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DANO
COISA
COISA ALHEIA
PROPRIEDADE
Sumário
I – No crime de dano do art. 212º do C. Penal o objecto da acção ilícita típica só pode ser uma coisa corpórea que possa ser materialmente exposta à acção. II – Essa acção típica, por sua vez, desdobra-se em quatro modalidades: destruir, danificar, desfigurar e tornar não utilizável sempre com a referência incontornável da corporeidade levando à conclusão de que não há dano se não se atingir de algum modo a integridade física da coisa. III – “Tornar não utilizável” abrangerá as acções que reduzam a utilidade da coisa segundo a sua função. IV – No caso de uma divisão anexa a uma casa, a “coisa” será o espaço físico tal como se apresenta: com paredes que o delimitam, portas que lhe dão acesso e janelas com o seu fim natural e próprio de ventilação e iluminação. V – Obstruir o acesso a esse espaço físico por meio da colocação, pelo lado interior, de pregos com 15 centímetros de comprimento nas aduelas ou aros da única porta de acesso e do levantamento, também pelo dito lado, de uma parede de alvenaria é objectivamente, atingir a sua integridade física; é tornar não utilizável a “coisa” na sua corporeidade. A utilidade funcional do espaço deixa de existir; é atingida a «utilidade da coisa segundo a sua função» mercê de uma acção perturbadora dessa mesma função. VI – No âmbito da acção penal, ao abrigo do princípio da sua suficiência consagrado no art. 7º CPP não é de excluir – antes pelo contrário – a discussão e decisão sobre questões prejudiciais não penais com interesse para a causa incluindo a propriedade da coisa.
Texto Integral
1. – No âmbito do processo nº 159/05.0GAS… do Tribunal de S…, o arguido A… R… foi pronunciado como autor material de um crime de dano do art. 212º do C. Penal e de um crime de violação de domicílio agravado, do art. 190º, nºs 1 e 3 do mesmo diploma.
O assistente E… X… deduziu, contra o arguido, pedido de indemnização civil pedindo que aquele fosse condenado a pagar-lhe a quantia de 7.280,00 € a título de danos patrimoniais e morais.
Efectuado o julgamento foi decidido:
a) julgar extinto o procedimento criminal contra o arguido relativamente ao crime de violação de domicílio, por ausência de legitimidade para o impulso processual, decorrente da inexistência de queixa por parte da ofendida;
b) absolver o arguido A… R… da prática do crime de dano por que se mostrava pronunciado.
c) absolver o arguido/demandado do pedido cível contra si formulado.
O assistente interpôs recurso formulando na sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1 - O auto lavrado em consequência de diligencia de prova precedida pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, realizada em sede de instrução, tendo nessa diligencia participado todos os intervenientes processuais, que permitiu o pleno contraditório e para o qual remete como documento de prova a douta decisão instrutória, deverá ser sujeita a análise crítica do julgador como documento que faz prova plena dos factos nele incertos.
2 - O princípio da livre apreciação da prova (art. 127° do CPC) impõe ao juiz formar a sua convicção com base em todos os elementos de prova que lhe sejam apresentados pelas partes e que o princípio da livre investigação determine que leva aos autos.
3 - Constando nos autos, como prova documental, fotografias que documentam a inspecção ao local do qual se lavrou auto, diligencia presidida pelo Juiz de Instrução Criminal com a participação de todos os intervenientes processuais que asseguraram o contraditório, referindo-se que o arguido utilizando pregos com cerca de 15 em de cumprimento por 5 mm de espessura, pregou a porta daquela divisão, pelo lado de dentro, após o que levantou em alvenaria uma parede por trás da porta, deverá ter-se como verificado o dano causado na porta.
4 - O crime de dano consubstanciasse na destruição, danificação, desfiguração ou tornar não utilizável coisa alheia.
5 - A introdução de pregos de que 15 cm de cumprimento e 5 mm de espessura que pregaram a porta, é do senso comum, que a danifica, que a desfigura e mesmo torna não utilizável a porta para o fim que a mesma se destina – fechar ou permitir a entrada num espaço.
6 - O Tribunal ao absolver o arguido A… R… pela prática do crime de dano que se encontrava acusado, apreciou de forma errada ou não considerou a prova documental constante nos autos para a qual remetia o despacho de pronúncia:
• As provas constantes nos autos referentes ao crime de dano, conforme se alcança da análise do auto de inspecção ao local revelam claramente um sentido (da porta) e a douta decisão recorrida extraiu ilação contrária (que não foi pregada a porta da divisão com pregos de 15 cm de cumprimento e 5 mm de espessura).
7 - O entendimento de que, para se verificar o crime de dano, ter-se-ia de produzir lesão da integridade material da divisória constitui também erro notório na apreciação da prova, porquanto o crime de dano verificou-se ao bem porta, não se alcançando, por isso, a conclusão plasmada da fundamentação de direito de que o crime p.e.p. no artigo 212° do CP só ocorreria se houvesse danificação da própria divisória:
8 - Uma vez mais a conclusão ultrapassou, claramente, as premissas.
9 - Assim sendo, justifica-se o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art. 426° n° 1 do Cód. Proc. Penal.
10 - O conceito de domicílio tem de ser o espaço utilizado ou susceptível de utilização pelo sujeito a quem se encontra afecto, sem restrições das divisórias ou do espaço;
11 - O bem jurídico que se pretende proteger não se limita ao espaço físico em que o intruso penetrou sem autorização mas ao conjunto de outros bens com tutela do direito corno sejam as memórias, recordações, bens de uso pessoal e aqueles que utilizados por todos constituem bens de conforto que proporcionam a vida social ou a sobrevivência do indivíduo;
12 - Resumir-se o domicílio ao conjunto de divisórias que compõe um fogo ou a aferição da propriedade dos bens que no interior de cada uma dessas divisórias para através dessa análise definir-se quem são os titulares do direito de queixa, é não respeitar o conceito de domicílio e mal interpretar o bem jurídico que a norma protege que mais do que a índole material são os direitos de personalidade de cada indivíduo que a norma protege.
13 - Assim, o douto Tribunal mal interpretou a norma contida no art. 190° do Cód. Penal, pelo que deverá a douta decisão ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pelo crime de violação de domicilio ou aceitando o Tribunal que pelo crime de dano deverá fazer-se uso do disposto no art. 426° n° 1 do Cód. Proc. Penal dar-se a oportunidade do Tribunal a quo proferir decisão na íntegra.
14 - A douta decisão proferida violou o disposto nos artigos 190° e 212° do Cód. Penal, artigo 127°, 410° n° 1 e 2 alínea c) do Cód. Proc. Penal.
O magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência.
Neste Tribunal, a Sra. procuradora-geral adjunta deu parecer no mesmo sentido foi cumprido o art. 417º, nº 2 CPP sem que houvesse resposta.
*
2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados e não provados e respectiva fundamentação foi o seguinte:
2.1. – Factos provados (transcrição):
1. – E… X…, é co-proprietário do prédio urbano sito na Rua C… em S… O arguido, por seu turno é locatário do prédio urbano que confina a Sul e a Nascente com o prédio do assistente.
2. - Ambos os prédios pertenciam originariamente à família do assistente.
3. - Sobre o travejamento do telhado e a cobertura de telha do prédio locado ao arguido, há longo período de tempo, o então proprietário, construiu uma divisão, de dimensões de superfície de pavimento não concretamente apuradas, com janela para o interior do edifício de garagem, locada ao arguido.
4. - O acesso a tal divisão é feito por uma porta existente no prédio de que é comproprietário o assistente.
5. - Existe também uma clarabóia no tecto da divisão, que dá directamente para o telhado do prédio, de dimensões não concretamente apuradas.
6. - Desde que o assistente é co-proprietário do prédio que sempre foi ele, ou quem ele permitiu, que utilizou tal divisão.
7. - Há cerca de 6 ou 7 anos que o assistente não reside no prédio supra identificado e que não ocupa a divisória mencionada, a qual é utilizada pela sua tia, M…, como salinha de costura, mantendo aí objectos de sua propriedade, designadamente uma máquina de costura e sendo nesse local que, por vezes, recebe visitas.
8. - Após a venda do imóvel onde se situa a garagem à “B&A – Propriedades, Urbanizações e Loteamentos, Lda” e a sua posterior transmissão ao Banco… e constituição de locação financeira a favor do arguido, o advogado deste enviou ao assistente uma carta, da qual constava:
« (…) Como sabe, o prédio do meu cliente está parcialmente ocupado com uma “gaiola” de madeira que dá acesso ao prédio confinante de que V.Ex.ª é proprietário. Esta situação já não pode manter-se, porquanto o prédio foi vendido e na escritura de venda V.Ex.ª e os demais vendedores declararam que o vendiam desocupado.
Verifica-se igualmente, que na fachada Sul do seu prédio, existem duas frestas que alguém destruiu, convertendo-as em verdadeiras janelas.
Também esta situação é intolerável e não poderá ser mantida por mais tempo.
Assim, solicito-lhe que, no prazo máximo de 30 dias, proceda à desmontagem da dita gaiola e encerramento da respectiva comunicação para o prédio do meu cliente, bem como à reposição das frestas no seu estado original, sob pena de procedimento judicial.».
9. - De novo, em 5 de Abril de 2005, pelo mesmo Ilustre Mandatário, foi comunicado ao assistente:
«(…) Mandatou-me o Sr. A… R… para o avisar que deve retirar até ao próximo dia 20 do corrente mês de Abril, tudo o que se encontra na “gaiola” de madeira construída no prédio do meu cliente, pois a partir daquela data a porta da dita gaiola será encerrada e a mesma desmontada».
10. - Em data não apurada, o arguido, ou alguém a seu mando, pelo lado de dentro da aludida divisória, levantou, em alvenaria, uma parede por detrás da porta.
11. - O acesso àquela divisão faz-se pela porta ao cimo das escadas de casa do assistente ou através da janela que dá para a oficina do arguido, a qual fica situada alguns metros acima do solo, por cima de uma placa de cimento onde estão assentes as vigas de sustentação do telhado.
12. - O levantamento da parede atrás da porta foi realizado a partir do interior da divisão, tendo o arguido, ou a pessoa que actuou a seu mando, após a realização de tal obra, saído através da janela que dá para a oficina daquele.
13. - O assistente intentou contra o arguido procedimento cautelar que corre termos por apenso ao proc. nº 7…/05.4 TBS…, deste Tribunal, na sequência do qual lhe foi entregue a divisão em causa, tendo sido necessário, para tal, destruir completamente a porta da mesma e derrubar a parede em alvenaria que se encontrava erguida por trás daquela.
14. - O arguido sabia que não se podia introduzir ou mandar alguém introduzir na divisão, contigua à casa do assistente, que era utilizada por outrem.
Sabia que tal conduta era proibida e criminalmente punível e, ainda assim, agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que agia contra a vontade do ocupante da divisão.
15. - O arguido ao erguer a parede de alvenaria atrás da porta de entrada da divisão em causa sabia que dessa forma impedia que alguém aí entrasse, utilizando a respectiva porta.
16. - A restituição da divisão ao assistente causou-lhe despesas de montante não apurado.
17. - O assistente é deficiente motor em consequência de um acidente de viação sofrido há alguns anos, o que lhe limita a capacidade de locomoção.
18. - O arguido explora a uma oficina de automóveis.
19. - O assistente, atentas as suas dificuldades de locomoção não pode residir na habitação objecto dos autos, já que não lhe é possível aceder ao 1º andar.
2.2. – Factos não provados (transcrição):
Não se provou:
- que o primitivo proprietário do prédio locado ao arguido construiu a divisão aqui em causa em data anterior a 1956 e que a mesma dispõe de um área com cerca de 13m2 de superfície de pavimento;
- que não existe qualquer outro acesso a tal divisão excepto a porta contígua à casa de propriedade do assistente;
- que o muro em alvenaria foi construído em data posterior a 18 de Abril de 2005;
- que foi pregada a porta da divisão com pregos de 15 cm de comprimento e 5 mm de espessura;
- que a janela que dá para a oficina do arguido fica situada a cerca de 5 metros do solo;
- que o assistente pagou € 50,00 à pessoa que procedeu ao arrombamento da porta;
- que o assistente dispõe de difícil situação económica, motivo pelo qual não conseguiu ainda repor as aduelas e a porta;
- que o arguido é pessoa saudável e que dispõe de património, recebendo um rendimento mensal não inferior a € 2.500,00;
- que o assistente vive em edifício com elevador e que arrenda a habitação aqui em causa, juntamente com a divisão em questão, em períodos de veraneio para obter rendimentos;
- que a exclusão dessa divisória dos arrendamentos implicou uma diminuição de rendimentos de € 480,00, durante os anos de 2005, 2006 e 2007, tendo em conta os meses de Julho, Agosto e Setembro;
- que a atitude do arguido causou afectação psicológica ao assistente, incómodos e despesas em deslocações;
- que o assistente sofreu várias “arrelias” que alteraram o seu estado de saúde, designadamente a sua tensão arterial, o que é lesivo para a sua recuperação.
2.3. – Fundamentação da matéria de facto (transcrição):
As testemunhas inquiridas em audiência, designadamente E… Z…, funcionária judicial que procedeu à entrega da divisão aqui em causa ao assistente e M…, tia deste, descreveram-nos o local e a divisão em discussão nestes autos, para o que também se atendeu às fotos juntas aos que, conjugadas com aqueles depoimentos, permitiram a percepção exacta da localização da divisão e as formas de acesso à mesma.
Não restam dúvidas de que, por detrás da porta que dá acesso a tal divisão foi construída uma parede em alvenaria. Tal é confirmado pelas aludidas testemunhas e também pela testemunha A… W…, agente da GNR que esteve no local aquando da referida restituição do imóvel.
No que respeita à existência de pregos na porta e ao facto da mesma ter sido trancada, entende o Tribunal que não foi feita prova sobre tal matéria pois a funcionária judicial e o elemento da GNR mencionados não o referiram. A tia do assistente fala em pregos mas de forma muito vaga e imprecisa que não permite ao Tribunal concluir pela sua existência, dimensões e em que termos exactos ali se encontravam ou foram colocados.
É a tia do assistente, pessoa que bem conhece o local – divisória – que nos diz que foi construída há muitos anos e o modo como tem sido utilizada. É também esta testemunha que esclarece que o assistente, seu sobrinho, não reside na casa contígua à divisória há mais de 6 ou 7 anos, devido à sua incapacidade de subir as escadas, o que resultou de um acidente por ele sofrido. Por tal motivo, e tal como a M… nos diz, quem utiliza, nestes últimos anos, a divisória objecto de litigio é a própria que, conforme nos refere, de forma clara, espontânea e totalmente credível, aí tem objectos de carácter pessoal e de sua propriedade. Mais, refere-nos que utiliza tal divisória como salinha de costura – aí dispondo de uma máquina de costura – e também como local onde recebe visitas.
Pese embora o arguido, em audiência de julgamento, e ao abrigo de faculdade legal, ter optado por não prestar declarações, e ninguém o tenha visto a erguer a introduzir-se na divisória nem a construir a parede em alvenaria localizada atrás da porta, concluiu o Tribunal que foi o próprio, ou alguém a seu mando, que praticou tais actos.
Vejamos porquê.
Na verdade, a prova da autoria dos factos não depende apenas da circunstância da pessoa em causa ter sido vista a praticá-los. Se assim fosse grande parte dos crimes – designadamente daqueles que implicam alguma reserva para a sua prática – seria de prova impossível.
O Tribunal, ponderadas todas as circunstâncias concretas deve verificar se dispõe de indícios ou elementos que lhe permitam concluir como os factos ocorreram ou, de que única forma, coerente e razoável, de acordo com os princípios e critérios de experiência comum, de bom senso e de razoabilidade podem ter ocorrido.
Ora, no caso concreto, é manifesto que o arguido não queria que a divisória aqui em discussão permanecesse no local: tal resulta de forma clara das cartas enviadas pelo seu mandatário ao aqui assistente. Salienta-se, aliás, que na última das cartas, enviada poucos dias antes dos factos, é expressamente escrito que o assistente deverá retirar tudo o que se encontra na “gaiola” pois a partir do dia 20 de Abril de 2005 « (...) a porta da dita gaiola será encerrada e a mesma desmontada». Desta última expressão resulta de modo claro a intenção do arguido, não de recorrer à via judicial – como na primeira carta – mas sim de passar à “acção directa”, i.é, obstruir ele próprio a utilização da referida divisória – o que efectivamente veio a ser feito, tal como “ameaçado”.
Pode-se entender que o facto da entrada da divisória, a certo momento, ter sido obstruída, tornando impossível o seu acesso pela porta, em consonância com o escrito do arguido não se mostra suficiente para concluir que foi ele que praticou tais actos. E, efectivamente tal circunstância, por si só, poderia mostrar-se susceptível de causar algumas dúvidas. Contudo, importa conjugar tais elementos com os demais, designadamente devemos perguntar quem mais teria interesse em impedir o assistente de aceder à divisória, se não a pessoa que ocupa o espaço onde ela se encontra? O seu proprietário, já que o arguido é mero locatário? Não nos parece que, por um lado, o proprietário do prédio onde está instalada a garagem, Banco …, um banco, tivesse qualquer motivo para querer retirar a divisória do local, sobre o qual não tem disponibilidade por força do contrato de locação celebrado. Também é certo que não se encara como possibilidade razoável, por parte de um banco – por totalmente contrário às regras de experiência comum – uma conduta como a que ficou demonstrada nos autos. Ora, além de proprietário e locatário não se vislumbram quaisquer outras pessoas com qualquer tipo de interesse na desmontagem da divisória.
Acresce que a construção de um muro em alvenaria atrás da porta implicou necessariamente o transporte de material – em quantidade significativa – e bem assim a disponibilidade de tempo para realização da obra. E, uma vez que, num local público, ninguém se apercebeu de tal construção, tal só pode significar que ela foi feita através da garagem do arguido, mediante a entrada na divisória através da janela que dá para esse mesmo espaço. Era este que dispunha da possibilidade de fazer entrar na divisória os materiais necessários à construção do muro e que dispunha de tempo para, sem qualquer interrupção e sem correr o risco de ser surpreendido, dispor de tempo para tal.
Não é de crer que qualquer outra pessoa, que não o arguido, dispusesse, além de qualquer motivo para o efeito, de livre e total acesso à garagem por aquele explorada de modo a realizar a obra em causa sem que alguém disso se apercebesse.
Assim, face ao exposto, entende o Tribunal que não resta outra conclusão que não seja a de que foi o arguido, por si próprio ou mediante terceiro às suas ordens, quem praticou os factos aqui em causa.
No que respeita ao demais, nomeadamente no que concerne aos factos que não resultaram provados, salienta-se a total ausência de prova quanto à sua verificação.
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3. – A primeira questão que se apreciará, seguindo a ordem pela qual foi conhecida no acórdão recorrido, é a que respeita à extinção do procedimento criminal por falta de legitimidade para o impulso processual decorrente da inexistência de queixa por parte da eventual ofendida pela conduta do arguido integradora do crime de violação de domicílio previsto e punido no art. 190º, nº 1 C. Penal. Isto porque se provou que o queixoso e assistente não tinha morada no local que foi devassado.
Como ensina o Prof. Costa Andrade (in “Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pag. 701-703) o bem jurídico protegido com esta incriminação é a privacidade/intimidade que, no entanto, só é protegida face a agressões qualificadas pela exigência de violação de uma esfera pessoal espacialmente limitada e fisicamente assegurada: a habitação (sublinhado acrescentado). O Autor adianta ainda que o objecto da acção é a habitação sendo esta o espaço fisicamente fechado efectivamente reservado ao alojamento (permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita). Basta esta elucidativa explicação para ter como desprovida de pertinência a pretensão do recorrente face aos factos provados. O arguido não tinha no espaço em causa a sua habitação, e por conseguinte, carecia de legitimidade para apresentar a queixa que formulou.
O ponto essencial para a decisão quanto a esta parte é que consta sob o nº 7 dos factos provados: Há cerca de 6 ou 7 anos que o assistente não reside no prédio supra identificado e que não ocupa a divisória mencionada, a qual é utilizada pela sua tia, M…, como salinha de costura, mantendo aí objectos de sua propriedade, designadamente uma máquina de costura e sendo nesse local que, por vezes, recebe visitas.
Ponto esse que sem margem para reparo foi decidido a partir do depoimento da testemunha M… como se fez constar na fundamentação e que o recorrente, em boa verdade, nem sequer impugna.
Não lhe assiste, pois, razão quanto a esta parte do recurso.
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4. – Põe também em causa o recorrente, na sua motivação, a questão da absolvição do arguido do crime de dano. É a que se passa a analisar de seguida
4.1. – De acordo com o art. 212º, nº 1 C. Penal «quem destruir, no todo ou em parte, danificar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
É comum considerar-se que o bem jurídico protegido é a propriedade mas, como adverte o Prof. Costa Andrade (obra citada, tomo II, pags. 202 e ss) cujo ensinamento se segue de perto, com a dimensão ou direito decorrente daquele direito de propriedade: o domínio exclusivo sobre a coisa, isto é, o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa o que quiser, retirando dela, no todo ou em parte, as gratificações ou utilidades que ela pode oferecer. Este é um aspecto muito relevante como se verá adiante. Também se tem como assente que o objecto da acção ilícita só pode ser uma coisa corpórea no sentido em que deve ser uma coisa materialmente exposta à acção (destruidora ou modificativa) do homem. A acção típica, por sua, vez desdobra-se em quatro modalidades; destruir, danificar, desfigurar e tornar não utilizável sempre com a referência incontornável da corporeidade levando à conclusão de que não há dano se não se atingir de algum modo a integridade física da coisa o que pode concretizar-se retirando ou acrescentando coisas.
Detendo-nos no ponto que se nos afigura mais relevante para o caso e sempre a seguir de perto o ensinamento do Mestre citado «tornar não utilizável» abrangerá as acções que reduzam a utilidade da coisa segundo a sua função.
De acordo com o despacho de pronúncia que fixou o thema em discussão (cfr fls 368) o que estava em causa era saber se o arguido (ou alguém a seu mando) utilizando pregos de 15 centímetros por 5 mm de espessura pregara, pelo lado de dentro, a porta da divisão que é o pomo da discórdia entre o assistente e o arguido. Pregara a porta, no sentido de, com a utilização dos pregos, a impedir de ser aberta pelo lado de fora e não pregara na porta os pregos que são mencionados. E de, além disso e significativamente, ter levantado por detrás dessa mesma porta uma parede de alvenaria.
A coisa seria aqui, por conseguinte, o espaço físico tal como se apresentava: com paredes que o delimitavam, portas que lhe davam acesso e janelas com o seu fim natural e próprio de ventilação e iluminação.
Obstruir o acesso a esse espaço físico por meio da colocação pelo lado interior de pregos na única porta de acesso e do levantamento também pelo mesmo lado interior de uma parede de alvenaria é, objectivamente, salvo melhor opinião, atingir a sua integridade física; é tornar não utilizável a coisa na sua corporeidade. A utilidade funcional do espaço deixa de existir; é atingida a «utilidade da coisa segundo a sua função» mercê do acrescentamento de coisa ou substância perturbadora dessa dita função.
Ora, na decisão sob recurso na fundamentação de direito refere-se «o arguido não destruiu, não danificou nem tornou não utilizável a divisão cuja entrada barrou: este seu comportamento apenas impediu o acesso à coisa o que é distinto de torná-la não utilizável para o fim a que se destina». Embora procurando também apoio no ensinamento do Prof. Costa Andrade concluiu diferentemente que a integridade física da coisa não foi atingida e que apenas foi impedido o acesso à divisão em causa. Salvo, porém, o devido e efectivo respeito, crê-se que a interpretação da lei e as conclusões extraídas da lição do Mestre não serão as adequadas. Não são comparáveis com a situação em apreço as que na decisão recorrida foram chamadas à colação como exemplificativas tais com a do desaparecimento da chave do veículo, a do desligar da corrente do electrodoméstico ou ainda a do barramento do carro estacionado visto que em nenhuma destas há qualquer acção física directa sobre a coisa, acrescentando-lhe algo (pregos e parede de alvenaria, no caso) que, salvo nova intervenção física (como veio a acontecer), lhe retira a sua utilidade funcional.
Mais adiante, como argumento também relevante, refere-se que não se apurou o direito de propriedade sobre a divisão em causa – o qual ainda se encontra em discussão em sede própria. Pelo que «sem a demonstração de que a divisão se tratava de “coisa alheia” também nunca se poderia falar em crime de dano».
Porém, como é sabido, no âmbito do processo penal não é de excluir que se imponha uma tomada de posição sobre questões prejudiciais, ou seja, aquelas com relevância jurídica concreta para a situação em apreço que sendo embora autónomas em virtude de, por si só, poderem constituir objecto de um processo acabam por poder condicionar de modo essencial, o destino da acção penal a ponto de ser incontornável que delas se conheça.[1]
É até comummente aceite que uma dessas questões prejudiciais é a que respeita à determinação da propriedade visto que os seus efeitos se podem repercutir, naturalmente, na verificação dos chamados «crimes contra a propriedade».
Daí a «extensão de competência», que não é exclusiva da acção penal e que tem como fundamento exigências de celeridade que passam pela necessidade de ultrapassar, clarificando-os, obstáculos à determinação da existência infracção. Se se prefigurar a eventual complexidade da apreciação da questão prejudicial de tal modo que ela redunde num factor de complicação da acção penal, então o caminho é o da suspensão desta até um limite temporalmente razoável findo o qual se a questão estiver em aberto acabará por ser decidida com suporte na aludida «extensão de competência», isto é, no âmbito do processo penal. É este o regime estabelecido no art. 7º CPP (diploma a que pertencem as normas adiante indicadas sem menção de origem)
4.2. – Dito isto, vejamos agora como foi apreciada a matéria de facto.
Como determina o art. 374º, nº 2 a fundamentação da decisão exige uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Escusada será uma excursão exaustiva sobre o ensinamento da doutrina e da jurisprudência a propósito do que deve ser, em particular, o exame crítico da prova, tantas vezes a jurisprudência se tem debruçado sobre a matéria.
Bastará, crê-se, ter em atenção o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2007.03.21 onde está modelarmente explicitado quais os objectivos que se visam com a fundamentação e qual o processo metodológico a seguir para os alcançar. Melhor do que avançar com argumentos decalcados é reproduzir o teor do sumário do aresto citado:
I - A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).
II - A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
III - A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a
exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.
IV - Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do n.º 2 do art. 374.º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei 59/98, de 25-08), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
V - O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.
Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.
VI - O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01).
VII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
VIII - No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – a que se refere especificamente a exigência da parte final do art. 374.°, n.° 2, do CPP –, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o art. 410.º, n.° 2, do CPP; o n.° 2 do art. 374.° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cf., nesta perspectiva, o Ac. do TC de 02-12-1998).
IX - A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
Ora, a fundamentação da decisão sob recurso não respeita na íntegra a metodologia apontada.
Nela se entendeu dar como não provados os seguintes factos: - que o primitivo proprietário do prédio locado ao arguido construiu a divisão aqui em causa em data anterior a 1956 e que a mesma dispõe de um área com cerca de 13m2 de superfície de pavimento; - que não existe qualquer outro acesso a tal divisão excepto a porta contígua à casa de propriedade do assistente; - que o muro em alvenaria foi construído em data posterior a 18 de Abril de 2005; - que foi pregada a porta da divisão com pregos de 15 cm de comprimento e 5 mm de espessura; - que a janela que dá para a oficina do arguido fica situada a cerca de 5 metros do solo.
Porém, a fundamentação é omissa quanto às opções tomadas a respeito destes factos não bastando, crê-se, a genérica afirmação de que houve «total ausência de prova quanto à sua verificação».
Assim:
- Não estão explicados os motivos que, por um lado, levaram a dar como provado no facto nº 3 que o então proprietário há longo tempo construiu a divisão que está no cerne do processo e, nos factos não provados, que o primitivo proprietário construiu a divisão em causa em data anterior a 1956. Na realidade a testemunha M… referiu no seu depoimento (que foi escutado) que a construção existe há uns 60 anos ou mais e que foi mandada edificar pelo avô do E… X… (o assistente). Sendo certo que se ao depoimento desta testemunha foi atribuída credibilidade quanto a outros aspectos detalhada deveria ser a explicação para se lhe não conferir credibilidade quanto a este ponto.
- Não está explicado porque razão se deu como não provada a aérea da dita divisão quando, no auto da inspecção ao local efectuada na fase de instrução, auto esse indicado como meio de prova na decisão instrutória, são indicadas as medidas respectivas. Aliás, designadamente no decurso do depoimento da testemunha E… Z… (que foi escutado) a Sra. juíza presidente consultou o mencionado auto como resulta da gravação.
- Não está explicada a razão de se dar como não provado que existe uma janela na divisão a dar para a oficina e que fica a cerca de 5 metros do solo quando a testemunha E… Z… referiu que a divisão fica à altura de um 1º andar e quando as fotografias tiradas durante a inspecção ao local permitem com bastante segurança, mercê designadamente da comparação proporcional como outros elementos físicos nelas presentes, o cálculo de uma altura aproximada.
- Não está explicado porque razão se deu como não provado que não existe qualquer outro tipo acesso à divisão excepto a porta contígua à casa à casa de propriedade do assistente quando há referências a esse respeito no auto de inspecção ao local e designadamente a testemunha E… Z… foi longamente questionada sobre a questão nomeadamente por meio do confronto com as fotografias juntas aos autos.
- Não está explicado porque se deu como não provado que houve aplicação de pregos com 15 cm de comprimento e 5 mm de espessura nas «aduelas» da porta da divisão quando a existência de 7 pregos com aquelas dimensões é referida no sobredito auto de inspecção ao local e a testemunha M… também se refere à existência de pregos usando a expressão «pregos grandes, se faz favor».
- Não está explicado ainda porque se deu como não provado que o muro em alvenaria foi construído em data posterior a 18 de Abril de 2005 apesar de haver elementos que interpretados poderiam permitir (ou não) conclusões a tal respeito como o auto de denúncia também indicado como meio de prova e os que respeitam à carta endereçada ao assistente, entre outros.
Este conjunto de omissões levariam a que se declarasse nula a decisão recorrida, de acordo com o art. 379º, nº 1, al. a) e se determinasse que fosse proferida outra que fundamentasse em termos adequados as opções referidas sobre a matéria de facto.
Em boa verdade, relativamente a todos estes aspectos a actuação do tribunal recorrido é até pouco consentânea com um princípio geral processual que o tribunal está obrigado a respeitar. É que afirmar sem mais que não há prova sobre os factos tidos como não provados acima referidos vai contra a noção assente de que o processo penal português é de estrutura acusatória integrado, porém, pelo princípio da investigação que visa traduzir o poder- dever de que o tribunal está incumbido de esclarecer e instruir autonomamente – para lá das contribuições da acusação e da defesa – o facto sujeito a julgamento. Nisto se traduz, ao nível da prossecução processual, o princípio da investigação ou da verdade material que, no caso, não foi devidamente atendido. Como corolário deste princípio para esclarecer eventuais dúvidas que lhe tivessem surgido estava o tribunal obrigado, nos termos previstos no art. 340º, nº 1 CPP a fazer as diligências de prova que considerasse pertinentes. E entre essas logo ressaltaria a tomada de declarações ao assistente que o tribunal oficiosamente poderia determinar (art. 145º, nº 1 CPP e eventualmente nova inspecção ao local.
Contudo, para além destes aspectos há um outro a que já se aludiu.
Para fundamentar a absolvição no tocante ao crime de dano a decisão recorrida usou dois argumentos.
Um deles foi o de que a actuação do arguido não tinha tornado não utilizável a coisa. Já acima se procurou rebater este argumento.
O outro foi o de que a destruição, danificação, desfiguração ou o tornar não utilizável deve respeitar a coisa alheia com o significado de que não há crime de dano se o objecto sobre o qual incide a conduta típica é propriedade do agente, sendo certo ainda que o direito de queixa cabe ao proprietário. A partir daqui a decisão recorrida concluiu como já supra se transcreveu: que se não apurou o direito de propriedade e que sem a demonstração de que a coisa era «alheia» não se poderia falar de crime de dano.
Ora, o art. 7º já citado consagra com toda a clareza o princípio da suficiência do processo penal de acordo com o qual o tribunal penal tem competência para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais com interesse para a decisão da causa. Permitindo ainda que excepcionalmente se determine a suspensão do processo penal para que a questão se resolva no tribunal competente. Essa excepcionalidade tem naturalmente a ver com a celeridade que é exigível ao processo penal e, por isso, a suspensão está sujeita às estritas regras estabelecidas no dito art. 7º (cfr a propósito “Comentário do Código de Processo Penal …”, do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, pag. 61).
Com a invocação deste princípio se pretende significar que o tribunal recorrido não podia, sem mais, avançar com a conclusão de que não está determinada a propriedade da sobredita divisão e absolver o arguido com esse fundamento. Demais a mais quando está nos autos uma certidão da qual fazem parte documentos com particular relevância para a decisão da questão e que já fora indicada como meio de prova no despacho de pronúncia (cfr fls 26 a 72 e também 307 a 320).
Daqui resulta que também por esta via a decisão recorrida é nula uma vez que deixou se pronunciar sobre uma questão que devia apreciar, nulidade essa prevista no art. 379º, nº 1, al. c) CPP sendo certo também que, mais uma vez, nenhuma referência crítica há na fundamentação a esse conjunto de documentos atrás mencionado.
Porém, a via da anulação da decisão recorrida com a correlativa obrigação de ser proferida uma outra que tomasse posição sobre os aspectos tidos como deficientemente apreciados não permitiria, do ponto de vista formal, que outra fosse a intervenção do tribunal a quo.Mormente, caso entendesse não ter meios de prova para decidir sobre a questão da propriedade, que fosse reaberta a audiência para a produção de outra prova, em nome do respeito pelo princípio da investigação como já mencionado, ou eventualmente que fosse decidido fazer uso da suspensão do processo prevista no citado art. 7º. Acresce a tudo isto que, em bom rigor, a falta de apreciação da questão respeitante à propriedade da divisão existente na garagem locada ao arguido, redunda numa insuficiência para a decisão da matéria de facto provada na exacta medida em que essa matéria de facto provada e também a não provada não permite fundamentar a correcta solução de direito que passa pela determinação da propriedade da tal divisão. Assim, o que também ocorre na decisão recorrida é o vício de insuficiência previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º, vício esse que o tribunal de recurso não pode remediar. Que não deve mesmo remediar pois lhe está vedado até, como entende o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (ob e loc cit), decidir sob a suspensão do processo nesta fase pois o recurso não é «uma nova instância para discussão da causa».
4.3. - Daí que a solução seja o reenvio do processo para novo julgamento relativamente ao mencionado crime de dano, ao abrigo do art. 426º, nº 1 e 426º-A.
Obviamente, em face da insuficiência apontada, na parte respeitante à questão da propriedade da dita divisão.
E também relativamente a toda a restante matéria respeitante ao dito crime em face das deficiências apontadas de fundamentação e de produção de prova.
É que, naturalmente, não se afigura viável ordenar que sejam supridas as nulidades apontadas à decisão recorrida, e só elas, mediante a prolação de um novo acórdão e, logo de seguida, remeter o processo para novo julgamento na parte apenas respeitante à determinação da propriedade.
Quanto a esta questão caberá, ao tribunal da primeira instância decidir por uma de duas vias: ou suspende o processo nos termos previstos no art. 7º ou avança desde já para o julgamento da questão civil prejudicial.
Caso a suspensão não leve ao resultado desejável deverá ser produzida a prova necessária designadamente com a tomada de declarações ao assistente e a consideração dos documentos já juntos aos autos sem prejuízo de outra que seja entendido produzir.
Se, o tribunal optar desde logo pela via do julgamento da questão prejudicial deverá de todo o modo tomar declarações ao assistente e levar em consideração os mencionados documentos também sem prejuízo da produção de outra prova tida como necessária.
Quanto à restante matéria respeitante ao mencionado crime de dano deverá o tribunal ponderar a necessidade de levar a cabo uma nova inspecção ao local se entender que o conjunto da restante prova – toda a prova indicada no despacho de pronúncia – não lhe permite ter-se como esclarecido quanto aos factos descritos no dito despacho.
A fim de evitar eventuais tergiversações na fixação da competência para o novo julgamento dever-se-á ter em linha de conta que se trata agora de um julgamento apenas respeitante ao crime de dano, punido no art. 212º, nº 1 C. Penal com pena de prisão até 3 anos ou multa, que, nos termos do art. 16º, nº 1, al, b), cabe na competência do tribunal singular.
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5. – Em face do exposto decide-se:
a) Negar provimento ao recurso na parte respeitante à decisão de julgar extinto o procedimento criminal contra o arguido relativamente ao crime de violação de domicílio, por ausência de legitimidade para o impulso processual, decorrente da inexistência de queixa por parte da ofendida;
b) Conceder provimento ao recurso na parte respeitante à decisão de absolver o arguido do crime de dano e, consequentemente, determinar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos supra definidos em 4.3.
c) Condenar o recorrente em 4 UC’s de taxa de justiça pelo decaimento parcial no recurso.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Nuno Gomes da Silva
Santos Rita
[1] Não vindo agora ao caso a questão da amplitude dos efeitos da decisão proferida no âmbito do processo penal.