dos seus direitos de propriedade.
9. Se, á data em que a PRIMEIRA CONTRAENTE reassumir a detenção da LOJA, existirem, na mesma, mercadorias, móveis, máquinas ou quaisquer outros produtos ou equipamentos que o SEGUNDO CONTRAENTE tenha o direito de levantar, a PRIMEIRA CONTRAENTE fica, pelo prazo de 30 (trinta) dias, investida na posição de sua fiel depositária, devendo proceder ao arrolamento daqueles bens e podendo promover, a expensas do SEGUNDO CONTRAENTE, a sua transferência para outro local.
10. No prazo de 30 dias referido no número anterior pode o SEGUNDO CONTRAENTE, mediante o pagamento das despesas e encargos em que a PRIMEIRA CONTRAENTE haja incorrido enquanto fiel depositária, designadamente com a remoção dos bens para outro local e com a armazenagem destes, proceder ao seu levantamento.
(…).”
A Requerente/Apelada e a sociedade antecessora da ora Apelante/Requerida (D....., S.A.) celebraram um contrato que denominaram “contrato de utilização de loja em centro comercial” (fls 17 dos autos).
Tal contrato corresponde a um tipo sociologicamente já bem definido, conforme decorre da abundante actividade doutrinária e jurisprudencial que se tem debruçado sobre modelos contratuais idênticos.
Como já em 1989 escrevia o Prof. Antunes Varela (“Os centros comerciais – Shopping Centers”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Ferrer Correia, II, número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 43 e seguintes), os “shopping centers” ou centros comerciais surgiram na década de 50 do século transacto nos E.U.A., consistindo em aglomerados de estabelecimentos comerciais criteriosamente seleccionados e harmoniosamente distribuídos, que procuravam de caso pensado as zonas periféricas dos grandes centros urbanos para, mediante o recurso a parques adequados de estacionamento de veículos automóveis particulares, facilitarem o acesso dos clientes” (pág. 44). “A ideia directriz que anima a construção funcional do centro é a de reunir num vasto espaço, atraentemente decorado, distribuído por um grande edifício ou por vários edifícios devidamente articulados entre si, pequenas e grandes lojas, abrangendo ramos de actividade complementares, com as denominadas lojas âncora nos pólos estratégicos das novas instalações, a fim de se facilitar a vida do cliente, dando-lhe a possibilidade de com uma só deslocação adquirir muitos dos artigos e produtos que até então só com grande dispêndio de tempo conseguia comprar nos estabelecimentos dispersos pelos vários bairros da cidade. A selecção e distribuição dos estabelecimentos integrados no centro revestem uma importância capital para a prosperidade de toda a organização. O objectivo da complementaridade dos ramos de negócio instalados, assente na consequente variedade dos produtos e artigos oferecidos ao público, é essencial à concepção global unitária em que assenta a ideia de centro” (páginas 44 e 45).
Oliveira Ascensão (“Integração empresarial e centros comerciais”, in Rev. da Fac. de Dir. da Univ. de Lisboa, vol. XXXII, 1991, pág. 29 e ss) notou que o centro comercial em si, “combinando as lojas com espaços comuns atractivos, surge ele próprio como um estabelecimento comercial complexo. Engloba as lojas e outros elementos para o desempenho duma nova função produtiva, que é o comércio integrado horizontalmente” (pág. 35). Para tal os lojistas obrigam-se a implantar no espaço que lhes é cedido pelo promotor ou gestor do centro um estabelecimento, em termos que os contratos definem com muita precisão (pág. 34). Por outro lado, “o gestor do centro comercial obriga-se a instituir e manter o estabelecimento de conjunto. Também aqui diríamos que o estabelecimento de conjunto, como elemento essencial do centro comercial, está previsto nos contratos individuais e integra-se na respectiva causa” (pág. 36). Mais, realçando que a formação dos estabelecimentos (realidade estática) é instrumental em relação às empresas (realidade dinâmica) de que aqueles serão a base, Oliveira Ascensão aduz que os locais são assim atribuídos para que neles sejam instaladas empresas (pág. 37). “Os contratos de integração de comerciantes singulares em centros comerciais são típicos contratos de empresa. É objectivo comum das partes a instauração de uma empresa comercial; de modo que esta instauração é não só direito, mas também obrigação da concessionária” (pág. 38). Por outro lado, há que atender também ao centro comercial no seu conjunto. Também este deve funcionar, como empresa, o que constitui encargo do gestor do centro (pág. 38).
Assim, no contrato de concessão de um espaço no centro comercial, “o centro faculta a utilização do espaço, ficando o concessionário obrigado a instalar e manter um estabelecimento e fazer funcionar a empresa respectiva; enquanto que o centro se obriga a fazer funcionar o conjunto e a realizar inúmeras prestações daquelas decorrentes” (pág. 41).
Daqui resultam diferenças essenciais em relação ao contrato de arrendamento. O arrendamento é, no dizer da lei, o contrato mediante o qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um imóvel, mediante retribuição (artigos 1022º e 1023º do Código Civil). Pesem embora os termos da lei, do contrato de arrendamento não resulta para o locador uma obrigação de prestação positiva, continuada, destinada a assegurar o gozo do imóvel, após a entrega deste ao locatário. Por sua vez, o locatário tem um direito autónomo ao gozo da coisa, que não passa pela mediação do locador (pág. 43). Se, na sua autonomia as partes estipularem outras obrigações ao locador, estas têm um carácter meramente suplementar (porteiro, elevador, limpeza do edifício). Os senhorios apenas transferem o uso e a fruição de imóveis. Se a actividade do proprietário se tornar primacial para a vigência do contrato, então o arrendamento desaparece, pois tornou-se acessório (páginas 46 e 47).
Em suma, “o contrato de utilização de espaços em centros comerciais, embora se traduza também na cedência onerosa dum direito de utilização (de parte) dum imóvel mediante retribuição, acaba por ultrapassar muito o modelo do arrendamento” (pág. 52). Nele o concedente assume a obrigação de fazer funcionar a empresa que caracteriza o centro; o concessionário assume a obrigação de fazer funcionar a empresa singular; o concessionário sofre grandes restrições na sua posição sobre os bens (pág. 52). “Há pois uma cessão de espaço, como há também uma integração empresarial. Mas de tudo resulta um carácter essencialmente dinâmico na relação, que se sobrepõe à natureza estática do arrendamento. A vertente da prestação de serviços é acentuada e torna-se prevalente, em oposição ao que se sucede no arrendamento” (pág. 52).
O contrato em causa deverá ser qualificado como um contrato de integração empresarial. Através dele, o concessionário é integrado numa empresa mais vasta, que é o próprio centro comercial (…). O sentido do contrato é o de realizar a integração duma empresa singular no complexo do centro comercial” (páginas 54 e 55). Essa integração resulta, em grande parte, da actividade prestadora de serviços da empresa gestora do centro, a qual é verdadeiramente essencial, contrariamente ao que ocorre na locação. E da sua implicação no conjunto resultam também inúmeras restrições para a concessionária. A extrema dependência da concessionária face à concedente é incompatível com a autonomia que caracteriza a posição do arrendatário (pág. 59).
O contrato de utilização de espaço em centro comercial é, pois, um contrato atípico, que como tal rege-se pela disciplina em que as partes acordaram, dentro dos limites da liberdade contratual (art.º 405º nº 1 do Código Civil), sem prejuízo da aplicação subsidiária, quando se verifique a necessária analogia, das pertinentes regras de contratos típicos (pág. 62).
Este tem sido o entendimento largamente maioritário na doutrina (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, “Contratos de utilização de lojas em centros comerciais. Qualificação e forma”, R.O.A., ano 56, Agosto 1996, pág. 535 e ss; A. Varela, anotação a diversos acórdãos do STJ, R.L.J., ano 128º, 1995-1996, páginas 278 a 320, 368 a 372 e ano 129º, páginas 49 a 60, 142 a 152, 172 a 181, 203 a 214; José Lebre de Freitas, “Da impenhorabilidade do direito do lojista de centro comercial”, R.O.A., ano 59, Janeiro de 1999, pág. 47 e ss; Pedro Malta da Silveira,”A empresa nos centros comerciais e a pluralidade de estabelecimentos”, Almedina, 1999; Rui Pinto Duarte, “Tipicidade e atipicidade dos contratos, Almedina, 2000, pág. 159 e ss; Aragão Seia, “Arrendamento urbano”, Almedina, 7ª edição, 2003, pág. 154 e ss; Ana Isabel Afonso, “Os contratos de instalação de lojistas em centros comerciais – Qualificação e regime jurídico”, Publicações Universidade Católica, 2003; Hugo Duarte Fonseca, “Sobre a atipicidade dos contratos de utilização de lojistas em centros comerciais”, Bol. da Fac. de Dir. da Univ. de Coimbra, vol. LXXX, 2004, pág. 695; Calvão da Silva, anotação ao acórdão do STJ, de 13.9.2007, RLJ, ano 136º, Julho-Agosto de 2007, pág. 329 e ss), apesar de algumas vozes discordantes (Galvão Telles, “Utilização de espaços nos “Shoppings Centers”, Col. de Jur., ano XV, tomo II, 1990, pág. 23 e ss, e “Contratos de utilização de espaços nos centros comerciais”, O Direito, ano 123º, 1991, IV, pág. 521 e ss; Jorge Coutinho Abreu, “Da empresarialidade – as empresas no direito”, Almedina, 1996, pág. 320 e ss; Jorge Pinto Furtado, “Os centros comerciais e o seu regime jurídico”, 2ª edição, 1998, Almedina; Rui Rangel, “Espaços comerciais – natureza e regime jurídico dos contratos de utilização”, Edições Cosmo, Lisboa, 1998). Também a jurisprudência aderiu à tese da atipicidade (cfr. o acórdão do S.T.J., de 13.9.2007, citado, publicado na RLJ ano 136º e também consultável na internet, dgsi-itij, processo 07B1857, que contém abundante citação jurisprudencial, complementada pela anotação do Prof. Calvão da Silva).
Aliás, esse foi o sentido da decisão recorrida e é aceite por ambas as partes nas suas alegações.
Assim, o direito de utilização do espaço (loja nº ....) concedido à ora Requerente/Apelada rege-se pelas regras do contrato que lhe deu origem, e não pelas normas do contrato de arrendamento, à data da celebração primacialmente previstas no Regime do Arrendamento Urbano (RAU, aprovado pelo Dec.-Lei nº 321-B/90, de 15.10, com as alterações subsequentes) e actualmente decorrentes do estipulado pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27.02). As normas do contrato de arrendamento urbano apenas serão aplicáveis para preencher eventuais lacunas que se constate existirem no programa contratual traçado, na medida em que a razão de ser dessas soluções normativas seja aplicável, por igual razão, ao contrato sub judice.
Nos termos do contratado, à Requerente foi concedido o direito de utilizar um determinado espaço (“loja”), onde a Requerente deverá exercer durante cinco anos a actividade “comercial” de restauração, de forma continuada e ininterrupta, durante todo o período de abertura do centro comercial. Tanto no que diz respeito à instalação da loja (ou seja, do estabelecimento comercial) como ao seu funcionamento posterior, a Requerente/Apelada deveria cumprir uma série de regras impostas pela outra parte, a Promotora/Gestora do Centro Comercial, destinadas a assegurar a harmonização da loja e da sua actividade com os padrões estéticos, de qualidade e de eficiência tidos em vista para o conjunto do centro. À Requerente ficou vedado ceder a terceiro a sua posição contratual ou trespassar ou ceder o estabelecimento comercial ou a sua exploração, sem o consentimento da contraparte (clª 12ª). À Requerente foi concedido o direito de acesso às áreas de uso comum do centro comercial, bem assim o benefício dos diversos serviços e estrutura de apoio do centro comercial, nomeadamente serviços de limpeza, manutenção e conservação das partes e equipamentos de uso comum do Centro Comercial, segurança, consultadoria e promoção do mesmo, além do fornecimento de energia eléctrica e de água potável. Como contrapartida pelo direito de utilização da loja a Requerente obrigou-se a pagar uma determinada quantia fixa mensal, actualizável anualmente de acordo com o índice de preços no consumidor. Mais ficou obrigada a pagar os respectivos consumos de electricidade e de água, bem assim a comparticipar nas despesas e encargos com o funcionamento e utilização do Centro Comercial e com a promoção deste.
No contrato ficou expressamente previsto que a promotora/gestora do centro comercial “tem o direito de resolver o presente contrato em caso de incumprimento pelo Segundo Contraente dos deveres e obrigações decorrentes do presente contrato e do Regulamento” (nº 1 da cl.ª 15ª). Para o efeito, a primeira contraente “comunicará essa sua intenção ao SEGUNDO CONTRAENTE, fixando-lhe um prazo, não inferior a 8 (oito) dias nem superior a 30 (trinta) dias, para, sem prejuízo da sua responsabilidade pela eventual mora no cumprimento, oferecer este, sob pena de, esgotado o prazo fixado, se haver o incumprimento por definitivo e a resolução do contrato produzir os seus efeitos, sem necessidade de quaisquer outras formalidades, no primeiro dia seguinte ao termo daquele prazo.”
Nos termos do art.º 432º, nº 1, do Código Civil, é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção. Assim, as partes podem, por convenção expressa, atribuir a ambas ou a uma delas o direito de resolver o contrato quando ocorre certo ou determinado facto. Trata-se da chamada cláusula resolutiva expressa (cfr. Calvão da Silva, “Cumprimento e sanção pecuniária compulsória”, Almedina, 2002, páginas 321 e 322). Tal cláusula não pode ter um conteúdo meramente genérico, referindo-se, por exemplo, ao incumprimento de todas as obrigações contratuais: deve fazer uma referência explícita e precisa às obrigações cujo incumprimento dá direito à resolução, identificando-as. Só assim as partes valorarão conscientemente a gravidade da acção ou omissão que justificará a resolução e haverá um verdadeiro acordo acerca da atribuição do correspondente direito potestativo de extinguir, por um simples acto unilateral, o contrato. No dizer de Calvão da Silva (estudo citado, pág. 322), quando as partes “se limitam a fazer uma mera referência genérica, em branco, à violação de (qualquer uma das) obrigações nascentes do contrato, a estipulação não passará de uma cláusula de estilo, mero rappel do regime jurídico da chamada condição resolutiva tácita (…)”, prevista no nº 2 do art.º 801º do Código Civil.
No caso dos autos a cláusula resolutiva expressa tem um conteúdo genérico, pelo que acaba por ter, como principal efeito, salientar que ao contrato em causa não se aplicam as restrições impostas pelo regime do arrendamento urbano (ao tempo da celebração do contrato, o RAU) à resolução do respectivo contrato, seja no que concerne aos respectivos fundamentos, seja no que diz respeito ao seu formalismo e tempo de exercício (artigos 64º e 65º, 55º e ss do RAU). E a verdade é que no contrato sub judice acaba por se estabelecer que o gestor do centro deve interpelar previamente o lojista, fixando-lhe um prazo para efectuar o cumprimento em falta, antes de fazer operar a resolução do contrato. Assim, o regime previsto nos nºs 1 e 2 da cláusula 15ª harmoniza-se com o regime geral da resolução previsto nos artigos 801º nº 2 e 808º nº 1 do Código Civil.
Especial atenção merece, porém, o teor dos nºs 7 a 9 da aludida cláusula 15ª:
7. Resolvido o contrato, a PRIMEIRA CONTRAENTE tem o direito de utilizar a chave, em seu poder, da porta exterior da LOJA para reassumir a detenção da mesma LOJA, ou de, não lhe tendo sido entregue aquela chave, usar os meios que se mostrem necessários e adequados para reassumir a detenção da mesma loja.
8. A não aceitação pelo SEGUNDO CONTRAENTE do fundamento invocado pela PRIMEIRA CONTRAENTE para o exercício do direito de resolução apenas confere àquele o direito de accionar judicialmente a PRIMEIRA CONTRAENTE, não podendo opor-se à produção dos efeitos próprios da resolução operada que se haverá por válida e eficaz e, designadamente, não podendo impedir ou dificultar os actos que a PRIMEIRA CONTRAENTE desenvolva como meio de reassumir a detenção da LOJA ou, posteriormente, no âmbito do exercício dos seus direitos de propriedade.
9. Se, á data em que a PRIMEIRA CONTRAENTE reassumir a detenção da LOJA, existirem, na mesma, mercadorias, móveis, máquinas ou quaisquer outros produtos ou equipamentos que o SEGUNDO CONTRAENTE tenha o direito de levantar, a PRIMEIRA CONTRAENTE fica, pelo prazo de 30 (trinta) dias, investida na posição de sua fiel depositária, devendo proceder ao arrolamento daqueles bens e podendo promover, a expensas do SEGUNDO CONTRAENTE, a sua transferência para outro local.
Foi sob invocação do aqui clausulado que a ora Apelante, após ter declarado a resolução do contrato, entrou na loja contra a vontade da Requerente, despojando-a do seu conteúdo e entaipando-a, de molde a obstar à sua utilização pela Requerente (alíneas AA) a GG), II) a MM) dos factos provados). Ora, “a ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei” (art.º 1º do Código de Processo Civil). Por isso, conforme proclama a Constituição da República Portuguesa no nº 5 do seu artigo 20º, “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.” A acção directa (“recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito” – art.º 336º, nº 1, do Código Civil) só é lícita “quando for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo” (art.º 336º, nº 1, do Código Civil). A cláusula em causa não observa estes limites, pelo que é nula (artigos 405º, nº 1, 280º nºs 1 e 2, 294º e 292º do Código Civil; neste sentido, cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 04.11.2004, processo 7145/2004-6, na internet, dgsi.itij).
A conduta da Requerida/Apelante, supra descrita nas alíneas AA) a GG), II) a MM) da matéria de facto, constitui um acto, ilícito, de justiça privada.
Resta saber se a Requerente poderia reagir contra esse acto através do procedimento cautelar da restituição provisória da posse.
Nos termos do art.º 393º do Código de Processo Civil, “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador” – art.º 394º do Código de Processo Civil.
O decretamento da providência pressupõe, pois, a demonstração, pelo requerente, de três requisitos: de que tinha a posse da coisa; de que foi dela esbulhado; que o esbulho foi violento.
A posse é, conforme a define o legislador (art.º 1251º do Código Civil), “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Tem-se em vista uma situação de facto que a lei protege com base na aparência de um direito real de gozo (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, Almedina, pág. 29). Quem beneficia dessa situação pode pedir a respectiva tutela judicial (acções de prevenção, de manutenção e de restituição da posse e, no caso de esbulho violento, acção de restituição provisória da posse – artigos 1276º a 1279º do Código Civil).
As razões dessa tutela, que de resto é provisória (“no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito” – nº 1 do art.º 1278º do Código Civil), são a defesa da paz pública, a dificuldade de prova do direito definitivo e o valor económico da posse (Mota Pinto, “Direitos Reais”, segundo Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Almedina, 1976, páginas 192 a 195). A tutela judicial da posse, da situação de alguém estar em contacto com as coisas, usando-as e explorando-as, evita a desordem, garantindo a paz pública por não forçar as pessoas à auto-tutela dos direitos. Por outro lado as pessoas poderão obter a protecção dos tribunais sem precisarem de provar previamente serem efectivamente os titulares do direito a que se reporta a situação de facto patenteada. Tal prova pode ser difícil e demorada, e impor tal exigência acabaria por sacrificar aqueles que, na maioria dos casos, têm à face do direito legitimidade para exercerem sobre a coisa os poderes de facto que viram ser perturbados. Por outro lado, a posse, enquanto actuação que extrai da coisa utilidade, tem valor económico, interessando mais à comunidade do que a propriedade inerte e inexplorada.
No direito português a posse reporta-se ao exercício de um direito real (em regra, de gozo). Assim, aqueles que usam ou gozam a coisa ao abrigo de um direito creditício, obrigacional, são meros detentores, pois possuem a coisa em nome de outrem, o titular do direito real (artigo 1253º alínea c) do Código Civil), a quem terão de restituir a coisa uma vez terminado o prazo ou a causa legal da detenção. São, pois, possuidores precários (Moitinho de Almeida, “Restituição de posse e ocupações de imóveis”, Coimbra Editora, 5ª edição, páginas 59 e seguintes).
Porém, em certos casos, de titularidade de chamados direitos pessoais de gozo, ou seja, de direitos, assentes numa obrigação contratual, que possibilitam ao seu titular, com vista à satisfação do seu interesse, o gozo directo e autónomo de determinada coisa (cfr. Manuel Henrique Mesquita, “Obrigações reais e ónus reais”, Almedina, pág. 51), o legislador reconhece verificarem-se as razões supra enunciadas para a actuação dos mecanismos protectores próprios das acções possessórias, enunciando tal entendimento no regime dos correspondentes contratos: a locação (art.º 1037º nº 2: “o locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276º e seguintes”), a parceria pecuária (art.º 1125º nº 2) e o comodato (art.º 1133º nº 2), para além do depósito (art.º 1188º nº 2 do Código Civil). Fora do Código Civil, igual faculdade foi concedida ao locatário, na locação financeira (art.º 10º nº 2 alínea c) do Dec.-Lei nº 149/95, de 24.6).
Trata-se, contudo, de normas excepcionais, por reconhecerem tutela possessória a meros detentores, titulares de direitos emergentes de relações obrigacionais. Assim, essas normas, casuisticamente formuladas, não comportam aplicação analógica, nomeadamente em benefício de outros direitos pessoais de gozo (art.º 11º do Código Civil; neste sentido, Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 6; Moitinho de Almeida, Restituição de posse…, supra citado, pág. 63 e 64; Henrique Mesquita, Col. de Jur., 1982, tomo 3, pág. 8; Relação de Lisboa, 23.4.2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo II, pág. 121 e ss; em sentido diverso, por negarem carácter excepcional àquelas normas, por terem da posse uma visão objectivista, dando-a por existente em todos os casos em que alguém exterioriza poderes de actuação sobre uma coisa corpórea nos termos de um direito subjectivo, cfr. Oliveira Ascensão, “Direito Civil, Reais”, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 69 e José Alberto Vieira, “Direitos Reais”, Coimbra Editora, 2008, páginas 557 a 562).
Entende-se, assim, que a Requerente/Apelada não podia recorrer à presente providência cautelar para defender o direito de utilização da aludida loja emergente do contrato que celebrou com a antecessora da Requerida/Apelante (no mesmo sentido, para espécies contratuais idênticas, o já citado acórdão da Relação de Lisboa, de 23.4.2002 e ainda o acórdão da Relação de Lisboa, de 30.5.2000, sumariado na internet, dgsi-itij, processo 0024111; em sentido diverso, aplicando ao caso a tese de Baptista Machado – “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, páginas 327, 328 e 331 - segundo a qual o art.º 11º do Código Civil apenas veda a analogia iuris, mas não a analogia legis, entendida como extensão teleológica de normas, situação não distinguível da interpretação extensiva, cfr. Abrantes Geraldes, “Temas da reforma do processo civil”, IV volume, 3ª edição, 2006, páginas 34 a 42; tese que nos parece discutível, por introduzir na previsão do art.º 11º uma restrição aparentemente aí não contemplada e que contraria a razão de ser do preceito, descritivamente indicada por A. Varela: “O projecto do Código chegou a admitir, como regra, a aplicação analógica das normas excepcionais, só a não permitindo nos casos em que as normas gerais correlativas exprimissem princípios essenciais de ordem pública. A inovação suscitou, porém, as maiores dúvidas sobre o resultado prático da sua eventual aplicação a várias normas em concreto, pelo que o Código regressou prudentemente à rigidez da doutrina tradicional” – Cód. Civil anotado, vol. I, 3ª edição, páginas 59 e 60).
Em todo o caso, as diferenças já supra salientadas existentes entre o contrato de arrendamento e o contrato de utilização de loja em centro comercial, com a atribuição ao gestor do centro de uma decisiva primazia na organização, funcionamento e controle de toda a actividade do centro, com directa e permanente repercussão na actividade dos lojistas, retira às duas figuras a base comum necessária à segura formulação de um juízo de igualdade de razões justificativa da aplicação ao presente contrato do disposto no art.º 1037º nº 2 do Código Civil.
Contudo, o supra exposto não arruma a vexata quaestio sub judice (a da admissibilidade da presente providência cautelar de restituição provisória de posse).
É que a Requerente instalou, no espaço cuja utilização foi contratada com a Promotora do centro comercial, um estabelecimento comercial (ou industrial, para quem entenda que nessa área económica se deve incluir a actividade de restauração). E é óbvio que a Requerente/Apelante não pretende apenas a restituição do referido espaço, que lhe foi entregue em tosco, mas também (e sobretudo) do estabelecimento que aí instalou, com o respectivo recheio.
É sabido que é controvertida a possibilidade de se encarar o estabelecimento (comercial ou industrial) como algo unificadamente objecto de direitos reais (nomeadamente a propriedade) e susceptível de posse.
Aqueles que negam tal possibilidade apontam o facto de o estabelecimento não só aglutinar elementos corpóreos heterogéneos e individualizáveis entre si, como abranger igualmente elementos imateriais. Assim, o estabelecimento não seria uma coisa, muito menos corpórea, pelo que ficaria fora da categoria das realidades tidas em vista pelo legislador português quando definiu aquilo que é susceptível de ser objecto do direito de propriedade (art.º 1302º do Código Civil; nesta linha negacionista, v.g., na doutrina, Pires de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, volume II, 4ª edição, 1997, pág. 704; Moitinho de Almeida, Restituição de posse…, supra citado, pág. 38; José Alberto Vieira, Direitos Reais, citado, páginas 133 a 136; Durval Ferreira, Posse e usucapião, 3ª edição, 2008, Almedina, pág. 89 a 93; na jurisprudência, v.g., STJ, 25.6.1985, BMJ 348, pág. 384; Rel. de Évora, 21.3.1985, CJ X t. 2, pág. 281, Rel. de Lisboa, 12.4.1984, CJ IX, t. 2, pág. 130).
A tese afirmativa foi defendida por Barbosa de Magalhães (“Do estabelecimento comercial”, Edições Ática, 1951, páginas 89 e seguintes), para quem, à luz do direito então vigente, o estabelecimento era, geralmente, uma universalidade de facto e, em certos casos, de direito, que podia ser móvel e imóvel, a que o ordenamento jurídico atribuía um regime jurídico próprio, distinto dos elementos do mesmo estabelecimento, considerados isoladamente, e sobre o qual o comerciante tinha um direito de propriedade e que, consequentemente, podia ser objecto de posse. Tendo já em consideração um ordenamento jurídico próximo do actual, Ferrer Correia salientou que o estabelecimento constitui uma unidade económica, cujo valor não equivale apenas ao valor total dos elementos integrantes, antes a organização em si é um valor novo, é uma “unidade de fim” que a lei, correspondentemente, face ao teor de diversos preceitos, plasma em unidade jurídica. O estabelecimento é alvo de direito de propriedade e goza dos meios de defesa próprios, seja da propriedade, seja da posse (Lições de Direito Comercial, volume I, 1973, Reprint, Lex 1994, páginas 117 e seguintes; “Sobre a projectada reforma da legislação comercial”, ROA, ano 44, 1984, pág. 20 e seguintes). Também Orlando de Carvalho defende que o conceito de coisa se estende às coisas incorpóreas e complexas, mormente às coisas complexas funcionais, em que se inclui o “estabelecimento mercantil”. O estabelecimento mercantil, independentemente da sua determinação precisa, é visto universalmente como objecto de posse, de tal sorte a intuição do comércio se impôs ao nível jurídico. Constituindo um bem incorpóreo, é um bem que assenta num lastro, maior ou menor, de valores ostensivos, ou seja, com relevo jurídico-económico fora do próprio estabelecimento, valores que quase sempre incluem valores materiais, o que torna ainda menos inverosímil o exercício de poderes empíricos sobre o complexo (“Introdução à posse”, RLJ, ano 122º, 1989, pág. 107). Também Jorge Coutinho Abreu entende que o estabelecimento é uma unidade jurídica, que não sendo nem universalidade de facto nem de direito, é uma coisa (pois é coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas -art.º 202º nº 1 do Código Civil), coisa imaterial não pura (pois não é igual à mera soma dos seus elementos) e que pode ser objecto de propriedade e de outros direitos reais, bem assim, consequentemente, de reivindicação e defesa da posse (Da empresarialidade…, citado supra, pág. 69 e ss; idem, Curso de Direito Comercial, vol. I, 3ª edição, Almedina, 2002, pág. 198 e ss). Também Menezes Cordeiro pugna pela admissibilidade da tutela possessória do estabelecimento comercial (“A posse: perspectivas dogmáticas actuais”, 3ª edição, Almedina, 2000, páginas 79 a 83). Abrantes Geraldes adere a esta posição, fazendo notar que mesmo existindo no estabelecimento elementos incorpóreos, por natureza avessos a actos de apossamento, sobrelevam os elementos de natureza corpórea compatíveis com os actos materiais através dos quais a posse se manifesta. Por outro lado, embora em muitas situações a questão da idoneidade dos meios possessórios possa ser ultrapassada através da simples alegação de que a actuação do requerido resultou em esbulho dos bens móveis ou imóveis integrantes do estabelecimento, não deixariam de subsistir situações em que só a prova da violação da posse sobre o estabelecimento comercial no seu todo possibilitaria o recurso aos meios de defesa especialmente previstos (Temas da reforma do processo civil, IV volume, 3ª edição, Almedina, 2006, pág. 33).
A jurisprudência parece ter vindo a inclinar-se, maioritariamente, para esta última posição (v.g., STJ, 23.4.1992, internet, dgsi-itij, proc. 082173; STJ, 15.5.1997, processo 97A804; Rel. Lisboa, 09.6.1994, CJ XIX, t. III, pág. 117; Rel. Évora, 12.6.1997, CJ, XXII, t. III, pág. 272; Rel. Lx, 04.11.2004, internet, dgsi-itij, processo 7145/2004-6; Rel. Lx, 13.3.2008, internet, proc. 9186/2007-2; Rel. Coimbra, 27.5.2008, CJ XXXIII, t. III, pág. 20).
A realidade social e económica que é o estabelecimento comercial e industrial está definitivamente reconhecida pelo ordenamento jurídico, que a encara como um bem sujeito a negócios jurídicos e inclusive a transmissão forçada por via judicial, em termos que pressupõem a sua sujeição ao direito de propriedade: v.g., no Código Civil, cfr. os artigos 94º nº 3 (“só com autorização judicial pode o curador alienar ou onerar bens imóveis, objectos preciosos, títulos de crédito, estabelecimentos comerciais e quaisquer outros bens cuja alienação ou oneração não constitua acto de administração”), 1109º (locação de estabelecimento, por força do novo regime jurídico do arrendamento urbano, NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27.02.2006; antes, art.º 111º do RAU), 1112º (após NRAU, transmissão da posição do arrendatário no caso de trespasse do estabelecimento comercial ou industrial e direito de preferência do senhorio; anteriormente, artigos 115º e 116º do RAU), 1559º (“os proprietários e os donos de estabelecimentos industriais, que tenham o direito ao uso de águas particulares existentes em prédio alheio, podem fazer neste prédio as obras necessárias ao represamento e derivação da respectiva água, mediante o pagamento da indemnização correspondente ao prejuízo que causarem”), 1560º nº 1, alínea a) (nova referência aos “proprietários ou donos de estabelecimentos industriais”, reconhecendo-lhes servidão legal de presa para o aproveitamento de águas públicas); 1682º-A, nº 1, alínea b) (carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime da separação de bens, “a alienação, oneração ou locação de estabelecimento comercial, próprio ou comum”), 1938º nº 1, al. f) (necessidade de autorização do tutor para continuar a exploração do estabelecimento comercial ou industrial que o menor haja recebido por sucessão ou doação); fora do Código Civil, v.g., art.º 862º-A do Código de Processo Civil (penhora – com a consequente transmissão forçada, no âmbito da acção executiva – de estabelecimento comercial), art.º 276º do Código de Propriedade Industrial (CPI, aprovado pelo Dec.-Lei nº 36/2003, de 5.3, alterado pela Lei nº 16/2008, de 01.4 e pelo Dec.-Lei nº 143/2008, de 25.7) – o registo de recompensas é recusado, nomeadamente, quando “tenha havido transmissão da sua propriedade com a do estabelecimento (…)”; art.º 317º nº 1 alíneas a) e c) do CPI: são actos de concorrência desleal, desencadeadores das consequentes medidas de protecção previstas no regime da propriedade industrial, aqueles susceptíveis de criar confusão com o estabelecimento dos concorrentes e as invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de estabelecimento alheio.
O Código Civil reconhece a existência de coisas formadas por uma pluralidade de coisas singulares, que, por terem um destino unitário, podem ser objecto único de relações de direito, embora se mantenha a possibilidade de as coisas singulares serem objecto autónomo de relações jurídicas (art.º 206º do Código Civil; cfr. Coutinho Abreu, Curso de Direito Comercial, citado, pág. 229, nota 106); por outro lado, pese embora a peremptória afirmação da ligação da propriedade a coisas corpóreas (art.º 1302º do Código Civil), admite-se expressamente a aplicabilidade subsidiária do regime da propriedade a coisas incorpóreas como as que integram os direitos de autor e a propriedade industrial (art.º 1303º do C.C.).
O estabelecimento comercial ou industrial tem expressão na vida real através dos seus elementos corpóreos, tais como as suas instalações e os móveis afectos à sua actividade, os quais constituem a face visível, (juntamente com a pessoa ou pessoas que nele laboram), dessa organização de meios, que de outro modo não poderia participar na actividade económica. Essa materialidade do modo de ser do estabelecimento (que é “coisa”, por ser objecto de relações jurídicas - art.º 202º nº 1 do Código Civil), torna-o apto à posse e justifica que beneficie da consequente tutela.
Conclui-se, pois, que a Requerente, titular de um estabelecimento comercial (sito num centro comercial) pode recorrer à providência cautelar de restituição provisória de posse, para defender a sua posse sobre esse estabelecimento (palavra que aqui poderá ser usada como sinónimo de “loja”), na medida em que seja violentamente esbulhada do mesmo.
A circunstância de, alegadamente, a Requerente já não beneficiar do título que lhe permitia ocupar o espaço onde está instalado o estabelecimento (por o respectivo contrato ter sido resolvido), não releva nesta providência: a procedência desta basta-se com a demonstração de que a Requerente tinha o poder material sobre a coisa, ou seja, tinha a posse do estabelecimento, em termos de aparente titularidade da propriedade do mesmo. Caberá à Requerida demonstrar, na consequente acção principal, que a Requerente não tem, face à ordem jurídica, título bastante para manter o estabelecimento no referido espaço sito no centro comercial.
Dos factos provados resulta que a Requerente tinha a posse da “loja” (aqui com o significado de “estabelecimento”) e que foi dela esbulhada pela Requerida.
Resta analisar se o esbulho decorreu com violência.
Em sede de posse, a definição de “violência” consta no nº 2 do art.º 1261º do Código Civil: “considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do art.º 255º.”
O art.º 255º nº 1 estipula que “diz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração.” No nº 2 do mesmo artigo esclarece-se que “a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou terceiro.”
A este respeito provou-se que:
AA) No passado dia 11 de Agosto, os gerentes da requerida tiveram conhecimento de que a sua loja havia sido vandalizada, destruída, e que dela haviam sido retirados todos os bens de sua propriedade e outros de que eram fiéis depositários.
BB) De imediato dirigiram-se ao local, tendo constatado que este se encontrava tapado com umas tábuas que aí teriam sido postas no decorrer da madrugada de 9 para 10 de Agosto de 2008.
CC) Ao tentarem entrar no seu estabelecimento, constataram que a quase totalidade dos bens de sua propriedade bem como aqueles que se encontravam à sua guarda, haviam sido retirados do estabelecimento e levados para sítio que ignoravam.
DD) Constataram igualmente que do seu estabelecimento haviam sido arrancados todos os elementos que se encontravam colocados nas paredes, chão e tecto, tais como torneiras, lâmpadas (havendo vários estilhaços de vidro espalhados pelo chão), balcões, bancadas, prateleiras, armários, detectores de incêndio, contador de água, etc.
EE) Constataram ainda que os víveres que se encontravam dentro do seu estabelecimento foram (pelo menos parcialmente) consumidos pelas pessoas que aí haviam entrado já que ainda se encontravam vestígios de comida e principalmente de bebidas espalhados pelo chão e que a requerente sabia ter deixado no local.
FF) Desapareceu também a máquina registadora, dinheiro, o livro de actas da sociedade e demais documentação contabilística, o que prejudica o cumprimento pela requerente das suas obrigações fiscais.
GG) Todos os equipamentos, mobiliário, pratos, copos, talheres e todos os demais bens do estabelecimento foram tirados do local.
HH) Por este motivo, de imediato apresentou na ... Esquadra da PSP de Lisboa, participação crime contra incertos, participação essa que se tem o NUIPC ..... e que se encontra a correr os seus trâmites.
II) Na mesma altura, as responsáveis da requerente, verificaram que colado nos taipais se encontrava uma carta subscrita pelo Sr. Dr. E.... e Sra. Dra. F...., que informavam que enquanto legais representantes da C....., S.A. (....) haviam retirado todas as mercadorias, móveis, máquinas e outros produtos existentes.
JJ) Na mesma missiva invocavam que o tinham feito ao abrigo da cláusula 15ª do Contrato de Utilização de Loja em Centro Comercial, contrato esse celebrado entre a requerente e a D..... que em 1 de Julho de 2007, conforme supra referido, cedeu a sua posição contratual à sociedade C.....
LL) No passado dia 26 de Agosto, ao deslocarem-se à sua loja constataram novamente que os poucos bens que lá tinham ficado foram igualmente de lá retirados, motivo pelo qual foi feito um aditamento à supra referida queixa crime.
MM) Nessa altura constataram novamente que a sua loja havia sido totalmente entaipada, e nos taipais encontrava-se colada uma outra carta subscrita pelas mesmas pessoas referidas em II), de conteúdo idêntico à primeira, e junta a fls. 78 e 79 dos autos.
NN) Ao tapar a loja .... a requerida pretendeu privar a requerente de aceder ao espaço (loja e bens que se encontram no seu interior) e impedi-la de exercer a sua actividade.
Afigura-se-nos que uma conduta como a descrita, que foi a entrada durante a noite no estabelecimento, o arrancamento de tudo o que estava fixo ao tecto, chão e paredes, os vidros partidos, o consumo de géneros do estabelecimento, o total e reiterado esvaziamento da loja, o entaipamento do estabelecimento, acompanhado de cartas em que se dá conta da pertinaz intenção de obstar a que a Requerente continue a exercer a sua actividade no local, é altamente perturbadora, intimidativa, apresentando-se como uma conduta que não admite resistência, ou seja, que reduz a visada à impotência, nada mais lhe restando que procurar, consumado o esbulho, obter a reparação do sucedido junto dos tribunais.
A Requerente foi privada da posse do estabelecimento à força, foi esbulhada com violência.
Mostram-se, pois, verificados todos os requisitos da providência cautelar da restituição provisória de posse.
Quinta questão (se a Requerente/Apelada actua com abuso de direito)
É sabido que o exercício de um direito pode ser “paralisado”, “bloqueado”, quando é abusivo, ou seja, quando o respectivo titular “exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art.º 334º do Código Civil).
A Apelante invoca a cláusula tu quoque, isto é, a circunstância de a Apelada não poder arguir a violação do seu direito quando ela própria agiu ilicitamente, ao não pagar, como a própria Apelada admitiu e foi dado como provado, as contrapartidas a que estava obrigada pela utilização da loja e pelas despesas comuns do centro.
Conforme expende Menezes Cordeiro (Tratado de direito civil português, I Parte Geral tomo IV, Almedina 2005, pág. 327), “a fórmula tu quoque (também tu!) exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso:
- ou prevalecer-se da situação daí decorrente;
- ou exercer a posição violada pelo próprio;
- ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.”
Parece-nos ser patente a inadequação da invocação deste argumento nesta sede.
Neste procedimento está em causa a reacção contra um acto de “justiça” privada, de violência, que requer pronta reposição do statu quo ante, demonstrada que esteja a posse de uma coisa e o esbulho violento da mesma. Depois, noutra sede, discutir-se-ão os exactos termos dos direitos de cada uma das partes em conflito, proferindo-se as decisões convenientes para a justa e legal composição dos interesses em presença.
Acresce que a Requerente/Apelante não admite que a falta de pagamento das aludidas quantias é ilícita: pelo contrário, afirma que essa omissão constitui lícita reacção (excepção de não cumprimento do contrato: art.º 428º do Código Civil) contra o incumprimento ou cumprimento defeituoso das suas obrigações por parte da promotora do centro comercial e da ora Apelante. Essa precisa questão constitui objecto de acção pendente entre as partes (alíneas L) a N) dos factos supra) e a bondade da tese da Apelada/Requerente tem algum suporte nos factos supra considerados provados (alíneas E) a H) dos factos supra, com as alterações introduzidas em sede de impugnação da matéria de facto).
Em suma, não se vislumbra que haja obstáculo ao decretamento da providência solicitada, devendo consequentemente manter-se a decisão recorrida.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pela Apelante.

Lisboa, 19.3.2009
Jorge Manuel Leitão Leal
Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro
Ondina Carmo Alves