Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE COISAS
SOBRESSEGURO
Sumário
1- No contrato de seguro de coisas vigora o princípio indemnizatório. De acordo com esse princípio, nem o valor do capital seguro pode ser superior ao valor do interesse seguro, nem o valor da prestação a cargo do segurador pode ser superior ao valor do interesse lesado. 2- Uma das manifestações deste princípio é no âmbito do sobresseguro; ou seja, nos casos em que o capital seguro exceda o valor do interesse seguro. Em tais hipóteses, a prestação devida pelo segurador não pode ser superior ao dano decorrente do sinistro, nem ao montante do capital seguro, servindo de referência, em caso de sinistro, o mais baixo desses valores. 4- Devendo, imperativamente, o segurado ter, em qualquer contrato de seguro, um risco digno de proteção legal, proibido é o acordo que viole o princípio indemnizatório para além do limite legalmente consentido, ou seja, em termos manifestamente infundados. 5- A solução para o sobresseguro é a redução do contrato, com a restituição ao tomador do seguro ou segurado de boa-fé dos sobreprémios que tenham sido pagos nos dois anos anteriores ao pedido dessa redução, deduzidos os custos de aquisição calculados proporcionalmente.
Texto Integral
I- Relatório
1- M, intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A, alegando, em breve síntese, que, no dia 05/04/2013, celebrou com a Ré um contrato de seguro de danos próprios, com a cobertura de incêndio, raio e explosão, com o capital seguro de 68.000,00€, relativo ao veículo automóvel BMW 745D, com a matrícula NP. Posteriormente, o referido capital foi reduzido para 60.444,00€.
Sucede que, no dia 02/03/2014, aquele veículo incendiou-se, tendo ficado quase consumido pelas chamas.
Ora, não obstante ter comunicado à Ré este evento, a mesma só lhe propôs uma indemnização de 25.000,00€, quando é certo que lhe cobrou prémios com base nos valores de capital indicados.
Por isso, considerando abusiva a atitude da Ré, pede que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia de 60.444,00€, acrescida dos juros moratórios calculados, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo pagamento. 2- Contestou a Ré, impugnando a factualidade invocada pela A. e alegando que o seguro foi contratado pelo valor inicial de 68.000,00€ porque foi este o valor declarado pela segurada, não resultando de qualquer negociação das partes, sendo tal valor alterado posteriormente para 60.444,00€ em função das desvalorizações legalmente previstas. Ademais, a A. adquiriu o referido veículo por apenas 20.000,00€, no estado de usado.
Assim, conclui que estamos perante uma situação de sobresseguro, o que limita a indemnização a pagar à A. ao valor do veículo à data do sinistro, o qual não excedia os 25.000,00€.
Daí que peça a improcedência desta ação, com a sua absolvição do pedido. 3- Terminados os articulados, foi conferida a validade e regularidade da instância e proferiu-se ainda despacho fixando o objecto do processo e os temas da prova. 4- Nesta sequência, teve lugar a audiência final, a que se seguiu sentença que julgou a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, se condenou a Ré a pagar à A. a quantia de 25.215,00€, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde 17/11/2015 até integral pagamento. 5- Inconformada com esta sentença, dela recorre a A., terminando as suas alegações recursivas concluindo o seguinte:
“1) Não obstante a verificação do facto provado 1.7 (“Na sequência de peritagem mandada efectuar pela Ré ao veículo sinistrado, realizada pelos serviços técnicos da UON Consuliing, S.A., junto a oficina JAPautomotive - Comércio de Automóveis, S.A., veio apurar-se a existência dos danos e que a extensão dos mesmos desaconselhava a reparação da viatura”), não consta do mesmo o valor da reparação estimada para a viatura NP em consequência do sinistro dos autos e que se encontra declarado no documento junto pela própria Ré sob o n.º 7 segundo o qual o custo da reparação ascendia ao montante global de 75.699,87€ (sendo 52.895,67 € de peças, 6.786,36€ de mão de obra e 1.862,58€ de pintura), documento este que não foi impugnado pela Autora nem posto em causa por qualquer meio de prova.
2) De igual forma se omitiu que a Recorrente usufruiu da concessão de benefícios fiscais, designadamente com a isenção de imposto sobre veículos, de isenção dos direitos aduaneiros e de isenção de IVA relativamente a viatura NP, fruto de uma situação pessoal e específica por parte da Recorrente e cujo documento emitido pela Autoridade Tributária também foi junto pela própria Ré, agora sob o n.º 6 e que, de igual forma, não foi impugnado pela Autora nem posto em causa por qualquer meio de prova.
3) Facto este que foi objecto de um quesito formulado aos senhores peritos (“Caso não houvesse uma isenção pessoal e específica por parte da Autora quanto a mesma teria despendido com a legalização da viatura em questão fora o respectivo custo de aquisição no estrangeiro?”) o qual obteve resposta [“Numa situação normal (sem isenções), o tipo de veículo em análise com emissão de C02 de 356g/Km, teria um custo de legalização de 22.952,00€] conf relatório pericial constante dos autos.
4) Factos que, inegavelmente, demonstram que o valor peticionado pela Recorrente não é manifestamente infundado, pelo que devem ser dados como provados, sendo os mesmos importantes para se fixar o montante devido a Recorrente.
5) O Tribunal a quo considerou como não provado que “Em 5 de Abril de 2013, a Ré acordou com a Autora em fixar o valor do NP em 68.000,00 €”, decisão esta com a qual a Recorrente não pode concordar.
6) A Recorrente facultou todas as informações que se lhe impunha e que lhe foram efectivamente solicitadas pela Ré/Seguradora, designadamente sobre a viatura NP e sobre a própria pessoa da Recorrente - vide teor da proposta de seguro junta aos autos como documento n.º 3 da contestação, tendo-se, ainda, ocorrido uma nova deslocação da Recorrente as instalações da Recorrida a fim de se ultimar o termos do contrato de seguro
7) Por nos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Dec.-Lei 214/97, de 16/08, caber ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido, a Recorrente entende que compartilha do entendimento de que “…Ora, se isto é assim, dificilmente se concebe, na prática, que um valor seguro que é fixado a partir de uma indicação do tomador que é tomada como base para determinação do valor seguro, tendo em conta um regime estabelecido, possa não ser resultado de um acordo, mesmo que tácito, sobre tal valor.” (Acórdão da Relação de Lisboa de 18.04.2013, Proc. n.º 2212/09.2TBACB.Ll-2)
8) Razão pela qual a Recorrente entende serem inócuas as considerações do Tribunal a quo respeitantes ao eventual interesse das testemunhas inquiridas quanto ao desfecho do processo, na medida da existência de prova documental, designadamente a proposta de seguro junta aos autos e supra referida em 21°, a qual permite concluir pera verificação de um acordo, ainda que eventualmente tácito, sobre o valor do risco seguro.
9) Pelo que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que “Em 5 de Abril de 2013, a Ré acordou com a Autora em fixar o valor do NP em 68.000,00 €”.
10) Entende a Recorrente que o Princípio da Boa-Fé se impunha a ela própria, como a todo e qualquer tomador de seguro, tendo desta forma o dever de facultar todos os elementos e informações que poderiam condicionar por parte da Ré/Seguradora/Recorrida a correcta análise das circunstâncias e dos riscos a segurar.
11) Como também se impunha, e principalmente, a Ré/Seguradora /Recorrida, como a toda e qualquer seguradora aquando da celebração dos contratos de seguros, e isto em especial se atentarmos que esta se encontra, via de regra, numa posição claramente privilegiada atenta ao seu grau de especialização e pertença a uma organização altamente capacitada em termos técnicos, jurídicos e económicos, a qual potencia uma evidente superioridade sobre a generalidade dos tomadores de seguros.
12) A Recorrente prestou todas as informações que dispunha sobre a viatura NP, sendo desta forma a Ré/Seguradora/Recorrida plenamente sabedora da marca, modelo, data da lª matrícula, ou seja, foi desde o primeiro momento detentora dos elementos que lhe permitia balizar o valor da mesma viatura.
13) O seguro de danos próprio em causa não foi logo celebrado conforme consta da douta fundamentação da sentença supra referida em 10°, tendo sido necessária uma outra reunião entre a Recorrente e a Ré para celebração do contrato pelo que se dúvidas houvesse quanto as características/valor da viatura NP, caber-lhe-ia de acordo com as regras de normal diligência, através dos seus serviços de peritagem, proceder a avaliação da mesma viatura.
14) Poderia a Ré/Seguradora/Recorrida, com recurso a semelhante metodologia adoptada pelos senhores peritos, e como supra em 11° se referiu, efectuar uma simples avaliação através de consulta a alguma base de dados a realizar-se num curto espaço temporal, e, assim, ter chegado a conclusão de que o valor da viatura NP não correspondia ao constante da proposta e/ ou apólice.
15) O que, efectivamente, não fez preferindo guardar-se para a eventualidade de lhe vir a ser exigida alguma responsabilidade contratual, como veio a ocorrer.
16) É contrário ao Princípio da Boa-Fé uma entidade seguradora se abster de averiguar o real valor de uma viatura a segurar contra danos próprios, aceitando celebrar o respectivo contrato de seguro, aceitando dar, eventualmente, origem a um sobresseguro, com os inerentes sobreprémios, para somente quando ocorrer um sinistro se lembrar de fazer uma tal avaliação do valor da viatura, para, então, opor-se ao pagamento ao tomador do seguro, visando com isso evitar aquilo que chamará de uma sobreindemnização.
17) A Ré/Seguradora/Recorrida não poderia vir alegar que o real valor da viatura era sensivelmente inferior ao contratado somente após se ter verificado o sinistro dos autos, quando nada fez antes, e poderia tê-lo feito, para averiguar o valor real do risco seguro, atento a devida diligência que a boa-fé se lhe impunha (art. 227° do CC).
18) Tal alegação consubstancia um abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium (art. 334° do C C).
19) Pelo que o Tribunal a quo errou ao não considerar verificado abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium a alegação/defesa apresentada por parte da Ré de que o valor real do NP era sensivelmente inferior ao contratado quando, desde o primeiro momento, foi conhecedora de todos os elementos que lhe permitia se certificar do real valor da mesma, não se abstendo, no entanto, de receber os alegados sobreprémios.
20) Deveria, pois, o Tribunal a quo ter julgado a acção totalmente procedente por provada, e, em consequência, condenar a Ré/Recorrida a pagar a Recorrente a quantia de 60.444,00€ relativo ao valor acordado para a sinistrada viatura NP, acrescida de juros legais contabilizados desde a citação até integral pagamento.
21) Assim, decidindo como decidiu o Tribunal a quo errou, violando os art.°s 23° n.º 3 al. e), 102° e 131° n.º 1 do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, artºs 227°, 334°, 406°, e ainda 607°, nº 4, do CP.C”.
Pede, assim, que se conceda provimento ao presente recurso e, em consequência, se revogue a sentença recorrida, dando guarida ao seu pedido. 6- Respondeu a Ré pugnando pela confirmação do julgado. 7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
II- Mérito do recurso
A- Definição do respectivo objecto
Este objecto, como é sabido, é, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objecto deste recurso reconduz-se às seguintes questões:
1- Em primeiro lugar, saber se deve haver lugar à modificação da matéria de facto pretendida pela A.;
2- E, depois, decidir se a mesma tem direito a haver da Ré a prestação que reclama.
*
B- Fundamentação
a) Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1. A A. é dona e legítima possuidora do veículo automóvel marca BMW, modelo 745D, com a matrícula NP.
2. Em consequência da aquisição do veículo supra referido, a A. celebrou um contrato de seguro com a Ré, tendo por objeto o veículo acima identificado, recorrendo para o efeito a um medidor da mesma, designadamente, Cunha Machado, Ldª, onde era habitual celebrar os seus contratos de seguro.
3. Aquele mediador apresentou uma simulação de prémio de seguro, vulgarmente designado “contra todos os riscos” e numa modalidade que a Ré identificava como produto “Pack – Comfort”, para vigorar a partir de 05.04.2013, por um ano e seguintes e nos termos e condições gerais e especiais constantes da apólice 0045.11.214622 (cfr. documento de fls.12 e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
4. O referido contrato inclui a cobertura base de responsabilidade civil e ainda, entre outras, no que respeita a danos próprios, condições especiais tais como choque, colisão, capotamento, quebra de vidros; incêndio, raio e explosão; furto ou roubo; fenómenos da natureza; riscos sociais; coberturas estas até ao capital de 68.000,00€.
5. Posteriormente, o valor do capital de seguro contratado para danos próprios, designadamente para cobertura facultativa de incêndio, raio e explosão, foi reajustado para a quantia de 60.444,00€, valor pelo qual a Ré calculou e cobrou os correspondentes prémios, tendo, em 24.02.2014, procedido ao envio à A. de aviso de débito/recibo no qual faz constar que o valor seguro atualizado é de 60.444,00€.
6. O incêndio foi de pronto comunicado à Ré.
7. Na sequência de peritagem mandada efetuar pela Ré ao veículo sinistrado, realizada pelos serviços técnicos da VON Consulting, S.A. junto da oficina JAPautomotive Comércio de Automóveis, S.A., veio a apurar-se a existência dos danos e que a extensão dos mesmos desaconselhava a reparação da viatura.
8. Por carta datada de 29.04.2014, a Ré comunicou que assumia a responsabilidade pela regularização dos danos no veículo, através da cobertura “incêndio, raio ou explosão”, comunicando à Autora que que: “... Embora o capital seguro contratado em danos próprios para a cobertura facultativa de incêndio, raio e explosão seja de 60.444,00€, após o sinistro constatámos que o referido capital está inflacionado pois, através da consulta ao mercado de usados, obtivemos um valor médio de 25.000,00e para viaturas similares à sinistrada.”; “Face a esta clara situação de sobresseguro vamos aplicar o disposto no n.º 1 do artº 13º do Decreto Lei 72/2008, de 16 de Abril, e regularizar o sinistro pelo valor real do objeto seguro, procedendo paralelamente ao estorno do prémio pago em excesso sobre a diferença do valor real para o valor seguro. Assim a indemnização a liquidar será calculada com base no valor de 25.000,00€, mais sendo comunicado que o valor do salvado foi estimado em l85,00€.
9. Em 02.03.2014, pelas 08.25 horas, junto a EM - 615, na Rua de Quintela, freguesia do Rego, concelho de Celorico de Basto, quando ao volante do NP ia o Sr. António José de Sousa Teixeira, do mesmo começou a sair fumo do capô.
10. Tendo o referido condutor parado de imediato a viatura e aberto o capô.
11. O condutor fechou o capô e solicitou a intervenção urgente dos Bombeiros Voluntários Celoricenses.
12. Como consequência direta e necessária do referido incêndio, o veículo foi quase completamente consumido pelas chamas.
13. Em 5 de Abril de 2013, a Ré aceitou segurar o incêndio do NP pelo capital de 68.000,00€.
14. No momento em que formulou a proposta de seguro, a Autora declarou perante a mencionada mediadora que o veículo NP não era novo, e que tinha o valor de 68.000,00€, sendo em função dessa indicação que foi fixado o capital seguro inicial.
15. O NP teve a primeira matrícula em 28/06/2007 e foi importado de Andorra pela Autora, em 2013, no estado de usado.
16. Autora adquiriu o NP pela quantia de 20.000,00€.
17. À data do incêndio, o NP tinha um valor que não excedia os 25.400,00€.
18. Os salvados, que ficaram na posse da Autora, tinham o valor de 185,00€.
*
b) Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:
1. Após a ação referida em 1.10, o incêndio começou a deflagrar com mais intensidade.
2. Em 02.03.2014, o valor médio das viaturas semelhantes ao NP era de 60.000,00€.
3. Em 5 de Abril de 2013, a Ré acordou com a A. em fixar o valor do NP em 68.000,00€.
*
c) Da pretendida alteração da matéria de facto
Começam por estar em causa duas afirmações que não constam dos factos provados e não provados, mas que a A. pretende sejam aditadas à matéria de facto provada.
Concretamente, pretende a A. que se julgue demonstrado, por um lado, o valor estimado da reparação do seu veículo (de matrícula NP) e, por outro, que usufruiu de benefícios fiscais, designadamente, isenção de imposto sobre veículos, isenção dos direitos aduaneiros e isenção de IVA relativamente a esse mesmo veículo.
Isto, “para contrariar a conclusão feita pelo Tribunal a quo, a qual considera ofensiva, onde o mesmo refere “... sempre seria de considerar abusivo e desconforme com a boa-fé (ou seja, contrário ao agir com correcção, lealdade e honestidade) segurar um veículo por mais de 60.000,00€ e pretender obter a correspondente indemnização sobre esse mesmo valor, quando o mesmo foi adquirido por apenas 20.000,00€ menos de um ano antes” e, além disso, para “demonstrar que o valor pela Recorrente peticionado não é manifestamente infundado, encontrando a sua razão de ser, essencialmente, nesses mesmos factos omitidos”.
Ora, como é bom de ver, a primeira finalidade não serve de justificação à seleção de factos (que apenas deve ser feita em função das diversas soluções plausíveis de direito e não de outros desideratos). E, a segunda também não, mas por razões diferentes.
Efetivamente, começamos por constatar que a A. não alegou nenhum destes factos. No primeiro caso, só alegou o que já se julgou demonstrado no ponto 7 dos factos provados (artigo 11.º da petição inicial); e, no segundo, quem se referiu à isenção fiscal de que beneficiou a A., foi a Ré (artigo 15.º da contestação).
De qualquer modo, não se tratando, como não se tratam, de factos essenciais, podiam ainda os mesmos ser considerados, até oficiosamente, se os mesmos fossem complementares, concretizadores (no caso da segunda afirmação) ou instrumentais em relação àqueles primeiros factos (artigo 5.º, nº 2, als. a) e b) do Código de Processo Civil).
Mas, não são.
O que a A. pretende exercitar, através da presente ação, é o seu direito a reaver da Ré a prestação decorrente do contrato de seguro que celebrou com a mesma, em virtude de ter ocorrido o evento previsto nesse contrato.
Ora, essa prestação, na versão da própria A. deve ser aferida em função do capital seguro e não em função de outras circunstâncias. Quem se defendeu dizendo que estamos perante uma situação de sobresseguro foi a Ré.
Por conseguinte, tendo aquele capital sido convencionalmente estipulado, não tem a A. de se socorrer, para a afirmação do seu direito de crédito, do valor da reparação, nem, menos ainda, da isenção fiscal que lhe foi concedida, que, de resto, como já vimos, não foi sequer por si alegado.
Daí que, a nenhum título, haja justificação para a inclusão das afirmações em causa no elenco dos factos provados.
Por outro lado, pretende também a A. que se julgue demonstrado o que consta do ponto 3 dos factos provados; ou seja, que “Em 5 de Abril de 2013, a Ré acordou com a A. em fixar o valor do NP em 68.000,00€”.
Curiosamente, porém, fá-lo alegando que a proposta de seguro junta aos autos “permite concluir pera verificação de um acordo, ainda que eventualmente tácito, sobre o valor do risco seguro”; ou seja, está é, nitidamente, uma conclusão por si retirada deste facto.
Ora, na seleção de factos que deve presidir à sentença não devem constar aqueles que induzam, por si só, a solução jurídica a adotar. Isto porque, no fundo, são juízos e não factos.
Por conseguinte, em suma, a afirmação questionada pela A. não deve constar do elenco dos factos provados, nem não provados. Daí que se decida retirá-la também do capítulo onde se encontra.
d) Passemos, agora, à questão seguinte; ou seja, saber se a A. tem o direito a haver da Ré a prestação que reclama.
Na sentença recorrida entendeu-se que não; que a A. tem direito a receber daquela apenas a quantia de 25.215,00€(1); ou seja, o valor do veículo (de matrícula NP) à data do sinistro (25.400,00€), deduzido do valor do salvado (185,00€), que ficou na sua posse.
Mas a A. não se conforma com este resultado. E aduz em benefício da sua tese o facto de ter acordado com a Ré o valor do referido veículo, tendo a mesma recebido sempre o prémio calculado em função desse valor. Assim, entende que a atitude da Ré, ao propor-lhe o pagamento apenas do valor real da viatura, é abusiva, o que implica a desconsideração desta atitude, no plano jurídico.
Já veremos se assim é, mas antes importa começar por relembrar que estamos perante um contrato de seguro de danos próprios.
Mediante esse contrato, a Ré obrigou-se para com a A. a reparar jurídica e economicamente os danos emergentes de responsabilidade civil perante terceiros, bem como os danos próprios, decorrentes, para além do mais, de incêndio, raio e explosão.
E é na sequência do incêndio do dito veículo e dos danos daí decorrentes que surgiu este litígio; litígio que se cinge, como vimos, ao valor da prestação a que a A. tem direito a receber da Ré.
Pois bem, no seguro de coisas, como é o caso, vigora um princípio estruturante deste tipo de contratos. Referimo-nos ao princípio indemnizatório.
De acordo com esse princípio, nem o valor do capital seguro pode ser superior ao valor do interesse seguro, nem o valor da prestação a cargo do segurador pode ser superior ao valor do interesse lesado(2).
No seguro de coisas, como determina o artigo 130.º do RJCS(3), “o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro”.
As partes podem convencionar “o valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização”, mas não o podem fazer de modo a tornar esse valor manifestamente infundado – artigo 131.º, n.º 1, do RJCS. O que significa que o princípio indemnizatório, pelo menos formalmente, é respeitado(4).
Por outro lado, “[a] prestação devida pelo segurador [também] está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro” – artigo 128.º do RJCS.
Assim, em caso de sinistro, vigora o valor mais baixo: o do capital ou o do dano.
No fundo, “o seguro de danos visa, apenas e no máximo, suprimir o dano efetivo, sofrido pelo segurado. Ele não deve ir mais além, proporcionando um lucro ao mesmo segurado”(5). Até porque, se tal fosse legalmente consentido, correr-se-ia o risco do contrato de seguro se descaracterizar. O contrato de seguro serviria finalidades especulativas que o aproximariam, em larga medida, do contrato de jogo.
É por este e outros motivos(6) que esse princípio é adotado.
E uma das suas manifestações é no âmbito do sobresseguro; ou seja, nos casos em que o capital seguro exceda o valor do interesse seguro.
Em tais hipóteses, a prestação devida pelo segurador não pode ser superior ao dano decorrente do sinistro, nem ao montante do capital seguro, servindo de referência, em caso de sinistro, como já vimos, o mais baixo desses valores – artigo 132.º, n.º 1, do RJCS.
Ora, aplicando estas regras ao caso presente, bem se vê que nunca a pretensão da Apelante poderia ser acolhida.
Efetivamente, tendo-se apurado que, à data do sinistro (incêndio), o veículo de matrícula NP tinha um valor que não excedia os 25.400,00€, nunca a A. poderia ter direito a receber mais do que este montante. E, como ficou provado que o mesmo ficou com o salvado, no valor de 185,00€, bem se decidiu na sentença recorrida ao atribuir-lhe apenas o valor diferencial, que corresponde a 25.215,00€.
E não se diga, como faz a Apelante, que a Ré/Apelada acordou consigo fixar o valor do capital seguro em montante muito superior; primeiro, 68.000,00€, e, depois, em 60.444,00€.
Na verdade, além deste valor ter resultado, inicialmente, de uma declaração de ciência, e não de vontade, da A.(7), também nunca um eventual acordo com a Ré, nesse âmbito, poderia derrogar a regra legal que proíbe o sobresseguro, por se tratar de uma variação de valor considerável.
É que, devendo, imperativamente, o segurado ter, em qualquer contrato de seguro, um risco digno de proteção legal, proibido é o acordo que viole o princípio indemnizatório para além do limite legalmente consentido, ou seja, em termos manifestamente infundados. É o que resulta das disposições conjugadas dos artigos 12.º, n.º 1, 43.º, n.º 1, 131, n.º 1 do RJCS e artigo 294.º, do Código Civil(8).
Daí que nunca por via convencional se pudesse ultrapassar o apontado limite.
E também não pode ser ultrapassado com recurso à figura do abuso de direito, como parece pretender a Apelante.
Como resulta da lei, a solução para o sobresseguro é a redução do contrato, com a restituição ao tomador do seguro ou segurado de boa-fé dos sobreprémios que tenham sido pagos nos dois anos anteriores ao pedido dessa redução, deduzidos os custos de aquisição calculados proporcionalmente – artigos 132.º, n.ºs 1 e 2, do RJCS. Nunca a violação do princípio e limite já assinalados.
Assim, ao invés do que sustenta a A., a Ré, ao recusar-se a pagar-lhe um valor superior ao do dano por ela sofrido, está apenas a observar as prescrições legais já assinaladas e não a abusar de qualquer direito. É que, repetimos, a A. não tem o direito de receber, em caso algum, um valor superior ao do dano que sofreu – leia-se à desvantagem patrimonial correspondente à perda do veículo, deduzido que seja o salvado que ficou na sua posse. Daí que não se possa falar aqui em abuso de direito, tal como ele é configurado no artigo 334.º do Código Civil.
Por todas as razões expostas, pois, a sentença recorrida é de manter, assim improcedendo este recurso.
*
III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
*
- Porque decaiu na sua pretensão recursiva, as custas desta instância serão suportadas pela A. - artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
*
1 - Para além dos juros moratórios.
2 - Neste sentido, Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiro, Estudo de Direito Civil, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, pág. 253.
3 - Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de abril.
4 - António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, pág. 751.
5 - António Menezes Cordeiro, Ob cit, pág. 748.
6 - Cfr. sobre a justificação deste princípio, Francisco Rodrigues Rocha, Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, 2015, Almedina, págs. 77 a 93 e, na jurisprudência, entre outros, o Ac. STJ de 24/04/2012, Processo n.º 32/10.0T2AVR.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
7 - Cfr. sobre esta diferenciação, Luis Poças, Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Almedina, págs 323 e sgts.
8 - Cfr. neste sentido, Francisco Rodrigues Rocha, Ob cit., pág. 96.