GRAVAÇÃO DA PROVA
DEFICIENTE
NULIDADE
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
MÁ FÉ
Sumário

1. O Decreto-Lei nº 39/95, de 15.2 estabelece o modo como a gravação deve ser efectuada. Se detectada qualquer anomalia no acto de gravação deverá a mesma ser corrigida, através da repetição da produção da prova omitida ou que se encontra imperceptível.
2. As anomalias da gravação provenientes de erro técnico - omissão de gravação ou a gravação deficiente – não podem integrar o regime das nulidades processuais principais, porque essa irregularidade não está contemplada no elenco taxativo previsto nos artigos 193º a 200º do Código de Processo Civil.
3. A anomalia na gravação da prova integrará uma nulidade secundária, sendo aplicável o regime decorrente do artigo 201º, nº1, do Código de Processo Civil, não acarretando nulidade se a diminuta anomalia verificada não for susceptível de influir no exame e decisão da causa, não impedindo a parte de ver reapreciada a prova produzida, por via de recurso.
4. A lei processual civil não estabelece qualquer penalidade para o incumprimento do princípio da continuidade da audiência consagrado no artigo 656º do CPC. Não configurando a irregularidade decorrente da violação desse princípio uma nulidade principal, a nulidade secundária, a existir, tem de ser arguida nos termos do artigo 205º do CPC, sob pena de se considerar sanada.
5. Litiga de má fé a parte que adopta posições contraditórias ao longo do processo, sendo esse comportamento merecedor de reparo e censura, porque violador do dever de verdade – de agir de boa fé.
6. O juiz há-de sancionar a conduta do litigante de má fé, não de forma arbitrária, mas tomando em consideração a intensidade da violação do dever de probidade e a condição económica daquele, procedendo à análise ou projecção das consequências danosas da actuação do litigante.
(OCM)

Texto Integral

I. RELATÓRIO

FS.,S.A., com sede em ..., na M..., intentou contra J..., com domicílio na Rua ..., nº..., ..., a acção declarativa com processo ordinário, através da qual pede a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 15056,18, acrescida de € 10.770,01 de juros de mora vencidos até 30.09.2004 e nos vincendos até efectivo e integral pagamento à taxa legal de 12%
Fundamentou, a autora, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de, por encomenda do réu, lhe ter vendido fruta do seu comércio, no valor total de € 15056,18, fruta esta que não foi paga na data do vencimento das facturas respectivas nem posteriormente.
Citado, o réu apresentou contestação, através da qual alegou a prescrição, porquanto os créditos respeitam a 1998 e só em Setembro de 2004 foi contactado para pagar tendo já passado dois anos sobre a data constante das facturas. Invoca, por outro lado que a mercadoria nunca lhe foi entregue e que aquela que foi – que não é a aqui em causa – foi oportunamente paga.
Na réplica a autora alegou que tendo o réu invocado uma excepção presuntiva, praticou em juízo factos incompatíveis com essa invocação da presunção, pois que refere que não recebeu a mercadoria.
Invoca ainda a autora que, por ter constatado que o réu havia pago parcialmente o valor constante de uma das facturas, reduziu o pedido para o montante de € 24.823,15, acrescido de juros.
A invocada excepção da prescrição veio a ser julgada improcedente no despacho saneador, e foram fixados os Factos Assentes e a organizada a Base Instrutória.
Na 1ª sessão da audiência de discussão e julgamento, levada a efeito em 04.07.2006, o autor veio invocar as posições antagónicas deduzidas pelo réu, pretendendo este impedir ou dificultar a verdade dos factos, pelo que pede a condenação do réu, como litigante de má fé, em multa a fixar de acordo com o critério do Tribunal.

Ao abrigo do disposto no artigo 650º, nº 1 alínea f) do CPC foram aditados novos quesitos, concedendo-se prazo, ao réu, para se pronunciar sobre o pedido de condenação como litigante de má fé e, a ambas as partes para apresentarem os respectivos meios de prova com relação ao factos aditados.
A autora, requereu o depoimento de parte do réu, arrolou testemunhas e solicitou de harmonia com o preceituado nos artigos 528º e 535º do CPC a notificação do réu e do Departamento de Abastecimento da Câmara Municipal de Lisboa, para juntarem documentos que identificou, diligências que foram efectuadas.
Para continuação da audiência de discussão e julgamento foram designados os dias 19.01.2007 e 15.06.2007, não tendo sido a mesma levada a efeito por impedimento do Sr. Juiz de Circulo em continuações de julgamento de processos de réus presos.
O julgamento prosseguiu em 12.10.2007, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, nos seguintes termos:
a) Julga a presente acção procedente por provada, condenando o Réu, J..., a pagar à A. FS S.A., a quantia de € 25.826,19 (vinte e cinco mil oitocentos e vinte e seis euros e dezanove cêntimos) acrescida de juros moratórios à taxa legal desde 30.09.2004 sobre a quantia de € 15.056,18 até efectivo e integral pagamento;
b) Condena o réu como litigante de má-fé no pagamento de multa que fixa em 20 (vinte) U.C.;

Inconformado com o assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES do recorrente:

i) Na presente acção de processo ordinário a aqui recorrida FS S.A. demandou o recorrente, alegando em síntese, que, por encomenda deste, vendeu-lhe fruta do seu comércio no valor total de € 15.056,18, a qual não foi paga na data de vencimento das respectivas facturas, nem posteriormente;

ii) Operada a produção de prova, a discussão e o julgamento da acção, o tribunal a quo, tendo em atenção a matéria de facto, considerou que, entre recorrente e recorrida foram celebrados diversos contratos de compra e venda, que a mercadoria foi entregue, mas que não foi paga, sendo em consequência julgada procedente a acção;

iii) E que da matéria de facto provada resulta que, o réu deduziu uma oposição conscientemente infundada, sendo em consonância condenado como litigante de má-fé, em multa que se fixou em 20 UC;

iv) Sabemos que, sempre que se pretenda usar a faculdade de impugnar uma decisão relativa à matéria de facto, cabe ao recorrente observar, sob pena de rejeição, os ónus previstos no artigo 690º-A do CPC, que obriga o recorrente a indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C, do mesmo diploma;

v) As partes têm a faculdade de requerer a gravação dos depoimentos recolhidos na audiência final, tendo em vista a consecução de um 2º grau de jurisdição através do recurso da decisão fáctica proferida na 1ª instância, só podendo sindicar dessa decisão, com a necessária amplitude, se ocorrer efectiva gravação dos referidos elementos probatórios;

vi) Ao proceder-se à audição e consequente transcrição dos depoimentos prestados em audiência e julgamento, constata-se que, a 2.ª cassete que corresponde ao início da primeira audiência de 12.10.07, onde se encontra registado o depoimento de parte do réu, se encontra deficientemente gravada, sendo por diversas ocasiões imperceptível a sua audição;

vii) Tais dificuldades de audição, são agravadas pelo facto de, em dois momentos, certamente devido a uma avaria mecânica, ter-se verificado a omissão do registo completo do depoimento prestado;

viii) Da análise da estrutura e da finalidade legal do registo fonográfico das audiências, verifica-se a impossibilidade prática da transcrição completa e com rigor, necessária a garantir um segundo grau de jurisdição;

ix) A falha técnica é ademais importante, resultando de todo evidente que se mostra coarctada a faculdade de reapreciação fáctica prevista na lei;

x) A imperfeição e omissão de parte da gravação, dado o seu manifesto relevo para a decisão da causa, constitui nulidade processual;

xi) O recorrente levantou o registo sonoro em 27.06.08, tendo expedido as suas alegações em 02.07.08, estando em prazo para arguir tal vicio perante o Tribunal ad quem;

xii) Pelo exposto, deve o Tribunal superior intervir, de forma a repor a legalidade;

xiii) De igual forma, verifica-se ter sido violado o princípio da continuidade e concentração da audiência, sem justificação e com resultado decisivo e directo para a causa em questão;

xiv) A primeira sessão de audiência de discussão e julgamento ocorreu no dia 04.07.06 sendo a sua continuidade sucessivamente adiada, a qual apenas teve lugar em 15.06.07, ou seja, decorreram 15 meses e 8 dias entre a produção de prova;

xv) Assim, foram violadas as regras relativas à continuidade e concentração da audiência, com influência directa e decisiva na sentença proferida, pelo que a mesma deve ser revogada;

xvi) O lapso temporal de 15 meses esvazia por completo qualquer possibilidade de uma análise cuidada e rigorosa da prova;

xvii) A agravar o exposto, como já se deixou atrás referido, o próprio registo da gravação das diligências padece de imperfeições técnicas, que impossibilitam a sua utilização, a qual poderia ter útil perante tão grande distanciamento entre sessões;

xviii) Sem dúvida que a irregularidade cometida influiu no exame e na decisão da causa, devendo nessa medida ser anulado todo o processado;

xix) Atendendo à prova documental e testemunhal produzida em audiência, o recorrente entende que a sentença relativa à matéria de facto não cumpre a lei substantiva, nem processual, porquanto dela constam como provados alguns factos para os quais, de acordo com as regras da produção da prova, deveriam ser dados como não provados;

xx) Existe, no entender do recorrente, um erro na apreciação da prova produzida, que, infelizmente não poderá ser analisada na sua totalidade, atendendo à inexistência dos elementos probatórios no processo;

xxi) Foi dado como provado em julgamento que, no exercício da sua actividade, a recorrida forneceu ao recorrente as facturas juntas aos autos, que os produtos foram por estes recebidos, que, a testemunha C... foi seu representante à data, tendo nessa medida efectivado os negócios subjacentes às mesmas;

xxii) Todavia, a prova testemunhal produzida na audiência de julgamento é insuficiente para retirar tal conclusão;

xxiii) Todas as testemunhas apresentadas pela recorrida, sem excepção, cujo depoimento foi possível ouvir, não conhecem o recorrente, senão de ouvir falar, tendo inclusivamente referido que este nunca havia feito qualquer encomenda;

xxiv) Alega a sentença recorrida, que a autora vendedora demonstrou que procedeu à entrega da mercadoria objecto desse contrato;

xxv) Ora, se o motorista da recorrida disse expressamente não conhecer o réu, que nunca lhe entregou nada, se, nenhuma das testemunhas disse ter entregue, ou visto a mercadoria ser entregue a este, não se vislumbra o suporte de tal factualidade dada como provada;

xxvi) A sentença ora posta em causa, refere ainda que, o réu não demonstrou, como alegou a dada altura, que o negócio foi feito por uma terceira pessoa;

xxvii) Também nesta sede, as testemunhas cujo registo foi perceptível, sem excepção, referiram não conhecer o réu, que o nunca viram a receber qualquer mercadoria, que apenas conheciam a testemunha C...;

xxviii) Confrontando os factos dados como assentes com os depoimentos das testemunhas na audiência de julgamento, o recorrente não pode deixar de concluir que houve um conjunto de erros na apreciação da prova que inquina a decisão de tomar, sem mais, como provado a factualidade atrás transcrita;

xxix) O que é perfeitamente compreensível na medida que, perante o lapso temporal que mediou a produção da prova – 15 meses, qualquer rigor na apreciação na prova teria necessariamente que ultrapassar inúmeras dificuldades, as quais estariam agravadas, pelo deficiente registo da prova;

xxx) Pelo que deve a presente decisão sobre a matéria de facto ser substituída, na medida que se encontra ferida pela nulidade atrás suscitada;

xxxi) O recorrente, para além de não concordar com a sentença recorrida no que diz respeito à matéria de facto, discorda igualmente da interpretação e aplicação ao mesmo da condenação enquanto litigante de má-fé;

xxxii) A sentença recorrida alega que, “… o réu se defendeu inicialmente alegando que sempre pagou à autora as quantias correspondentes à mercadoria encomendada … e após a consulta à testemunha C..., representante do réu … constatou que a mercadoria citada nunca foi por si recebida”;

xxxiii) Ora, se o réu não interveio no negócio, a versão dos factos que apresentou, assentou na informação que lhe foi transmitida;

xxxiv) Não existiu por parte do réu qualquer intenção “maliciosa”, ilegítima, de distorcer a realidade por si conhecida, ou mesmo uma actuação dolosa ou gravemente negligente, que tenha de alguma forma entorpecido o processo;

xxxv) Para ter lugar a mencionada condenação, exige-se que, se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte;

xxxvi) Ora, perante a análise dos factos apurados, não vemos que estejam preenchidos os aludidos requisitos para que possa operar a condenação do recorrente enquanto litigante de má-fé;

xxxvii) Pelo que, deverá ser revogada a condenação aplicada ao aqui recorrente.

Pede, por isso, o apelante, que a sentença recorrida seja revogada e substituída, por ser ilegal, por outra que:

a) Considere verificada e provada a imperfeição do registo sonoro da prova registada nas duas sessões de discussão e julgamento, devendo em consequência ser anulada a sentença proferia;

b) Considere igualmente provada a violação do princípio da continuidade e concentração da audiência, a qual teve influência directa na sentença proferida, que se encontra ferida de nulidade;

c) Considere como não provado a factualidade dada como provada pela sentença ora recorrida, sendo ordenada a sua substituição por outra que obvie aos vícios apontados;

d) Declare não se terem verificado os elementos integrantes da condenação do apelante enquanto litigante de má-fé, sendo também nesta matéria a decisão substituída.

A recorrida não apresentou alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões controvertidas

i) DA NULIDADE PROCESSUAL DECORRENTE DA IMPERCEPTIBILIDADE DA GRAVAÇÃO, NA PARTE ONDE ESTÁ REGISTADO O DEPOIMENTO DE PARTE DO RÉU;

ii) DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE E CONCENTRAÇÃO DA AUDIÊNCIA;

iii) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA;

iv) DA CONDENAÇÃO DO RÉU COMO LITIGANTE DE MÁ FÉ.


III . FUNDAMENTAÇÃO

A - OS FACTOS

Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:

1. A autora dedica-se à actividade de importação e exportação de frutas e comércio de produtos hortícolas (al. A. da matéria de facto assente);
2. O réu liquidou a importância de € 1.003,04 por referência à factura 58717 emitida pela autora em 04.11.1998 (al. B. da matéria de facto assente);
3. No exercício da sua actividade, a autora forneceu ao réu os produtos descriminados nas facturas:
a. 58717, com data de emissão de 04.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 250.740$00 (€ 1.250,69);
b. 58920, com data de emissão de 09.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 584.944$00 (€ 2.890,74);
c. 59063, com data de emissão de 12.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 200.655$00 (€ 1.086);
d. 59220, com data de emissão de 16.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 238.455$00 (€ 1.189,45);59926, com data de emissão de 18.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 509.276$00 (€ 2.540,26);
e. 59488, com data de emissão de 23.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 210.210$00 (€ 1.048,52);
f. 59804, com data de emissão de 01.12.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 492.188$00 (€ 2.455,02);
g. 60100, com data de emissão de 08.12.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 427.035$00 (€ 2.130,04);60348, com data de emissão de 14.12.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 108.990$00 (€ 543,64) – (artº 1º da base instrutória);
4. Produtos esses que foram recebidos pelo réu (artº 2º da base instrutória);

5. As compras e vendas a que se referem as facturas dos autos foram negociadas por C... em nome do réu;

B - O DIREITO

i) DA NULIDADE PROCESSUAL DECORRENTE DA IMPERCEPTIBILIDADE DA GRAVAÇÃO, NA PARTE ONDE ESTÁ REGISTADO O DEPOIMENTO DE PARTE DO RÉU;


Aponta Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, Actos e Nulidades Processuais, pág. 170, três princípios fundamentais em matéria de nulidades:
i. Princípio da nulidade meramente relativa - a nulidade que só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto;
ii. Princípio da redução da nulidade à mera irregularidade do acto, sem consequências, sempre que o acto haja atingido o seu fim;
iii. Princípio do aproveitamento, no possível, do próprio acto cuja nulidade tenha de ser declarada.

Das nulidades processuais, umas são principais, típicas ou nominadas, sendo-lhes aplicável a disciplina fixada nos artigos 139º a 200º e 202º a 204º do CPC; outras são secundárias, atípicas ou inominadas e têm a sua regulamentação genérica no artigo 201º, nº 1 do CPC, estando a sua arguição sujeita ao regime previsto no artigo 205º do mesmo diploma legal.

Das nulidades processuais principais, típicas ou nominadas - especificamente reguladas nos artigos 193º a 200º e 202º a 204º do CPC - aquelas a que se reportam os artigos 193º a 199º só podem ser arguidas até à contestação ou neste articulado; enquanto as previstas nos artigos 194º e 200º podem ser suscitadas em qualquer estado do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas.

Mas, para além das nulidades principais ou insanáveis, só há nulidade (secundária) quando a lei o disser ou quando a irregularidade cometida poder influir no exame (instrução ou discussão) ou na decisão da causa (no julgamento). Daí se falar em nulidades secundárias relevantes e irrelevantes, sendo que só daquelas se podendo reclamar.
O princípio que domina a matéria das nulidades em processo civil é o de que as nulidades se devem considerar meramente relativas.

Sempre que não esteja em causa uma nulidade principal, isto é, especialmente prevista e regulada nos supra mencionados normativos – artigos 193º a 200º, 202º a 204º do CPC - terá de se averiguar da verificação de qualquer nulidade secundária, cujo regime legal, como antes ficou dito, se encontra estabelecido no artigo 201º do C.P.C.
Prescreve o nº 1 do artigo 201º do CPC que, “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
De harmonia com o disposto no nº 2 do aludido normativo, “Quando um acto tenha de ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente”.
Como salienta Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º, 485, “É ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou na decisão da causa”.
O tribunal conhece oficiosamente das nulidades principais, derivadas da ineptidão da petição inicial, da falta de citação, da omissão de formalidades na citação edital ou de indicação de prazo para a defesa, de erro na forma de processo e da falta de vista ou exame ao Ministério Publico como parte acessória (artigo 202º, 1ª parte, do Código de Processo Civil).
Das restantes nulidades – nulidades secundárias - o tribunal apenas as conhece, a reclamação dos interessados, salvo os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso (artigo 202º, 2ª parte, do Código de Processo Civil).
Fora dos casos de conhecimento oficioso referidos no artigo 202º do CPC, a nulidade só pode, com efeito, ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto, não podendo arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição, como resulta do artigo 203º, nº 1, do Código de Processo Civil.
A regra do conhecimento das nulidades secundárias processa-se, pois, através da arguição pela parte interessada, com observância do prazo consagrado no artigo 205º do CPC.
O artigo 205º do CPC prevê duas situações.

a) Estando presente a parte ou o seu representante, a irregularidade terá que ser reclamada até findar o acto judicial no decurso do qual ela existiu.

b) Não estando presente a parte ou o seu representante, o prazo (de 10 dias - artº 153º nº 1 do CPC) para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.

Feita esta introdução ao regime legal das nulidades processuais, importa analisar dos fundamentos que consubstanciam a invocada nulidade.

Diz o apelante que ao proceder à audição da consequente transcrição dos depoimentos prestados em audiência de julgamento constatou que a 2ª cassete que corresponde ao início da primeira audiência de 12.10.2007, onde se encontra registado o depoimento de parte do réu, se encontra deficientemente gravada, sendo por diversas ocasiões imperceptível a sua audição, agravado pelo facto de, em dois momentos, certamente devido a avaria mecânica, se ter verificado a omissão do registo completo do depoimento prestado e que essa imperfeição e omissão de parte da gravação, dado o seu manifesto relevo para a decisão da causa, constitui nulidade processual – artigo 201º, nº 1 do CPC. Vejamos,

Regula a documentação e o registo da prova o Decreto-Lei nº 39/95, de 15.2 que, nos seus artigos 6º, nºs 1 e 2 e 7º estabelece o modo como a gravação deve ser efectuada.

E, no artigo 9º do mesmo diploma estatui-se que se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”.

Tal significa que se detectada qualquer anomalia no acto de gravação deverá a mesma ser corrigida, através da repetição da produção da prova omitida ou que se encontra imperceptível.

O diploma em análise não contempla qualquer normativo destinado a, no final da gravação, as partes e o Tribunal poderem aferir da efectiva gravação e da sua qualidade. Admite-se, todavia, a possibilidade de a parte discordante invocar tal anomalia em momento ulterior, incluindo nas alegações de recurso.

Com efeito, decorre do disposto no artigo 161º, nº6, do Código de Processo Civil que as partes não podem ser prejudicadas pelos erros e omissões, ainda que involuntários, praticadas pelos funcionários judiciais.

As anomalias da gravação provenientes de erro técnico - omissão de gravação ou a gravação deficiente – não podem integrar o regime das nulidades processuais principais, porque tal irregularidade eventualmente cometida não está contemplada no elenco taxativo previsto nos artigos 193º a 200º do Código de Processo Civil, não podendo, contudo, deixar de integrar uma nulidade secundária, à qual será aplicável o regime decorrente do artigo 201º, nº1, do Código de Processo Civil.

É que, a verificar-se uma anomalia na gravação da prova, poderá a mesma ter relevância para a decisão da causa, por ser susceptível de influir no exame e decisão da causa, podendo até impedir a parte de ver reapreciada a prova produzida, por via de recurso, o que é de todo insustentável.

Ultrapassando a questão do prazo para o recorrente invocar o vício de que eventualmente padece a gravação – questão não inteiramente pacífica na jurisprudência – entendemos que não será exigível às partes que controlem a gravação efectiva dos depoimentos prestados em audiência logo nesse próprio acto processual.

E, no caso vertente, tal questão não se coloca visto o apelante ter apresentado as suas alegações, nas quais arguiu a aludida nulidade, dentro do prazo legal.

Considerando que se tem de entender que a omissão ou imperceptibilidade da gravação implicará necessariamente a repetição da prova, sempre que tal falha seja grave e, portanto, essencial ao apuramento da verdade, importa apurar – o que igualmente deveria ter sido apreciado pelo Tribunal a quo - se no caso vertente se verifica a apontada anomalia e se a mesma é susceptível de influir no exame e na decisão da causa.

Auditado o suporte áudio verifica-se que apenas na gravação da cassete nº 1 da 2ª sessão da audiência de discussão e julgamento, levada a efeito no dia 12 de Outubro de 2007, aquando da prestação do depoimento de parte do réu – e apenas neste - ocorreram dois pequenos hiatos a que corresponderam falha na audição.

Ora, como é sabido, e resulta do nº 1 do artigo 352º, nº 1 do C.C., o depoimento de parte é um meio de prova que visa a obtenção da confissão, ou seja, o reconhecimento de um facto que é desfavorável à parte que o presta, e aproveita à parte contrária.

Sucede que, mesmo que se admitisse que o depoimento de parte sempre poderia ser livremente apreciado pelo julgador, ainda que não conduzisse à confissão, por aplicação do princípio da prova livre estabelecido no nº. 1 do artigo 655º do C.P.C., a pequena duração da falha de gravação, no contexto da globalidade sequencial das declarações do réu - declarações essas perfeitamente compreensíveis - e, atenta a ponderação dada às mesmas na decisão da matéria de facto, não pode deixar de se concluir pela irrelevância da invocada anomalia verificada na gravação.

O depoimento do réu apenas relevou – e bem – quanto à circunstância deste ter admitido que C... era o seu representante no negócio de frutas, o que sucedia nas datas constantes nas facturas em causa nos autos.
E, essas declarações consideradas pelo Tribunal a quo como confessórias, e sobre as quais foi observado o disposto no artigo 563º, nº 1 do CPC, mostram-se bem audíveis na gravação que foi efectuada.
Entende-se, por isso, que a diminuta anomalia verificada na gravação da prova, não tem relevância para a decisão da causa, não sendo susceptível de influir no exame e decisão da causa, já que não impede a parte de ver reapreciada a prova produzida, como se procederá – se for caso disso – em momento ulterior.
Improcede, pois, o que a este propósito consta das conclusões das alegações de recurso do apelante.

ii) DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE E CONCENTRAÇÃO DA AUDIÊNCIA;

Invoca o apelante a violação do princípio da continuidade e concentração da audiência, em virtude de, entre a primeira audiência e a última, terem decorrido 15 meses e 8 dias, esvaziando por completo qualquer possibilidade de uma análise cuidada e rigorosa da mesma, verificando-se a nulidade prevista no artigo 201º do CPC, devendo nessa medida ser anulado todo o processado.
O artigo 656º do CPC estabelece, no seu nº 2, que a audiência é contínua, só podendo ser interrompida por motivos de força maior, por absoluta necessidade ou nos casos previstos no nº 4 do artigo 650º, no nº 3 do artigo 651º e no nº 2 do artigo 654º, todos do CPC.
E, sempre que não seja possível concluir a audiência num dia, o juiz que a ela preside marcará a continuação para o dia imediato, se não for domingo ou feriado, mas ainda que compreendido em férias, e assim sucessivamente.
Considerando que a lei processual civil não estabelece qualquer penalidade para o incumprimento deste preceito, não pode deixar de se entender que essa eventual irregularidade só pode produzir a nulidade prevista no artigo 201º CPC, caso a mesma possa influir no exame ou na decisão da causa e, sendo certo que, como acima ficou dito, não estando em causa uma hipotética nulidade principal, a nulidade secundária, a existir, tem de ser arguida nos termos do artigo 205º do CPC, sob pena de se considerar sanada.

No caso em apreço, e conforme consta do relatório do presente acórdão, a 1ª sessão do julgamento ocorreu no dia 04.07.2006. Nessa sessão, o autor veio invocar as posições antagónicas deduzidas pelo réu, pedindo a condenação do réu, como litigante de má fé.

O Exmo. juiz que presidiu ao julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 650º, nº 1 alínea f) do CPC , aditou dois novos quesitos, concedendo prazo, ao réu, para se pronunciar sobre o pedido de condenação como litigante de má fé e, a ambas as partes, para apresentarem os respectivos meios de prova com relação ao factos aditados.
A autora apresentou novo requerimento probatório e solicitou, de harmonia com o preceituado nos artigos 528º e 535º do CPC, a notificação do réu e do Departamento de Abastecimento da Câmara Municipal de Lisboa, para juntarem documentos, que identificou, diligências essas que foram efectuadas.
Nas datas designadas para continuação da audiência de discussão e julgamento - dias 19.01.2007 e 15.06.2007 - não foi a mesma levada a efeito por impedimento do Exmo. Juiz em continuações de julgamento de processos de réus presos, disso tendo sido dado conhecimento às partes – v. fls. 171, 173 a 181, 198 a 203.

Pese embora a motivação constante dos autos para a falta de continuidade da audiência, a verdade é que o mandatário do réu foi devidamente notificado da não realização do julgamento nas designadas datas, não tendo por este sido apresentada qualquer reclamação contra a falta de cumprimento do disposto no artigo 656º do CPC.

E, a entender-se que haviam sido cometidas nulidades, tais vícios deveriam ter sido invocados no momento em que foram cometidos, razão pela qual tais eventuais irregularidades terão de se considerar sanadas, em virtude de não terem sido arguidas atempadamente.

Sempre se dirá, no entanto, que a falta de continuidade da audiência não é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, tanto mais que toda a prova se encontra gravada.

Improcede, assim, a pretensão do recorrente.

iii) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da
impugnação da matéria de facto

a) Modificabilidade da matéria de facto pelo tribunal da relação

Á regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1ª instância, contrapõe-se a excepção decorrente do artigo 712º do CPC que permite a alteração da matéria de facto nos seguintes casos:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravações dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

Considerando que foi gravada a prova produzida em audiência, dispõe este tribunal dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa. Mas, não se pode olvidar que não podem agora ser apreendidos alguns elementos probatórios que emergem, designadamente, do princípio da imediação, sendo certo que os factores decorrentes de tal princípio são decisivos para o juízo de convicção de que o juiz tem de fazer acerca da credibilidade dos depoimentos.

Como esclarece Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., págs. 657, a propósito do princípio da mediação “Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.

Alerta, por outro lado, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, 374, a propósito da distinção entre os recursos de reexame e os de reponderação, que a reponderação das provas em 2ª instância satisfaz-se com a averiguação de saber se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a "justiça relativa" dessa decisão.

Tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência, que a garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas constante do artigo 655º do CPC, decorrendo de tal normativo que o juiz, fora dos casos de prova legalmente tarifada, goza de liberdade na apreciação das provas e decide segundo a convicção prudente sobre cada facto.
De resto, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 de 15/12 - diploma que veio regular a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida – refere-se que: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o recorrente terá sempre o ónus de apontar claramente na sua minuta de recurso”.
E, nos casos de provas contraditórias, deve reger a convicção criada no espírito do juiz, desde que a prova haja sido valorada de acordo com critérios de razoabilidade
Por isso se tem vindo a entender que a modificabilidade da matéria de facto pela 2ª instância só deve ter lugar nos casos de manifesta desconformidade entre as provas produzidas e a decisão proferida, pressupondo um erro evidente que imponha claramente uma decisão diferente – v. a título meramente exemplificativo, neste sentido e entre muitos, Ac. da RP de 19/02/2000 in CJ , Ano XXV, T. 4º, 180 e Ac. R.E. de 11-01-2007 (Pº 2336/06-3), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt.
No caso em apreço, o réu/apelante retira da produção de prova convicção diversa da do tribunal, o que não conduz necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.

Vejamos, então, se razão assiste ao apelante e se, in casu, se verifica a ausência da razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas.

b) A avaliação da correcção ou incorrecção do exame da prova
Invoca o réu/apelante erro na apreciação da prova produzida, visto que todas as testemunhas apresentadas pela autora/recorrida não conheciam o apelante senão de ouvir falar e referiram que este nunca havia feito qualquer encomenda.

Importa uma vez mais esclarecer que todos os depoimentos das testemunhas são perfeitamente audíveis na gravação efectuada, pelo que é possível proceder a uma ponderação rigorosa da prova produzida.

A convicção do Exmo. Juiz a quo para proceder às respostas aos aludidos quesitos alicerçou-se nos depoimentos prestados pelas testemunhas da autora, D...., E..., F..., depoimentos esses corroborados com as declarações do réu, na parte tida como confessória.

Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito do juiz do Tribunal a quo o qual, como antes se aduziu, tem a seu favor o importantíssimo princípio da imediação da prova, sendo esse contacto directo com a prova testemunhal, que melhor possibilita ao julgador a percepção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.

E, da audição da prova gravada e da supra referida ponderação, conclui-se que a convicção criada no espírito do julgador de 1ª instância, não é merecedora de qualquer reparo, muito embora a mesma não se mostre exaustivamente extratada na decisão sobre a matéria de facto.

Entendeu o Tribunal a quo ter em consideração o depoimento do réu, na parte em que dele decorreu a assunção de que C..., após a morte do pai, o representava no negócio de frutas, inicialmente explorado pelo pai do réu, e ao qual o aludido C... deu continuidade nessa exploração.

A decisão sobre a matéria de facto apurada, proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se, pois, adequada em face dos depoimentos prestados, não só pelas testemunhas da autora, mas também pelo depoimento da testemunha C... e pelo depoimento de parte do réu, prova essa complementada com o que resulta dos documentos de fls. 142 a 150, 165 a 167.

Importa, com efeito, dar relevância ao depoimento de parte prestado pelo réu, apesar da forma titubeante como depôs, pretendendo sempre refugiar-se no desconhecimento de factos de que não poderia deixar de ter conhecimento, tergiversando sistematicamente, sendo as suas declarações inclusive incompatíveis com as diferentes posições já tomadas nos articulados.

O réu, no início do seu depoimento, negou que tivesse tido qualquer intervenção no negócio de venda de frutas no mercado do C... S... para, em momento ulterior, vir a admitir ser sua a letra constante dos documentos juntos aos autos, mas apenas após ter sido confrontado com tais documentos.

E, desses documentos decorre que:
a) Foram apresentadas as declarações de IRS, em nome do réu, relativas aos anos de 1998 e 1999, enquanto sujeito passivo das actividades de comércio por grosso de frutas e produtos hortícolas, e preenchidos os impressos modelo C – com escrita organizada - encontrando-se apostas em cada uma das ditas declarações, assinaturas como sendo do réu. E, com a declaração atinente ao ano de 1998 foram juntos elementos da contabilidade do réu, enquanto sujeito passivo relativamente ás supra mencionadas actividades – v. fls. 143 a 150;

b) Foi apresentada declaração atinente ao IVA, no período de 01.01.99 a 31.03.99, na qual foi aposta uma assinatura como sendo do réu, tendo sido o respectivo imposto pago através de cheque de uma conta bancária de que eram titulares C... e Maria – fls. 142;

c) Em 26.04.1991, H..., pai do réu, requereu à Câmara Municipal de Lisboa a concessão do lugar nº ... do sector ... do extinto mercado abastecedor do C...S..., de que era titular I..., mãe do réu, à sociedade J..., Ldª., da qual eram sócios o pai do réu e este, o que foi deferido em 28.05.1991 – fls. 166;

d) Em 11.09.1998, R..., irmã do réu, requereu à Câmara Municipal de Lisboa autorização para ceder ao réu o lugar nº ..., sector ..., do extinto mercado abastecedor do C...S..., o que foi deferido em 08.02.1999 – fls. 167;

e) De Outubro de 1998 a Março de 1999, a sociedade J..., Ldª. foi titular do direito de ocupação do lugar nº ... do sector ... do extinto mercado abastecedor do C...S... – v. fls. 165;

f) Desde 08.02.1999 até 11.04.2000 o réu foi titular do direito de ocupação do lugar nº... , sector ..., do extinto mercado abastecedor do C...S... – fls. 165;

g) C... não era titular de qualquer lugar de venda no extinto mercado abastecedor do C...S...;

As respostas dadas aos quesitos não podem deixar de se alicerçar no conjunto dos depoimentos prestados, quer pelo réu, quer pela testemunha C... (que inicialmente tentou negar aquilo que o próprio réu já havia admitido, que era a testemunha que geria o negócio da fruta na banca de que o réu era titular), concomitantemente com o que decorre dos documentos antes aludidos – cuja emissão alguns deles é atribuída ao réu, sem que este haja impugnado tais documentos, fazendo eles prova plena quanto aos factos neles compreendidos, nos termos do disposto no artigo 376º do Código Civil - e complementado com os relatos das testemunhas da autora, quanto à mercadoria encomendada por C..., em nome do réu, e á subsequente entrega da mesma no aludido mercado abastecedor, merecendo tais relatos inteira credibilidade.

Tudo ponderado, entende-se estar demonstrado o fornecimento da mercadoria em causa a J..., fornecimento esse que foi negociado por C..., em nome do réu.

Inexiste, consequentemente, qualquer erro, e muito menos notório, na apreciação da prova produzida em julgamento.

Atenta a imutabilidade da prova fixada na 1ª instância, forçoso é concluir pela adequação da decisão quanto à questão de direito.

Mostra-se, pois, correctamente apreciada a subsequente questão de direito, face ao disposto no artigo 342º, nº 1 do C.C., uma vez que logrou a autora fazer prova dos factos constitutivos do direito invocado, i.e., o fornecimento do produto do seu comércio à banca existente no extinto mercado de que o réu era titular, a pedido de pessoa que, em nome do réu, explorava o aludido negócio.

Improcede, por isso, o recurso de apelação, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.

iv) DA CONDENAÇÃO DO RÉU COMO LITIGANTE DE MÁ FÉ.

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 456º nº 2, 266º e 266º-A, todos do CPC, litiga com má fé processual a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere por acção ou omissão a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos.

Nos pressupostos da litigância de má fé há que distinguir aqueles que têm natureza subjectiva, daqueles que têm natureza objectiva.

Os pressupostos subjectivos da condenação por litigância de má fé englobam a actuação dolosa e a actuação com negligência grosseira, consistindo esta na omissão do dever de diligência exigível a qualquer pessoa que intenta uma acção ou deduz oposição a um pedido, na medida em que a propositura de uma acção judicial deve ser entendida como um acto sério, que normalmente acarreta prejuízos e incómodos para a outra parte – v. neste sentido Ac. R.C. de 28.09.2000 (Pº 1475/00), acessível no supra identificado sítio da Internet.

Quanto aos pressupostos objectivos da condenação por litigância de má fé há que distinguir a má fé substancial da má fé instrumental.

A má fé substancial ou material - directa ou indirecta - verifica-se quando a actuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do nº 2 do citado artigo 456º do CPC, ou seja, quando se deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas (má fé material directa), se altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes (má fé material indirecta). Esta só pode ter lugar quando o tribunal profere decisão sobre a relação jurídica material que é objecto da acção.

A má fé instrumental reconduz-se às alíneas c) e d) do apontado normativo – a omissão indesculpável do dever de cooperação ou o uso reprovável dos instrumentos adjectivos.

Mas, quer na má-fé substancial, quer na instrumental está presente uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva.

O juízo de censura radica, pois, na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas.

Frequentemente o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que as regras consagradas nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 456º do CPC têm de ser interpretadas em consonância com a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias de um estado de direito, incompatíveis com interpretações apertadas do aludido normativo, impedindo que, por exemplo, a parte seja condenada como litigante de má fé apenas por não se ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária – v. Ac. STJ de 30.01.2003 (Pº 3B3644) e, em sentido não inteiramente coincidente, Ac. STJ de 12.06.2003 (Pº 03B573), ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt.

Decidiu-se igualmente no Ac. STJ de 11.12.2003 (Pº 03B3893), acessível no mesmo sítio da Internet, que só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente deverá a parte ser sancionada como litigante de má fé, o que pressupõe prudência do julgador, “ sabendo-se que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”

Tal significa que a sanção por litigância de má fé exige a verificação de dolo ou negligência da parte que tal conduta adopta, o que não sucederá, normalmente, com a dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento se verificou por mera fragilidade da prova, e da incapacidade de convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento, ou mercê da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos.

Com se refere no Ac. STJ de 13.11.2003 (Pº 03B2343), acessível no mesmo sítio da Internet, a condenação como litigante de má fé assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento adoptado pela parte, inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.

No caso vertente, o apelante assumiu no processo duas posições contraditórias, declinando a responsabilidade pelo pagamento da quantia peticionada, por entender, num primeiro momento (contestação) que já havia sido pago o aludido fornecimento para, em seguida, negar mesmo o conhecimento de qualquer fornecimento, e a própria actividade comercial de compra e venda de fruta (depoimento de parte e requerimento de fls. 106), razão pela qual, o Tribunal a quo condenou o réu como litigante de má fé, esclarecendo que era precisamente nessas permanentes mudanças de posição que residia a má fé.

A conduta do réu/apelante manifestada no processo pela forma supra mencionada, designadamente, através de uma atitude pouco clara e titubeante, pretendendo sempre refugiar-se no desconhecimento de factos de que não poderia deixar de ter conhecimento, porque pessoais, tergiversando sistematicamente, sendo as suas declarações produzidas na audiência de julgamento, aquando do seu depoimento de parte, incompatíveis com as diferentes posições já tomadas na fase dos articulados.


Evidenciam os autos que o réu litigou de má-fé, violando com esse seu comportamento o dever de verdade, i.e., de agir de boa fé, que sobre ele recaía, o qual merece reparo e censura, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao concluir pela má fé processual do réu.

Há, portanto que condenar o réu pela sua conduta processual, havendo que apurar se se mostra equilibrada e adequada a multa que lhe foi aplicada

A quantia a arbitrar terá de reflectir o prudente arbítrio do tribunal, assente num critério de razoabilidade que teve em consideração, sobretudo, a natureza e a complexidade da causa, bem como a dimensão do comportamento processual indevido.
A litigância de má fé pode levar à aplicação de duas sanções: a multa e a indemnização, caso esta haja sido pedida pela contraparte.
Nos termos do preceituado no artigo 102º do Código das Custas Judiciais a multa deve ser fixada pelo juiz, entre 2 e 100 UC, mas a sua decisão não pode ser arbitrária, devendo ser tomada com base na maior ou menor intensidade da culpa revelada pelo agente e na sua condição económica, devendo também o juiz proceder à análise ou projecção das consequências danosas da actuação do litigante.
Mas é sobretudo pela intensidade da violação do supra referido dever de probidade que se há-de sancionar a conduta do litigante de má fé, através da aplicação da multa, ponderando o seu limite mínimo e máximo.
Da ponderação dos elementos em presença, relevando, naturalmente, o grau de culpa do réu/apelante, a que se não poderá abstrair a sua juventude e o facto do negócio em causa não ser desenvolvido pessoalmente pelo próprio, mas por outros em seu nome e interesse, considera-se um pouco elevado o quantitativo da multa aplicada, afigurando-se justa e equilibrada a condenação do réu/apelante apenas em multa correspondente a 10 UC.


Procede, pois, parcialmente o recurso de apelação, mas apenas quanto à quantia arbitrada pela condenação do réu como litigante de má fé, que se reduz para 10 UC, mantendo-se no mais a sentença recorrida.

As custas ficarão a cargo de recorrente e recorrida, na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente – v. artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida quanto à quantia arbitrada a título de condenação como litigante de má fé, condenando-se, a esse título, o apelante, na multa de 10 UC, confirmando-se a sentença recorrida na parte restante.
Condena-se o recorrente e a recorrida no pagamento das custas, na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente.
Lisboa, 26 de Março de 2009
Ondina Carmo Alves - Relatora
Ana Paula Boularot
Lúcia Sousa