HERANÇA
TESTAMENTO
CAPACIDADE SUCESSÓRIA
INDIGNIDADE
ARROLAMENTO
Sumário

1 – Sendo a requerida, por força do casamento, única e universal herdeira do de cujus e tendo afastado o cônjuge, enquanto vivo, dos seus amigos e controlado a sua vida, para o impedir, como impediu, de fazer testamento a favor de suas sobrinhas, como era de sua vontade, tal situação é susceptível de ser reconduzida ao conceito de coacção, pois que o cônjuge encontrava-se condicionado tanto sob o ponto de vista físico como psicológico.
2 – Como tal, apesar de ter sido, por imperativo legal, constituída única e universal herdeira do marido, a requerida carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade.
3 – A declaração de indignidade determina que a devolução da herança ao indigno seja havida como inexistente.
4 - Enquanto não for declarada a indignidade, a requerida, na sua qualidade de única e universal herdeira, fará seu todo o património que foi do de cujus, podendo, sem qualquer obstáculo legal, dissipar esse património, nomeadamente, o dinheiro que o de cujus deixou depositado nos Bancos, tanto mais que, sendo declarada a indignidade da requerida relativamente à herança do de cujus, as requerentes serão chamadas à titularidade dessa herança.
4 – Tendo as requerentes alegado e provado, se bem que indiciariamente, os factos constitutivos do seu direito relativo aos bens que integram a herança do de cujus (fumus boni juris), tal como os factos em que fundamentam o receio de extravio, dissipação ou ocultação dos bens da herança pela requerida (periculum in mora), estão demonstrados os pressupostos de que depende o decretamento do arrolamento.
(sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
[MA] e [MC] intentaram o presente procedimento cautelar de arrolamento contra [DP], como preliminar de acção de declaração da incapacidade sucessória, por motivo de indignidade.
Alegaram que o falecido [QA], tio das requerentes, depois de ter casado com a requerida, foi por esta impedido de fazer testamento a favor daquelas.
Acrescentam que, enquanto não for declarada a indignidade, a requerida, na sua qualidade de única e universal herdeira, fará seu todo o património que foi do [QA], podendo, sem qualquer obstáculo legal, dissipar esse património, nomeadamente, o dinheiro que o de cujus deixou depositado nos Bancos, havendo rumores de que só no BPN de Almada terá deixado cerca de € 1.800.000, sendo certo que, declarada a indignidade da requerida relativamente à herança do [QA], as requerentes serão chamadas à titularidade dessa herança.
Foi dispensada a audição prévia da requerida, tendo sido inquiridas as testemunhas arroladas pelas requerentes.

O procedimento cautelar foi julgado procedente, por provado, e, em consequência, foi decretado o arrolamento dos bens descritos a fls. 16 a 18.

A requerida, após ter sido citada, veio deduzir oposição à providência decretada, pedindo a revogação da decisão proferida a fls. 90 a 99 dos autos, que, sem audição prévia desta, decretou a providência, e, em consequência, que se determinasse o imediato levantamento do arrolamento dos bens descritos a fls. 16 a 18 dos autos, uma vez que, nos termos e com os fundamentos referidos no requerimento de oposição à providência, não estavam reunidos os pressupostos que presidiram ao decretamento da mesma.

Após o exercício do contraditório, o Tribunal a quo considerou terem sido infirmados diversos factos anteriormente considerados indiciariamente provados, tendo julgado improcedente o procedimento cautelar e, em consequência, determinou o levantamento do arrolamento dos bens acima referidos.

Inconformadas, apelaram as requerentes, suscitando, em síntese, as seguintes questões:
1ª – Alteração da matéria de facto, conforme alegado pelas requerentes.
2ª – Reconhecimento de que há justo receio de ocultação e dissipação dos bens e séria probabilidade de a requerida ser declarada indigna.
3ª – Revogação da decisão que ordenou o levantamento da providência cautelar.
A requerida contra – alegou, defendendo que o recurso deverá ser rejeitado, uma vez que as recorrentes não indicaram com exactidão as passagens da gravação em que se fundam ou, caso assim se não entenda, defendem a bondade da decisão recorrida.
3.
São as conclusões que delimitam o âmbito do recurso e o poder de conhecimento do Tribunal ad quem, sem prejuízo do conhecimento oficioso previsto no artigo 660º, n.º 2, CPC.

As questões que nelas se colocam, face ao disposto nos artigos 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 CPC, estão atrás delineadas.

IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
A primeira questão, a ser decidida, reporta-se à impugnação da matéria de facto.

Entendem as requerentes que o tribunal a quo não julgou correctamente os factos em apreciação, pretendendo, por isso, a reapreciação de toda a prova produzida, nomeadamente, a prova testemunhal produzida pelas requerentes, devendo ser revogados, em seu entender, os factos constantes da decisão recorrida sob os números 13º, 15º, 18º, 19º, 22º a 36º e considerados provados os factos constantes dos números 11º a 48º da matéria que preliminarmente foi indiciariamente provada.

Apreciando:
Nos termos do artigo 712º, alínea a), CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, CPC, a decisão com base neles proferida.

E, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

O artigo 685º-B, CPC, estabelece os ónus que impendem sobre o impugnante, sob pena de rejeição desse recurso:
a) – Especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (n.º 1, alínea a);
b) – Especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (n.º 1, alínea b);
c) – Indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos (n.º 2) ou, quando o não seja, proceder à transcrição dessas passagens (n.º 4).

Importa, pois, em primeiro lugar, verificar se as recorrentes deram cumprimento aos ónus que sobre si impendiam.

As recorrentes identificaram os pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados, por referência aos artigos da decisão sobre essa matéria.

Também foram indicados os concretos meios probatórios em que se funda a sua pretensão: mostram-se identificados os depoimentos e os documentos que, em seu entender, justificam resposta diversa.

Relativamente ao ónus previsto no n.º 2 do artigo 685º-B, a lei distingue entre as hipóteses em que é possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, informações ou esclarecimentos e a hipótese em que essa possibilidade não existe. No primeiro caso, basta ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda para obter a alteração da matéria de facto, sendo facultativa a respectiva transcrição; no segundo caso, impende sobre o recorrente o ónus de proceder à transcrição das passagens da gravação em que se funda, sob pena de imediata rejeição do recurso (cfr. n. os 2 e 4 do artigo 685º-B).

Relativamente ao ónus previsto no n.º 2 do artigo em causa, se é certo que os recorrentes não indicaram os depoimentos por referência à acta de julgamento, nos termos do artigo 522º-C, a verdade é que o recurso apenas deve ser rejeitado se tal omissão tiver algum relevo, ou seja, se por força dessa omissão o tribunal se vir impedido de identificar, de forma fácil e segura, o depoimento visado.

Tal como tem vindo a ser entendido nesta Relação, consideramos que a rejeição do recurso por falta de indicação do depoimento por referência ao assinalado na acta se configura como uma sanção desproporcionada, contanto que os depoimentos estejam devidamente identificados.

Estamos, pois, em condições de apreciar o mérito do recurso.
I.
Relativamente aos poderes conferidos à Relação pelo artigo 712º CPC, desenharam-se duas correntes.

A primeira, mais restritiva, na linha do defendido por Miguel Teixeira de Sousa[1], resume os poderes do tribunal de recurso a uma intervenção meramente formal, residual, destinada a apurar apenas a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, bastando que a decisão da 1ª instância seja uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, intervindo o tribunal de recurso apenas em caso de erro manifesto, consistente na flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão.

A segunda corrente defende uma leitura mais ampla dos poderes da Relação, considerando que, em sede de reapreciação da prova, a Relação tem os mesmos poderes que a 1ª instância, podendo formar convicção diversa relativamente à matéria impugnada. Neste sentido se pronunciam, designadamente, Abrantes Geraldes[2] e Amâncio Ferreira[3].

A segunda corrente é a que melhor se ajusta ao propósito de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto e, como observa Abrantes Geraldes, as limitações decorrentes da falta de imediação não devem esvaziar o regime da reapreciação da matéria de facto, mas tão só aconselhar especiais cuidados aquando da reapreciação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, “evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto, quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados”[4].

Como consta do relatório, a providência cautelar peticionada foi deferida, isto porque o procedimento cautelar foi julgado procedente, por provado, tendo, em consequência sido decretado o arrolamento dos bens descritos a fls. 16 a 18 dos autos.

O tribunal formou a sua convicção com base nos documentos juntos aos autos e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência.

As testemunhas então inquiridas foram a [LS], empregada doméstica do falecido [QA], o amigo [JB], dono do café restaurante “Sinais do Cristo Rei”, onde durante vários anos o [QA] almoçava, com regularidade, [JMB], o advogado que foi contactado pelo [JB] a propósito do testamento que o [QA] pretendia fazer a favor das suas sobrinhas, e [MAO], amiga de infância do referido [QA].
Segundo a Exc. ma Juiz, então titular do processo, “todas as testemunhas depuseram de forma isenta e coerente, revelando conhecimento directo dos factos em apreço, bem como sincera estima pelo falecido, sendo certo que nenhuma das testemunhas conhece pessoalmente as requerentes nem tem qualquer expectativa de beneficiar do seu património”, acrescentando que as mesmas “foram bastante rigorosas quanto à descrição dos factos e, por isso, o Tribunal julgou os mesmos indiciariamente provados”.

As testemunhas foram inquiridas, em 7/07/2008, tendo a providência sido decretada no dia seguinte.

Não obstante, deduzida oposição, as testemunhas arroladas pela requerida mereceram tal credibilidade à Exc. ma Juiz, nova titular do processo, que foram infirmados os factos julgados indiciariamente provados, com base no depoimento das testemunhas ora arroladas, e acrescentados outros, pelo que foi julgado improcedente o procedimento cautelar e, em consequência, determinado o levantamento do arrolamento dos bens descritos a fls. 16 a 18 dos autos.

As recorrentes discordam não só que tais factos tenham sido infirmados como não aceitam, em face da prova produzida, que tenham sido considerados indiciariamente provados os factos constantes da decisão recorrida sob os números 13º, 15º, 18º, 19º, 22º a 36º.

Pretendem, por isso, a revogação destes factos e, ao mesmo tempo, que se considerem provados os factos ora infirmados, ou seja, os factos constantes dos números 11º a 48º da matéria que preliminarmente foi indiciariamente provada.

De que lado estará a razão?

As recorrentes começam por alertar, e com razão, que é pressuposto que, quando se alega um facto, quer no exercício da prova de um direito, quer no exercício da contradita desse mesmo direito, se alegue com coerência e precisão, sob pena do julgador na apreciação da respectiva prova não saber qual o facto que o alegante, afinal, pretende provar.

Esta chamada de atenção prende-se, desde logo, com a extinção da relação laboral que houve entre o [QA] e [LS].

No artigo 20º da oposição, refere a [DP] que o [QA] desabafava, para quem o queria ouvir, que aquela ex – empregada nunca aceitou bem o seu namoro com a requerida e que, por tal motivo, a mesma declarou que não pretendia continuar a trabalhar em sua casa daí para a frente.

Assim, acrescenta no artigo 21º que, “na sequência de uma altercação havida com o [QA], antes do seu casamento com a requerida, à porta da casa, a [LS] tomou a decisão unilateral de se despedir dele, de forma definitiva, abandonando a casa e o trabalho”.

Afirma no artigo 23º que, “logo de seguida, ainda antes do casamento da requerida com o [QA], a [LS] instaurou contra este uma acção judicial no Tribunal de Trabalho, exigindo-lhe uma indemnização, terminando o processo com o n.º 84/07 OTUALM, ainda na fase administrativa, em 14/11/2007, através do pagamento por aquele de uma indemnização”.
Ora o [QA] casou com a [DP] a 9/08/2007 e o processo deu entrada no Ministério Público em 10/09/2007.

Assim, não é verdade que a [LS] tenha instaurado uma acção judicial contra o [QA], e que essa acção tenha sido instaurada antes deste ter casado com a [DP].

O facto alegado de que tinha sido a [LS] a despedir-se, pelas razões aí invocadas, entra em contradição com o alegado por duas testemunhas que a requerida apresentou, sendo que uma delas, a antiga empregada da Farmácia, de que o [QA] e a sua primeira esposa eram proprietários, conhecia pessoalmente a [LS], há vários anos, como empregada do casal [QA e F].

Segundo ela, o Sr. [QA] despediu a [LS], antes deste ter conhecido a [DP].

Acrescenta a [R], a nova empregada doméstica, agora da [DP] e [QA], que este “falava que foi ele que a despediu”.
Ao contrário destas, refere a [IM], amiga da [DP], que o [QA] lhe contou que a [LS], um certo dia, lhe disse que ia sair e nunca mais voltou.

Legítimo perguntar quem estará a dizer a verdade.

A chamada de atenção prende-se também com o Restaurante Sinais de Cristo Rei.

No artigo 19º, última parte e 51º da oposição, a requerida afirma que, “após o casamento do [QA] com a Requerida, ambos deixaram de frequentar o Restaurante «Sinais do Cristo Rei», em Almada, propriedade do [JB], em virtude daquele ter deixado de gostar da comida ali confeccionada (...)”.

No artigo 78º da oposição, diz a requerida que, “o [QA] e a Requerida, algum tempo após o casamento de ambos, deixaram de frequentar, tão assiduamente como até então, o Restaurante do [JB] (...)”.

Desde logo, a Requerida pretende dizer que, após o casamento, sempre almoçou com o [QA]. Mas tão depressa diz que nunca mais voltaram ao Restaurante do [JB], como refere que continuaram a almoçar no referido Restaurante, embora menos assiduamente do que fazia o [QA], antes de casar com ela.

Entretanto, o [PC], gerente do [BP], diz que dois ou três meses antes de 7/12/2007, data em que saiu deste Banco, deixou de ver o [QA], no Restaurante Sinais de Cristo Rei.

Por sua vez, a [AM], amiga da requerida, refere que o [QA] e a [DP] almoçavam em restaurantes mas nunca ouviu falar nem em [JB] nem sequer em Restaurante Sinais de Cristo Rei. Não refere, porém, nomes de qualquer outro restaurante. Ou seja, segundo esta testemunha, o [QA], depois de casado, continuou a almoçar fora de casa mas ia sempre acompanhado pela esposa. Frequentavam diversos restaurantes, sendo certo que o restaurante do [JB] tinha sido excluído.

A [R] diz que iam almoçar ao restaurante, mas não pormenoriza nem explicita se iam ao mesmo ou a diversos restaurantes.

Em sentido contrário, refere a [AS] que a [DP] lhe contava que o [QA] se levantava cedo, tomava um sumo e, mesmo sozinho, ia ao Restaurante, mas acrescenta que o [QA] nunca lhe falou do Restaurante do [JB].

Ou seja, ao contrário do referido pelas testemunhas anteriores, considera a testemunha que o [QA] continuava a ir ao restaurante, sozinho. Tem a preocupação de excluir o Restaurante do [JB], mas não a de explicitar a que restaurante se deslocava, sendo certo que o [QA] era quase invisual e tinha ainda grandes dificuldades de locomoção.

Naturalmente que, perante isto, é legítimo perguntar se, após o casamento, o [QA] continuou ou não a frequentar o Restaurante Sinais do Cristo Rei, não só por ficar perto de sua casa, mas também porque o [QA] conhecia o caminho de sua casa até lá, pois era o café/restaurante onde passava grande parte do dia.

Esta questão tem importância, face ao que ficou indiciariamente provado e depois foi revogado, como adiante melhor se apreciará.

Finalmente, no artigo 72º diz a requerida que, “nos finais do ano de 2007, deslocaram-se ambos, a requerida e seu marido [QA], a um Cartório Notarial de Almada, para marcarem um testamento, um ao outro, tendo-lhes sido ali dito pelo funcionário de serviço que tal era desnecessário (...)”.

Ora as testemunhas que a requerida arrolou, [IM] e [AS], referem que ouviram dizer que o testamento era apenas do [QA] para a requerida.

Têm, por isso, razão as Requerentes, quando se interrogam sobre quem estará a dizer a verdade, se é que isto é verdade.

Aqui chegados, passaremos a analisar os factos indiciariamente provados que o tribunal a quo, após o contraditório, entendeu revogar, para dar como provados novos factos admitidos pela requerida.
III.
FACTOS INFIRMADOS:
1º - O tribunal deu indiciariamente[5] como provado no n.º 11 que “[QA], antes de se casar com a requerida, fazia fisioterapia na Clínica [VC], no Pragal, estabelecimento que começou a frequentar em princípios de Maio de 2007”.
Este facto corresponde ao alegado pelas requerentes no artigo 14º do requerimento inicial, com base no depoimento da testemunha [LS], empregada doméstica do [QA].

Esta referiu que o Sr. [QA] tinha começado a frequentar a Clínica [VC], em fins de Março, princípios de Abril.

Na decisão final, o Tribunal a quo manteve o n.º 11 da decisão inicial e indiciária mas também veio dar como provado no n.º 19 que, “entre 24/01/2007 e 27/02/2008, o [QA] fazia fisioterapia na Clínica [VC], no Pragal, num total de 90 sessões e aí frequentava consultas de fisioterapia, clínica geral, cardiologia, urologia, psiquiatria e cirurgia vascular”.

Há aqui manifestamente contradições. Ou começou a frequentar a Clínica em 24/01/2007, conforme alegou a requerida ou em princípios de Maio de 2007, conforme havia sido inicialmente considerado provado, no seguimento do alegado pelas requerentes e corroborado pela [LS]. O que se não podem é aceitar as duas datas, como início dos tratamentos de fisioterapia na dita Clínica.

O tribunal a quo deu como provado no n.º 19 que a frequência da Clínica se iniciou em 24/01/2009, tendo por base uma declaração da Clínica.

Quando esta declaração foi junta aos autos, as requerentes impugnaram o documento e solicitaram que fossem apresentados os recibos das ditas consultas médicas aí descritas. A requerida juntou recibos de consultas, a partir de 23/08/2007, ou seja, depois do casamento.

No que se refere a tratamentos de fisioterapia, não apresentou qualquer recibo. Assim, a declaração emitida pela Clínica [VC], em 4/09/2008, conjugado com o depoimento da [LS], (cuja credibilidade, nesta parte, não foi posta em causa pelas testemunhas arroladas pela requerida), e com os recibos apresentados, permite dar como provado o seguinte:
11
O [QA], antes de casar com a requerida, fazia fisioterapia na Clínica [VC], no Pragal, estabelecimento que começou a frequentar, pelo menos, em finais de Março, princípios de Abril de 2007.
19
Na Clínica [VC], o [QA] teve consultas de diversas especialidades.

2º - Inicialmente o tribunal deu como provado, conforme n.º 12, que “o [QA] era pessoa que gostava de se gabar de possuir um património considerável”.

Com a oposição, o Tribunal entendeu não dar como provado este facto e deu como provado o constante do n.º 22, considerando que “o referido [QA] era uma pessoa aberta e frontal, mas nunca proclamava os bens que tinha, quer em património, quer em dinheiro, sendo nessa questão reservado e desconfiado”.

Inicialmente, o Tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos das testemunhas [LS] e [JB]. Segundo a [LS], sua empregada durante dezassete anos aproximadamente, refere que o [QA] era muito amigo de se gabar das grandezas. Por sua vez, o [JB], dono do Restaurante Sinais de Cristo Rei, onde o [QA] já almoçava com a Drª Fernanda, considerou que o Sr. [QA] era uma pessoa expansiva. Acrescentou que toda a gente sabia que vendeu uma farmácia, após a morte da esposa, e não tinha problemas em dizer o que tinha e o que não tinha.

A requerida procurou contraditar este facto com o artigo 17º da oposição.

A esta matéria responderam as testemunhas [CA], [PC] e [IC].

O primeiro habita no mesmo prédio do [QA], mas, dado estar ocupado todo o dia e fora de casa, por razões profissionais, esclarece que se cruzava de quando em vez, no vão das escadas, com o [QA], mas desconhecia, por isso, o pormenor da vida dele, pois que, acrescenta, o Sr. [QA] nunca falou da sua vida particular, quando se encontravam nas escadas com o depoente.

Quanto à sua personalidade, considerou-o uma pessoa muito frontal e muito emotiva.

Segundo refere o [PC], gerente do [BP], no Pragal, até 7/12/2007, data a partir da qual se mudou para gerente do BPN, o [QA], antes de se casar, quando se dirigia ao Banco, era acompanhado pela [LS] e era ela que ficava com os extractos da conta que o [QA], com frequência, pedia.

Havia já referido a [LS] que o [QA] tinha depositado nesse Banco um milhão e oitocentos mil euros, que havia levantado do Milénio. Daí o tratamento privilegiado do [QA] no Banco Popular e a razão por que, quando se transferiu para o BPN, o [PC] levou consigo [QA], apesar de ser, segundo ele, uma pessoa muito desconfiada, mesmo em relação ao depoente e seus colegas, o que acarretava dificuldades de relacionamento.

E no BPN continuou a ter um tratamento privilegiado, onde passou a deslocar-se com a [DP], dado já se encontrar casado, tendo uma gestora de conta, pessoa com quem teria chegado mesmo a falar sobre um testamento que, segundo ela, queria fazer à [DP].

Ora, à data do óbito, verificou-se que o [QA] era co – titular no BPN de uma conta com a requerida, cujo saldo era € 133,50.

Se era pessoa de trato difícil, forreta, com apenas cerca de 100 euros depositados no Banco, interrogamo-nos por que teria querido o [PC] levar consigo o [QA], como seu cliente, dando-lhe um tratamento privilegiado, como aquele refere, chegando muitas vezes a deslocar-se à sua casa, se afinal a sua conta não ia muito além dos cem euros.

Tendo o [QA] cerca de oitenta e sete anos, e passando a [DP] a ser co – titular dessa conta, maior dificuldade temos em entender, a dar crédito ao depoimento do [PC], que a esposa não desse opiniões, com o pretexto de que ele era totalmente soberano nas decisões que tomava sobre os dinheiros depositados, quando afinal aparece uma conta de apenas € 133,50 e ele era praticamente invisual.

A dar crédito ao depoimento da [IC], constata-se que a mesma entra em contradição. Apesar de o conhecer mal, refere que o [QA], em termos de personalidade, era uma pessoa extrovertida, frontal, sempre bem disposto. Não obstante, acrescenta, ele tinha muito medo de ser roubado, afirmando mesmo que o Quintino lhe dizia que os Bancos o roubavam. Mas logo a seguir refere que o [QA] falava a toda a gente da venda da farmácia, dados os encargos que teve que suportar.

Ora, se muito pagou, é porque muito recebeu.

Acresce que, independentemente do [QA] e [D. F], terem durante muitos anos a exploração, pelo menos, dessa farmácia e de ter sido um homem de negócios, tinha ainda prédios urbanos e terrenos agrícolas.

Assim, atendendo às contradições notórias quer da requerida quer das testemunhas por si arroladas e aos muitos indícios da sua falta de isenção, temos como mais seguro o depoimento das testemunhas arroladas pelas requerentes que, sem margem para dúvidas, afirmaram que o [QA] era pessoa que gostava de se gabar de ter um património considerável.

Assim, o n.º 12 dos factos provados passará a incluir também parte do facto 22, passando a ter a seguinte redacção:
12
O [QA] era uma pessoa aberta que gostava de se gabar de possuir um património considerável.

3º - O tribunal inicialmente começou por dar como provados os seguintes factos:
Facto n.º 13:
A requerida, ao perceber que o [QA] era possuidor de um património considerável, tudo fez para conquistar a sua amizade.

Facto n.º 14:
Em meados de Junho de 2007, estava o [QA] a entrar no prédio, acompanhado da sua empregada doméstica [LS], e à porta encontrava-se à sua espera a requerida.

Facto 15:
A requerida dirigiu-se ao [QA] e perguntou-lhe se ele a conhecia, ao que o [QA] respondeu que não, pelo que a requerida esclareceu que era da Clínica onde ele ia.

Facto 16:
Já em casa o [QA] disse à [LS] que era uma “gaja amiga da dona da Clínica e devem andar a ver se me comem alguma coisa”.

Facto 18º:
A requerida para convencer o [QA] a casar com ela prometeu-lhe que, se casassem, deixaria de trabalhar como enfermeira e dedicar-se-ia em exclusivo a tratar dele, logo que fossem casados.

Facto 19º:
A requerida, uns dias antes do casamento com o [QA], dispensou os serviços domésticos da [LS], dizendo-lhe que no futuro ela e o [QA] não precisavam da empregada doméstica.
A prova destes factos assentou no depoimento da [LA], que tinha um conhecimento directo e pessoal dos factos.

Apesar da requerida ter tentado pôr em causa a credibilidade e idoneidade desta testemunha, servindo-se de alegadas afirmações do [QA], não conseguiu lograr, em nosso entender, os seus propósitos.
A [LS] foi acusada pela requerida de ter uma actuação de conluio com as requerentes, (artigo 1º da oposição), sobrinhas do [QA] e residentes no Brasil.

Foi também acusada de não ter aceitado bem o namoro da requerida com o [QA], de tal modo que deixou de pretender continuar a trabalhar na casa dele, daí para a frente (artigo 20), tendo abandonado a casa e o trabalho (artigo 21º). Foi ainda acusada de o [QA] referir, já depois desta ter deixado a sua casa, que a mesma, aproveitando o facto dele ter visão limitada, o tinha roubado durante muitos e muitos anos seguidos, retirando-lhe, nomeadamente, talheres de prata, serviços de loiça valiosa, objectos de ouro e de prata (artigo 60º).

Importará salientar que as testemunhas arroladas que depuseram sobre esta matéria manifestam muitas contradições no seu depoimento e não poderemos deixar de ter em devida conta o facto da [LS] ter estado ao serviço do [QA], desde 1991 até finais de Agosto de 2008. Ou seja, durante 17 anos, o [QA] sempre aceitou a [LS] como boa empregada. Resolveu casar-se e, a partir daí, começou a considerá-la como uma ladra inveterada, que ao longo de todos aqueles anos se foi apoderando contra a vontade deste de muitos e variados objectos que constituíam o recheio de sua casa.

Admitindo, por mera hipótese, que isso tivesse sido verdade e que o [QA] houvesse silenciado esses factos por força da necessidade de apoio, de ter alguém que tratasse dele, o [QA], sendo um homem frontal, e deixando de ser premente essa necessidade diria a todos o que efectivamente ela, de concreto, lhe tinha roubado.

A ser verdade o que as testemunhas revelam, o [QA] a uns dizia uma coisa e a outros dizia outra, o que manifestamente não é credível, dado se encontrar mentalmente são.

A requerida veio alegar, no articulado, o desaparecimento de talheres de prata, serviços de loiça valiosos, objectos de ouro e prata.

A sua amiga [AP] veio dizer que o [QA] lhe contou, depois do casamento, que os roubos eram de dinheiro, razão por que, depois de casado, mudou a fechadura porque tinha medo que a [LS] lá entrasse e levasse mais coisas.

Mas sendo assim, como se justifica que tal receio só se tenha manifestado depois do casamento, sendo que tal receio era tão grave que até o impeliu a mudar a fechadura, ou seja, quando vivia sozinho não tinha medo mas quando se casou ficou apavorado.

Só faltou dizer, sendo ele invisual e com tão grandes dificuldades de locomoção, quem comprou a fechadura e quem a mandou colocar.

Por sua vez, a [RF], levada pela [DP], passou a trabalhar em casa do [QA], depois deste ter casado, três vezes por semana das nove às treze horas.
Não obstante trabalhar apenas essas horas, quando trabalhava, refere que passava as quatro horas a conversar com o [QA]. Ele falava e ela ouvia.

Nessas conversas, refere, o [QA] era muito repetitivo. Sempre lhe contou que os roubos eram de cobertores, colchas, coisas de prata, que ele tinha.

A testemunha [AS] referiu que, a dada altura, o [QA] telefonou para ela muito preocupado, dizendo-lhe:

“Olhe, tenho isto tudo vazio. A minha mulher tinha tanta roupa, tantos edredons, tantos lençóis, estou a ver desaparecer tudo”.

E, procurando dar maior credibilidade ao seu depoimento, dizia que o [QA] tocava com as mãos nas roupas que ainda estavam nos gavetões.

Como por ironia do destino, o [QA] era invisual, e a [LA] permanecia com ele durante o dia, foi-lhe perguntado pelo Advogado das requerentes como é que ele terá feito para a contactar.

Esclareceu, então, que terá tido a ajuda de algum amigo para esse efeito.

Anote-se que, ao longo do seu depoimento, referiu que nunca tinha ido a casa do [QA] mas apenas à sua Quinta.

Nenhuma credibilidade podem merecer testemunhas destas.

Perante o depoimento da [LS], que tinha conhecimento directo dos factos e, por outro lado, perante o depoimento das referidas testemunhas que, não podendo contradizer o alegado pela [LS], pretenderam retirar-lhe credibilidade, sem o conseguir, mantemos a versão dos aludidos factos tal como constam da “sentença” inicial.

Consideram-se, assim, provados os factos 13, 14, 15, 16, 18, 19.

4º - Na primeira sentença, ficaram provados os seguintes factos:
Facto 23:
Em finais de Novembro, princípios de Dezembro de 2007, o [QA] confessou ao [JB] que se sentia enganado e estava muito arrependido de ter casado com ela.
Facto 24:
Mais lhe disse que não sabia o que estava a acontecer, já que, contrariamente ao que acontecia antes, passava grande parte do tempo a dormir e sentia-se muito abatido.
Facto 25:
E que desconfiava que a requerida lhe dava medicamentos para dormir muito.
Facto 26:
Contrariamente ao que acontecia antes, [QA] não se conseguia levantar da cama antes das 16 horas.

A estes factos respondeu o [JB], o qual demonstrou ter conhecimento pessoal e directo destes factos. Foram conversas tidas entre ele e o [QA], no Restaurante Sinais de Cristo Rei, que se localizava a curta distância da casa do [QA], e cujo trajecto este conhecia muito bem.

Este depoimento é corroborado pelo da [LS] a quem o [QA] telefonou, contando estes factos e mostrando o seu abatimento, nessa altura.

A requerida procurou colocar em causa a credibilidade destas testemunhas mas, em nosso entender, não o conseguiu.

Com efeito, procurando demonstrar que passou muito tempo junto do [QA], não havendo por isso nenhuma razão para ele estar insatisfeito e arrependido do bom casamento que tinha feito, a requerida veio juntar aos autos uma declaração, emitida em 2/09/2008, subscrita pela Enfermeira Chefe de Ginecologia, [MJ], dirigida ao Departamento dos Recursos Humanos.

Segundo este documento, a requerida, desde que casou a 9 de Agosto de 2007 até 3 de Março de 2008, data do óbito do [QA], não trabalhou entre 9 e 25 de Agosto de 2007, por licença de casamento, gozou férias de 27 de Agosto a 12 de Setembro de 2007, gozou os feriados de 9 a 13 de Outubro de 2007, voltou a gozar férias de 15 a 24 de Outubro, gozou o feriado de 19 de Dezembro, voltou a gozar férias de 27 de Dezembro a 4 de Janeiro de 2008 e a partir dai terá metido atestado de 5 de Janeiro a 2 de Março de 2008.

Competindo ao Departamento de Recursos Humanos comprovar as férias e faltas dos funcionários, estranham as requerentes que, no caso, (i) tenha sido o Departamento onde trabalhava a requerida a emiti-lo, (ii) a 2/09/2009, (data em que a requerida já se havia aposentado, mas em que já tinha conhecimento que contra si corria procedimento cautelar), (iii) nele vindo referenciados feriados inexistentes (9 a 13 de Outubro e 19 de Dezembro) e (iv) e um atestado de 5 de Janeiro a 2 de Março de 2008, não sendo normal que o atestado tenha uma durabilidade superior a trinta dias e termine exactamente a um domingo) e (v) finalmente, tendo falecido o Quintino no dia 3 de Março de 2008, não sejam apresentadas os dias em que faltou ao serviço por nojo, dado que apenas se aposentou a 7 de Março de 2008.

Perante estas dúvidas suscitadas pelas apelantes, solicitou-se aos Recursos Humanos do Hospital de Santa Maria informação completa e detalhada, verificando-se que, entre o dia 9/08/2007 e 24/08/2007, não trabalhou, gozando intercaladamente da licença de casamento, dias de descanso e de folga.

Não trabalhou igualmente, entre os dias 25/08/2007 e 12/09/2007, gozando de férias, dias de descanso e de folga forma intercalar.

Trabalhou entre os dias 13/09/2007 e 8/10/2007, salvo os dias 17/09, 25/09 e 3/10 que gozou de descanso e os dias 20/09, 28/09 e 6/10 que gozou de folga.

Não trabalhou entre os dias 9/10 e 24/10, gozando feriados, folgas, dias de descanso e ainda férias

Voltou a trabalhar, a partir do dia 25/10 até ao dia 24/12, salvo os dias 27/10, 4/11, 10/11, 12/11, 20/11, 28/11, 6/12, 11/12, 14/12, 20/12 e 22/12, que descansou, e os dias 28/10, 30/10, 15/11, 23/11, 13/12, 17/12 em que esteve de folga.

A partir de 25/12/2007 até 7/03/2008, não mais voltou a trabalhar, seja porque gozou folga (25/12), ou descansou (26/12), seja porque gozou feriados (27/12/2007 a 3/01/2008), seja porque esteve de baixa por doença (4/01 a 31/01/2008 e 4/02 a 2/03/2008), com faltas injustificadas de 1/02 a 3/02/2008, e finalmente de nojo entre o dia 3/03 a 7/03/2008.

Ora, através desta declaração, constata-se que a [DP], nos meses de Novembro e Dezembro de 2007, trabalhou, como enfermeira, exceptuando apenas os dias em que gozou descanso e folgas, trabalhando inclusivamente a noite de consoada.

Assim, merece credibilidade o depoimento do [JB] que, desconhecendo os dias em que a [DP] trabalhava ou deixava de trabalhar, localiza a conversa com o [QA], em momentos em que esta trabalhou, sendo óbvio que, nessas datas, nada impedia o [QA] de se poder deslocar ao seu restaurante. Tanto mais credível quanto sabemos que, a partir de 25/12/2007 até ao dia 7/03/2008, a [DP] deixou de trabalhar.

Igualmente, podia o [QA] telefonar com segurança à [LS], dado que a empregada actual apenas trabalhava de manhã, em três dias da semana.

E se a [DP] gozou tantas folgas, feriados e descansos é porque havia dias que trabalhava as 24 horas, fazendo turnos, razão por que o [QA], nessas alturas, se sentia desapoiado.

Consideram-se, pois, provados os referidos factos 23 a 26

5º - Na primeira sentença, ficou provado:
Facto 27:
A partir do casamento, a requerida procurou isolar o [QA] em casa, evitando que ele convivesse com as pessoas que se relacionavam com ele antes de ter casado com ela.

Depuseram sobre este facto as testemunhas [JB], [LG] e [MAO] e fizeram-no de forma isenta e clara.

A este propósito é esclarecedor, o depoimento da [MA].

Esta, tal como o marido, eram amigos de longa data do [QA]. Segundo ela, como residiam em Ermesinde, telefonavam assiduamente ao [QA]. Mas, depois do casamento, a [DP] inibiu-o de ter contacto com eles. “A [DP] afastou-o dos amigos que ele tinha”.

Refere que ele nunca mais foi senhor de atender o telefone, depois que casou, estando o telefone sempre ocupado. E, quando alguma vez conseguia a ligação à noite, era sempre ela que atendia e, como regra, não passava o telefone ao [QA].
Tanto as testemunhas arroladas pelas requerentes quanto as arroladas pela requerida confirmaram que o [QA] era quase cego e por isso não conseguia fazer chamadas, excepto para a [LS], porque, conhecendo o seu número de telefone há muitos anos, já o discava de forma rotineira.

A corroborar que assim era, a [AS], sua ex – funcionária da farmácia, veio dizer que ele não tinha capacidade para realizar chamadas e por isso pedia a outra pessoa para lhas fazer.

Ora, se, antes do casamento, era a [LS] que lhe fazia as chamadas, depois do casamento, a [R] não referiu que alguma vez tivesse ligado para alguém a pedido do [QA], esclarecendo que, enquanto prestou serviços para o casal, terá recebido apenas uma chamada de alguém que se dizia sobrinha do [QA], não chegando a passar-lhe o telefone.

Merece, por isso, toda a credibilidade o depoimento da [LS], quando se refere à chamada do [QA], em que este estava profundamente abatido, como melhor se explicitará adiante.

Mantém-se, por isso, o referido facto 27.

6º - Na primeira sentença ficou provado:
Facto 28:
Nos finais de Novembro de 2007, [QA] telefonou à [LS] e disse-lhe que estava arrependido de ter casado com a requerida.
Facto 29:
Tendo confessado à [LS] que desconfiava que o queria matar.
Facto 30:
Nessa altura, pediu à [LS] para esta voltar a trabalhar em sua casa.
Facto 31:
A [LS] disse ao [QA] que não podia voltar para lá sem o acordo da requerida.
Facto 32:
Algum tempo depois, a [LS] encontrou, em Almada, a requerida e disse-lhe que o [QA] lhe tinha pedido para voltar a trabalhar como doméstica na sua casa.

Facto 33:
Ao que a requerida lhe disse que quem mandava na casa era ela e que não precisava dos serviços da [LS].

Este depoimento merece toda a credibilidade. Estes desabafos do [QA] com a [LS], tal como com o [JB], ocorrem em finais de Novembro. E, tanto esta como o [JB] não podiam saber que a requerida esteve sem trabalhar em Outubro, salvo os dias 25 e 26 e que em Novembro, havia retomado o trabalho até ao dia 25 de Dezembro.

Não houve, por outro lado, qualquer testemunha da requerida que tivesse contraditado os factos dos quais a testemunha [LS] teve conhecimento directo e pessoal.

Os depoimentos das testemunhas da requerida limitaram-se a tentar descredibilizar a idoneidade e independência das testemunhas das requerentes mas não lograram alcançar os seus objectivos.

Relativamente à [LS], procuraram fazer crer que não seria possível esta conversa entre o [QA] e a [LS], sua ex – empregada, porque este não teria suportado a afronta de lhe ter pago uma indemnização e que estava em conflito com ela.

Não podemos esquecer que o [QA] tinha 87 anos. Carecia de apoios para se poder deslocar. Estava retido em casa. Sabia as circunstâncias em que a [LS], que tinha sido sua empregada durante tantos anos, fora despedida. O processo entre as partes concluiu-se por um acordo no dia 14/11/2007. O [QA] não era homem rancoroso, pois que, quando se zangava com alguém, podia voltar a relacionar-se, como referiu a [AS], sua ex – empregada da farmácia.

Estando o [QA] lúcido, não podia deixar de pôr nos pratos da balança, de um lado, a indemnização que pagou à [LS] pelo seu despedimento forçado e, do outro, o reconhecimento de que afinal os objectivos e razões por que tinha casado com a [DP] se tinham frustrado e daí reconhecer que precisaria do amparo de alguém que tantos anos o acompanhou e que muito bem conhecia.

Mantêm-se, por isso, os factos 28 a 33.

7º - Na sentença que decretou o arrolamento ficou provado:
Facto 34:
Em conversa que teve com a [LS], no café restaurante «Sinais de Cristo Rei», no princípio do ano de 2008, [QA] disse-lhe que queria fazer um testamento a favor das sobrinhas que viviam no Brasil.
Facto 35:
Ao que a [LS] respondeu que a pessoa mais indicada para o ajudar a tratar desse assunto seria o [JB], pessoa amiga de longa data do [QA].
Facto 36:
Chamaram à mesa o [JB] e o [QA] pediu-lhe para falar com um advogado, porque queria fazer um testamento às sobrinhas que tinha no Brasil.

Sobre estes factos depuseram as testemunhas [JB] e [LS].

Pretendendo demonstrar que esta conversa não podia ter existido, argumenta a requerida que, nessa altura, já o [QA] não frequentava o restaurante do [JB], pois que, segundo disse, o [QA], depois de casar, deixou de gostar da comida, pois lhe fazia azia.

Este argumento não colhe, tendo em conta a oposição da requerida, onde, a dado passo, refere que o [QA] deixou de frequentar o restaurante, para depois vir dizer que, afinal, deixou apenas de frequentar aquele restaurante tão assiduamente como fazia antes do casamento.

E nenhuma testemunha contraditou com êxito estes factos que o [JB] relatou, corroborados com o depoimento do advogado contactado.
Mantêm-se os factos 34 a 36.

8º - Na sentença que decretou o arrolamento ficou provado:
Facto 37:
[JB] contactou um Advogado e este informou-o que devia levar ao seu escritório o [QA], para este lhe fornecer os documentos e prestar as informações necessárias à elaboração do testamento.
Facto 38:
Tendo ficado acordado entre o Advogado e [JB] que este lhe comunicaria o dia em que podia levar ao seu escritório o [QA].
Facto 39:
Alguns dias depois a requerida e o [QA] foram ao restaurante do [JB].
Facto 40:
No restaurante, o [JB] informou o [QA] que tinha falado com o Advogado e que precisava de combinar com ele uma data para ir ao escritório daquele.
Facto 41:
A requerida, quando ouviu falar numa ida ao escritório de Advogado, exigiu ao [QA] que este lhe explicasse por que queria ir ao escritório de um Advogado.
Facto 42:
[QA], muito pressionado pela requerida, disse-lhe que pretendia fazer um testamento a favor das sobrinhas que tinha no Brasil.
Facto 43:
A requerida, exaltada, disse ao [QA] que não lhe admitia que fizesse um testamento e que se tentasse fazê-lo o deixava sozinho.
Facto 44:
A requerida disse ao [JB] que, quem mandava no marido dela, era ela e que o proibia de se meter na vida deles.
Facto 45:
A requerida obrigou o [QA] a ir para casa.

Sobre estes factos foram ouvidas as testemunhas das requerentes [JB] e o advogado [JMB], que têm conhecimento directo e pessoal dos factos.

O Restaurante do [JB] fica muito perto da Câmara Municipal de Almada, sendo frequentado por várias pessoas que aí se deslocam, como advogados, arquitectos, razão por que a [LS] achou que o [JB] seria a pessoa indicada para arranjar advogado ao [QA].

Tendo ido o [QA] a este Restaurante, acompanhado pela esposa, fez sinal ao [JB], quando esta se deslocou aos serviços. Foi, nessa altura, que se desenrolou a conversa a que alude o facto 40.

Acontece, porém, que a requerida, ouvindo falar de advogado, reagiu da forma descrita, dizendo o que disse.

O depoimento do advogado corrobora estes factos, ao referir que o [JB] lhe havia falado, no princípio do ano, de um tal [QA] que queria fazer testamento a favor de umas sobrinhas que tinha no Brasil, tendo-lhe então dito que o levasse ao seu escritório.

Como nunca mais lá foram, o advogado perguntou ao [JB] o que se estava a pensar, tendo-lhe este respondido que tinha havido problemas com a mulher.

Aliás é a requerida que reforça a veracidade destes factos quando, através da declaração de fls. 629 a 631 se constata que, a partir de 4/01/2008, passou a servir-se de atestados médicos, ainda que com faltas injustificadas pelo meio, estando ininterruptamente de baixa até à morte do [QA].

Na verdade, nos meses de Novembro e Dezembro, a [DP] não meteu baixa para apoiar o marido. Ocorreu esta conversa, e logo meteu baixa médica, a qual apenas cessou, no dia em que o [QA] faleceu.

Parece legítimo concluir que esta baixa médica e o facto de, a partir daí, o [QA] não voltar ao dito restaurante, sozinho ou acompanhado, deveu-se aos factos ocorridos, não podendo o [QA] ficar mais sozinho, não fosse falar com o [JB] e, à data do óbito, aparecer o testamento que ela não queria que fosse feito.

É certo que vieram as testemunhas da requerida referir que o [QA], em Janeiro, já não frequentava o Restaurante do [JB], mas nenhuma delas tinha conhecimento directo deste facto e são várias as contradições em que caem.

Aliás, a requerida não colocou em causa a possibilidade de ter havido uma conversa entre o [JB] e o Advogado, nem demonstrou ter havido qualquer interesse pessoal daquele em ter tido essa conversa com o aludido advogado.
Consideram-se, pois, provados os factos constantes dos números 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44 e 45.

9º - Ficou provado na primeira sentença:

Facto 47:
Desde a última ocorrência que o [QA] não voltou mais a ser visto fora de casa pela vizinhança.
Facto 48:
Os vizinhos e amigos do [QA] só tiveram conhecimento da sua morte já depois dele ter sido sepultado.

Sobre estes factos depuseram por parte das requerentes as testemunhas [LS], [JB] e [MA].

Foi o Dr [P] quem disse ao [JB] que o seu amigo da farmácia, o [QA], a quem chamavam o doutor, já tinha falecido. Soube isto depois dele já ter sido sepultado. Foi depois o [JB] quem deu conhecimento à [LS].

Quando, depois disso, encontrou a [DP] e a interpelou acerca da morte do marido, esta limitou-se a dizer-lhe:
“Agora, rezem-lhe pela alma.”

Algumas testemunhas da requerida dizem que tal não corresponde à verdade, até porque, segundo elas, o [QA] e a [DP] passavam o tempo em passeios, idas à quinta, etc.

Nenhuma delas concretiza esses passeios, limitando-se a [R] a dizer que teriam ido a Bragança.

É sabido, através dos documentos juntos aos autos, que o [QA] era originário do Norte. Daí as referências ao Norte e até a Bragança. Sucede, porém, que a sua aldeia, Barreiro/Paradela da Ribeira, freguesia de Louredo, concelho de Santa Marta de Penaguião, dista de Bragança, pelo menos, 200 Km.

Ora, seria natural que a [DP] quisesse dar o gosto ao marido de rever a sua terra e aqueles lugares, onde tinha nascido e crescido.

Mas, a ser verdade, não deixariam de contar aos amigos as especificidades das estradas que conduzem a esse lugar, quer tivessem provindo de Santa Marta de Penaguião, via Fornelos, quer tivessem provindo de Vila Real, via Pomarelhos.

Mas as testemunhas da requerida jamais fazem referência a qualquer local onde eles pudessem ter ido nem sequer concretizam um único lugar de relevo que tivesse sido passeado.

Mantêm-se, por isso, os factos 47 e 48.
II.
Resta apreciar a matéria considerada provada na decisão final que as requerentes impugnam.

Sobre os pontos da matéria de facto da decisão final, ora impugnados, as requerentes já se pronunciaram sobre eles por estarem em oposição directa com os factos alegados pelas requerentes, pelo que nos limitaremos a tecer as considerações indispensáveis
Facto 15:
A requerida prestou serviços no Hospital de Santa Maria e, em 7/03/2008, foi-lhe reconhecido o direito à aposentação requerido pela mesma em data anterior a 30/07/2007

As recorrentes discordam da última parte do facto descrito sob o n.º 2.

Atendendo aos documentos da Caixa Geral de Aposentações, juntos aos autos a fls. 333 a 336, e declaração emitida pelos Recursos Humanos, têm razão as requerentes, passando o referido facto a ter a seguinte redacção:
“A requerida prestou serviços no Hospital de Santa Maria, pelo menos, até 30/03/2008, sendo certo que, por despacho datado de 7/03/2008, lhe havia sido reconhecido o direito à aposentação, considerada a situação existente em 5/03/2008”.
Facto 23:
Na sequência de uma altercação entre o [QA] e a [LG], esta deixou de trabalhar para o mesmo e o referido [QA] mandou trocar a fechadura da porta, a fim de evitar que a empregada regressasse a casa e, segundo o mesmo dia, evitar que a mesma lhe levasse alguns bens que ali detinha.

Esta afirmação está obviamente em oposição ao descrito no n.º 19 da decisão que decretou o arrolamento, onde se afirma que a dispensa dos serviços domésticos da [LS] partiu da sua iniciativa, tendo naturalmente sido corroborada pelo [QA] esta decisão, atendendo a que este esperava que a [DP] o iria acompanhar o tempo inteiro Era ela própria que tinha considerado este casamento como uma missão, segundo dizia às amigas.

A verdade é que a requerente na oposição vem alegar que a iniciativa foi da [LS] mas as testemunhas vieram dizer que foi o [QA] que a despediu, e invocaram fundamentos díspares.

O facto de ter sido iniciado procedimento administrativa contra o [QA] e não contra a requerida não altera o que foi referido. É que a [LS] era empregada, na altura, apenas do [QA] e a iniciativa de dispensar a empregada, partindo da requerida, teve a anuência tácita deste, pelo que qualquer procedimento só podia ter sido iniciado contra este e não contra aquela.

O depoimento do [PC], nesta parte, não merece credibilidade. Depois de dizer que não sabia se tinha sido ele a despedi-la ou se tinha sido ela a despedir-se, vem depois acusar, sem especificar quando e onde, o companheiro da [LS] que estava a tentar sacar-lhe dinheiro.

Donde, passará a constar como provado apenas aquilo que consta do facto 19 da sentença primitiva.
Facto 25:
Atendendo aos documentos de fls. 370, 410 a 414, poder-se-á apenas considerar provado o seguinte:
“Aos 19 de Julho de 2007, [QA] revogou os testamentos públicos lavrados respectivamente aos 30 de Abril de 1975, no Segundo Cartório Notarial de Almada, em que havia constituído sua mulher [D. MF], por sua única herdeira e aos 20 de Julho de 2006, no Sexto Cartório Notarial de Lisboa”.
Facto 26:
Apenas se provou que “os familiares do [QA] existentes na terra e no Brasil raramente o visitavam ou telefonavam”.
Facto 27:
Atendendo ao documento de fls. 628 a 631, considera-se apenas provado esta esteve ausente do serviço nas datas aí mencionadas, e pelas razões nele descritas.
Facto 28:
Atendendo ao que anteriormente foi explicitado a este propósito, este facto passará a ter a seguinte redacção:
“Após o casamento do [QA] com a requerida, aquele passou a frequentar o Restaurante do Sr. [JB], «Sinais do Cristo Rei», em Almada, com menos assiduidade do que antes do casamento acontecia”.
Facto 29:
Tendo em conta o que se considerou provado e os considerandos tecidos a propósito dos depoimentos das testemunhas da requerida, este facto passará a ter a seguinte redacção:

“Durante o período de namoro e de casamento do [QA] com a requerida, aquele afirmou a pessoas amigas desta que era bem tratado pela requerida”.
Facto 30:
Não merece qualquer credibilidade, nesta parte, o depoimento da [R], não só porque apenas trabalhava três manhãs por semana, das 9 às 13 horas, mas também porque não é credível que tivesse sido contratada para apenas ouvir as histórias do Sr. [QA], durante o tempo de serviço.

Este facto considerar-se-á não provado.
Facto 31:
Dos depoimentos ouvidos e atendendo a que a [DP] ainda estava ao serviço no Hospital de Santa Maria, apesar das férias gozadas e das licenças de doença apresentadas, apenas se poderá considerar como provado o seguinte:

“Durante o casamento do [QA] com a requerida, quando esta se encontrava no Hospital, a empregada doméstica, nas manhãs em que trabalhava, dava-lhe a medicação que a [DP] recomendava”.
Facto 32:
Apenas se considera provado o que consta da do facto 24.
Facto 33:
Este facto não se considera provado. Atenda-se a que a [LS] começou por ser empregada do [QA] e da [D. F], permanecendo com este, depois do falecimento da esposa do [QA], ininterruptamente, até que foram dispensados os seus trabalhos por imposição da [DP], alguns dias antes do casamento com o [QA].

A conversa relatada pela [APS], procurando fazer crer que a [LA] o roubava, não merece qualquer credibilidade. O [QA] não iria ter essa conversa com a testemunha em sua casa, na presença da empregada. Se foi fora, ficou por explicar onde isso teria acontecido e como é que o [QA] teria discado os números do seu telefone, dado que era invisual e, para além desta chamada, nenhuma outra foi referida, pelo que este número não estava na sua rotina.

Por outro lado, começando por referir que se deslocou a casa do [QA], esclarece mais adiante que nunca terá ido à casa daquele.
Facto 34:
Considera-se provado, face aos documentos juntos aos autos.
Facto 35:
Este facto não se considera provado.

Começou a requerida por alegar que ela e o [QA] haviam decidido fazer o testamento um ao outro. Esta tese foi abandonada completamente pelas testemunhas da requerida ouvidas a este facto, ao referirem que afinal o testamento seria a favor da [DP].

O estranho é que, tendo a [I] sido incumbida de perguntar à sua filha que era notária e não tendo o [QA] acreditado na informação prestada pela filha da [I], esta foi solicitar a mesma informação a outro notário e, ainda assim, teve o mesmo que ir lá, apesar de ser invisual e não se poder deslocar sozinho, senão em curtas distâncias e em locais conhecidos.

Se se pretendia demonstrar a isenção e alheamento da [DP] aos bens materiais, este depoimento não ajudou.

Este facto não se considera provado, tendo nomeadamente em conta o facto 34 da sentença de fls 500 a 511.
Facto 36:
“Apesar das dificuldades de locomoção do referido [QA], o mesmo deslocava-se para onde queria, apoiado numa bengala, no carro da requerida ou de táxi”.

Este facto não se pode considerar provado.

O [QA] não tinha condições para se poder deslocar sozinho para longe de casa. Tinha 87 anos. Era invisual. Tinha grandes dificuldades em andar.

Sendo assim, não se descortina como poderia chamar um táxi com autonomia se não conseguia discar os números do telefone nem onde poderia ir se não fosse na companhia de terceiros.

Não se duvida que algumas vezes ele andasse no automóvel da requerida. Mas a questão era outra: o que se pretendia saber é se o [QA] podia ir a algum lugar, que não fosse conhecido e a curta distância da sua casa, sem a companhia de terceiros, ou seja, se podia ir onde ela não queria.

Mas, para além dessa impossibilidade física, o [QA] sabia bem o que a requerida lhe havia dito, pelo menos, no Restaurante do [JB]. Se quisesse fazer testamento, ficaria sozinho. Naturalmente que assim coagido, o [QA], tendo ficado impedido de fazer o testamento a quem queria fazer, não podia entrar em “aventuras” doravante.
Não é verdade assim que o [QA] se tenha deslocado para onde queria. Aliás o gerente bancário, [PC], teve que se deslocar, ultimamente, muitas vezes a casa do [QA].

Aqui chegados, passaremos a considerar os factos indiciariamente provados, com referência à sentença que decretou o arresto, 1ª sentença, e à sentença que ordenou o seu levantamento, 2ª sentença.
3.
Consideram-se assim indiciariamente provados os seguintes factos:
1º - A requerente [MC] é filha de [EAG] e de [AGN] (Facto 1 da 1ª Sentença).
2º - [EAG], filho de [AAG] e de [MCL], faleceu no Brasil, no dia 15/10/1993 (Facto 2 da 1ª Sentença).
3º - A requerente [MAG] é filha de [AAG] e de [MBG] (Facto 3 da 1ª Sentença).
4º - [AAG], filho de [AAG] e de [MCL], faleceu no Brasil, no dia 31/03/2005 (Facto 4 da 1ª Sentença).
5º - [QAG], filho de [AAG] e de [MCL], faleceu no dia 03/03/2008, no estado civil de casado com a requerida (Facto 5º da 1ª Sentença).
6º - [QA] tinha casado com a requerida, em segundas núpcias, sob o regime imperativo da separação de bens, em 09/08/2007 (Facto 6º da 1ª Sentença).
7º - Na data do casamento, [QA] tinha 87 anos de idade e a requerida 63 anos de idade (Facto 7º da 1ª Sentença).
8º - [QA] tinha como empregada doméstica [LS], que estava ao seu serviço desde 1991 (Facto 8º da 1ª Sentença).
9º - [LS], quando iniciou a sua actividade como doméstica em casa de [QA], ainda este era casado em primeiras núpcias (Facto 9º da 1ª Sentença).
10º - [LS], depois do falecimento da primeira mulher de [QA], manteve-se ao seu serviço até uns dias antes do [QA] ter casado com a requerida (Facto 10º da 1ª Sentença).
11º - [QA], antes de se casar com a requerida, fazia fisioterapia na [CVC, no Pragal, estabelecimento que começou a frequentar em fins de Março, princípios de Abril de 2007, onde também teve consultas de diversas especialidades (Facto 11º da 1ª Sentença e 19º da 2ª).
12º - Local onde, então, a requerida também fazia tratamentos de fisioterapia (Facto 20º da 2ª Sentença).
13º - Foi nesse local que a requerida travou conhecimento com o [QA] (Facto 21º da 2ª Sentença).
14º - [QA] era pessoa aberta que gostava de se gabar de possuir um património considerável (Facto 12º da 1ª Sentença e 22º da 2ª).
15º - A requerida, ao perceber que [QA] era possuidor de um património considerável, tudo fez para conquistar a sua amizade (Facto 13º da 1ª Sentença).
16º - Em meados de Junho de 2007, estava [QA] a entrar no prédio acompanhado da sua empregada doméstica [LS] e à porta encontrava-se à sua espera a requerida (Facto 14º da 1ª Sentença).
17º - A requerida dirigiu-se ao [QA] e perguntou-lhe se ele não a conhecia, ao que o QA] respondeu que não, pelo que a requerida esclareceu que era da Clínica onde ele ia (Facto 15º da 1ª Sentença).
18º - Já em casa o [QA] disse à [LC] quer era uma “gaja amiga da dona da clínica e devem andar a ver se me comem alguma coisa” (Facto 16º da 1ª Sentença).
19º - [QA] pernoitava sozinho em casa porque a empregada [LS] pernoitava em sua casa, na companhia da sua própria família (Facto 17º da 1ª Sentença).
20º - A requerida, para convencer [QA] a casar com ela, prometeu-lhe que, se casassem, deixaria de trabalhar como enfermeira e dedicar-se-ia em exclusivo a tratar dele, logo que fossem casados (Facto 18º da 1ª Sentença).
21º - Os familiares do [QA] existentes na terra e no Brasil raramente o visitavam ou telefonavam (Facto 26º da 2ª Sentença).
22º - A requerida, uns dias antes do casamento com [QA], dispensou os serviços domésticos da [LS], dizendo-lhe que no futuro ela e [QA] não precisavam de empregada doméstica (Facto 19º da 1ª Sentença).
23º - Em 12/09/2007, a [LS] instaurou, junto dos serviços do Ministério Público do Tribunal de Almada uns autos de processo administrativo com o n.º 84/07.OTUALM contra o [QA], nos quais foi celebrado acordo, tendo o [QA] pago à [LS] o montante de € 1.400 a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho (Facto 24º da 2ª Sentença).
24º - Aos 19 de Julho de 2007, [QA] revogou os testamentos públicos lavrados respectivamente aos 30 de Abril de 2005, no Segundo Cartório Notarial de Almada, em que havia constituído sua mulher [MF], por sua única herdeira e aos 20 de Julho de 2006, no Sexto Cartório Notarial de Lisboa (Facto 25º da 2ª Sentença).
25º - A requerida prestava serviços no Hospital de Santa Maria, não tendo deixado de aí trabalhar, depois do casamento com o [QA] (Factos 20 e 21º da 1ª Sentença).
26º - Continuou a trabalhar por turnos, havendo muitas noites que deixava o marido [QA] em casa (Facto 22º da 1ª Sentença).
28º - A requerida prestou serviços no HSM, pelo menos, até 30/03/2008, sendo certo que, por despacho datado de 7/03/2008, lhe veio a ser reconhecido o direito à aposentação, considerada a situação existente em 5/03/2008.
29º - Após o casamento do [QA] com a requerida, aquele passou a frequentar o Restaurante do [JB], «Sinais do Cristo Rei», em Almada, com menos assiduidade do que antes do casamento e ia quase sempre acompanhado pela requerida (Facto 28º da 2ª Sentença).
30º - Durante o período de namoro e de casamento do [QA] com a requerida, aquele afirmou a amigas da [DP], estando esta presente, que era bem tratado por ela (Facto 29º da 2ª Sentença).
31º - Em finais de Novembro princípios de Dezembro de 2007, o [QA] confessou ao [JB] que se sentia enganado e estava muito arrependido de se ter casado com ela (Facto 23º da 1ª Sentença).
32º - Mais lhe disse que não sabia o que estava a acontecer, já que, contrariamente ao que acontecia antes, passava grande parte do tempo a dormir e sentia-se muito abatido (Facto 24º da 1ª Sentença).
33º - E que desconfiava que a requerida lhe dava medicamentos para dormir muito (Facto 25º da 1ª Sentença).
33º - Contrariamente ao que acontecia antes, [QA] não se conseguia levantar da cama antes das 16:00 horas (Facto 26º da 1ª Sentença).
34º – Durante o casamento do [QA] com a requerida, quando esta se encontrava de serviço no Hospital, a empregada doméstica, nas manhãs em que trabalhava, dava-lhe a medicação que a [DP] recomendava (Facto 31º da 2ª Sentença).
35º - A partir do casamento, a requerida procurou isolar [QA] em casa, evitando que ele convivesse com as pessoas que se relacionavam com ele antes do casamento com ela (Facto 27º da 1ª Sentença).
36º - Nos finais de Novembro de 2007, [QA] telefonou à [LS] e disse-lhe que estava arrependido de ter casado com a requerida (Facto 28º da 1ª Sentença).
37º - Tendo confessado à [LS] que desconfiava que a requerida o queria matar (Facto 29º da 1ª Sentença).
38º - Nessa altura, pediu à [LS] para esta voltar a trabalhar em sua casa (Facto 30 da 1ª Sentença).
39º - A [LS] disse ao [QA] que não podia voltar para lá sem o acordo da requerida (Facto 38º da 1ª Sentença).
40º - Algum tempo depois, a [LS] encontrou, em Almada, a requerida e disse-lhe que [QA] lhe tinha pedido para voltar a trabalhar como doméstica na sua casa (Facto 32º da 1ª Sentença).
41º - Ao que a requerida lhe disse que, quem mandava na sua casa, era ela e que  não precisava dos serviços da [LS] (Facto 33º da 1ª Sentença).
42º - Em conversa que teve com a [LS], no café restaurante “Sinais do Cristo Rei”, no princípio do ano de 2008, [QA] disse-lhe que queria fazer um testamento a favor das sobrinhas, que viviam no Brasil (Facto 34º da 1ª Sentença).
43º - Ao que a [LS] lhe respondeu que a pessoa mais indicado para o ajudar a tratar desse assunto seria o [JB], pessoa amiga de longa data do [QA] (Facto 35º da 1ª Sentença).
44º - Chamaram à mesa o [JB] e o [QA] pediu-lhe para falar com um advogado, porque queria fazer um testamento às sobrinhas que tinha no Brasil (Facto 36º da 1ª Sentença).
45º - [JB] contactou um advogado e este informou-o que devia levar ao seu escritório o [QA], para este lhe fornecer os documentos e lhe prestar as informações necessárias à elaboração do testamento (Facto 37º da 1ª Sentença).
46º - Tendo ficado acordado entre o advogado e [JB] que este lhe comunicaria o dia em que poderia levar ao seu escritório o [QA] (Facto 38º da 1ª Sentença).
47º - Alguns dias depois, a requerida e o [QA] foram ao restaurante do [JB] (Facto 39º da 1ª Sentença).
48º - No restaurante, o [JB] informou o [QA] que tinha falado com um advogado e que precisava de combinar com ele uma data para ir ao escritório daquele (Facto 40º da 1ª Sentença).
49º - A requerida, quando ouviu falar na ida ao escritório de advogado, exigiu ao [QA] que este lhe explicasse por que queria ir ao escritório de um advogado (Facto 41º da 1ª Sentença).
50º - [QA], muito pressionado pela requerida, disse-lhe que pretendia fazer um testamento a favor das sobrinhas que tinha no Brasil (Facto 42º da 1ª Sentença).
51º - A requerida, exaltada, disse ao [QA] que não lhe admitia que fizesse um testamento e que se tentasse fazê-lo o deixava sozinho (Facto 43º da 1ª Sentença).
52º - A requerida disse ao [JB] que, quem mandava no marido dela, era ela e que o proibia de se meter na vida deles (Facto 44º da 1ª Sentença).
53º - A requerida obrigou o [QA] a ir para casa (Facto 45º da 1ª Sentença).
54º - O [QA] não tinha condições físicas para se poder deslocar sozinho para longe de casa (Facto 46º da 1ª Sentença).
55º - Desde a última ocorrência que [QA] não voltou mais a ser visto fora de casa, pela vizinhança (Facto 47º da 1ª Sentença).
56º - Os vizinhos e amigos do [QA] só tiveram conhecimento da sua morte já depois dele ter sido sepultado (Facto 48º da 1ª Sentença).
57º - O [QA], em 2 de Fevereiro de 2007, outorgou procuração forense às D. as [PB] e [RR] e liquidou diversas facturas dos anos de 2007 e 2008 à Sociedade de Advogados [OA], [CM], [BM] e Associados (Facto 34º da 2ª Sentença).
IV.
As requerentes pretendem o arrolamento de bens móveis e imóveis que constituíam o acervo hereditário de [QA] e de que a [DP] foi herdeira única e universal, invocando justo receio de extravio, ocultação ou dissipação desses bens por parte da requerida.

Trata-se de uma medida de carácter conservatório, destinando-se a assegurar a manutenção dos aludidos bens, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão, como está, na acção principal.
No caso em apreço, tendo em conta a matéria de facto considerada indiciariamente provada, neste Tribunal, constata-se que, por força do casamento, a requerida é a única e universal herdeira do falecido [QA], atendendo a que este faleceu sem deixar ascendentes ou descendentes, nem disposição de última vontade (artigos 2131º, 2132º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 2134º, 2156º, 2157º e 2158º do Código Civil).

Resultou ainda provado que a requerida afastou o [QA] dos seus amigos e passou a controlar a vida dele, impedindo-o de fazer testamento a favor das suas sobrinhas, como era da sua vontade.
Como muito bem se havia considerado na sentença que decretou o arrolamento, o domínio exercido pela requerida sobre o falecido [QA] estendeu-se mesmo ao facto desta lhe ter dado medicamentos que o colocavam num estado de apatia acentuada, levando-o a dormir uma grande parte do dia e fazendo-o sentir-se mal, o que constituía um condicionamento acentuado da vontade do falecido [QA], sobretudo quando associado ao isolamento do falecido relativamente aos amigos.
Ora, nos termos do artigo 2034º, alínea c) do Código Civil, carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, o que por meio de dolo ou de coacção induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu.

In casu, decorre da matéria de facto que o [QA] se encontrava condicionado pela requerida, não só do ponto de vista físico como psicológico, o que é susceptível de recondução ao conceito de coacção.

A declaração de indignidade determina que a devolução da herança ao indigno seja havida como inexistente, sendo este considerado, para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respectivos bens (artigo 2037º, n.º 1 do Código Civil).
A declaração da indignidade, como causa de incapacidade sucessória, só pode ser proferida por via judicial, mediante acção cível com esse objecto e fim.

Na verdade, se o indigno tem os bens em seu poder, cria-se uma aparência de sucessão que é necessário esclarecer o mais depressa possível, a bem da estabilidade das relações sociais e daí os prazos curtos fixados no artigo 2036º do Código Civil[6].
Assim, as requerentes alegaram e provaram, se bem que indiciariamente, os factos constitutivos do seu direito relativo aos aludidos bens, que integram a herança do [QA] (fumus boni juris), tal como alegaram e provaram os factos em que fundamentam o receio do extravio, dissipação ou ocultação de tal herança pela requerida (periculum in mora).
Estão, deste modo, demonstrados os pressupostos de que depende o decretamento da providência, pelo que deverá ser julgado procedente o procedimento cautelar.
V.
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, pelo que, julgando o procedimento cautelar procedente, por provado, confirma-se a sentença que decretou o arrolamento dos bens descritos a fls 16 a 18, pela ordem aí mencionada (fls. 90 a 99).
Custas pela apelada.
Lisboa, 18 de Junho de 2008
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela dos Santos Gomes
____________________________
[1] Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 348.
[2] Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, 2ª edição, 279 e seguintes.
[3] Manual de Recurso em Processo Civil, 8ª edição, 216.
[4] Obra citada, 282.
[5] Doravante, quando considerarmos que o Tribunal deu como provado, significa que deu como indiciariamente provado.
[6] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, 5ª edição, 144.