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SIMULAÇÃO
COMPRA E VENDA
NULIDADE
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
Sumário
I - O art. 292º do Código Civil tem como pressuposto a invalidade parcial do negócio e tem na sua génese a ideia da conservação dos negócios jurídicos. II - A redução supõe, por natureza, a divisibilidade do negócio jurídico. A redução traduz-se, com efeito, na divisão desse negócio em duas partes – a que se mantém nula e a que se salva, sob as vestes de negócio válido, se bem que de dimensão mais restrita. III - Sendo nulo o contrato de compra e venda de uma determinada coisa, não é possível dividir esse negócio em duas partes e concluir que uma parte está viciada e outra é válida. Em consequência, não tem aplicação o disposto no art. 292º do Código Civil. (AC)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
Ms intentou acção declarativa com processo ordinário, contra G pedindo:
a) se julgue nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda e respectiva escritura celebrada em 28.6.1989 no 16.º Cartório Notarial de Lisboa, nos termos do art. 240.º do C.C.;
b) se mande cancelar o registo da referida e simulada compra e venda e, em consequência, todos e quaisquer outros que porventura hajam sido feitos posteriormente sobre o mencionado imóvel;
c) se assim se não entender, deverá ser anulado por enriquecimento sem causa o referido contrato de compra e venda e respectiva escritura, nos termos do art. 473.º do C.C.
Alegou, em síntese:
- em 27.4.1960 tomou de arrendamento o 5.º andar direito do prédio sito na Rua Joaquim Bonifácio (descrito na CRP…);
- em consequência de providência cautelar e acção judicial para efectivação do direito de preferência comprou a fracção correspondente ao andar de que era inquilina;
- todo o processo de compra da casa trouxe à A. grande instabilidade, perturbação e desassossego;
- nessa altura a A. começou a dar-se com um senhor de nome António Maneira, pai da R., já falecido e este emprestou-lhe 300 contos para compra da casa;
- como garantia a A. assinou um ‘papel’ que o António lhe entregou e que era afinal um contrato-promessa de venda a essa pessoa de metade da casa pelo preço de 695.500$00, tendo sido acordado que esse contrato ficaria sem efeito logo que a A. pagasse o empréstimo;
- a A. veio a fazer a escritura de venda da totalidade da fracção ao mencionado António em 26/6/1989 com intenção de impedir que a filha (dela A.) se arrogasse direitos sobre a casa;
- foi um negócio simulado pois a A. não recebeu o preço dessa venda, nunca quis vender a casa nem dá-la ao falecido António com quem veio a casar em 11.12.1993 no regime de separação de bens;
- o andar em 1989 valia mais de 20 mil contos;
- sempre haveria abuso de direito por parte da R. ao pretender partilhar a casa que o seu pai não comprou nem pagou.
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Contestou a Ré pugnando pela improcedência da acção, tendo alegado, em resumo:
- não ouviu o seu pai afirmar que iria emprestar 300 contos ou qualquer quantia à Autora;
- é-lhe impossível saber se o alegado empréstimo de 300 contos seria garantido pelo contrato promessa referido na petição inicial e se a sua eficácia ficaria condicionada ao pagamento por parte da A. ao pai da Ré dos 300 contos;
- a Autora vendeu a casa ao pai da Ré por sua livre e espontânea vontade, ao preço que quis, sem qualquer pressão ou chantagem por parte deste
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Realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença em que se decidiu:
«a) Declarar-se nula a escritura de compra e venda celebrada em 26.6.1989, no 16º Cartório Notarial de Lisboa, pela qual a A. vendeu a António, que a comprou, a fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao …andar direito do prédio sito na Rua Joaquim Bonifácio, em Lisboa;
b) Determina-se o cancelamento do registo de aquisição dessa fracção a favor do mencionado comprador e fundado naquela escritura e qualquer outro registo a favor dele, que daquele decorra ou nele se funde.»
Inconformada interpôs a Ré o presente recurso de apelação e tendo alegado apresentou as seguintes conclusões:
1. Resulta do provado nos autos que o pai da recorrente emprestou 300 contos à recorrida para a ajudar a adquirir o imóvel descrito nos autos.
2. Como forma de garantir o pagamento dos referidos 300 contos a recorrida e o pai da recorrente livremente outorgaram um contrato promessa respeitante à aquisição por parte deste de metade do imóvel.
3. A recorrida nunca devolveu os 300 contos emprestados pelo pai da recorrente, que a ajudaram a comprar o imóvel.
4. O pai da recorrente acabou por adquirir a totalidade do imóvel.
5. A douta sentença a quo considerou, contudo, que a venda feita pela recorrida ao pai da recorrente é nula, nos termos do artigo 240º do Código Civil, por ter sido simulado.
6. Tal decisão fundou-se no facto do Tribunal a quo ter julgado que a venda efectuada não manifestou a vontade real das partes, mas que esta era antes para prejudicar a filha da recorrida.
7. Sucede que a douta decisão a quo negligenciou o contrato promessa de compra e venda feito para garantir os 300 contos emprestados, bem como os 695.500$00 pagos.
8. Se se levantam dúvidas ao Tribunal a quo relativamente aos motivos por detrás do contrato declarado nulo, estas não podem subsistir relativamente ao contrato promessa que serviu de garantia ao empréstimo.
9. Não pode a recorrida vir alegar, uma vez mais, o seu analfabetismo e confusão mental para defender que nunca aceitou garantir o empréstimo que lhe foi feito através da outorga do contrato promessa, referente a metade da casa.
10. Ao não ter pago os 300 contos que lhe foram emprestados pelo pai da recorrente a recorrida locupletou-se injustificadamente de tal quantia.
11. O contrato de compra e venda, outorgado em 28 de Junho de 1989, deve ser reduzido àquele que as partes quiseram celebrar através do contrato promessa referente à venda de metade do imóvel, nos termos do artigo 292º do Código Civil.
12. Nos termos do artigo 236º nº 1 do Código Civil, “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição real do declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante… “.
13. Das negociações então mantidas entre a recorrida e o pai da recorrente não se pode extrair, pois, outra conclusão que não seja a manutenção do contrato-promessa que serviu de garantia ao mencionado empréstimo.
14. Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações, conforme regula o artigo 237º do Código Civil.
15. Deve ser, pois, reduzido o contrato de compra e venda ao que foi negociado pelas partes, quando da celebração do contrato-promessa e considerar efectivamente que o pai da recorrente adquiriu metade da casa, pelo preço constante neste contrato, de 695.500$00, como garantia dos 300.000$00 emprestados, quando da celebração do contrato-promessa.
16. Por outro lado, resulta dos autos que o Pai da Recorrente e a Recorrida casaram sob o regime imperativo da separação de bens, em virtude de ambos terem mais de 60 (cfr artigo 1720º nº 1 al b) do Código Civil).
17. Por sua vez, relativamente à prova da titularidade dos bens dos cônjuges que tenham casado sob o regime de separação de bens, estipula o artigo 1736º nº 2 do Código Civil que “Quando haja dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges, os bens móveis ter-se-ão como pertencentes em compropriedade a ambos os cônjuges”.
18. Desta forma, é forçoso concluir que o pai da Recorrente é dono, em compropriedade com a Recorrida, de metade da casa, nos termos do artigo 1403º nº 2, 2ª parte do Código Civil, ou, pelo menos, é proprietário de um quarto do imóvel, em virtude dos 300 contos emprestados.
Ao assim não entender violou a douta sentença recorrida, por errada interpretação, o disposto nos artigos 236º, 237º, 240º, 292º, 405º, 1403º nº 2, 2ª parte, 1720º nº 1 al. b) e 1736º nº 2, do Código Civil, pelo que com o muito que doutamente será suprido por V. Exas, Venerandos Desembargadores, deve a mesma ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente por não provada a acção que condenou a recorrente, devendo em consequência operar-se a redução do negócio jurídico nos moldes supra expostos, pois só assim se fará Justiça.
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A recorrida contra-alegou defendendo a bondade do decidido e concluiu:
a) A Apelante baralha e mistura factos provados, factos não provados e factos nem sequer alegados, tudo esgrimindo como se matéria fáctica provada fosse.
b) Na conclusão 7 e na conclusão 15 das suas doutas alegações a Apelante esgrime um pretenso pagamento de 695.500$00, pagamento não provado nem tão pouco alegado em momento algum do processo (porque efectivamente não houve tal pagamento).
c) Os pedidos de redução de negócio e cumprimento de contrato-promessa, inexistentes no decurso do processo, não cabem em sede de recurso.
d) Considerando que o preço de 1.391.000$00 que a Apelada pagou pela casa, integra um direito resultante do direito de preferência como arrendatária há quase trinta anos, onde está o justo equilíbrio invocado pela apelante ao arrogar-se o direito à casa ou parte da casa à custa de um empréstimo de 300 contos?
e) A Apelante não tem o direito que se arroga, mas, se o tivesse, sempre o mesmo configuraria um manifesto abuso de direito, atenta a gritante desproporção das prestações em causa exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé (art. 334º do C. Civil).
f) O artigo 1736º nº 2 do CC, invocado na conclusão 17 das doutas alegações da apelante, nada tem a ver com a questão sub-judice.
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II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC) pelo que no presente recurso a questão a decidir é a seguinte:
- se deve operar-se a redução do contrato de compra e venda e considerar-se que o pai da recorrente adquiriu metade ou pelo menos um quarto da fracção autónoma identificada pelo preço constante neste contrato.
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III – Fundamentação
A) Os factos
Na sentença constam como provados os seguintes factos:
1 - Em 27 Abril de 1960 a autora tomou de arrendamento, por contrato escrito, o quinto andar direito do prédio sito na Rua Joaquim Bonifácio, em Lisboa, pela renda mensal de 1.110$00 (€ 5,54).
2 - Prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …, e inscrito na matriz …, freguesia da Pena.
3 - A partir de Julho de 1986 a renda paga pela autora relativa à locação da fracção "L" era de 4.107$00.
4 - Em 3 de Dezembro de 1986 a então proprietária do imóvel, Maria, vendeu o identificado prédio a José, mediante escritura lavrada de fls 69 a 80 do Livro 165-H, no 16º Cartório Notarial de Lisboa.
5 - Pela inscrição F1 foi registada a constituição em propriedade horizontal daquele prédio.
6 - Os inquilinos interpuseram acção judicial para efectivação do direito de preferência.
7 - A autora comprou a fracção "L" daquele prédio pelo preço de 1.391.000$00 (€ 6.938,28) por escritura de compra e venda celebrada em 16-12-1987.
8 - Além do valor da compra da casa a autora também suportou e pagou integralmente as despesas respeitantes a custas judiciais com a acção de preferência e providência cautelar, honorários de mandatário forense, escritura, registos e certidões várias.
9 - As despesas referidas no artigo anterior foram em montante que em concreto não foi possível apurar.
10 - A autora é analfabeta que só sabe assinar e desde Maio de 2006 sofre de demência vascular.
11 - O processo de compra da casa, incluindo acções judiciais, trouxe à autora uma grande instabilidade, perturbação e desassossego.
12 - Para pagar o preço da casa faltavam à autora 300 contos.
13 - Tratou-se de um processo muito discutido e conversado, uma vez que a aquisição pela autora resultou de um processo judicial que envolveu todos os inquilinos do prédio.
14 - A autora conversava nessa altura com António, pai da ré.
15 - António Maneira era porteiro num prédio das redondezas e a autora costumava encontrá-lo junto ao prédio onde ele trabalhava na Rua D. Estefânia.
16 - A Autora contou a António a sua preocupação com a falta dos 300 contos para a escritura da casa.
17 - António, reformado da polícia e à data porteiro, mostrava-se bom ouvinte.
18 - À data dos factos António mostrava interesse pela autora.
19 - Foi no quadro de um envolvimento afectivo que a autora veio a aceitar o empréstimo de 300 contos que António lhe fez.
20 - A autora subscreveu o contrato promessa como garantia do empréstimo de 300 contos que António lhe havia feito.
21 - Contrato promessa esse que acordaram ficaria sem efeito logo que a autora pagasse ao António os 300 contos emprestados.
22 - O documento datado de 17-12-1987 que se encontra a folhas 45, subscrito pela autora e António, cujas assinaturas foram reconhecidas notarialmente em 2-02-1988, era o contrato-promessa de compra e venda a António de metade indivisa da fracção "L" pelo preço de 695.500$00.
23 - A autora foi internada no Hospital de São José onde foi submetida a uma intervenção cirúrgica.
24 - António terá pensado que a autora teria cancro.
25 - António acompanhou a autora durante o internamento.
26 - Quando a autora saiu do hospital foi para casa de António.
27 - António dizia à A. que a filha metia homens lá em casa.
28 - Por influência de António reforçou-se o afastamento da autora em relação à filha.
29 - Na sequência da afirmação de António a que alude 27. aquele convenceu a autora de que a casa ficaria mais segura em nome dele.
30 - A autora, por sugestão de António, aceitou pôr a casa em nome deste.
31 - O que a autora fez apenas com a intenção de enganar a filha de modo a impedi-la de esta se arrogar direitos sobre a casa enquanto a mãe fosse viva.
32 - Em 28-06-1989 foi celebrada pela autora escritura de compra e venda da totalidade da fracção "L" a António, pelo valor de 695.500$00.
33 - Com a outorga da escritura de 28-06-1989 a autora pretendia apenas impedir que a filha tivesse ideias de posse sobre a fracção "L".
34 - A escritura teve como único intuito enganar e afastar a filha de quaisquer direitos à casa da mãe.
35 - A casa era o único bem que a autora tinha.
36 - A autora não queria desfazer-se da casa, designadamente pelo preço declarado de 695.500$00.
37 - Em data não concretamente apurada a autora regressou a sua casa, acompanhada do António onde ambos ficaram a viver.
38 - A relação da autora com a filha foi-se tornando insuportável e veio a culminar na saída da filha de casa da mãe e a quebra de relações entre ambas.
39 - A autora e a filha estiveram anos sem se ver e sem se falar.
40 - A autora e António casaram em 11-12-1993 no regime imperativo de separação de bens.
41 - À autora, começaram a suscitar-se problemas de consciência sobre o futuro da filha, começando a falar ao marido nas suas dúvidas e angústias sobre a filha, manifestando interesse em alterar o que tinha feito à filha relativamente à casa.
42 - Em Dezembro de 1987 a fracção "L" tinha o valor comercial de cerca de 18.000 contos.
43 - O andar em causa tem três assoalhadas, situa-se em prédio de construção recente de betão armado, com dois elevadores, casa de porteira comum ao condomínio e está situado em zona central da cidade de Lisboa.
44 - Sempre acompanhou a autora a preocupação e os remorsos do que tinha feito para afastar a filha.
45 - A autora sempre foi tida e vista como única dona da fracção "L".
46 - E sempre todas as convocatórias para assembleias de condóminos e correspondência do condomínio foram enviados e dirigidas à autora.
47 - Foi a autora quem sempre pagou as mensalidades do condomínio e todos os recibos eram passados em seu nome.
48 - António celebrou em 21-05-1997 o testamento que se encontra em certidão a folhas 53 dos autos.
49 - António faleceu em 5-02-2002.
50 - Após o falecimento de António a ré organizou os papéis à autora e tratou-lhe dos assuntos necessários em virtude do falecimento do marido.
51 - A ré levou da casa da autora os papéis que seleccionou de acordo com os seus próprios critérios.
52 - A ré levou a autora às finanças para tratar do processo de imposto sucessório.
53 - A ré elaborou a relação de bens para o processo de imposto sucessório de António Maneira.
54 - A relação de bens foi apresentada à autora para esta assinar, tendo ela assinado.
55 - Foi a ré quem preencheu a declaração de IRS do casal constituído pela autora e António Maneira relativa aos rendimentos do ano de 2001.
56 - Da declaração de IRS referida em 55. consta o NIB ….
57 - O NIB indicado na declaração de IRS relativo ao ano de 2001 referido em 56. é de uma conta bancária de que a ré é titular.
58 - A ré recebeu o reembolso de IRS relativo aos rendimentos do ano de 2001 de António.
59 - Quando o neto da autora nasceu a ré acompanhou a filha daquela na maternidade.
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B) O Direito
Alega a recorrente que deve operar-se a redução do negócio jurídico por aplicação do disposto no art. 292º do Código Civil, invocando o contrato promessa datado de 17 de Dezembro de 1982.
Estabelece este normativo legal: «A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada».
Como explica Castro Mendes «Quer a nulidade quer a anulabilidade do negócio jurídico podem feri-lo na totalidade ou apenas em parte. Correspondentemente, temos a invalidade total e parcial do negócio jurídico.
Chama-se redução do negócio jurídico ao efeito de uma invalidade parcial.» (in Direito Civil, Teoria Geral, Vol III, 1979, pág. 699/700).
Para Mota Pinto «Estabelece-se uma presunção de divisibilidade ou separabilidade do negócio, sob o ponto de vista da vontade das partes. O contraente que pretender a declaração de invalidade total tem o ónus de provar que a vontade hipotética das partes ou de uma delas, no momento do negócio, era nesse sentido, isto é, que as partes – ou pelo menos, uma delas, - teriam preferido não realizar negócio algum, se soubessem que ele não poderia valer na sua integridade.» (in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 482).
Menezes Cordeiro sustenta: «O primeiro requisito é o de uma nulidade ou anulação meramente parciais. Na base desta fórmula, algumas doutrina e jurisprudência têm admitido uma regra de divisibilidade dos negócios. De modo algum: o que a lei diz é o seguinte: a nulidade ou anulação (quando seja) parcial não determina a invalidade do conjunto. Repare-se: a lei não permite que a prestação seja realizada por partes, havendo pois um princípio da integralidade do cumprimento – artigo 763.º: não se compreenderia como facultar uma desarticulação de princípio dos negócios, a pretexto da invalidade.
Teremos de, pela interpretação e em momento logicamente anterior, determinar o alcance de qualquer invalidade». (in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed, pág. 878/879).
Na sentença recorrida considerou-se que estão reunidos os requisitos do art. 240º do Código Civil, estando-se em presença de um negócio simulado e por isso nulo.
A recorrente aceita que o negócio é nulo, embora entenda que se trata de uma invalidade parcial, pois invoca o disposto no art. 292º do Código Civil.
No caso concreto está em causa a compra e venda de uma fracção autónoma de um prédio, portanto, de uma única coisa.
O art. 292º do Código Civil tem como pressuposto a invalidade parcial do negócio e tem na sua génese a ideia da conservação dos negócios jurídicos.
Contudo, como ensina Galvão Teles «A redução supõe, por natureza, a divisibilidade do negócio jurídico. A redução traduz-se, com efeito, na divisão desse negócio em duas partes – a que se mantém nula e a que se salva, sob as vestes de negócio válido, se bem que de dimensão mais restrita. Pode acontecer, porém, que o negócio em causa seja indivisível, e então é que a questão da divisibilidade ou indivisibilidade importa verdadeiramente. A indivisibilidade obsta, por natureza, à redução. O negócio é indivisível quando não se mostra reconduzível a uma parte nula, em razão de vício que a afecta, e a uma parte que em si seria válida, por esse vício não a atingir directamente, mas cuja existência autónoma não faria sentido, dado haver entre as duas uma ligação incindível. (…) Em caso de indivisibilidade do negócio, não há sequer lugar à prova da vontade conjectural ou hipotética, prevista na parte final do artigo 292º.» (in Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, pág. 373).
Sendo nulo o contrato de compra e venda de uma determinada coisa, não é possível dividir esse negócio em duas partes e concluir que uma parte está viciada e outra é válida. Em consequência, não tem aplicação o disposto no art. 292º do Código Civil.
Mas das conclusões da recorrente resulta que o que pretende afinal é que se considere que a vontade real dos outorgantes foi a de celebrar um contrato de compra e venda da quota ideal de ½ ou de pelo menos ¼ do direito de propriedade sobre aquela fracção autónoma em cumprimento do contrato promessa datado de 17 de Dezembro de 1982.
O art. 240º do Código Civil determina:
«1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo.».
E de harmonia com o art. 241º nº 1 do Código Civil: «Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado».
Porém, não resulta dos factos provados - e nem Autora e Ré o alegaram nos seus articulados - que sob o negócio simulado de compra e venda da totalidade do direito de propriedade as partes quiseram afinal a compra e venda da quota ideal de ½ ou mesmo de ¼ desse direito em cumprimento do contrato prometido.
Nem as normas sobre a interpretação da declaração negocial invocadas pela recorrente - art. 236º nº 1 e 237º do Código Civil – permitem concluir que as partes quiseram a compra e venda de uma quota ideal de ½ ou de ¼ do direito de propriedade. Na verdade, não só as declarações negociais materializadas no contrato de compra e venda são claras, não suscitando qualquer dúvida de interpretação, como também não se provou que a vontade real das partes fosse a de celebrar um contrato de compra e venda de uma quota do direito de propriedade.
Insurge-se a recorrente com o alegado locupletamento da recorrida por nunca ter devolvido os 300 contos que o seu pai lhe emprestou. Porém, apenas não se provou que essa quantia foi restituída, daí não resultando provado o contrário. Mas ainda que a recorrida continue devedora dessa quantia, os presentes autos não se destinam à obtenção da execução específica do contrato-promessa nem a recorrente invocou tal locupletamento na contestação. Ora, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida a exame do tribunal de que se recorre (cfr Fernando Amâncio Ferreira (in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 146 a 149).
Por último, não tem fundamento a alegação de que a sentença recorrida violou o disposto nos art. 1720º nº 1 al b), 1736º nº 2 e 1403º nº 2 – 2ª parte do Código Civil.
O art. 1720º determina os casos em que o casamento se considera contraído sob o regime imperativo de separação de bens. Mas a sentença recorrida não se pronunciou nem tinha de se pronunciar sobre este normativo legal pois não há nestes autos qualquer controvérsia sobre o regime de bens do casamento celebrado entre a recorrida e o pai da recorrente nem qualquer questão relacionada com o regime de bens.
O art. 1736º nº 2 prevê que havendo dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges, os bens móveis ter-se-ão como pertencentes em compropriedade a ambos os cônjuges. Ora, nestes autos não está em causa o direito de propriedade sobre quaisquer bens móveis mas sim a validade ou invalidade de um contrato de compra e venda de uma coisa imóvel.
Quanto ao art. 1403º nº 2, reporta-se à propriedade em comum ou compropriedade e estabelece a presunção de que as quotas dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo. Este normativo pressupõe, pois, a titularidade do direito de propriedade sobre a coisa. Mas a sentença recorrida declarou nula, por simulação absoluta, a escritura de compra e venda, pelo que não foi reconhecida a aquisição do direito de propriedade do pai da recorrente sobre a fracção autónoma identificada nestes autos. Assim, por ser inaplicável o art. 1403º ao caso concreto, não faz sentido a invocação de erro de interpretação desta norma.
Por quanto se expôs tem de improceder o recurso.
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IV – Decisão
Pelo exposto decide-se julgar a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 19 de Maio de 2009
Anabela Calafate
Antas de Barros
Folque de Magalhães