COMPETÊNCIA TERRITORIAL
ACÇÃO DECLARATIVA
SOCIEDADE
PESSOA SINGULAR
DOMICÍLIO
RÉU
PACTO ATRIBUTIVO DE COMPETÊNCIA
Sumário

I – Numa acção para cumprimento de obrigações, indemnização e resolução de contrato, prevista no n.º 1 do art.º 74.º do CPC, proposta simultaneamente contra uma sociedade e uma pessoa singular, o tribunal competente é o do domicílio do réu.
II – Neste caso, não vale a possibilidade concedida ao credor, pelo n.º 2 do mesmo artigo, de optar pelo tribunal do lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, pois a lei visa proteger o interesse do réu pessoa física, em regra consumidor e parte contratual mais débil.
III – Este regime da competência territorial, introduzido pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não pode ser preterido ou afastado mediante um pacto de aforamento, mesmo que este tenha sido estabelecido pelas partes antes da vigência desta alteração legislativa.
IV – O direito de as partes poderem escolher, por acordo, o foro territorial que irá dirimir futuros conflitos emergentes do contrato não está constitucionalmente garantido, pois, não é direito, liberdade e garantia, no sentido do art.º 18.º da CRP.
JAP

Texto Integral

Acordam os juízes na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
C PETRÓLEOS, S.A., recorre da decisão que julgou o tribunal territorialmente incompetente, na acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que move a:
- Q, tendo, por falecimento deste, sido habilitadas M e E, F CARBURANTES, LDA.
A sociedade Recorrente conclui assim as suas alegações:
1 — O art.º 74° do CPC estabelece no seu nº 1 que "A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicilio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigarão deveria ser cumprida quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana" (sublinhado nosso).
2 — A autora, ora recorrente, ao optar por intentar a acção no Foro Cível de Lisboa, está abrangida pela excepção à regra do domicílio do réu, atendendo a que a principal demandada é, efectivamente, pessoa colectiva, estando ainda em causa obrigações pecuniárias de natureza mercantil, pelo que, o lugar onde deveriam ser cumpridas, na falta de estipulação, seria sempre o da sede da exequente, ou seja, Lisboa (cfr. Art.774.° do CPC).
3- A Lei não exige, em concreto, o referido n.º 1 do art.º 74.° do CPC e para fazer uso de tal excepção, que todos os executados sejam pessoas colectivas.
4- Neste caso, verificando-se o requisito da existência de uma sociedade comercial pode, nos termos do citado Art. 74°, nº 1 do CPC, ser feita opção pelo autor de instaurar a acção no tribunal do lugar onde a obrigação deva ser cumprida, já que aqui, relativamente à Ré sociedade comercial, está justificada a excepção do valor constitucional de protecção do consumidor. E, por conexão, todos os restantes co-réus acompanharão a acção a seguir no tribunal do lugar onde a obrigação deve ser cumprida (conforme se depreende do espírito e letra da Proposta de Lei que esteve na base da redacção da Lei 14/2006, de 26 de Abril, cuja motivação deverá ser tomada em linha de conta).
5 – Sendo, consequentemente, territorialmente competente para prosseguir e julgar a presente acção o Tribunal de Lisboa, em concreto, as Varas Cíveis de Lisboa
6- A douta decisão recorrida violou, assim, entre outros, o disposto no Art. 74°, n° 1, 2a parte, do CPC e no Art. 774°, nº 1 do CC, devendo, pois, ser revogada.
Nestes termos deverá a decisão ora recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça e defira a competência das Varas Cíveis de Lisboa para prosseguir e decidir a presente acção.

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Não há contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – Fundamentação
A – Com interesse para a decisão, apuraram-se os seguintes factos:
1. A A. tem sede em Lisboa;
2.A morada de Q era Fiães.
3. A R. F Carburantes, Lda., tem sede em S. João de Ver.
4. A presente acção visa o cumprimento de obrigações.
5. A A. e a R. F Carburantes, Lda., acordaram que o foro competente para o conhecimento de qualquer litígio emergente do acordo celebrado seria o de Lisboa.

B – Apreciação jurídica.
Das conclusões das alegações da Recorrente emerge desde logo a questão de saber se, sendo demandados simultaneamente uma sociedade e uma pessoa singular, funciona a excepção à regra do art.º 74.º, n.º 1, do CPC, que permite à A. intentar a acção no tribunal da área do seu domicílio ou se, pelo contrário, a existência de réus pessoas singulares impede a aplicação de tal excepção. Além desta questão principal, aflora-se ainda outra que é saber qual a relevância, neste caso, do pacto de aforamento fixado entre as partes.

1. O art.º 74.º, n.º 1, do CPC, com a redacção introduzida pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, dispõe que para conhecer de acção exigindo o cumprimento de obrigações, a indemnização por incumprimento ou cumprimento defeituoso e a resolução de contrato por falta de cumprimento, é competente, em regra, o tribunal do domicílio do réu. O autor pode, no entanto optar pelo tribunal do lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.
No caso vertente, temos uma situação mista, não expressamente prevista na lei, que é um réu pessoa colectiva e outro uma pessoa singular. Todavia a razão de ser da regra, do domicílio do devedor estabelecida no art.º 74.º, visa a protecção do consumidor, normalmente a parte mais fraca, cujo interesse na proximidade da justiça, face à lei anterior, ficava quase sempre sacrificado em favor da parte mais forte na relação contratual, normalmente uma sociedade comercial com sede nas grandes cidades de Lisboa ou Porto. Era a justiça de proximidade dos economicamente mais poderosos e, por isso, com mais e melhores meios jurídicos e contenciosos para defenderem os seus interesses.
A nova lei procurou moderar esta situação, estabelecendo um equilíbrio de armas, só aquiescendo nas duas excepções acima enunciadas, sendo de excluir liminarmente a segunda por os réus não terem domicílio na área metropolitana de Lisboa. Mas, se, além de uma pessoa colectiva, for demandada igualmente, e em simultâneo, uma pessoa física, a razão de ser da regra geral do domicílio do devedor impõe que esta prevaleça em detrimento da excepção, já que tal regra de defesa do consumidor é de ordem pública, tutelando um interesse geral, enquanto a excepção aqui brandida pela Autora tutela apenas um interesse privado numa determinada situação prevista na lei.
Portanto, neste ponto, o decidido em primeira instância não merece reparo.

2. Na decisão recorrida considerou-se assente que entre a A. e a sociedade ré foi estabelecido um pacto de competência que contemplava o foro de Lisboa. Contudo, independentemente da questão de saber quem ficou vinculado por tal pacto, importa adiantar que o mesmo não produziria efeitos no caso dos autos.
Na verdade, atento o disposto nos art.ºs 100.º, n.º 1, parte final, e 110.º, n.º 1, al. a), do CPC, o novo regime da competência territorial, introduzido pela supra referida Lei de 2006, não pode ser preterido ou afastado mediante um pacto de aforamento celebrado entre as partes. E a tal não obsta a circunstância de esse pacto ter sido estabelecido em data anterior ao início de vigência da aludida alteração legislativa.
Neste sentido se pronunciou já o Supremo Tribunal de Justiça, uniformizando jurisprudência, do seguinte modo: «As normas dos artigos 74.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Processo Civil, resultantes da alteração decorrente do artigo 1.º da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, aplicam-se às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que reportadas a litígios derivados de contratos celebrados antes desse início de vigência com cláusula de convenção de foro de sentido diverso» – ac. do STJ de 18-10-2007, proc.º 2775/07, sec., www.dgsi.pt/jstj.
Com efeito, a referida Lei que, por imperativo de interesse e ordem pública, veda o afastamento convencional das regras de competência territorial, aplica-se aos presentes autos, por força da disposição de direito transitório contida no seu art.º 6.º. Todavia, no caso em apreço, mesmo que se entenda ser retroactiva a Lei n.º 14/2006, estando em causa a competência do tribunal, questão adjectiva sem influência sobre o mérito da causa, tal retroactividade não é proibida, como também decidiu o STJ, no acórdão supra.
O direito de as partes poderem escolher, por acordo, o foro territorial que irá dirimir futuros conflitos emergentes do contrato, como o dos autos, não é um direito constitucionalmente garantido, pois, não constitui direito, liberdade e garantia, no sentido do art.º 18.º da CRP. Este preceito constitucional, pura e simplesmente, não se aplica no caso dos autos, como decidiu e voltou a decidir o Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.ºs 691/2006 de 19 de Dezembro (proc.º 937/06), e 53/2007, de 30 de Janeiro (proc.º 938/06).
Portanto, forçoso é concluir, como nestes dois arestos, que «a aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, aos contratos celebrados antes da entrada em vigor desta última lei, ainda que se entenda que se trata de uma aplicação retroactiva da mesma, não consubstancia violação de forma inadmissível, intolerável ou arbitrária dos direitos ou expectativas fundadas do recorrente, não se verificando, por isso, o desrespeito dos mínimos de certeza e segurança salvaguardados pelo art.º 2.º da Constituição».
Assim, no plano constitucional nada há a censurar à nova solução legal. Aliás, no seu acórdão n.º 41/2007, de 23 de Janeiro, o Tribunal Constitucional também decidiu no sentido da não inconstitucionalidade do referido art.º 110.º, n.º 1, al. a), do CPC.
Em conclusão, improcedem por completo as conclusões da Recorrente, sendo por isso de manter a decisão recorrida.
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III – Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
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Lisboa, 19.5.2009
João Aveiro Pereira
Rui Moura
Anabela Calafate