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DEPÓSITO BANCÁRIO
TRANSFERÊNCIA
ILICITUDE
Sumário
1. No âmbito do depósito bancário, estabelece-se uma relação obrigacional complexa e duradoura, assente na estreita confiança pessoal entre as partes, que pode originar, mesmo no silêncio do contrato, a responsabilidade contratual da instituição financeira imprudente ou não diligente, que não cumpra, entre outros, os deveres de informação ou de protecção dos legítimos interesses do cliente. 2. Tendo a instituição financeira efectuado diversas transferências de dinheiro da conta da cliente, sem para o efeito dispor de instruções escritas por parte dos gerentes daquela, nem autorização que permitisse esses movimentos mediante indicação verbal, deve qualificar-se efectivação de tais movimentos como ilícita. (A.R)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :
1. E -, Lda, propôs, contra Banco …, SA, acção seguindo forma ordinária, distribuída à 10ª Vara Cível de Lisboa, pedindo a condenação daquele a fornecer-lhe extracto de todos os movimentos da sua conta à ordem no Banco R., bem como os documentos que os suportam, e a pagar-lhe o saldo, a apurar em execução de sentença, correspondente a movimentos alegadamente efectuados, sem instruções válidas, emanadas da A.
Contestou o R., sustentando a validade e eficácia, na relação entre as partes, dos movimentos em causa - concluindo pela improcedência da acção.
Efectuado julgamento, foi proferida sentença, na qual se considerou a acção procedente, condenando-se o R. a fornecer à A. os elementos requeridos e a pagar-lhe a quantia de € 36.412,25 (Esc 7.300.000$00), acrescida de juros, bem como do saldo, a apurar em execução, correspondente a outros movimentos efectuados sem instruções daquela.
Inconformado, veio o R. interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :
- Ficou demonstrado nos autos que foram dadas instruções não escritas ao R. para realizar as transferências para a sociedade D…, Lda, e à luz dos demais factos provados na acção, pode retirar-se a conclusão de que estas instruções não escritas partiram da recorrente e que esta as aceitou e se conformou com elas.
- Os débitos na conta da A. foram realizados entre Dezembro de 1993 e Janeiro de 1994 e, desde 1995, decorreram negociações com vista à regularização da dívida daquela, sem que a A. alguma vez reclamasse contra as transferências alegadamente indevidas.
- Porém, só em 1999, depois da propositura da acção executiva que o R. intentou contra a A., o seu sócio-gerente A.. e os anteriores sócios gerentes B e C…é que a A. veio propor uma acção judicial para exigir do R. a restituição do valor daquelas transferências.
- As transferências em apreço foram realizadas para a conta bancária de uma sociedade que, desde o início, teve relações societárias próximas com a A., pois tinha sócios gerentes comuns, sendo certo que no período de efectivação de tais transferências existia efectivamente uma sócia-gerente comum a ambas as sociedades.
- Assim, não é crível nem verosímil que pelo menos a sócia-gerente não conhecesse a realização das transferências em causa e que, na sua qualidade de sócia-gerente de ambas as sociedades, não tivesse aceite e reconhecido como válidas tais transferências, sendo manifesto, pois, que a A. sempre teve conhecimento das transferências efectuadas entre a sua conta e a conta da D…, Lda.
- À luz dos factos provados nos autos, tendo de se concluir que os débitos na conta bancária da A. foram válidos e eficazes na relação contratual entre esta e o R., uma vez que os gerentes daquela os aceitaram e reconheceram como tal nos anos que se seguiram às transferências.
- Assim, ao considerar-se que o R., realizando as aludidas transferências, violou culposamente a sua obrigação contratual enquanto depositário e, por conseguinte, deve indemnizar a A. no valor das quantias transferidas acrescidas de juros de mora, foi violado o disposto nos arts. 798º e 799º, nº2, ambos do C.Civil.
- O silêncio da A. e a sua abstenção de reclamação contra as transferências alegadamente indevidas criaram no R. a expectativa de que a relação respeitante ao contrato de depósito se encontrava definida em termos definitivos e estáveis, pelo que tem de se considerar abusivo o exercício do direito à restituição das quantias debitadas, nos termos do art. 334º do C.Civil, tendo em conta que a A. só moveu a acção judicial depois de decorridos mais de cinco anos desde as datas dos vários débitos e que durante este período ocorreram negociações entre a A. e o R. com vista à regularização da dívida daquela.
- Ao não julgar abusivo e ilegítimo o exercício do direito por parte da A., a sentença violou o art. 334º do C.Civil.
- Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o recorrente do pedido.
Em contra-alegações, pronunciou-se a apelada pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
- A A. é uma sociedade por quotas, cujo objecto é o comércio lucrativo de produtos alimentares frescos e congelados, constituída por escritura pública outorgada em 28/8/89 (al. A).
- Outorgaram a escritura de constituição os seus dois únicos sócios, B e A, ambos solteiros e maiores, que desde logo ficaram nomeados gerentes, estipulando-se a necessidade da assinatura de ambos para obrigar a sociedade (al. B).
- O R. é uma sociedade anónima, cujo objecto é o exercício da actividade bancária, designadamente mutuando capitais, recebendo depósitos, efectuando pagamentos de conta destes e de acordo com as instruções escritas que recebe do titular da mesma (al. C).
- No âmbito desta actividade, a A. abriu uma conta de depósitos à ordem na agência do R. em Lisboa, na Av. da ….Lisboa, a que foi atribuído o nº …. (al. D).
- Nas condições de movimentação de tal conta de depósitos à ordem, estipulou a A. que se obrigaria (à seme- lhança do contrato de sociedade) pela assinatura de dois gerentes, sendo que estavam nomeados ambos os sócios (al. E).
- A sociedade aumentou o capital para Esc. 5.000.000$00 e Esc. 15.000.000$00, por escrituras de 6/9/90 e 24/6/93, respectivamente, actos esses que se mostram devidamente inscritos na Conservatória do Registo Comercial de P… (al. F).
- Por escritura de 26/7/91, o sócio B cedeu a sua quota no valor nominal de Esc. 2.500.000$00 a C, facto que foi registado em 14/10/91 (al. G).
- E esta, por escritura de 2/11/94, cedeu a sua quota, entretanto com o valor nominal de Esc. 7.500.000$00 a G…, facto que foi registado em 9/12/94 (al. H).
- Foi registada a cessação das funções de gerente, por renúncia, de B em 14/10/91 (doc. de fis. 12 a 17) (aI. I).
- Registando-se na mesma data a designação da sócia C como gerente (aI. J).
- Foi registada a cessação de funções de gerente de C em 9/12/94, data em que foi registada a designação como gerente de G (aI. K).
- O R. transferiu, em 6/12/93, a favor da D, Lda, a quantia de Esc. 1.000.000$00, debitando-a na conta de depósitos à ordem da A., n° …. (aI. L).
- O R. transferiu, em 16/12/93, a favor da D…, Lda, a quantia de Esc. 500.000$00, debitando-a na conta de depósitos à ordem da A. n° …. (aI. M).
- O R. transferiu, em 23/12/93, a favor de D…, Lda, a quantia de Esc. 200.000$00, debitando-a na conta de depósitos à ordem da A. n° …. (aI. N).
- O R. transferiu, em 31/12/93, para crédito da D…, Lda, a quantia de Esc. 500.000$00, debitando-a na conta de depósitos à ordem da A. n° ….. (aI. O).
- O R. transferiu, em 4/1/94, para crédito da D…, Lda, a quantia de Esc. 100.000$00, debitando-a na conta de depósitos à ordem da A. n° …. (aI. P).
- O R. transferiu, em 5/1/94, para crédito da D, Lda, a quantia de Esc. 5.000.000$00, debitando-a na conta de depósitos à ordem da A. n° …. (aI. Q).
- Em 11/3/99, a A. dirigiu-se ao R. pedindo cópia das ordens de transferência acima mencionadas (aI. R).
- E na mesma data pediu também cópias de todos os movimentos bancários (al. S).
- O R. não recusou expressamente este último pedido (aI. T).
- A D…, Lda, é uma sociedade por quotas (aI. U).
- O R. tem o dever de fornecer à A. toda a informação, por via documental, que esta lhe solicite, dentro das contas de depósito à ordem de que seja titular (aI. V).
- O R. terá procedido a transferência ou pagamentos da conta de depósitos da A. em valor não inferior a Esc. 7.700.000$00 (aI. W).
- A renúncia à gerência do ex-sócio da A., B, ocorreu em 26/7/91 (doc. de fls. 32 a 35) (al. Y, da matéria assente).
- C vive maritalmente com B (quesito 1º).
- O R. efectuou operações sem instrução escrita transmitida pela A. (quesito 3º).
- O R. efectuou a transferência de diversas quantias referidas nas al. L) a Q) da matéria assente, sem para tal dispor de nenhuma instrução assinada por ambos os gerentes da A. (quesito 4º).
- B foi sócio gerente da sociedade D.., Lda, desde 8/11/89 até 14/10/91 (quesito 5º).
- O R. tinha uma ideia genérica de que as sociedades E e D teriam sócios comuns (quesito 6º).
- O R. não efectua apenas pagamentos por conta dos depósitos recebidos de acordo com instruções escritas dos titulares das contas (quesito 10º).
- O R., no exercício da sua actividade bancária também pode efectuar, e efectua, pagamentos, transferências ou outros tipos de débitos nas contas dos seus depositantes, mediante simples instruções verbais destes, designada- mente por via telefónica (quesito 11º).
- A A. celebrou com o R. um acordo relativamente a um empréstimo de conta corrente (cuja cópia se encontra junta a fls. 71 a 73), prevendo-se quanto ao modo de funcionamento, na cláusula 4ª, o seguinte: "Livremente movimentada a crédito. A débito é-o unica e exclusivamente por transferência a ordenar por V. Exas. para crédito da vossa conta de D.O. n° ….. Essas transferências poderão ser efectuadas por carta, telex, telecópia ou telefonicamente por intermédio do seu Gerente de Conta, neste caso desde que confirmadas por escrito nas 48 horas posteriores" (quesito 13º).
- Foram dadas instruções não escritas ao R. para realizar as transferências para a sociedade D…, Lda (quesito 14º).
- A cessação de gerência de C e a sua substituição na gerência pela sócia G ocorreram em 9/12/94 (quesito 18º).
- O R. moveu uma execução contra a A. e A, B e C, para pagamento do valor de uma livrança subscrita pela A. e avalizada pelos demais, no valor de Esc. 8.587.404$00 e vencida em 14/1/99, a qual corre termos pela 8ª Vara Cível de Lisboa, 1ª Secção, sob o n° … (quesito 20º).
- O aviso do preenchimento desta livrança e da sua data de vencimento, com a advertência de que a falta de pagamento implicaria a imediata cobrança contenciosa da dívida foi feita pelo R. à A. através de carta datada de 4/1/99 (de que se junta cópia a fis. 75) (quesito 21º).
- No mesmo período em que foram feitas as transferências da conta da A. para a conta da D.., Lda, ambas do Banco R., verificaram-se também transferências em sentido inverso, ou seja, da D…, Lda, para a A. (quesito 22º).
- As transferências da conta da A. para a conta da D…, Lda, foram ordenadas verbalmente (quesito 26°).
- O B cedeu a sua quota na D, Lda, em 1991, à C (quesito 30º).
- No documento que titula o empréstimo de conta corrente (cuja cópia se encontra junta a fis. 71 a 73), datado de 9/8/93, o B assinou como avalista (quesito 31º).
- E avalizou uma livrança em branco subscrita pela A. para caução do empréstimo (quesito 32º).
- Desde 1995, a A. e o R. têm mantido negociações com vista à reformulação do plano de pagamento da sua dívida (quesitos 40° a 43º).
- No que diz respeito à conta bancária referida na al. D) da matéria assente não havia qualquer autorização expressa e escrita, por parte dos responsáveis da A., que permitisse efectuar transferências, mediante instruções telefónicas, para a Dracar, Lda (quesito 44º).
- Não foram dadas instruções ao R. para efectuar transferências da conta da A. para a D, Lda, nem verbalmente nem por escrito, pelo gerente A (quesito 45º).
- O sócio A e a sua esposa G, actuais sócios e gerentes da A., nunca fizeram parte da D.., Lda, quer como sócios, quer como gerentes (quesito 49º).
3. Nos termos dos arts. 684º, nº3, e 690º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente.
A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da responsabilidade do R., ora apelante, decorrente dos movimentos efectuados na conta da A. apelada, no âmbito do contrato de depósito celebrado entre ambos.
"O depósito bancário constitui um depósito irregular, a que se aplicam as regras do mútuo na medida do possível, estando sujeito às regras do depósito mercantil (arts. 403º a 407º do Código Comercial) e mais disposições aplicáveis, subsidiariamente os estatutos e usos mercantis bancários".
"Entre a instituição financeira e o cliente depositante estabelece-se uma relação de clientela, uma relação obrigacional complexa e duradoura, assente na estreita confiança pessoal entre as partes (uberrima fides), que pode originar, mesmo no silêncio do contrato, a responsabilidade contratual da instituição financeira imprudente ou não diligente, se não cumprir, entre outros, em consonância com os ditames da boa fé (art. 762º, nº2, do CC), os deveres de informação ou de protecção dos legítimos interesses do cliente" (Calvão da Silva, Direito Bancário, pág. 334 e segs.).
No caso, resulta da factualidade assente que o apelante efectuou diversas transferências de dinheiro da conta da apelada sem, para o efeito, dispor de instruções escritas da parte dos gerentes daquela - inexistindo, relativamente a tal conta, autorização no sentido de permitir esses movimentos, mediante simples instruções de carácter verbal.
Tanto basta, pois, para que, face à ausência do necessário suporte contratual, se tenha de, desde logo, qualificar como ilícita a efectivação de tais movimentos.
Ao invés do que se pretende - e sendo manifesta a irrelevância, para o presente litígio, do demais contencioso com ela existente - não se demonstrou haja a apelada, reconhecendo a sua validade, por alguma forma, ratificado os movimentos em causa.
Uma vez assente a ocorrência de actuação, da sua parte, lesiva dos interesses do depositante, impor-se-à, assim, como decidido, concluir pela imputação, ao apelante, da responsabilidade daí emergente - improcedendo, em consequência, as alegações respectivas.
4. Pelo acima exposto, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.