INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
INSOLVÊNCIA
ACÇÃO LABORAL
Sumário

A declaração de insolvência do devedor, contra quem pendem acções declarativas para apuramento de eventuais direitos de crédito, após o respectivo trânsito em julgado, acarreta a inutilização superveniente da instância declarativa.
(sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:

AAA… interpuseram a presente acção especial de impugnação de despedimento colectivo, ao abrigo do disposto nos art.s 156º e ss. do C. P. T., contra:
AIR LUXOR HEADQUARTERS, pessoa colectiva n.º 502091037, com sede na Av. da República, 26, 1050-192 LISBOA.
            Pediram: 
- Seja declarada a nulidade do despedimento colectivo pela inexistência de fundamentos legais e pela preterição das formalidades legais a que alude o art. 431º, nº 1, al. c) do Código do Trabalho e, relativamente à 1ª A., o art. 98º, nº1, al. b) da Lei nº 35/2004, e a condenação da Ré:
- Na reintegração dos AA. nos seus postos de trabalho, sem afectação da categoria, antiguidade e o mais legal, pagando todos os vencimentos vencidos e os que se vierem  a vencer até à efectiva reintegração;
- No pagamento das diferenças salariais resultantes do não pagamento do subsídio de chefia nas férias, subsidio de férias e subsídio de Natal; no pagamento das comissões de venda a bordo em falta desde 2003, dos feriados, e das importâncias devidas a título de rectificação dos valores das ajudas de custo, tudo a apurar em execução de sentença.

A Ré contestou defendendo a legalidade do despedimento colectivo e concluindo que sejam julgados improcedentes todos os pedidos dos Autores.
            Os autos prosseguiram os seus trâmites normais, tendo sido deduzido o incidente de intervenção provocada por C….
Foram nomeados assessores e admitidos os técnicos indicados pelas partes.
Foi, entretanto, trazida ao processo a informação da declaração de insolvência da Ré, tendo o Mº juiz mandado dar conhecimento da existência deste processo ao Sr. Administrador, tendo solicitado informação sobre se os AA reclamaram seus créditos nesse processo (fls. 941). Este respondeu informando que no processo de insolvência que sob o nº 1207/06 corre termos no 2º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, os Autores não reclamaram seus créditos, nos termos do art. 128º do CIRE, desconhecendo se o fizeram nos termos do art. 146º de referido código (fls. 950).
Foi junta aos autos certidão da sentença que declarou a insolvência da Ré “AIR LUXOR, SA”, com indicação de que transitou em julgado (fls. 957 a 996).
O Mº Juiz proferiu, então, o despacho de fls. 997 proferindo a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo extinta, por inutilidade superveniente da lide, a presente acção que os AA intentaram contra a Ré “Air LUXOR, SA”.

 Os Autores, inconformados, interpuseram recurso desta decisão e terminam as suas alegações formulando as seguintes conclusões:
            (…)
Nestes termos, (…) deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, tudo com as legais consequências.

Não houve contra-alegação.
O Mº juiz sustentou o decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
A questão a decidir consiste em saber se ocorre a inutilidade superveniente da lide da presente acção em virtude da declaração de insolvência da Ré.

Fundamentação de facto.
Os factos que relevam são os já referidos no relatório, nomeadamente os seguintes:
- A Ré “Air Luxor, SA”, em 29 de Outubro de 2004 enviou uma carta a cada um dos AA comunicando-lhes que iria proceder a um despedimento colectivo que os abrangeria. E, em 14 de Dezembro de 2004, enviou uma carta a cada um dos Autores com a “decisão de despedimento”, que produziria efeitos em 15 de Fevereiro de 2005.
- Por sentença transitada em julgado foi a Ré “AIR LUXOR, SA”, declarada insolvente, no processo que sob o nº 1207/06 corre termos no 2º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa.
- Nesse processo foi declarado aberto incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno e fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.
- Os Autores intentaram a presente acção em 08.06.2005, e o processo de insolvência foi instaurado em 22.11.2006.
- O Administrador da insolvência não solicitou a apensação dos presentes autos aos de Insolvência.

Fundamentação de direito
Os Recorrentes discordam do despacho recorrido que declarou a inutilidade superveniente da lide por efeito da declaração de insolvência da Ré, aqui Recorrida, por entenderem, no essencial, que têm interesse em obter uma decisão definitiva sobre a ilicitude do despedimento e dos créditos daí decorrentes, não vislumbrando como poderia a questão da ilicitude do despedimento ser discutida no processo de insolvência, além de que o Administrador da insolvência não requereu a apensação dos presentes autos aos de insolvência e citam jurisprudência em favor deste seu entendimento.
Sobre esta questão tem havido alguma divergência na jurisprudência existindo decisões judiciais no sentido preconizado pelos Recorrentes, como as que citam, existindo outras no sentido do despacho recorrido, como os Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.10.2006 (Ramalho Pinto) e de 27.11.08 (Olindo Geraldes) disponíveis em www.dgsi.pt/jtrl e do Tribunal da Relação de Coimbra de 1.07.08, disponível em www.dgsi.pt/jtrc, Ac. da Rel do Porto de 07/02/2002 (Proc. 0132123, Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt/jtrp) e da Relação de Évora de 18/12/2007 (Proc. 2473/07-2, Pires Robalo, in www.dgsi.pt/jtre) ([1]).
Inclinamo-nos decisivamente para a tese do despacho recorrido, seguindo de perto a orientação dos citados acórdãos desta Relação de Lisboa.
À data da instauração do processo de insolvência estava em vigor o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Dec-Lei nº 53/2004 de 18 de Março, com a redacção dada pelo Dec-Lei nº 200/2004 de 18 de Agosto, (doravante citado por CIRE), diploma a que se referirão as disposições legais abaixo referidas.
Quanto aos efeitos processuais da insolvência sobre as acções pendentes há que atender ao disposto nos art. 85 a 89 do CIRE.
Dispõe o artº 85º, nº 1 que “declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo”.
Resulta deste preceito que todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, são apensadas ao processo de insolvência, bem como as acções de natureza exclusivamente patrimonial, desde que a apensação seja requerida pelo administrador de insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo. E de acordo com o nº 2 do mesmo preceito são também apensados todos os processos nos quais tenha sido efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens do insolvente.
Afirma-se, assim, o regime da plenitude da instância falimentar em relação às acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente intentadas contra o devedor ou mesmo contra terceiro, cujo resultado possa influenciar o valor da massa.
 De igual modo, no que concerne às acções laborais, só são obrigatoriamente apensadas ao processo de insolvência aquelas em que tenha ocorrido apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente (caso de acções em que por via incidental ou preliminar tenha sido deferido o arresto de bens do devedor, insolvente), podendo também ser apensadas as acções em que se debatam questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente desde que tal seja requerido pelo administrador da insolvência.
Acontece que na maior parte das acções laborais discutem-se direitos emergentes do contrato de trabalho ou da sua cessação, em que a condenação da entidade empregadora traduzir-se-á num conteúdo de natureza patrimonial, que se repercutirá sobre o seu património como um todo e não sobre um qualquer bem específico. Por isso, tais acções não serão, em princípio, susceptíveis de serem apensadas ao processo de falência.
   É que a motivação para a apensação dessas acções pelo administrador da insolvência tem a ver com a eventual discussão sobre a existência de bens susceptíveis de integrar a massa insolvente.
Ora, na presente acção não estão em causa bens susceptíveis de integrar a massa insolvente, razão pela qual não se justificava a apensação dos presentes autos aos de insolvência, a qual efectivamente não foi requerida pelo administrador da insolvência.
Com efeito, a acção declarativa em que se pede apenas o reconhecimento de um direito de crédito, não carece de ser apensada ao processo de insolvência do devedor ([2]).
Nos presentes autos, os AA pedem a sua reintegração e a definição de outros direitos de crédito dos Autores resultantes da eventual ilicitude do despedimento colectivo, bem como de outros créditos resultantes da execução dos contratos de trabalho que vigoraram entre os AA e a Ré, agora declarada insolvente.
Acontece que posteriormente à instauração da presente acção foi a Ré declarada insolvente por decisão transitada em julgado. Ora, declarada a insolvência vencem-se imediatamente todas as obrigações do insolvente, e abre-se a fase de convocação dos credores e a respectiva reclamação de créditos dentro do prazo fixado na sentença – art. 91º seg. do CIRE.
Essa reclamação tem um carácter universal, abrangendo todos os créditos existentes à data da declaração de insolvência (art. 47º nº 1 e 128º nº 1 do CIRE), independentemente da natureza e fundamento do crédito e da qualidade do credor.
E, quanto ao exercício dos créditos sobre a insolvência, dispõe o art. 90º do CIRE que “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente código durante a pendência do processo”.
Deste modo, os credores da insolvência, quaisquer que sejam, devem reclamar a verificação dos seus créditos, nos termos do art. 128º do CIRE, e dentro do prazo assinalado na sentença declaratória da insolvência.
E mesmo o credor que tenha já reconhecido o seu crédito por decisão definitiva “não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”, como resulta, expressamente, do disposto no nº 3 do art. 128.º
            Deste preceito resulta evidente que com a declaração de insolvência do devedor, transitada em julgado, deixa de ter interesse o prosseguimento da acção para o reconhecimento de eventuais direitos de crédito, uma vez que os mesmos sempre terão de ser objecto de reclamação no processo de insolvência.
Com efeito, de nada serve a sentença proferida na acção instaurada contra o devedor, se o credor não reclamar o crédito no processo de insolvência, porquanto jamais poderá tal decisão ser dada à execução para cumprimento coercivo, uma vez que, de acordo com o disposto no art. 88º do CIRE, a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência.
Por outro lado, nada obsta a que no processo de insolvência, nomeadamente na verificação de créditos, possa ser apreciada a questão da ilicitude do despedimento (individual ou colectivo) bem como dos respectivos direitos dela decorrentes, nos termos previstos nos art. 128 a 140.
Desde logo porque o tribunal da insolvência tem competência material plena para poder decidir todos os litígios, incluindo aqueles que estão deferidos a tribunais de competência especializada, como os emergentes da impugnação do despedimento (individual ou colectivo), sendo que o juiz da insolvência possui os mesmos meios processuais que o juiz laboral para se pronunciar de mérito, se tal for necessário.
Conforme refere Maria Adelaide Domingos ([3])”não existem diminuição de garantias para as partes já que os meios probatórios são os mesmos que seriam permitidos no processo laboral e a forma do processo a seguir é a do processo declarativo sumário, ou seja, a forma que supletivamente o art. 49º nº 2 do CPT manda aplicar ao processo laboral comum. Vigora o princípio do inquisitório, permitindo que a decisão judicial seja fundada em factos não alegados pelas partes, em similitude com o disposto no art. 72º do CPT, a que acresce o carácter urgente, característica presente nos processos impugnativos de despedimento colectivo ou de representantes sindicais ou de membros de comissão de trabalhadores (art. 26º nº 1 do CPT)”.
E mais adiante refere: “o processo de insolvência ao privilegiar a finalidade de liquidação do património do devedor e a correspondente repartição do produto pelos seus credores, determina que os créditos emergentes da ilicitude do despedimento se reconduzam a uma vertente indemnizatória de natureza pecuniária, implicando adaptações ao regime substantivo prescrito no Código do Trabalho, mas não existem razões processuais ou substantivas que afastem a competência do tribunal de insolvência para proceder à verificação desses créditos”.
E conclui: “também não existem razões atendíveis para que o processo laboral impugnativo do despedimento continue a sua tramitação, pelo que transitada em julgado a sentença que declara a insolvência do devedor, deve ser extinta a instância por inutilidade da lide, nos termos do art. 287º al. e) do CPC ex vi art. 1º nº 2 do CPT.”
No mesmo sentido vejam-se as judiciosas considerações tecidas pelas juízas Maria José Costeira e Fátima Reis Silva, em “Classificação, Verificação e Graduação de créditos no CIRE – em especial os créditos laborais”, publicado em Prontuário de Direito do trabalho, nº 76, 77 e 78, do CEJ, Coimbra Editora, pag. 359-371, nomeadamente no que se refere à reclamação dos créditos decorrentes de despedimento ilícito (individual ou colectivo), mesmo nos casos em que a sua determinação não é automática (caso do art. 439º nº 1 do Código do Trabalho) em que nada obsta a que o administrador da insolvência possa reconhecê-los, sendo que sempre poderá haver reclamações de qualquer interessado que, em última análise, o juiz decidirá.
                Deste modo, temos como certo que a declaração de insolvência do devedor contra quem pendem acções declarativas para apuramento de eventuais direitos de crédito, determina a inutilização superveniente da instância declarativa, na justa medida em que o fim visado por este processo fica "consumido" e "prejudicado" por aquele (como se refere no Ac. desta Relação de 18.10.2006, acima citado).
            A impossibilidade ou inutilidade da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida” ([4]).
No presente caso, a pretensão dos AA só pode encontrar satisfação no âmbito do processo de insolvência, ou seja, fora do presente processo, cuja prossecução, por isso, se nos afigura inútil.
Improcedem, assim, sem necessidade de mais desenvolvidas considerações as conclusões do recurso, pelo que é de manter o despacho recorrido que declarou a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide.

Decisão:
Nos termos expostos, negando provimento ao agravo, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Recorrentes.
                        Lisboa, 03/06/2009


         Seara Paixão
Ferreira Marques
Maria João Romba

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[1] Veja-se também no mesmo sentido, Maria Adelaide Domingos, em separata da obra “X Congresso Nacional de Direito do Trabalho”, Memórias, Almedina, Coimbra, 2007.
[2] Mas, importa referir que a simples apensação da acção ao processo de insolvência não implica que se considere automaticamente reclamado o correspondente crédito, embora possa permitir a presunção de que o crédito é do conhecimento do administrador da insolvência (cfr. artº 129º). Em todo o caso, “por maior prudência, os titulares dos créditos identificados nos processos apensados devem também reclamá-los” - Luís Carvalho Fernandes e João Labareda - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. I, 2005, pág. 453.
[3] Em efeitos processuais da declaração de insolvência sobre as acções laborais, separata da obra “X Congresso Nacional de Direito do Trabalho”, Almedina 2007, pag. 284. 
[4] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, em Código do Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. 1º, pag. 512.