PROVIDÊNCIA CAUTELAR
EMBARGO DE OBRA NOVA
DEMOLIÇÃO DE OBRAS
Sumário

1. A providência cautelar de embargo de obra nova, consistindo na suspensão ou não continuação dela (art. 412º, nºs 1 e 2, do CPC), pressupõe, por um lado, que a obra já se tenha iniciado e, por outro lado, que a obra iniciada ainda não terminou, pois, embora o requerente possa lançar mão da acção de demolição, alteração ou outra adequada, não faria sentido suspender, impedindo a sua continuação, algo que está concluído, estando consumada a lesão do direito e nada havendo já a prevenir ou acautelar.
2. Porém, o momento que releva para efeitos da verificação da conclusão da obra não será o da apreciação judicial do pedido de embargo ou sequer do pedido de ratificação de embargo extrajudicial, antes aquele em que é apresentado o requerimento inicial do procedimento cautelar.

Texto Integral

Decisão Sumária (nos termos do art. 705º do C.P.C.):

A e mulher B, inconformados com a decisão que julgou procedente o procedimento cautelar de embargo de obra nova contra eles instaurado por C e, consequentemente decretou a suspensão imediata da obra em execução e levada a cabo pelos Requeridos na parcela de terreno com cerca de 2 metros de comprimento e 6 metros de largura, contígua ao prédio dos mesmos a nascente, e pertencente ao prédio do, interpuseram recurso da mesma, que foi recebido como de apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (nos termos dos arts. 676º, nº 2, 691º, nº 1, 691º-A, nº 1, al. a), e 692º, todos do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), tendo rematado as alegações que apresentaram com as seguintes conclusões:
“1ª) As ofensas causadas aos direitos do requerido, como se disse, mostram-se consumadas – tornando injustificável a providência. E,
2ª) Nenhum facto concreto se deu como provado que possa concluir pelo justo receio de outras lesões futuras.
3ª) Deste modo, à providência requerida falta manifestamente o pressuposto geral da função preventiva, pelo que não devia a mesma ser decretada.
4ª) Para além de todos os actos lesivos do alegado direito do requerente se mostrarem consumados, como se alegou já – certo é que face aos factos apurados os mesmos datam de finais de Novembro de 2007/inícios de Dezembro de 2007. Ora;
5ª) A providência em causa no presente recurso só foi decretada em 21 de Outubro de 2008. Pelo que:
6ª) Não se verifica – ao contrário do invocado na sentença recorrida – qualquer periculum in mora requisito geral da providência cautelar, que esta pudesse acautelar e a tornasse justificável (e que constitui a “ratio legis” do artigo 382º do CPC).
7ª) A decisão recorrida violou assim os requisitos gerais da necessidade da providência, consubstanciado na possibilidade séria de violação (não consumada já) do direito que visa acautelar e da verificação do “periculum in mora”, previstos no artigo 387º, nº 1 do CPC (aplicável “ex vi” do artigo 392º, nº 1 do mesmo Código).

Nestes termos, e no mais que doutamente se suprirá, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e substituindo-se por outra que indefira a providência cautelar requerida, como é de direito e de JUSTIÇA”.

A parte contrária não contra-alegou.

O Exmº Sr. Juiz do tribunal recorrido proferiu despacho de sustentação, no qual manteve inalterado o despacho objecto do presente recurso de agravo.

Cumpre apreciar e decidir.


O  OBJECTO  DO  RECURSO

Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º) [3] [4]. Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º, 1ª parte, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 713º, nº 2, do mesmo diploma) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 660º, nº 2, do C.P.C., ex vi do cit. art. 713º, nº 2).
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pelos ora Apelantes que o objecto do presente recurso de agravo está circunscrito a uma única questão:


1) Se, como as ofensas causadas pelos Requeridos aos direitos do Requerente se mostram já consumadas – por isso que todos os actos lesivos do pretenso direito do Requerente datam de finais de Novembro de 2007/inícios de Dezembro de 2007, não se tendo dado como provado nenhum facto concreto do qual se pudesse concluir pelo justo receio de outras lesões futuras –, falta manifestamente à providência requerida o pressuposto geral da função preventiva, pelo que a mesma não devia ser decretada.

MATÉRIA DE FACTO
Factos  Considerados  Provados na 1ª Instância:

Não tendo sido impugnada a decisão sobre matéria de facto, nem havendo fundamento para a alterar oficiosamente, consideram-se definitivamente assentes os seguintes factos (que a sentença recorrida elenca como indiciariamente provados):

1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de V..., sob o nº , da freguesia de , o prédio rústico denominado “E ”, sito na mesma freguesia, concelho de V..., com a área de 465,60 ares, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1..., Secção AP;

2) O prédio referido em 1. encontra-se inscrito a favor do requerente, mediante a apresentação nº ;

3) O Requerente realizou um loteamento no prédio referido em 1., denominado “Terras de E”, com base num projecto aprovado pela Câmara Municipal de V...;

4) No âmbito do loteamento referido em 3., foi construído pelo Requerente um arruamento.

5) O prédio referido em 1. confronta a nascente com outro prédio, do qual os Requeridos são titulares;

6) Os prédios referidos em 1. e 4. são divididos por um muro de pedra;

7) Em 16 de Janeiro de 2007, o Requerido apresentou junto da Câmara Municipal de V... o pedido de licenciamento nº .../07, referente a construção de uma moradia unifamiliar;

8) Em finais de Novembro de 2007 / inícios de Dezembro de 2007, o Requerido deu início aos trabalhos tendentes à construção da moradia unifamiliar;

9) No âmbito dos trabalhos referidos em 7., o Requerido derrubou parte do muro referido em 5., e respectiva vedação em rede, numa extensão de cerca de 6 metros, sem autorização do Requerente;

10) O Requerido terraplanou parte do prédio referido em 1., numa extensão de cerca de 2 metros de comprimento e 6 metros de largura, sem autorização do Requerente;

11) O Requerido efectuou os trabalhos referidos em 8. e 9. por forma a possibilitar o acesso do prédio de que é titular ao arruamento referido em 4.;

12) O Requerido já transitou no local referido em 9., com uma máquina retroescavadora.



O  MÉRITO  DA  APELAÇÃO

1) Se, como as ofensas causadas pelos Requeridos aos direitos do Requerente se mostram já consumadas – por isso que todos os actos lesivos do pretenso direito do Requerente datam de finais de Novembro de 2007/inícios de Dezembro de 2007, não se tendo dado como provado nenhum facto concreto do qual se pudesse concluir pelo justo receio de outras lesões futuras –, falta manifestamente à providência requerida o pressuposto geral da função preventiva, pelo que a mesma não devia ser decretada.

Na tese dos Requeridos ora Apelantes, desde que as ofensas por eles causadas ao direito de propriedade do ora Requerente/Apelado estão já consumadas – porquanto, à luz da matéria de facto apurada pelo tribunal de 1ª instância, todos os pretensos actos lesivos de tal direito por eles praticados datam de finais de Novembro/inícios de Dezembro de 2007, não tendo ficado provado nenhum facto concreto do qual se possa concluir pela existência de justo receio de outras lesões futuras -, faltaria, in casu, o pressuposto geral de todos os procedimentos cautelares consistente na sua função preventiva, porquanto as providências cautelares não visam a correcção de situações, mas tão somente prevenir lesão ou lesões futuras.
Quid juris ?
«O embargo de obra nova é a providência cautelar adequada a evitar a violação, ou a continuação da violação, dum direito, real ou pessoal, de gozo ou da posse duma coisa, por via duma obra em curso»[5]. «Na dependência duma acção que vise alcançar a proibição da continuação da obra, a sua alteração ou a demolição do que já tenha sido efectuado, pelo embargo de obra nova é mandada suspender a obra em curso, conservando-se a situação de facto até que na acção se obtenha o resultado pretendido»[6].
Embora o Código Civil de 1966 não contenha preceito idêntico ao art. 2355º do Código Civil de 1867 – no qual se estatuía que “se a violação [do direito de propriedade] provier de qualquer obra nova, a que alguém dê começo, poderá o ofendido prevenir-se, e assegurar o seu direito, embargando a obra ”, o que tornava inequivocamente exigido que a obra tivesse tido início de execução -, «continuou a entender-se que a providência cautelar de embargo de obra nova, consistindo na suspensão ou não continuação dela, pressupõe que a obra se tenha iniciado»[7] [8].
«Pressupõe-se, por outro lado, que a obra iniciada não terminou, pois, sem prejuízo de o requerente poder lançar mão da acção de demolição, alteração ou outra adequada, não faria sentido suspender, impedindo a sua continuação, algo que está concluído, estando consumada a lesão do direito e nada havendo já a prevenir ou acautelar»[9]. «O sub-requisito não estar a obra concluída compreende-se facilmente, pois desde que o embargo se destina a que "a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente" (art. 412º-1), notificando-se "o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar" (art. 412º-2) é evidente (...) que no caso de estar a obra concluída o embargo não exerceria função útil, não teria finalidade»[10].
Porém, «o momento que releva para efeitos da verificação da conclusão da obra não será o da apreciação judicial do pedido de embargo ou sequer do pedido de ratificação de embargo extrajudicial, antes aquele em que é apresentado o requerimento inicial»[11].
Ora, no caso dos autos, não resulta da matéria factual apurada pelo tribunal “a quo” – antes pelo contrário - que, no momento em que foi instaurado o presente procedimento cautelar de embargo de obra nova (em 28 de Dezembro de 2007), os trabalhos levados a cabo pelos ora Requeridos/Apelantes já estivessem concluídos.

De facto, os trabalhos tendentes à construção da moradia unifamiliar realizados pelo Requerido A, no âmbito dos quais ele derrubou parte do muro que divide os prédios do Requerente e dos Requeridos, e respectiva vedação em rede, numa extensão de cerca de 6 metros, sem autorização do Requerente, tendo ainda terraplanado parte do prédio do Requerente, numa extensão de cerca de 2 metros de comprimento e 6 metros de largura, uma vez mais sem autorização do Requerente, tiveram início em finais de Novembro de 2007 / inícios de Dezembro de 2007.
A esta luz, irreleva que a providência só tivesse sido, finalmente, decretada em em 21 de Outubro de 2008.
Como assim, o presente recurso improcede, quanto à única questão suscitada pelos Apelantes.

DECISÃO
Decide-se negar provimento ao presente recurso de Apelação, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas da Apelação a cargo dos ora Apelantes, em partes iguais (art. 446º, nºs 1, 2 e 3, do CPC).

Lisboa, 3 de Julho de 2009

RUI  TORRES  VOUGA 
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
[5] LEBRE DE FREITAS – MONTALVÃO MACHADO – RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., 2008, p. 142.
[6] LEBRE DE FREITAS – MONTALVÃO MACHADO – RUI PINTO, ibidem.
[7] LEBRE DE FREITAS – MONTALVÃO MACHADO – RUI PINTO in ob. e vol. citt., p. 144.
[8] «Efectivamente, não só o artigo [412º do CPC], mas também os arts. 413º-1 (“construção ou edificação iniciadas”), 418º (“o estado da obra”, “fotografias da obra”), 419º (“continuação”, “paralisação da obra”) e 420º (“continuar a obra”, “parte inovada”) pressupõem que a obra teve mesmo início» (LEBRE DE FREITAS – MONTALVÃO MACHADO – RUI PINTO, ibidem).
[9] LEBRE DE FREITAS – MONTALVÃO MACHADO – RUI PINTO, ibidem.
[10] MOITINHO DE ALMEIDA in “Embargo ou Nunciação de Obra Nova”, 1974, p. 24.
[11] Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 30/1/1997 (publicado in BMJ nº 463, p. 534.). Daí que, segundo este aresto, «se a matéria de facto julgada provada no acórdão da Relação nada diz quanto ao estado de conclusão da obra e, não obstante, naquele se julgou que seria de revogar o despacho que ordenou a ratificação do embargo de obra nova, “por a obra concluída não poder ser embargada”, tal acórdão está viciado de nulidade, nos termos dos arts. 688º, nº 1, al. b), 716º, nº 1, e 749º, do CPC».