ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
EX-CÔNJUGE
CONTRATO DE MÚTUO
REEMBOLSO
EFEITOS DO DIVÓRCIO
Sumário

I - No caso de cumprimento da obrigação de reembolso de mútuos celebrados por ambos os cônjuges, na qualidade de mutuários, na constância de matrimónio na comunhão de adquiridos, não há qualquer deslocação patrimonial da esfera dos bens próprios de um dos cônjuges para a esfera dos bens próprios do outro cônjuge, mas sim o cumprimento de uma obrigação de reembolso do capital mutuado e juros acordados, com bens comuns (o produto do trabalho de cada um dos cônjuges) e que a ambos vincula perante o credor, a entidade bancária que concedeu os mútuos à autora e ao réu então casados um com o outro.
II - Na falta de definição da data de instauração da ação de divórcio ou de retroação dos efeitos de divórcio ao início da separação de facto entre os cônjuges, mesmo que subsista impartilhado o património conjugal do dissolvido casal, apenas com a dissolução do casamento se pode afirmar que o reembolso dos mútuos efetuado pela autora o é com bens próprios, já que os proventos que então aufere não entram na comunhão do dissolvido casal.

Texto Integral

716/14.4T8AVR.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 716/14.4T8AVR.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. No caso de cumprimento da obrigação de reembolso de mútuos celebrados por ambos os cônjuges, na qualidade de mutuários, na constância de matrimónio na comunhão de adquiridos, não há qualquer deslocação patrimonial da esfera dos bens próprios de um dos cônjuges para a esfera dos bens próprios do outro cônjuge, mas sim o cumprimento de uma obrigação de reembolso do capital mutuado e juros acordados, com bens comuns (o produto do trabalho de cada um dos cônjuges) e que a ambos vincula perante o credor, a entidade bancária que concedeu os mútuos à autora e ao réu então casados um com o outro.
2. Na falta de definição da data de instauração da ação de divórcio ou de retroação dos efeitos de divórcio ao início da separação de facto entre os cônjuges, mesmo que subsista impartilhado o património conjugal do dissolvido casal, apenas com a dissolução do casamento se pode afirmar que o reembolso dos mútuos efetuado pela autora o é com bens próprios, já que os proventos que então aufere não entram na comunhão do dissolvido casal.

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]
Em 30 de outubro de 2014, na Secção Cível, da Instância Central de Aveiro, Comarca de Aveiro, B… propôs a presente ação declarativa, com processo comum, contra C…, pedindo a condenação deste a:
a) reconhecer que da quantia de € 30.000,00 mutuada pelo D… aos ora autora e réu, em 23/09/2004, € 13.000,00 foram utilizados/usados em proveito exclusivo do ora réu;
b) responsabilizar-se pelo pagamento à instituição bancária de 21,5/30 avos do montante ainda em dívida;
c) reconhecer que a quantia de € 45.000,00 mutuada pelo D… aos ora autora e réu, em 29/03/2006, se destinou, única e exclusivamente, a fazer face a obrigações do ora réu, nomeadamente a proceder ao pagamento das tornas à sua primeira ex-mulher em resultado de lhe terem sido adjudicados dois bens imóveis, de que é proprietário, na partilha dos bens do seu dissolvido casal;
d) ser obrigado a pagar ao D… o montante ainda em dívida respeitante a esse crédito;
e) pagar à autora, a título de indemnização, o montante de € 14.870,34, pois está desembolsada desse valor, o qual lhe é devido até com base no enriquecimento sem causa, com juros legais, contados desde a citação;
f) diligenciar, junto da entidade bancária credora, no sentido de substituição da garantia, isto é, da libertação das hipotecas correspondentes aos valores cujo pagamento é da sua responsabilidade, que impendem sobre o prédio urbano da autora descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa sob o nº 3580, da freguesia …, oferecendo outro em substituição, que seja aceite por aquela.
Para fundamentar as suas pretensões, em síntese, a autora alegou o seguinte:
- autora e réu contraíram casamento civil um com o outro em 19 de dezembro de 2003, no regime da comunhão de adquiridos, separaram-se de facto em 28 de setembro de 2011, tendo sido decretada a dissolução do vínculo conjugal que os unia, por divórcio, em 30 de março de 2012;
- no dia 23 de setembro de 2004, autora e réu contraíram junto de uma entidade bancária um mútuo no montante de trinta mil euros, com hipoteca constituída sobre um imóvel da exclusiva titularidade da autora;
- do dinheiro mutuado, oito mil euros foram utilizados na aquisição de um veículo automóvel exclusivamente para o réu, cinco mil euros foram dados pelo réu ao seu filho E… para aquisição de um veículo automóvel e o restante foi gasto, no pagamento de um projeto de arquitetura e respetivas especialidades, destinado a ampliar a casa da autora dada em garantia do pagamento do empréstimo, bem como para liquidação da licença de construção e ainda nas despesas do casal;
- no dia 29 de março de 2006, autora e réu voltaram a contrair junto da mesma entidade bancária um mútuo no montante de quarenta e cinco mil euros, também garantido com o mesmo imóvel da exclusiva titularidade da autora;
- do dinheiro mutuado, quarenta mil euros foram utilizados no pagamento de tornas a F…, ex-mulher do réu e os restantes cinco mil euros foram utilizados em obras de beneficiação de casa da exclusiva titularidade do réu;
- até 28 de setembro de 2011, autora e réu, com dinheiro granjeado pelo trabalho de ambos, pagaram as prestações que se foram vencendo, liquidando do capital do primeiro mútuo € 11.839,86 menos € 4.771,22 e € 7.062,64, do segundo empréstimo;
- entre 28 de setembro de 2011 até 30 de Setembro de 2014, foi a autora, na maior parte sozinha, quem pagou as prestações que se foram vencendo, sendo o montante do capital liquidado do primeiro empréstimo, de € 7.565,71 menos € 3.088,05 e o montante do capital do segundo empréstimo no montante de € 4.477,66.
Citado, o réu contestou, contestação que despacho proferido em 24 de fevereiro de 2016 determinou que fosse desentranhada por falta de pagamento da taxa de justiça e multa devidas.
Em 05 de abril de 2016, proferiu-se despacho julgando confessados os factos articulados pela autora na petição inicial.
A autora alegou por escrito nos termos previstos no nº 2, do artigo 567º do Código de Processo Civil, pugnando pela total procedência da ação.
Em 16 de maio de 2016, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo que se reproduz, na parte pertinente:
a) reconheço que a A. tem sobre o R. um crédito um crédito de € 4.322,85, valor que aquela havia satisfeito à data da propositura da ação além do que lhe competia satisfazer nos empréstimos bancários subscritos por ambos, na vigência do casamento, e o mais que satisfez ou vier a satisfazer até à data da partilha;
b) condeno o R. a pagar este montante à A., por compensação, na partilha que vierem a fazer dos bens do casal;
c) caso a partilha dos bens do casal já estiver feita, o crédito é exigível de imediato após o trânsito em julgado da sentença.
Absolvo o R. do mais que contra ele é pedido.
Em 20 de junho de 2016, inconformada com a sentença, B… interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) – A Recorrente e o Recorrido contraíram casamento civil, a 19/12/2003, sem convenção antenupcial – fls. 17/18 -, e que se separaram de facto a 28/09/2011.
B) – O Casamento foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença de 30/03/2012, transitada a 14/05/2012, proferida pelo Juízo de Família e Menores de Estarreja da Comarca do Baixo Vouga – fls. 17/18.
C) – Por escritura de mútuo com hipoteca, celebrada a 23/09/2004, no Cartório Notarial de Ílhavo:
a) G…, que outorgou na qualidade de procuradora do D…, S.A., declarou que este Banco concede aos primeiros outorgantes (os ora A. e R.) um empréstimo no valor de € 30.000,00;
b) os primeiros outorgantes declararam aceitar o empréstimo e confessaram-se devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo, assim como também se confessam devedores das quantias que lhes forem debitadas por conta desta operação, de acordo com o presente contrato;
c) para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, e bem assim dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 4,5%, acrescidos de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora e a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 1.200,00, a 1ª outorgante mulher, com o consentimento do marido, constitui hipoteca sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão com anexos, garagem, logradouro e quintal, sita na …, nº .., freguesia …, concelho da Murtosa, inscrito na matriz predial sob o artigo 2025, descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa sob o nº 3580 – fls. 19/23.
D) – Dos € 30.000,00 provenientes deste mútuo, € 8.000,00 foram utilizados na aquisição de um veículo automóvel, da marca Skoda, exclusivamente para o requerido, e € 5.000,00 foram por este entregues ao seu filho, E…, para aquisição/pagamento de um veículo automóvel.
E) – A quantia restante, € 17.000,00, foi utilizada em proveito dos ora Requerente e Requerido, uma parte para pagamento de um projeto de obras e licença, respetiva, para ampliar a casa da requerente identificada em 4-c) dos Factos Provados, obras essas que nunca chegaram a ser executadas, e o restante nas despesas do casal formado por ambos.
F) – Por escritura de mútuo com hipoteca, celebrada a 29/03/2006, no Cartório de Aveiro do Notário H…:
a) G…, que outorgou na qualidade de procuradora do D…, S.A., declarou que este Banco concede aos primeiros outorgantes (os ora A. e R.) um empréstimo no valor de € 45.000,00;
b) Os primeiros outorgantes declararam aceitar o empréstimo e confessaram-se devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo, assim como também se confessam devedores das quantias que lhes forem debitadas por conta desta operação, de acordo com o presente contrato;
c) para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, e bem assim dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 5,03%, acrescidos de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora e a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 1.800,00, a 1ª outorgante mulher, com o consentimento do marido, constitui hipoteca sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão com anexos, garagem, logradouro e quintal, sita na …, freguesia …, concelho da Murtosa, inscrito na matriz predial sob o artigo 2025, descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa sob o nº 3580.
G) Deste empréstimo € 40.000,00 foram utilizados em benefício do réu, para este pagar à sua ex-mulher, F…, tornas de que lhe era devedor (através do cheque nº ……….., de 22/05/2006, sacado sobre o D…), pelo facto de lhe ter sido adjudicado, na partilha do património desse dissolvido casal, um prédio urbano composto de casa de habitação de rés do chão e primeiro andar, sito na freguesia …, concelho de Ílhavo, e um prédio rústico sito na freguesia …, concelho da Murtosa – fls. 28 a 31.
H) – Os restantes € 5.000,00 foram utilizados/gastos em obras de beneficiação do prédio urbano do réu identificado em 8 dos Factos Provados: pintura total, tratamento de todas as madeiras e pequenos trabalhos de alvenaria.
I) – Até 28/09/2011, a A. e o R., com dinheiro granjeado pelo trabalho de ambos, foram liquidando as prestações relativas às quantias mutuadas, tendo pago:
a) De capital: € 4.771,22 relativamente ao mútuo datado de 23/09/2004 (de € 30.000,00), e € 7.062,64 do mútuo datado de 29/03/2006 (de € 45.000,00);
b) De juros, imposto de selo, TAN, Indexante e Spread, € 3.360,00, relativamente ao mútuo de 23/09/2004, e € 4.225,00 do mútuo de 29/03/2006.
J) –A 28/09/2011, por via dos pagamentos referidos em 13 dos Factos Provados, a dívida do mútuo datado de 23/09/2004 ascendia a € 25.228,78, e a do mútuo datado de 29/03/2006 em € 37.937,36.
K) –Entre 28/09/2011 e 30/09/2014, a A. pagou:
a) de capital: € 3.088,05, relativamente ao mútuo datado de 23/09/2004;
b) de capital: € 4.477,66, relativamente ao mútuo datado de 29/03/2006;
c) de juros, imposto de selo, TAN, Indexante e Spread, € 1.080,00, relativamente ao mútuo de datado de 23/09/2004.
L) – Apesar de muitas vezes ter sido socorrida pela mãe e por um primo, que lhe foram entregando algum dinheiro que terá de devolver, para que pudesse ir pagando as prestações em causa, a A. entrou em incumprimento desde há alguns meses, o que levou o D… a iniciar o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI).
M) – Após a separação do casal a 28/09/2011, o R. tem-se recusado a pagar as prestações dos empréstimos identificados em 4 e 7 dos Factos Provados.
N) Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia …, concelho de Ílhavo, o seguinte prédio:
- Urbano, sito na Rua …, …, composto de casa de habitação tendo no rés-do-chão uma marquise, uma cozinha, um quarto, uma sala, duas despensas e um quarto de banho, e, no primeiro andar, dois quartos, uma sala, uma marquise e um quarto de banho, inscrito na matriz predial urbana da freguesia …, concelho de Ílhavo, sob o nº 2484, com o valor patrimonial de € 50,130,00. Este prédio encontra-se encontra-se inscrito na referida matriz predial urbana em nome do ora Requerido e não se encontra descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial de Ílhavo – fls. 20/21 do apenso A.
O) – Por escritura pública, celebrada a 22/12/1998, no Cartório Notarial da Murtosa, O… declarou vender, por 200.000$00 que já recebeu, a C…, casado, então, com F…, sob o regime da comunhão de adquiridos, que declarou aceitar o contrato, um prédio rústico composto de eucaliptal, sito no …, freguesia …, concelho da Murtosa, descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa sob o nº 3685/19981211, e inscrito na matriz sob o artigo 8567. Este prédio ainda se encontra inscrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa em nome da vendedora I… e encontra-se inscrito na matriz predial rústica em nome de C… – fls. 15 do apenso A”.
P) – Tendo em conta os factos assentes/provados, a solução de direito deveria ter sido outra.
Q) – De facto, o Tribunal a quo não fez uma aplicação correta do direito aos factos provados, pois a decisão sob recurso violou:
a) – O disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC, por omissão de pronúncia, o que implica a nulidade da sentença; e
b) – O prescrito no artigo 639º, nº 2, alíneas a), b) e c), do CPC, por não ter feito aplicação as normas jurídicas violadas, por ter errado na determinação das normas jurídicas aplicáveis e por ter feito a sua interpretação e aplicação incorreta.
R) – Já que, tendo-se provado os factos constantes letras D), G) e H), destas Conclusões, o Tribunal Recorrido não podia deixar de se pronunciar, positivamente sobre os pedidos formulados nas alíneas a), e c), do petitório da P.I., isto é, condenado o Recorrido a reconhecer que:
a) – Do crédito de 30.000,00 €, descrito no artigo 4º, da P.I., 13.000,00 € foram utilizados/usados em proveito exclusivo do Recorrido; e
b) – O crédito de 45.000,00 €, descrito no artigo 9º da P.I., foi contraído única e exclusivamente para fazer face a obrigações do Recorrido, nomeadamente para proceder ao pagamento de tornas à sua ex-mulher (do primeiro casamento) em resultado de lhe terem sido adjudicados dois bens imóveis, de que é proprietário, na partilha dos bens do seu dissolvido casal.
S) – Assim como não se vê razão que impeça o Tribunal de se pronunciar favoravelmente ao pedido feito na alínea f), do Petitório (constante da P.I.), nos precisos termos em que é formulado, o que deverá acontecer,
T) – Não se tendo pronunciado/ decidido acerca dos pedido formulados nas alíneas a), c) e f), do Petitório, referido, reitera-se, há omissão de pronúncia, implicando a nulidade da sentença – artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC -, pelo que o Tribunal ad quem deve/tem que proferir Decisão/Acórdão que, pronunciando-se acerca dos mesmos, sane os vícios da decisão recorrida, condenando o Recorrido a reconhecer os factos constantes das alíneas a) e ), da letra R, destas Conclusões;
U) – Os artigos 1697º e 1730º, ambos do C.C., que a Meritíssima Juíza entendeu serem aplicáveis, para a decisão de direito relativamente aos factos provados, não têm cabimento, tendo, no caso concreto, sido interpretados incorretamente;
V) – Pois, da matéria provada (que foi trazida aos autos), o que está em causa são contribuições da Recorrente que não se incorporaram no património comum do casal, “…mas antes produziram um enriquecimento do património próprio do R.. E, nessa perspectiva, já não se coloca um problema de repartição de bens comuns: se há um enriquecimento do património do R. e um correlativo empobrecimento do património da A., estará configurada uma hipótese de enriquecimento sem causa…”, conforme de escreve no corpo do Ac. da RP, de 2009/01/27, in www.dgsi.pt;
W – Continua o aresto, citado no parágrafo anterior (letra V), que “…no presente caso, as contribuições da A. não se dirigiam a prover a “encargos da vida familiar”, mas já a beneficiar o património do R.”, pelo que o âmbito é outro. Para, um pouco mais adiante dizer: “Também se poderia argumentar que esse enriquecimento teve causa, que seria o próprio vínculo conjugal, faltando assim um dos pressupostos da aplicação do artigo 473º do C. Civil. Porém, o instituto em apreço não funciona só em casos de carência ab initio de causa justificativa”. Avançando mais que: “Aliás, por isso se refere no nº 2 do artigo 473º, que a obrigação de restituir pode ter por objecto” “o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir””. É de aceitar, assim, o argumento usado na decisão…, segundo a qual a entrega de quantias por um dos cônjuges que gera enriquecimento do património próprio do outro tem causa na pendência do matrimónio (ou da comunhão de vida que este pressupõe), mas já deixa de ter causa justificativa com a separação ou divórcio”;
X) – Conclui o Acórdão, de que se vem a transcrever asa partes supra, “Concorda-se, pois, com a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa à situação em apreço, sendo esse entendimento já sufragado por jurisprudência dos tribunais superiores …” (são citados dois Acórdãos);
Y) – Ora, ressalvadas as situações concretas de cada caso, a questão de fundo é a mesma, sendo aplicável, ao caso destes autos, o instituto do enriquecimento sem causa, previsto no artigo 473º do CC, pelo que, repete-se, laborou em erro o Tribunal ao escolher as ditas normas dos artigos 1697º e 1730º do CC;
Z) – De resto, que assim é, entendeu também o Ac. do STJ, de 29-03-2001, in www.dgsi.pt, que em caso com contornos similares, declarou que é inaplicável o artigo 1697º, nº 1, do CC, pois “…com a separação do casal, e posterior divórcio, a causa extinguiu-se, e passou, assim, a não ser justificável que a autora continuasse desapossado do que dera para a construção da casa, que é pertença do réu, e que já não iria ser habitação da família. Nos termos do nº 2, do art. 473º, CC, o réu deve, por isso, restituir à autora o que dela recebeu por virtude de tal causa finita.
Houve, pois, enriquecimento injustificado do réu…”;
AA)- Por seu turno, ao contrário do que entende o Tribunal a quo, o Tribunal da Relação, no seu Ac. de 2014/12/14, in www.dgsi.pt, no seu Sumário prescreve: “… o cônjuge credor de outro cônjuge no âmbito dos seus patrimónios pessoais, não está obrigado a invocar o seu crédito na partilha dos bens comuns do casal, podendo fazê-lo em ação declarativa comum; por outro lado, o Ac. da RP, de 2010/03/16, afirma que: “Os créditos entre os cônjuges são os que existem entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, sem intervenção do património comum, admissíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo”;
BB)- Assim, como consta dos Factos Provados (letra I), destas Conclusões), enquanto viveram juntos, a Recorrente contribuiu mais do que devia para a liquidação das prestações do Mútuo de 2004/09/23, pelo que lhe deve ser restituída a metade que pagou, relativamente ao mesmo, por falta de causa justificativa, ou seja 1.033,76 € de capital e 728,00 € de juros e demais encargos até 2011/09/28, e desde esta data até 2014/09/30, 306,00 € mais 468,00 €;
CC)- E, a partir de 2011/09/28 até 2014/09/30, também quanto ao Mútuo de 2004/09/23, deve-lhe ser restituída a importância de capital, proporcional à parte que pagou e era da responsabilidade do Recorrido, no valor de 1.333,15 € e de 874,95 €;
DD) – Sendo certo que, também quanto ao Mútuo de 2006/03/29, são devidas à Recorrente metade do valor das prestações liquidadas na vigência da vida em comum, até 2011/09/28, no valor de 3.531,22 €, e de juros de 2.112,50 €, de juros e demais encargos, e depois da separação, referida, até 2014/09/30, o valor de 4.477,66 €, que pagou sozinha;
EE)- Deste modo, como todo o respeito, que é muito, pelo que se vem de afirmar, não colhe a aplicação da Lei escolhida pela Meritíssima Juíza do Tribunal de Aveiro, interpretada de uma forma inadequada (errada aplicação e interpretação da Lei), pois é o instituto do enriquecimento sem causa, previsto no artigo 473º, do CC, que deve/tem que ser aplicado aos factos provados e, em consequência, ser o Recorrido condenado, também, do pedido constante da alínea e), do Petitório, a pagar à Recorrente, a título de indemnização, o montante de 14.870,34 €, de que estava desembolsada em 30 de setembro de 2014 (soma dos valores das letras BB), CC) e DD), destas Conclusões), acrescida dos juros legais, contados a partir da citação do aqui Recorrido.
Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo, proferindo-se despacho no sentido de inexistir qualquer nulidade na sentença impugnada.
Sendo o objeto do recurso de natureza estritamente jurídica, com o acordo dos restantes membros do coletivo, decidiu-se dispensar os vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia relativamente aos pedidos das alíneas a), c) e f), do petitório final;
2.2 Da reunião dos requisitos da obrigação de restituir com base em enriquecimento sem justa causa.
3. Fundamentos de facto[1] exarados na decisão sob censura e que não foram impugnados pela recorrente, não se divisando fundamento legal para a sua alteração oficiosa
3.1
B… e C… contraíram casamento civil, a 19/12/2003, sem convenção antenupcial.
3.2
Separaram-se de facto a 28/09/2011.
3.3
O casamento foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença de 30/03/2012, transitada a 14/05/2012, proferida pelo Juízo de Família e Menores de Estarreja da Comarca do Baixo Vouga.
3.4
Por escritura de mútuo com hipoteca, celebrada a 23/09/2004, no Cartório Notarial de Ílhavo:
a) G…, que outorgou na qualidade de procuradora do D…, S.A., declarou que este Banco concede aos primeiros outorgantes (os ora autora e réu) um empréstimo no valor de € 30.000,00;
b) os primeiros outorgantes declararam aceitar o empréstimo e confessaram-se devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo, assim como também se confessam devedores das quantias que lhes forem debitadas por conta desta operação, de acordo com o presente contrato;
c) para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, e bem assim dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 4,5%, acrescidos de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora e a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 1.200,00, a 1ª outorgante mulher, com o consentimento do marido, constitui hipoteca sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão com anexos, garagem, logradouro e quintal, sita na …, nº .., freguesia …, concelho da Murtosa, inscrito na matriz predial sob o artigo 2025, descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa sob o nº 3580.
3.5
Dos € 30.000,00 provenientes deste mútuo, € 8.000,00 foram utilizados na aquisição de um veículo automóvel, da marca Skoda, exclusivamente para o requerido, e € 5.000,00 foram por este entregues ao seu filho, E…, para aquisição/pagamento de um veículo automóvel.
3.6
A quantia restante, € 17.000,00, foi utilizada em proveito dos ora requerente e requerido, uma parte para pagamento de um projeto de obras e licença respetiva, para ampliar a casa da requerente identificada em 4-c) dos Factos Provados [alínea c) do ponto 3.4 dos factos provados], obras essas que nunca chegaram a ser executadas, e o restante nas despesas do casal formado por ambos.
3.7
Por escritura de mútuo com hipoteca, celebrada a 29/03/2006, no Cartório de Aveiro do Notário H…:
a) G…, que outorgou na qualidade de procuradora do D…, S.A., declarou que este Banco concede aos primeiros outorgantes (os ora autora e réu) um empréstimo no valor de € 45.000,00;
b) os primeiros outorgantes declararam aceitar o empréstimo e confessaram-se devedores de todas as quantias que do Banco receberam a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo, assim como também se confessam devedores das quantias que lhes forem debitadas por conta desta operação, de acordo com o presente contrato;
c) para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, e bem assim dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 5,03%, acrescidos de uma sobretaxa até 4% ao ano, em caso de mora e a título de cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 1.800,00, a 1ª outorgante mulher, com o consentimento do marido, constitui hipoteca sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão com anexos, garagem, logradouro e quintal, sita na …, freguesia …, concelho da Murtosa, inscrito na matriz predial sob o artigo 2025, descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa sob o nº 3580.
3.8
Deste empréstimo € 40.000,00 foram utilizados em benefício do réu, para este pagar à sua ex-mulher, F…, tornas de que lhe era devedor (através do cheque nº ……….., de 22/05/2006, sacado sobre o D…, pelo facto de lhe ter sido adjudicado, na partilha do património desse dissolvido casal, um prédio urbano composto de casa de habitação de rés do chão e primeiro andar, sito na freguesia …, concelho de Ílhavo, e um prédio rústico sito na freguesia …, concelho da Murtosa.
3.9
Os restantes € 5.000,00 foram utilizados/gastos em obras de beneficiação do prédio urbano do réu identificado em 8 dos Factos Provados [3.8 dos factos provados]: pintura total, tratamento de todas as madeiras e pequenos trabalhos de alvenaria.
3.10
Até 28/09/2011, a autora e o réu, com dinheiro granjeado pelo trabalho de ambos, foram liquidando as prestações relativas às quantias mutuadas, tendo pago:
a) de capital: € 4.771,22 relativamente ao mútuo datado de 23/09/2004 (de € 30.000,00), e € 7.062,64 do mútuo datado de 29/03/2006 (de € 45.000,00);
b) de juros, imposto de selo, TAN, Indexante e Spread, € 3.360,00, relativamente ao mútuo de 23/09/2004, e € 4.225,00 do mútuo de 29/03/2006.
3.11
Em 28/09/2011, por via dos pagamentos referidos em 13[3] dos Factos Provados [3.10 dos factos provados], a dívida do mútuo datado de 23/09/2004 ascendia a € 25.228,78, e a do mútuo datado de 29/03/2006 em € 37.937,36.
3.12
Entre 28/09/2011 e 30/09/2014, a autora pagou:
a) de capital: € 3.088,05, relativamente ao mútuo datado de 23/09/2004;
b) de capital: € 4.477,66, relativamente ao mútuo datado de 29/03/2006;
c) de juros, imposto de selo, TAN, Indexante e Spread, € 1.080,00, relativamente ao mútuo datado de 23/09/2004.
3.13
Apesar de muitas vezes ter sido socorrida pela mãe e por um primo, que lhe foram entregando algum dinheiro que terá de devolver, para que pudesse ir pagando as prestações em causa, a autora entrou em incumprimento desde há alguns meses, o que levou o D… a iniciar o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI).
3.14
Após a separação do casal a 28/09/2011, o réu tem-se recusado a pagar as prestações dos empréstimos identificados em 4 e 7 dos Factos Provados [pontos 4.4 e 4.7 dos factos provados].
3.15
Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia …, concelho de Ílhavo, o seguinte prédio:
- urbano, sito na Rua …, …, composto de casa de habitação tendo no rés do chão uma marquise, uma cozinha, um quarto, uma sala, duas despensas e um quarto de banho, e, no primeiro andar, dois quartos, uma sala, uma marquise e um quarto de banho, inscrito na matriz predial urbana da freguesia …, concelho de Ílhavo, sob o nº 2484, com o valor patrimonial de € 50,130,00.
3.16
Este prédio encontra-se inscrito na referida matriz predial urbana em nome do ora requerido.
3.17
E não se encontra descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial de Ílhavo.
3.18
Por escritura pública, celebrada a 22/12/1998, no Cartório Notarial da Murtosa, I… declarou vender, por 200.000$00 que já recebeu, a C…, casado, então, com F…, sob o regime da comunhão de adquiridos, que declarou aceitar o contrato, um prédio rústico composto de eucaliptal, sito no …, freguesia …, concelho da Murtosa, descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa sob o nº 3685/19981211, e inscrito na matriz sob o artigo 8567.
3.19
Este prédio ainda se encontra inscrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa em nome da vendedora I….
3.20
E encontra-se inscrito na matriz predial rústica em nome de C….
4. Fundamentos de direito
4.1 Da nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia relativamente aos pedidos das alíneas a), c) e f), do petitório final
A recorrente invoca a nulidade da sentença recorrida em virtude de não se ter debruçado especificamente sobre os pedidos das alíneas a), c) e f), do petitório final.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infração do disposto no artigo 608º, primeira parte do nº 2, do Código de Processo Civil. No entanto, como ressalva a segunda parte do número que se acaba de citar, o dever de o juiz apenas conhecer das questões suscitadas pelas partes cede quando a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
As questões a decidir são algo de diverso dos argumentos aduzidos pelas partes para sustentar as posições que vão assumindo ao longo do desenvolvimento da lide[4]. As questões a decidir reconduzem-se aos concretos problemas jurídicos que o tribunal tem que necessariamente solver em função da causa de pedir e do pedido formulado, das exceções e contra-exceções invocadas.
Importa salientar que a vinculação do tribunal às concretas questões ou problemas suscitados pelas partes é compatível com a sua liberdade de qualificação jurídica (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Por isso, o tribunal pode, sem violação da sua vinculação à problemática invocada pelas partes, qualificar juridicamente de forma diferente essas questões.
Analisada a sentença sob censura verifica-se que, ao invés do que afirma a recorrente, aquela peça processual se debruçou especificamente sobre a pretensão formulada na alínea f), do petitório final, escrevendo-se aí o seguinte:
Resta acrescentar que nunca poderia proceder o pedido feito na alínea f). O D…, S.A., não é parte nesta ação. Nem há qualquer fundamento que justifique a intervenção do mesmo. Assim sendo, nunca poderia ser condenado a aceitar a requerida “substituição da garantia”.
No que respeita às alíneas a) e c) do petitório final, atenta a fundamentação jurídica da sentença recorrida, afigura-se-nos que o seu conhecimento está inelutavelmente prejudicado pela afirmação de que a responsabilidade pelo pagamento das dívidas emergentes dos mútuos contraídos é da responsabilidade de ambas as partes, não podendo por isso a mesma ser imputada a apenas uma dos contraentes.
Deste modo, afigura-se-nos que relativamente às alíneas a) e c), do petitório final, o seu conhecimento está prejudicado pelo enquadramento jurídico operado pelo tribunal a quo, não ocorrendo por isso qualquer omissão de pronúncia.
Assim, pelo exposto, não se verifica a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia sobre os pedidos formulados pela autora nas alíneas a), c) e f), do petitório final.
4.2 Da reunião dos requisitos da obrigação de restituir com base em enriquecimento sem justa causa
A recorrente, conformando-se com a improcedência dos pedidos que deduziu nas alíneas b) e d), do seu petitório final, pugna pela revogação da decisão recorrida no que tange as restantes pretensões, sustentando que se reúnem no caso em apreço todos os pressupostos da obrigação de restituir com base em enriquecimento sem justa causa, citando em seu abono variada jurisprudência.
Na decisão recorrida, concluiu-se pela improcedência da ação na parte referente às prestações pagas antes da separação de facto, por se tratar de dívidas contraídas na constância do matrimónio, por ambos os cônjuges, enquanto relativamente às prestações pagas após a separação de facto, se concluiu que o foram com bens próprios, pelo que a autora tem direito à compensação prevista no nº 1, do artigo 1697º, do Código Civil, crédito que reconheceu pelo montante de € 4.322,85, condenando o réu a pagar esse montante, por compensação, na partilha que vierem a fazer dos bens do casal e, na hipótese da partilha dos bens do casal já estar feita, declarou que o crédito é exigível de imediato após o transito em julgado da sentença[5].
Cumpre apreciar e decidir.
A recorrente apoiando-se no acórdão deste Tribunal da Relação de 27 de janeiro de 2009, proferido no processo nº 0827482 e acessível no site da DGSI, afirma que da matéria provada nos autos, “o que está em causa são contribuições da Recorrente que não se incorporaram no património comum do casal “… mas antes produziram um enriquecimento do património próprio do R.. E, nessa perspectiva, já não se coloca um problema de repartição de bens comuns: se há um enriquecimento do património do R. e um correlativo empobrecimento do património da A., estará já configurada uma hipótese de enriquecimento sem causa, tal como foi entendido na decisão recorrida”.
Que dizer?
A nosso ver, o caso deve decompor-se em dois planos distintos: o primeiro corresponde à celebração dos dois contratos de mútuo, nos montantes de trinta e quarenta e cinco mil euros, cada um e nos quais ambos os cônjuges assumiram a qualidade de mutuários, obrigando-se ambos a reembolsar ao banco mutuante os montantes mutuados e os juros nos termos acordados; o segundo plano, que em rigor se subdivide em variadas operações, corresponde à utilização que foi feita do capital mutuado, propriedade de ambos os cônjuges.
No que respeita ao primeiro plano que antes se identificou, o reembolso efetuado na constância do matrimónio e mesmo após a dissolução deste consiste no cumprimento de obrigações assumidas por ambos os cônjuges e que a ambos responsabilizam nos termos do disposto na alínea a), do nº 1, do artigo 1691º do Código Civil.
Neste primeiro plano, na constância do matrimónio, não há qualquer deslocação patrimonial da esfera dos bens próprios da autora para a esfera dos bens próprios do réu, mas sim o cumprimento de uma obrigação de reembolso do capital mutuado e juros acordados, com bens comuns (o produto do trabalho de cada um dos cônjuges) e que a ambos vincula perante o credor, a entidade bancária que concedeu os mútuos à autora e ao réu, então casados um com o outro. Apenas com a dissolução do casamento e mesmo que subsista impartilhado o património conjugal do dissolvido casal, se pode afirmar que o reembolso dos mútuos efetuado pela autora o é com bens próprios, já que os proventos que então aufere não entram na comunhão do dissolvido casal (veja-se o artigo 1697º, nº 1, do Código Civil).
Nesta medida, neste plano, após a dissolução do casamento[6] preenche-se a previsão do nº 1, do artigo 1697º, do Código Civil, como em medida mais ampla se decidiu na sentença sob censura, pois que se relevou o momento da separação de facto dos cônjuges.
E no segundo plano, que se passa?
A autora e o réu, então casados um com o outro, ao receberem os montantes mutuados pela entidade bancária tornaram-se donos dessas importâncias (artigo 1144º do Código Civil), pelo que a posterior utilização desse dinheiro constitui, conforme os casos administração ou disposição de tal capital comum.
A factualidade provada dá-nos conta que, relativamente ao primeiro mútuo, no montante de trinta mil euros, oito mil euros destinaram-se à aquisição de um veículo automóvel para uso exclusivo do réu[7] e cinco mil euros foram dados pelo réu a seu filho para aquisição/pagamento de um veículo automóvel.
A aquisição onerosa de um veículo automóvel por um dos cônjuges na constância de um matrimónio cujo regime de bens é o da comunhão de adquiridos, constitui a aquisição de um bem comum do casal (artigo 1724º, alínea b), do Código Civil), o que afastaria um benefício exclusivo do réu, conforme afirma a autora.
Porém, importa verificar se a aquisição desse veículo, ainda que a título oneroso e na constância do matrimónio, é passível de constituir a aquisição de um bem próprio do réu.
Nos termos do previsto na alínea f) do nº 1, do artigo 1733º do Código Civil, são excetuados da comunhão geral de bens os vestidos, roupas e outros objetos de uso pessoal e exclusivo de cada um dos cônjuges, bem como os seus diplomas e a sua correspondência.
Tem-se entendido que o artigo 1733º do Código Civil, embora talhado para o regime da comunhão geral de bens, deve aplicar-se também nos casos de casamento em comunhão de adquiridos, com base num argumento por maioria de razão, ou seja, se os bens aí mencionados não são comunicáveis, mesmo no regime da comunhão geral de bens, forçosamente devem também ter essa natureza em regimes de bens mais “separatistas” do que o regime da comunhão geral de bens[8].
A aquisição de um veículo automóvel, bem móvel sujeito a registo, para uso exclusivo de um dos cônjuges, integra a previsão da alínea f) do nº 1, do artigo 1733º do Código Civil?
A nosso ver, os objetos de uso pessoal exclusivo a que se refere a alínea f), do nº 1, do artigo 1733º do Código Civil são apenas aqueles que, independentemente do seu maior ou menor valor[9], se destinam a ser usados, em regime de exclusividade, por um dos cônjuges, como sucede com as roupas, as jóias, os relógios.
Se bem interpretamos esta previsão, na mesma apenas se incluem objetos que os cônjuges tragam ou possam trazer na sua pessoa, não se incluindo aí outros objetos que cada um dos cônjuges pode gozar em exclusivo, como pode suceder com um veículo automóvel, especialmente se for um monolugar, mas sem que se verifique o uso pessoal e exclusivo típico dos objetos contemplados na alínea em análise.
Vejamos agora a “aplicação” de cinco mil euros pelo réu, dando essa importância a um filho seu para a aquisição/pagamento de um veículo automóvel.
Na nossa perspetiva, este ato do réu constitui um ato de disposição de um capital comum do casal que pode vir a cair sob a alçada da previsão do nº 4, do artigo 1682º, do Código Civil, se acaso foi praticado sem o consentimento da autora.
O que seguramente não se verifica é um empobrecimento do património pessoal da autora e um concomitante enriquecimento do património pessoal do réu. De facto, a entrega incide sobre capital que é da titularidade comum do casal e beneficia patrimonialmente uma terceira pessoa, o filho do réu.
Apreciemos agora a “aplicação” do dinheiro comum do casal obtido com a celebração do segundo mútuo no montante de quarenta e cinco mil euros.
No que respeita este capital, propriedade comum do casal, quarenta mil euros destinaram-se ao pagamento de tornas à anterior ex-cônjuge do réu, na sequência da partilha de bens comuns e cinco mil euros destinaram-se a custear obras na casa que na sequência dessa partilha veio a caber ao réu.
A saída do montante de quarenta mil euros, para pagamento da compensação devida pelo réu à anterior ex-cônjuge do réu, em virtude de ter sido encabeçado em exclusivo num imóvel partilhado entre ambos é para o património comum da autora e do réu um ato gratuito, pois não tem qualquer correspetivo que se reflita em tal património, como sua contrapartida, antes é uma compensação devida pelo réu à sua anterior ex-cônjuge para permitir a consolidação da aquisição de um bem próprio do réu[10].
Uma vez mais, este ato do réu constitui um ato de disposição de um capital comum do casal que pode vir a cair sob a alçada da previsão do nº 4, do artigo 1682º, do Código Civil, se acaso foi praticado sem o consentimento da autora.
No que respeita à “aplicação” do montante de cinco mil euros para custear obras de beneficiação de um bem próprio do réu, precisamente aquele que adquiriu por efeito da partilha dos bens do seu anterior matrimónio, trata-se uma vez mais da disposição de um capital comum, sem qualquer contrapartida para o património conjugal e em exclusivo benefício do réu, por valorizar um bem próprio do réu, que também pode vir a cair sob a alçada da previsão do nº 4, do artigo 1682º, do Código Civil.
A exposição que antecede permite-nos concluir, com toda a segurança que, neste segundo plano, ao invés do que é afirmado pela recorrente, não estão em causa contribuições da recorrente que não se incorporaram no património comum do casal “… mas antes produziram um enriquecimento do património próprio do réu”; pelo contrário, trata-se de disposições de capital comum do casal, num caso em benefício de um terceiro e noutros dois casos em exclusivo benefício do réu, disposições que podem cair sob a alçada do nº 4, do artigo 1682º, nº 4, do Código Civil. De todo o modo, como claramente se vê dos pedidos que a autora formulou no final da sua petição inicial, não é esta a causa de pedir que suporta as suas pretensões e que de todo o modo, nunca integraria os pressupostos da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa, por não haver um empobrecimento da autora, mas antes do património conjugal e ainda por força da regra da subsidiariedade (artigo 474º do Código Civil).
A variada jurisprudência[11] que a recorrente cita em abono da sua pretensão recursória tem traços distintivos que demarcam o caso dos autos dos casos aí apreciados e que justificam que a sua solução seja distinta dos casos exemplares que invoca.
Assim, o acórdão seminal do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de janeiro de 2002, proferido no processo nº 0827482, acessível no site da DGSI, respeita a um caso de casamento celebrado no regime da separação de bens, precisamente o campo próprio em que a doutrina tem vindo a admitir espaço de manobra para o instituto do enriquecimento sem causa[12].
O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de maio de 2004, proferido no processo nº 712/04, acessível no site da DGSI, respeita a um caso de união de facto, que nenhuma similitude tem com o caso dos autos, desde logo por inexistir nessa relação um património comum dos unidos de facto, como sucede no caso dos autos.
O acórdão desta Relação de 27 de janeiro de 2009, proferido no processo nº 0827482, acessível no site da DGSI, respeita a um caso de casamento celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mas em que foram já partilhados os bens comuns do casal. Embora a recorrente venha agora em sede de recurso alegar que não há bens a partilhar, esta alegação é claramente fora de tempo, pois que os factos devem ser alegados perante o tribunal a quo e aí sujeitos ao necessário contraditório, para poderem ser ou não julgados provados.
No acórdão da Relação de Lisboa de 15 de outubro de 2009, proferido no processo nº 6025/05.2TBSXL-6, acessível no site da DGSI, além de se tratar de um caso complexo que começa por uma união de facto e se prolonga por um casamento no regime da comunhão de adquiridos, o “enriquecido” e aí recorrente não discutiu a obrigação de restituir com base no instituto do enriquecimento sem causa, pelo que o Tribunal da Relação apenas tinha que se debruçar sobre a medida da obrigação de restituir.
No acórdão desta Relação de 16 de março de 2010, proferido no processo nº 3275/06.8TBPVZ.P1, acessível no site da DGSI, referente a um casal casado no regime da comunhão geral de bens, estava em causa o cumprimento de um empréstimo da responsabilidade de ambos os cônjuges, tendo estes acordado, aquando do seu divórcio por mútuo consentimento, que essa responsabilidade apenas passaria a competir ao réu, decidiu-se que não era caso de restituição fundada no enriquecimento sem justa causa, pois tratava-se de dívida surgida depois da dissolução do casamento.
O acórdão desta Relação de 17 de dezembro de 2014, proferido no processo nº 8184/11.6TBMAI.P1, acessível no site da DGSI, também respeita a um caso de casamento celebrado no regime da separação de bens, campo por excelência de aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, como já antes se referiu.
No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de dezembro de 2014, proferido no processo nº 3698/11.0TBBCL.G1, referente a um casal casado no regime da comunhão geral de bens em que um dos cônjuges cumpriu com bens próprios obrigações da exclusiva responsabilidade do outro cônjuge, decidiu-se o caso, diversamente do que decidiu o tribunal a quo, à luz do previsto no artigo 1790º do Código Civil, afastando as regras do enriquecimento sem causa, apenas divergindo no relevo que a partilha dos bens do casal tem na exigibilidade do crédito, em virtude de estar em causa uma relação entre os patrimónios pessoais dos ex-cônjuges[13]. Ora, nada disto se verifica no caso em apreço, pois que a autora depois da separação de facto[14] paga com bens próprios uma dívida que é comum.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de março de 2016, proferido no processo nº 146/15.0T8AMD-A.L1, acessível no site da DGSI tem por base uma causa de pedir diversa da destes autos e que consiste no exercício do direito de regresso entre condevedores, situação bem distinta da que é objeto destes autos.
Assim, como bem se vê, nenhuma da jurisprudência citada pela recorrente serve de arrimo à sua pretensão recursória.
Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser confirmada, sendo as custas do recurso da responsabilidade da recorrente, pois que decaiu integralmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, em confirmar pelos fundamentos expostos a decisão recorrida proferida em 16 de maio de 2016.
Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
***
O presente acórdão compõe-se de dezanove páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 27 de março de 2017
Carlos Gil
Carlos Querido
Alberto Ruço
_________
[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Expurgados das referências aos meios de prova.
[3] Existe lapso na indicação deste número dos factos provados que não é o 13, mas sim o 10, lapso que se corrige oficiosamente atenta a sua ostensividade.
[4] Sobre esta questão veja-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, páginas 679 a 681. Não obstante os argumentos não sejam questões, do ponto de vista retórico e da força persuasiva da decisão, há interesse na sua análise e refutação.
[5] A questão da condenação condicional proferida na decisão recorrida não é questionada pela recorrente, pelo que não integra o objeto do recurso. Também não se questiona a separação de facto entre os cônjuges como momento crucial para a distinção do regime jurídico aplicável, não obstante não resultar da matéria de facto que qualquer dos cônjuges tenha feito uso da faculdade prevista no nº 2, do artigo 1789º do Código Civil e que, nessa sequência, o tribunal do divórcio tenha fixado a data do início da separação de facto do casal, permitindo assim o afastamento da regra geral que consta do nº 1, do artigo 1789º do Código Civil. Também isto não vem questionado no recurso, pelo que não constitui objeto do mesmo.
[6] Na verdade, não há dados de facto que permitam fixar a data de propositura da ação de divórcio e assim fazer operar a segunda parte do nº 1, do artigo 1789º, do Código Civil.
[7] A factualidade provada não nos permite afirmar se a aquisição foi feita pelo réu, exclusivamente ou se foi feita por ambos os cônjuges ou por um com o acordo do outro, pois apenas foi alegado e provado que dos trinta mil euros, oito mil foram utilizados na aquisição de uma viatura automóvel, exclusivamente para o réu.
[8] A este propósito veja-se, Curso de Direito da Família, Volume I, Introdução Direito Matrimonial, 5ª Edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, página 626.
[9] Neste sentido veja-se a obra que se acaba de citar, páginas 634 e 635.
[10] Na obra que temos vindo a citar, na página 602, em comentário favorável a um acórdão desta Relação de 01 de Abril de 2003 (proferido no processo nº 0223232, cujo sumário está acessível no site da DGSI), afirma-se que as tornas não são um preço de aquisição, mas apenas a compensação por um excesso de valor do bem relativamente à quota do herdeiro [ou da quota do cônjuge meeiro, acrescentamos nós].
[11] Em pesquisa na base de dados da DGSI, não se conseguiu localizar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que a recorrente afirma ter sido proferido em 29 de março de 2001.
[12] Neste sentido veja-se O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (176), Lisboa 1996, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, páginas 513 a 517.
[13] Nesta parte, a decisão recorrida apoiou-se na doutrina do Professor Francisco Pereira Coelho, agora exposta na obra que temos vindo a citar, nas páginas 517 e 518.
[14] Repete-se o que antes já se referiu relativamente ao relevo deste momento nos efeitos patrimoniais do divórcio, matéria que como se concluiu exorbita do objeto do recurso e que sempre as regras da proibição da reformatio in pejus (artigo 635º, nº 5, do Código de Processo Civil) obstariam a que fosse sindicada.