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INTERDIÇÃO PROVISÓRIA
PRESSUPOSTOS DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário
I - A incapacidade negocial de gozo conduz à proibição absoluta de celebração de negócios de cariz pessoal, os quais ficam afectados de nulidade absoluta, e é insuprível; a incapacidade negocial de exercício, ligada a negócios gerais (não estritamente pessoais) é passível de suprimento, não por representante voluntário, mas por representante legal ou assistente; a interdição constitui uma modalidade de incapacidade negocial de exercício. II – As medidas de suporte básico de vida, hidratação e alimentação, são subtraídas à vontade do doente, desde que não hajam sido objecto de directiva antecipada de vontade – artº 2º nº2 Lei nº 25/2012 de 16/7. III – Se a pedida interdição provisória tem a ver com o facto de a Requerida poder entrar, a qualquer momento, em estado comatoso e terminal, sendo seu desejo, anterior ao actual estado de anomalia psíquica, o de não lhe ser prestado auxílio para o prolongamento da vida com alimentação artificial, tal expressão de vontade constituía um acto de natureza estritamente pessoal, nos termos do artº 2º nº2 Lei nº25/2012 de 16/7 (Regime das Directivas Antecipadas de Vontade), para o qual era inadmissível o suprimento pela decisão do representante legal (tutor provisório), sem prejuízo da ponderação, em casos factuais precisos, de um fenómeno de surrectio, isto é, de constituição de um novo direito subjectivo, por aplicação do disposto no artº 334º CCiv. IV - Também a procuração de cuidados de saúde é um acto pessoal, no sentido de que deve ser previsto pelo outorgante, para “quando se encontre incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente” – artº 11º nº1 RDAV.
Texto Integral
• Rec. 1470/16.0TBPVZ-A.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão recorrida de 2/12/2016.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de interdição por anomalia psíquica nº1470/16.0T8PVZ-A, da Comarca do Porto, Instância Central (Póvoa de Varzim). Autor/Apelante – Digno Magistrado do Ministério Público. Requerida – B….
Tese do Autor
A Requerida nasceu em 26/3/47, sendo casada e encontrando-se internada em Lar.
Em consequência de problema do foro oncológico, neste momento, não fala nem estabelece raciocínios, não conhece horas, dias, nem assina o seu nome, necessitando de alguém que a represente.
A Requerida não fez testamento vital mas foi transmitindo verbalmente que, numa eventual situação de incapacidade futura, não queria qualquer actuação invasiva, nem auxílio para prolongamento da vida.
Pede assim seja decretada a interdição por anomalia psíquica da Requerida, a título provisório e com carácter urgente, nomeando-se-lhe tutor provisório, ao abrigo do disposto no artº 142º CCiv.
Produzida prova, foi, por sentença de que se recorre, indeferido o pedido de decretamento da interdição provisória.
Conclusões do Recurso de Apelação:
1_ O Ministério Público intentou Ação Especial de Interdição por Anomalia Psíquica de B… pedindo que fosse decretada a interdição da Requerida a título provisório, com carácter urgente ao abrigo do disposto no art. 142º do C. Civil, tendo indicado para tutor o cônjuge da Requerida.
2_ A fundamentar a urgência está o problema do foro oncológico irreversível e terminal que impossibilita a Requerida de transmitir a sua vontade de forma coerente, não ter feito testamento vital nem ter nomeado um procurador para a saúde, poder entrar em estado comatoso a qualquer momento ficando a sua sobrevivência dependente do recurso a meios paliativos invasivos e não ser possível recolher o consentimento esclarecido (para intervir ou não).
3_ Sucede que, a própria Requerida transmitiu verbalmente aos familiares próximos (marido e filhas) que, numa eventual situação de incapacidade futura, não queria qualquer atuação invasiva, nomeadamente alimentar e medicamentosa para lhe prolongar artificialmente a vida.
4_ E manifestou essa vontade, quando estava em França emigrada, quando a doença se manifestou e quando se agudizou mas ainda estava lúcida como resulta do doc 7 junto com a PI e das declarações dos inquiridos, nomeadamente do marido.
5_ Na douta sentença foram elencados os factos indiciariamente provados mas nada se disse (provado ou não provado) quanto à falta de testamento vital e à não nomeação de um procurador para a saúde apesar de tais factos terem sido alegados, podendo tais vícios ser oficiosamente conhecidos pela Relação _ cfr. arts. 615º, al. b), c) e d), 662º, nº2 e 665º ambos do CPC.
6_ Por outro lado, o tribunal, salvo o devido respeito, laborou em erro ao não atentar em todos os fundamentos invocados para a interdição provisória e urgente da Requerida tendo-se focado apenas na necessidade de suprir a vontade da Requerida no que à rejeição de meios de suporta artificial de vida diz respeito e,
7_ concluiu que, não tendo a Requerida outorgado oportunamente um testamento vital e estando agora numa situação de impossibilidade de recusar ser submetida aos meios de suporte artificial das funções vitais jamais essa vontade pode ser atendida.
8_ Ninguém pode negar que “O bem jurídico vida humana é em regra indisponível para terceiros, impondo-se, como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira, “ contra todos, perante o Estado e perante os outros indivíduos”_ CRP Anotada, 3ª ed., pág.174.
9_ Contudo, numa sociedade plural e democrática o direito à autodeterminação individual é especialmente protegido, pelo que as diretivas antecipadas de vontade são hoje prática corrente em muitos países ocidentais.
10_ As diretivas antecipadas são “instruções que uma pessoa dá antecipadamente, relativas aos tratamentos que deseja ou (mais frequentemente) que recusa receber no fim da vida, para o caso de se tornar incapaz de exprimir as suas vontades ou de tomar decisões por e para si própria”_ cfr. KENIS, Yvon, 2003, in Nova Enciclopédia da Bioética.
11_ A forma que essas diretivas podem revestir são, em regra, o testamento vital e nomeação de procurador de cuidados de saúde, devendo, na sua falta e conhecendo-se a vontade real de um paciente incapaz e adulto, ser encetado um processo com vista à nomeação de um tutor provisório _ cfr. neste sentido André Gonçalo Dias Pereira, “O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente” Estudo de Direito Civil, Coimbra Editora.
12_ Aludindo ao consentimento e ao dissentimento, o mesmo autor escreve: “se é verdade que ambos são revogáveis a qualquer momento, não parece que devamos entender que o estado de inconsciência cria uma presunção no sentido da revogação da opinião anteriormente expressa” _ cfr. obra citada, pág. 246 e 251-252.
13_ O reconhecimento do direito à autodeterminação em cuidados de saúde constitui uma das mais importantes dimensões de proteção da integridade pessoal e da liberdade do indivíduo, na medida em que, através do seu exercício este consente ou recusa a prestação de cuidados de saúde.
14_ Exemplos de recusa de tratamento relativamente frequentes são a recusa de terapêuticas consideradas evasivas, a recusa de alimentação, a recusa de uma transfusão sanguínea…
15_O direito à recusa informada, livre e esclarecida de tratamentos faz parte dos direitos dos cidadãos portugueses e a todo o direito corresponde um meio jurídico e processual de o tornar efetivo.
16_ Isso mesmo resulta do art. 9º da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina, da al. h) do art. 7º do DLnº101/2006, de 06 de Junho criador da Rede de Cuidados Continuados Integrados, dos arts. 45º e 46º do Código Deontológico dos Médicos, do art. 38º, nº3 do C. Penal.
17_ No Código Civil Português, a Subsecção III, dedicada às interdições, estabelece uma ordem segundo a qual se buscará a tutela do interditando (cfr. art. 143.º) começando por dar um lugar privilegiado ao cônjuge efetivo.
18_ Tratando-se de incapacidade de um adulto sem representação legal e sem ter formalizado “diretiva antecipada”, sobretudo tratando-se de uma incapacidade total e irreversível, o consentimento ou dissentimento em relação a uma intervenção médica deve buscar-se na pessoa do tutor provisório que conhece a pessoa incapaz e a sua decisão caso tivesse voz própria.
19_ “O direito do doente “competente” a recusar tratamento deve ir a par com a proteção do doente “incompetente”, em relação a tratamentos que teriam sido recusados, se isso fosse possível_ cfr. Relatório sobre o Estado Vegetativo Persistente do Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida, de Fevereiro de 2005. Posto isto,
20_ a aliás douta sentença sob recurso sofre dos vícios de deficiência e contradição da matéria de facto, vícios esses de apreciação oficiosa da Relação _ cfr. arts. 615º, 662º, nº2 e 665º ambos do CPC.
21_ Por outro lado, ao indeferir o pedido de decretamento da interdição provisória da Requerida e a consequente nomeação de um tutor provisório, a mesma sentença violou a Lei, designadamente os artigos 142º e 143º do C. Civil e 900º do CPC, art. 9º da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina, al. h) do art. 7º do DL nº101/2006, de 06 de Junho, arts. 45º e 46º do Código Deontológico dos Médicos, art.38º, nº3 do C. Penal, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que, deferindo ao requerido, julgue a ação procedente e decrete a interdição provisória da Requerida com todas as consequências legais.
Factos Provados
1) B… nasceu no dia 26 de Março de 1947.
2) É casada com C…. Resultam indiciariamente provados os seguintes factos:
3) A requerida sofre de neoplasia maligna cerebral (glioblastoma), que lhe foi detectado em Maio de 2016.
4) O glioblastoma é inoperável e incurável.
5) Por causa da doença de que padece, a requerida vem sofrendo um progressivo grau de dependência física e mental.
6) Neste momento não fala, não conhece as horas, os dias, os meses ou os anos, não lê ou escreve, nem está capaz de assinar, não conhece o dinheiro.
7) Encontra-se internada num Lar da Santa Casa da Misericórdia.
8) Depende de terceira pessoa para tomar as suas refeições, vestir-se e fazer a sua higiene.
9) Desloca-se em cadeira de rodas.
10) A requerida foi emigrante, em França, tendo regressado há cerca de oito anos.
11) Pelo menos quando ainda vivia em França, dizia que não queria ser submetida a tratamentos para prolongamento da vida, designadamente ser entubada e alimentada artificialmente.
Os Factos e o Direito
Em função da esquematização das conclusões do Recorrente, os tópicos a abordar na solução do recurso são os seguintes:
- saber se a decisão, em matéria de facto, padece das nulidades referenciadas nas als. b), c) e d) do artº 615º CPCiv, bem como do vício da contraditoriedade;
- conhecer do bem fundado da decisão que denegou a requerida interdição provisória.
Vejamos então.
I
O primeiro ponto invocado nas doutas alegações e acima sumariado é de afastar liminarmente.
Como é sabido, em processo civil, a nulidade do artº 615º nº1 al.b) decorre da ausência completa de fundamentos de facto, que não da omissão do conhecimento de factos considerados relevantes, posto que alegados ou ainda que resultantes da discussão da causa – a fundamentação deficiente não é causa de nulidade, mas pode ser impugnada em recurso (por todos, Prof.Teixeira de Sousa, Estudos, pg.222).
Por outro lado, para que se verifique uma oposição entre os fundamentos e a decisão (artº 668º nº1 al.c) CPCiv), é necessário que a fundamentação aponte num sentido e a decisão siga caminho oposto – Prof.Antunes Varela e Drs. José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual, 1ªed., §222. Trata-se portanto de contradição entre a decisão e os fundamentos, algo que, manifestamente, não ocorre, designadamente levando em conta a substancial integração juscivilística levada a cabo na douta sentença recorrida.
Por fim, na exegese do disposto no artº 668º nº1 al.d) CPCiv (omissão de pronúncia), sustenta-se que o tribunal não tem de se pronunciar, a fim de se considerar a existência de omissão de pronúncia, sobre todas as considerações, razões ou argumentos, rectius provas, apresentados pelas partes, isto desde que tenha apreciado os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa, como aconteceu, no caso dos autos (Prof.Teixeira de Sousa, op. cit., pg. 220).
A douta sentença não fez elencar, nos factos provados, a ausência de testamento vital, ou a ausência de nomeação de um procurador para a saúde, mas levou esses referidos factos negativos em boa conta na fundamentação de direito, tendo-os discutido abertamente, quanto à respectiva relevância para a solução jurídica da causa, pelo que nenhum prejuízo existiu para o Requerente/Autor, muito menos qualquer contraditoriedade ou obscuridade de fundamentação.
II
A capacidade jurídica, também doutrinariamente chamada capacidade de gozo de direitos, encontra-se definida no artº 67º CCiv, traduzindo-se na susceptibilidade de uma pessoa ser sujeito de quaisquer relações jurídicas rectius titular de direitos e obrigações.
Conforme o Prof. Heinrich E. Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, pgs. 315ss. (igualmente, Ac.R.C. 11/7/00Col.IV/6, relatado pelo Des. Helder Almeida), a capacidade de gozo é complementada pela capacidade negocial, a idoneidade que as pessoas em concreto possuem para entender e querer os negócios que realizam, sob pena de, na inexistência de tal idoneidade, poderem causar perigo aos seus verdadeiros interesses.
A denominada capacidade negocial ou capacidade jurídica complementa assim a capacidade de gozo (é o seu “elemento dinâmico”) – traduz-se na possibilidade de agir voluntária e esclarecidamente no tráfico jurídico negocial, adquirindo pois o gozo de direitos.
Só que a doutrina formula uma distinção dentro da capacidade negocial:
- se os direitos a adquirir forem de natureza estritamente pessoal, então são insusceptíveis de ser assumidos por outrem no lugar do titular – tais direitos formam o núcleo da capacidade/incapacidade negocial de gozo;
- não estando em causa esses direitos de natureza estritamente pessoal, a idoneidade/inidoneidade para participar no tráfico jurídico denomina-se capacidade/incapacidade negocial de exercício.
A incapacidade negocial de gozo conduz à proibição absoluta de celebração de negócios de cariz pessoal, os quais ficam afectados de nulidade absoluta, e é insuprível.
O Prof. Heinrich Horster, op. cit., pg. 316, dá três exemplos de incapacidade negocial de gozo, extraídos da lei civil: a resultante dos impedimentos dirimentes absolutos que obstam ao casamento da pessoa a que respeitam com qualquer outra – artº 1601º CCiv; a incapacidade para perfilhar – artº 1850º nº1 CCiv; a incapacidade de testar – artº 2189º CCiv.
Já quanto à incapacidade negocial de exercício, ligada a negócios gerais (não estritamente pessoais) ela é passível de suprimento, não por representante voluntário, mas por representante legal ou assistente (ou pelo próprio incapaz, com o consentimento ou concordância de outra pessoa).
Não sendo a incapacidade de exercício uma incapacidade absoluta, pois passível de suprimento, os negócios praticados sem o suprimento do representante legal ou assistente conduzem à respectiva anulabilidade.
As modalidades de incapacidade negocial de exercício previstas na nossa lei são três, a saber: menoridade, interdição e inabilitação.
Em consequência, um ponto importante a discernir na matéria dos autos é a questão de sabermos se a incapacidade para os actos em causa na acção é uma incapacidade absoluta (por se tratarem de actos de natureza estritamente pessoal), se uma simples capacidade de exercício.
III
Nos termos do artº 142º nº1 CCiv, pode, em qualquer altura do processo de interdição, ser nomeado um tutor provisório que celebre, em nome do interditando, com autorização do tribunal, actos cujo adiamento possa causar-lhe prejuízo; já nos termos do nº2 de idêntico normativo legal, é permitido o decretar da interdição provisória, havendo necessidade urgente de providenciar quanto à pessoa e bens do interditando – isto é, enquanto a primeira providência se restringe a actos determinados, autorizados pelo tribunal, já a segunda providência é mais lata, cabendo ao tutor provisório todas as competências de um tutor normal (definitivo), sem especificação ou restrição de actos a praticar.
Nos presentes autos, visa o Autor a providência do citado nº2.
A alegação do Autor não dispensaria a prova sumária de dois dos requisitos das providências cautelares: o da situação jurídica que se pretende acautelar provisoriamente (fumus boni juris); os fundamentos da necessidade de composição provisória (periculum in mora).
O que vem alegado no processo tem a ver com o facto de a Requerida poder entrar, a qualquer momento, em estado comatoso, sendo seu desejo, anterior ao actual estado de anomalia psíquica, o de não lhe ser prestado auxílio para o prolongamento da vida, nomeadamente com a colocação de sonda gástrica para alimentação em estado comatoso.
Quer a gravidade da doença, com as respectivas consequências, designadamente a possibilidade de entrada em estado comatoso, quer a opinião anterior da Requerida acerca de “não querer ser submetida a tratamentos para prolongamento da vida” (v.g., ser entubada e alimentada artificialmente), em circunstâncias irreversíveis, resultaram demonstrados no processo.
Resta saber se nos encontramos perante actos passíveis de suprimento por terceiro representante legal (tutor provisório) – actos de natureza estritamente pessoal, ou não, sendo que estes últimos (de natureza não estritamente pessoal) são os actos passíveis de suprimento.
À luz do nosso quadro constitucional, os tratamentos médicos devem ser entendidos de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artº 1º CRP, e, nesse sentido, encontram-se subordinados à noção de voluntariedade dos tratamentos, antecipada pelo consentimento informado, ou seja, pela necessária explicação prévia (e aceitação) das consequências da intervenção ou intervenções alternativas propostas.
O princípio encontra tradução nos artºs 6º e 9º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção de Oviedo, in Diário da República, I-A s., de 3/1/2001) ou no artº 3º nº2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, hoje integrando os tratados europeus e com a mesma força vinculante destes.
Está em causa a afirmação da identidade pessoal como ontologicamente não redutível a um puro meio ou coisa ao serviço da técnica biomédica, afirmando a unicidade e a singularidade (irrepetibilidade) da pessoa, independentemente ou transcendendo as noções de vida ou de morte, como um ser humano dotado de experiência, história e projecto (cf., entre o mais, Prof. Federico Pizzetti, In Margine ai Profile Constituzionali degli Sviluppi del caso Englaro: Limiti della Legge e “progetto di vita”, Roma, 2009, disponível na internet) – algo que se aceita na decorrência do legado cultural europeu, seja da filosofia grega, do direito romano, da religião cristã ou do racionalismo iluminista.
Esse respeito e tutela cumprem ainda maior atenção em situações de extrema dependência ou fragilidade.
Também o Código Deontológico da Ordem dos Médicos Portuguesa (Regulamento nº707/2016, da O.M., de 21/7/2016, no cumprimento do Estatuto da Ordem dos Médicos, D-L nº282/77 de 5/7, com as sucessivas alterações legislativas a que foi submetido) referencia o dever de esclarecimento prévio do doente (artº 19º CDOM – acompanhado do direito do doente ao esclarecimento), que pode dirigir-se a doentes incapazes de dar consentimento, caso em que, inexistindo directiva escrita do doente, exprimindo a sua vontade, o consentimento deve ser solicitado ao representante legal, se possível (artº 21º nº 1), sendo que os representantes legais ou os familiares podem ajudar a esclarecer o que os doentes quereriam eles próprios, caso pudessem manifestar a sua vontade.
Ou seja: existe um inequívoco papel do representante legal ou dos familiares no sentido, ao menos, da consulta por parte do médico, procurando tomar em consideração “a opinião que o doente teria se se pudesse exprimir, respeitando o seu sistema de valores, as suas convicções e a sua biografia” (cf. Prof. André Dias Pereira, Valor do Consentimento num Estado Terminal, in Estudos do Direito da Bioética, IV, pg. 53).
Aliás, em consonância com a validade do consentimento do lesado em base da sua vontade presumível ou hipotética – artº 340º nº3 CCiv.
Todavia, “o médico não fica vinculado pela posição que a família adopte, mesmo que esta seja unânime (…); se a posição familiar for no sentido da limitação ou da interrupção de tratamentos, o médico estará ainda atento à possibilidade de essa posição não ser ditada pelo bem do doente, mas por interesses sucessórios, ou pelo desejo de se livrar daquele fardo ou por não saber o que fazer com o doente se for colocado aos seus cuidados” (Prof. Oliveira Ascensão, A Terminalidade da Vida, in Estudos do Direito da Bioética, IV, pg. 159).
IV
O que deixámos escrito, porém, não pode apagar duas realidades instantes no processo:
- a primeira, de que o que aqui está em causa é a não prestação de cuidados de prolongamento de vida alimentares e medicamentosos – ora, em princípio, a hidratação e a alimentação (terapias de sustento vital), em estados próximos da morte, são, em termos supletivos, no nosso ordenamento jurídico, subtraídas à vontade do doente, nos termos do artº 67º nº5 CDOM, por não serem de considerar meios extraordinários de manutenção de vida (que, só estes, devem ser interrompidos em casos irrecuperáveis, de desfecho fatal e próximo – artº 67º nº3 CDOM); não está aqui em causa, neste tipo de cuidados, o impedir que a natureza faça o seu caminho, e que a morte se siga brevemente, mas antes o permitir que a vida se mantenha apenas em condições de razoabilidade e proporção, quando próxima da morte;
- a segunda, de que a vontade de não ser submetido a medidas relativas ao retardamento do processo natural de morte (irreversível), como as medicamentosas e de alimentação, são próprias do chamado testamento vital – artº 2º Lei nº25/2012 de 16/7 (Regime das Directivas Antecipadas de Vontade), em cujas condições ou pressupostos se encontra o facto de o autor do documento não dever encontrar-se interdito por anomalia psíquica (artº 2º nº1), para além de que, entre as directivas antecipadas de vontade previstas se encontra a de não ser submetido a medidas de alimentação ou hidratação artificiais, que retardem o processo natural de morte.
Tudo sem prejuízo de o testamento vital dever assumir a forma escrita (artºs 2º e 3º Lei nº25/2012), formalidade “ad substantiam” que ocasiona a nulidade de qualquer disposição avulsa que não obedeça ao requisito de forma.
A forma escrita favorece a ponderação, e pretende obviar a ligeireza dos pedidos ou a sugestão emotiva de um momento (Prof.Federico Pizzetti, op. cit., pg.12 – também nestes aspectos se joga a promoção da pessoa, na sua dignidade - identidade).
O mesmo citado diploma prevê e regula a procuração de cuidados de saúde – esta procuração, que engloba a decisão do procurador sobre cuidados a “não receber” pelo outorgante, é um acto pessoal, no sentido de que deve ser previsto pelo outorgante, para “quando se encontre incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente” – artº 11º nº1 RDAV.
Isso e para além de igualmente se encontrar sujeita à forma escrita – artºs 3º nº1 e 12º nº1 RDAV (cf. Drª Paula Távora Victor, Dtº da Saúde, III, Estudos em Homenagem ao Prof. Guilherme de Oliveira, pg. 351).
É certo que existem presumivelmente inúmeros casos necessitados de uma solução prática, pois não passaram pelas disposições de vontade assim expressas (são escassos os testamentos vitais já celebrados).
Mas à face da lei existente, a única possibilidade de ultrapassar o Código Deontológico, isto é, os procedimentos médicos auto-regulados, na disposição citada (artº 67º nº5), em matéria dos cuidados terminais com alimentação e hidratação, por via artificial, está na existência prévia do testamento vital ou da procuração de cuidados de saúde.
Olvidar essa necessidade seria ignorar a relevância dos diplomas legais que visaram regular a vontade do doente, em face dos procedimentos médicos habituais, e a ponderação de interesses que o legislador levou a cabo, sobretudo quando aplicados ao caso concreto dos autos.
O Regime das Directivas Antecipadas de Vontade, de 2012, é publicado num tempo em que existia já alguma prática e reflexão, quer em outros ordenamentos jurídicos da União Europeia, quer internacionais, sobre a matéria, tendo-se optado pela formulação da vontade através do documento “testamento vital” e/ou da nomeação do procurador de cuidados de saúde.
Note-se igualmente que, à data da publicação da Lei nº25/2012 (RDAV), era já conhecido o conteúdo do Código Deontológico dos Médicos de 2009, idêntico ao conteúdo do Código actual, para as situações de morte ou fim de vida.
Se é certo que o Código Deontológico constitui um procedimento exclusivo de auto-regulação da classe médica, não deixa de integrar o ordenamento jurídico, de possuir valor para o exercício da actividade médica, e também de conferir sentido às demais normas legais, sobretudo as que lhe sucederam no tempo.
É claro que o artº 145º CCiv comete ao tutor o dever de cuidar especialmente da saúde do interdito, mas a norma, ao tempo em que foi elaborada e publicada, quis apenas salientar que o instituto da interdição visava, sobre o mais, intuito assistencial da pessoa do visado, sem curar da respectiva sucessão (assim, Prof. Menezes Cordeiro, Tratado – Parte Geral, III, 2004, pg. 423), longe portanto de alcançar ou de visar o que ficou regulado no diploma de 2012.
Interpretada desta forma, não existe na lei qualquer violação às já aludidas convenções internacionais e normas cogentes da União Europeia.
Do que se expôs segue-se que a existência ou validade da situação jurídica que se pretende acautelar (fumus boni juris) não se encontra demonstrada.
A discussão sobre se o tutor poderá assumir o papel de cuidador, também quanto aos cuidados de saúde a não receber, nos exactos termos das Directivas Antecipadas de Vontade – suprindo assim, também neste campo, uma vontade pessoal e autónoma (tal e qual como a pessoa no pleno exercício das suas faculdades mentais pode não consentir ou recusar o tratamento médico), como almejado pelas doutas alegações de recurso, apenas poderá ocorrer, desta forma, num quadro de jure condendo.
No estado actual da lei, há apenas que confirmar o bem fundado da douta sentença recorrida.
Sublinhe-se que, noutro quadro factual, sobretudo pelo decurso do tempo, ou pela consolidação do estado de inconsciência (coma), poderia hipotizar-se a constituição de um novo direito subjectivo, num fenómeno de surrectio – cf. artº 334º CCiv e Prof. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II, pg. 821.
Não pensamos, porém, que o material fáctico alegado e apurado nos permita desenvolver algum tipo de integração juscivil, nesse campo.
Apenas para finalizar, correndo o risco de obiter dictum (pois se não trata de matéria constante da alegação do Requerente ou da impugnação recursória), pensamos de alguma utilidade recordar o disposto na Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei nº 52/2012 de 5/9) – aplicável a doentes em situação de sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, visando a prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual (Base II.a) da citada Lei).
O diploma em causa prevê o direito das famílias e dos representantes legais dos doentes a participar nas decisões a tomar sobre os referidos cuidados (Base VI).
Pelo menos enquanto as intervenções médicas se adeqúem ao conceito de “cuidado paliativo”, poderá o marido da Requerida, bem como suas filhas, serem ouvidas e emitir opinião relevante para a prestação dos referidos cuidados.
Resumindo a fundamentação:
I - A incapacidade negocial de gozo conduz à proibição absoluta de celebração de negócios de cariz pessoal, os quais ficam afectados de nulidade absoluta, e é insuprível; a incapacidade negocial de exercício, ligada a negócios gerais (não estritamente pessoais) é passível de suprimento, não por representante voluntário, mas por representante legal ou assistente; a interdição constitui uma modalidade de incapacidade negocial de exercício. II – As medidas de suporte básico de vida, hidratação e alimentação, são subtraídas à vontade do doente, desde que não hajam sido objecto de directiva antecipada de vontade – artº 2º nº2 Lei nº 25/2012 de 16/7. III – Se a pedida interdição provisória tem a ver com o facto de a Requerida poder entrar, a qualquer momento, em estado comatoso e terminal, sendo seu desejo, anterior ao actual estado de anomalia psíquica, o de não lhe ser prestado auxílio para o prolongamento da vida com alimentação artificial, tal expressão de vontade constituía um acto de natureza estritamente pessoal, nos termos do artº 2º nº2 Lei nº25/2012 de 16/7 (Regime das Directivas Antecipadas de Vontade), para o qual era inadmissível o suprimento pela decisão do representante legal (tutor provisório), sem prejuízo da ponderação, em casos factuais precisos, de um fenómeno de surrectio, isto é, de constituição de um novo direito subjectivo, por aplicação do disposto no artº 334º CCiv. IV - Também a procuração de cuidados de saúde é um acto pessoal, no sentido de que deve ser previsto pelo outorgante, para “quando se encontre incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente” – artº 11º nº1 RDAV.
Dispositivo (artº 202º nº1 CRP):
Julga-se improcedente, por não provado, o recurso de apelação interposto e, em consequência, confirma-se a douta sentença recorrida.
Sem custas.
Porto, 14/III/2017
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença