CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
HABILITAÇÃO
Sumário

I - Verifica-se a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, designadamente de natureza contratual, transmite a terceiro o seu direito. Consiste, portanto, esta figura, na substituição do credor originário por outra pessoa, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional.
II - O devedor desempenha um puro papel passivo, na medida em que não se exige o seu consentimento: é terceiro quanto ao acordo de cessão.
III - Perante o devedor cedido, a eficácia da cessão verifica-se, desde que lhe haja sido notificada, mesmo extrajudicialmente, ou desde que ele a tenha aceite.
IV - Se a cessão do crédito importar, conjuntamente, a cessão duma obrigação, o regime aplicável não é o deste artigo, pois então já é necessário o consentimento ou ratificação do devedor-credor, quer pela aplicação das regras da cessão da posição contratual (art. 424º CC) quer pela disciplina própria da transmissão singular de dívidas (art. 595º CC).
(AC)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
Por apenso a acção executiva a correr termos contra A e outros, foi deduzido por STC, Sa incidente de habilitação ao abrigo do disposto no art. 376º do CPC requerendo que seja a requerente «habilitada no lugar do Banco, Sa (antes também denominado BCrédito Sa mas que através de fusão, por incorporação, mediante transferência global do património da Sociedade “BCrédito Sa”, para a sociedade incorporante “Banco, Sa”, adoptou aquela designação), para prosseguir a execução, com as respectivas consequências legais».
Alegou em síntese:
- por contrato datado de 20/12/2006 o Banco, Sa cedeu à requerente o crédito que detinha sobre os executados nos presentes autos, conforme documento que se anexa,
- o que incluiu a posição processual do Banco nos processos judiciais identificados no documento complementar

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Contestaram os requeridos pugnando pela improcedência do incidente de habilitação, tendo alegado, em resumo:
- a execução iniciou-se com um requerimento executivo em que é exequente o BCrédito Sa;
- já na constância do processo de oposição, a pretexto da ocorrência duma alegada operação de fusão por incorporação veio o Banco Sa substituir-se àquela outra entidade e assumir ele a qualidade de exequente;
- o B procurou justificar a desnecessidade da sua habilitação com fundamento no art. 276º nº 2 do CPC;
- só que não foi, de todo, ao B, que os ora contestantes prestaram qualquer fiança e da operação de fusão também não foram notificados previamente;
- a transmissão das posições contratuais nos contratos não é nem pode ser assim tão livre e tão arbitrária que se impunha sem mais à formação da livre vontade dos ora contestantes e/ou dos intervenientes por forma a ignorá-los pura e simplesmente, como aconteceu;
- de resto, assim não é, porque a lei obriga e impõe à sua notificação prévia o que “in casu” não aconteceu;
- alegando-se mais uma vez a celebração de um contrato com data de 20/12/06 o B terá cedido o crédito que, por aquela dita operação de fusão por incorporação havia adquirido a esta nova entidade;
- os ora contestantes nunca tiveram a mais pequena ideia de afiançar qualquer crédito da requerente e não a reconhecem como habilitanda para efeitos das responsabilidades advenientes da sua alegada qualidade de fiadores no contrato de financiamento constante do requerimento executivo inicial
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A requerente respondeu sustentando, em resumo, que na contestação os requeridos alegam pretensos factos sem qualquer relevância para a decisão do incidente e conclui pela procedência deste.
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Foi depois proferida sentença julgando procedente a habilitação e habilitada para na lide ocupar a posição da exequente, a cessionária, STC, Sa.
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Inconformados, interpuseram o presente recurso de agravo os requeridos e tendo alegado apresentaram as seguintes conclusões:
A) Aos agravantes não foi previamente informado, comunicado, notificado, interpelado o negócio da cessão de créditos, como de resto, se dá por provado na sentença.
B) Somente após informação, comunicação, notificação, interpelação prévia se pode dar e admitir o acto voluntário do consentimento expresso ou tácito do dissentimento.
C) Não foi no âmbito do presente incidente de habilitação como o não havia sido aquando da anterior cessão de crédito do BC para o B pela confessa operação de fusão por incorporação que a notificação ocorre ou pode ocorrer. Neste caso de resto, nem incidente foi deduzido e devia tê-lo sido.
D) O consentimento ou ausência dele previsto no art. 577º do CC nada tem a ver com a prévia informação, comunicação, notificação, interpelação para o negócio/operação que se impunha tivesse existido para aquele consentimento ou não, poder ser dado.
E) No mesmo sentido vai o art. 424º do CC que também exige o consentimento antes ou depois da transmissão.
F) A notificação operada pelo Tribunal na constância do incidente não supera aquela falta de informação/comunicação prévia à parte devedora para se manifestar livre e voluntariamente.
G) A sentença que por esta via se censura viola o regime da liberdade contratual (art. 405º do CC), da transmissão e cessão da posição contratual (art. 424º e 427º do CC), da possibilidade de manifestar o consentimento ou dissentimento à operação/transmissão (art. 557º do CC).
Termos em que e nos mais de direito cujo douto suprimento se espera deve o presente recurso de agravo subir, ser julgado procedente e provado e, em consequência, ser revogada a sentença que habilita a agravada Atlantlis Investments, STC para o prosseguimento dos autos.
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A recorrida contra-alegou defendendo a bondade do decidido.
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Foi proferido despacho de sustentação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC) pelo que no presente recurso impõe-se decidir se deve ou não ser habilitada a recorrida no lugar do Banco Espírito Santo Sa para com ela prosseguir a execução.
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III – Fundamentação
A) Os factos
Na sentença recorrida consta como provado:
a) Por contrato de 20 de Dezembro de 2006, o Banco, SA, cedeu à requerente o crédito e garantia hipotecária que detinha sobre os executados.
b) A transmissão verificada foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Amora, pelas apresentações 82 e 83 de 09/10/2007.
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B) O Direito
Na contestação os recorrentes alegaram que a execução se iniciou com um requerimento executivo em que é exequente o BCrédito Sa, o que reiteram na sua alegação de recurso.
No relatório da sentença recorrida vem identificado como exequente o Banco Sa mas refere-se também, «Ora, no que tange à primeira alegação dos executados quanto à intervenção do Banco como exequente, o conhecimento da questão suscitada, cujo conteúdo, aliás, não se alcança, não cabe na tramitação do presente incidente. Sendo certo, em qualquer caso, que a questão já foi apreciada na sede própria e mostra-se, assim, ultrapassada.».
Resulta da alegação dos recorrentes e da sentença recorrida que à data da dedução do incidente de habilitação sob apreciação neste recurso, o exequente era já o Banco e que isso terá sucedido na sequência de fusão por incorporação neste, do primitivo exequente BCrédito Sa.
A fusão de sociedades está prevista no Código das Sociedades Comerciais (art. 97º e seguintes) aí não se prevendo que tenham de ser previamente notificados os devedores. Acresce que não foi invocado pelos recorrentes que a fusão é nula, sendo certo que a nulidade da fusão só pode ser declarada por decisão judicial nos termos do art. 117º daquele Código. Nos termos do art. 112º do mesmo diploma legal, com a inscrição da fusão no registo comercial extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade.
Estabelece o art. 276º nº 2 do CPC que «No caso de transformação ou fusão de pessoa colectiva ou sociedade, parte na causa, a instância não se suspende, apenas se efectuando, se for necessário, a substituição dos representantes». Se este normativo legal foi ou não cumprido é questão que deveria ter sido suscitada na execução, atento o que dispõem os art. 55º e 56º nº 1 do CPC, sendo que na sentença recorrida até se refere que já foi apreciada na sede própria e que está ultrapassada.
Assim, estando assente que o Banco assumiu, na execução, a posição de exequente importa saber se deve ser deferida a requerida habilitação da cessionária STC, Sa.
De harmonia com o disposto no art. 376º nº 1 do CPC a habilitação do cessionário do direito em litígio, para com ele prosseguir a causa, far-se-á nos termos seguintes: lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação o título da cessão, é notificada a parte contrária para contestar e esta, na contestação pode impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
Está junto aos autos o título da cessão. Os recorrentes alegaram que a lei obriga e impõe a sua notificação prévia e na sua alegação de recurso invocam o disposto nos art 577º e 424º do Código Civil.
Na sentença recorrida refere-se:
«Ora, como é sabido, a cessão de créditos não carece de autorização do devedor (cfr art. 577º do Código Civil), constituindo a notificação mero requisito de eficácia da cessão relativamente ao devedor, em nada implicando com a sua validade.
Apesar da requerente ter alegado ter efectuado tal notificação, a mesma não se mostra provada documentalmente.
Contudo, ainda que não tenha havido notificação da devedora em momento anterior, a mesma verificou-se com a notificação operada no presente incidente. Sem que a devedora principal tenha contestado».
Portanto, não está provado que tenha havido notificação da cessão em momento anterior à dedução do incidente de habilitação.
Sobre a admissibilidade da cessão de créditos estabelece o art. 577º do Código Civil:
«1. O credor pode ceder a um terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do credor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.»
O nº 1 do art. 583º prevê:
«A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite».
Quanto à cessão da posição contratual, está prevista nos art. 424º a 427º do Código Civil.
Prescreve o art. 424º:
« 1. No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão.
2. Se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação ou reconhecimento.»
Como explica Almeida Costa: «Verifica-se a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, designadamente de natureza contratual, transmite a terceiro o seu direito. Consiste, portanto, esta figura, na substituição do credor originário por outra pessoa, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional. Sublinhe-se que não se produz a substituição da obrigação antiga por uma nova, mas uma simples modificação subjectiva que consiste na transferência daquela pelo lado activo.
(…) Quanto à dispensa do consentimento do devedor, torna-se manifesto que o regime será outro se a cessão do crédito co-envolver a transmissão de uma obrigação. Exigir-se-á, na hipótese, o consentimento ou ratificação do devedor-credor (art. 424º e 595º).
(…) O devedor desempenha um puro papel passivo, na medida em que não se exige o seu consentimento: é terceiro quanto ao acordo de cessão.
Perante o devedor cedido, a eficácia da cessão verifica-se, desde que lhe haja sido notificada, mesmo extrajudicialmente, ou desde que ele a tenha aceite (art. 583º nº 1). Depois de qualquer desses actos, o cessionário será, para todos os efeitos, o único credor.» (in Direito das Obrigações, 5ª ed, pág. 677 a 681).
Já no que respeita à cessão da posição contratual refere este autor que «o cessionário sucede ao cedente, não apenas no direito ou na obrigação principal, mas na sua inteira posição contratual, como esta se configurava no momento da cessão.» (ob cit, fls 700).
Também a propósito destas duas figuras dizem Pires de Lima e Antunes Varela: «O facto de a lei permitir a cessão do crédito independentemente do consentimento do devedor, assenta já sobre uma concepção bastante evoluída do direito de crédito. Esse desprendimento do aspecto vincadamente pessoal que o antigo direito romano dava ao vínculo obrigacional compreende-se facilmente, no entanto, se atendermos, por um lado, às necessidades modernas do tráfico mercantil, que reclamam a livre movimentação do credor e, por outro, às especiais cautelas de que a lei cercou a posição do devedor (cfr art. 579º, 583º e 585º).» Mas, prosseguem, «Se a cessão do crédito importar, conjuntamente, a cessão duma obrigação, o regime aplicável não é o deste artigo, pois então já é necessário o consentimento ou ratificação do devedor-credor, quer pela aplicação das regras da cessão da posição contratual (art. 424º) quer pela disciplina própria da transmissão singular de dívidas (art. 595º)» (in Código Civil anotado, vol I, 4ª ed, pág. 594,595).
Portanto, a cessão da posição contratual implica a intervenção de três sujeitos - cedente, cessionário e cedido – e é privativa dos contratos sinalagmáticos ou bilaterais, supondo pois a existência de prestações recíprocas desde que não cumpridas (neste sentido, cfr Galvão Teles, in Manual dos Contratos em Geral, “Refundido e Actualizado”, pág. 454/455).
Resulta de quanto se expôs que, não estando em causa nos autos a cessão de posição contratual mas tão só a transmissão do crédito, não tem fundamento a invocação, pelos recorrentes, do disposto nos art. 424º e 427º do Código Civil.
Assim, face ao regime consagrado no Código Civil para a cessão de créditos (art. 577º e seguintes) é manifesto que não existe qualquer normativo que imponha a prévia comunicação/informação/ interpelação ou aviso ao devedor.
Em conclusão, não merece censura a sentença recorrida.
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IV – Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 9 de Junho de 2009
Anabela Calafate
Antas de Barros
Folque de Magalhães