LEGITIMIDADE
CRIME SEMI-PÚBLICO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

I - Notificado o assistente, nos termos do art.º 285º CPP, para deduzir acusação por crime particular, se entender que há indícios da existência de crime semipúblico ou público, deve requerer a instrução nos termos do art.º 287º, nº1 al. b) CPP.
II - Ocorre a nulidade insanável do art.º 119º al. b), 1ª parte, CPP se o assistente deduz acusação por crime semipúblico sem previa acusação do MºPº, determinando a sua invalidade e a dos actos subsequentes (art.º 122º CPP).

Texto Integral

Proc.º nº 2585/13.2TAGDM.P1 – 4ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1. O assistente B…, no Proc.º nº 2585/13.2TAGDM, que corre termos na Secção Criminal, J2, da Instância Local de Gondomar, Comarca do Porto, deduziu acusação particular contra o arguido C…, imputando-lhe a prática de vários crimes de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, nº 1, 182º, nº 2, e 183º, nº 1, al. a), todos do CP, “com agravamento previsto no art.º 184º do Código Penal, dado tratar-se de difamação dirigida ao selecionador nacional da E…, no exercício das suas funções e por causa delas.”
1.2. O Ministério Público não acompanhou a acusação deduzida pelo assistente por entender que o crime imputado tem natureza semipública, carecendo por isso o assistente de legitimidade para deduzir acusação.
1.3. Remetidos os autos para julgamento, pelo Sr. Juiz competente foi proferido despacho de não recebimento da acusação particular deduzida pelo assistente, com fundamento no facto de este não ter legitimidade processual.
1.4. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o assistente, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“O presente recurso vem interposto da Despacho do Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” em que aquele não recebe a Acusação particular do Assistente por achar que este não tem legitimidade para a deduzir.
- o Assistente tem toda a legitimidade para deduzir Acusação particular contra o Arguido pelo crime particular de Difamação previsto nos Artigos 180º-nº 1, 182º e 183º-nº 1-a) C.P.
- Deve ser revelado o lapso de escrita constante do ponto 16 da Acusação particular, por o mesmo não ser um erro de ciência, ou de caso-pensado, mas tão só um lapso escrita constante do texto da Acusação.
- Ao presente caso não se aplica a alínea l) do nº 2 do Art.º 132º Código Penal.
- O presente caso trata-se de um crime particular, que requer Acusação particular.
- O Assistente pretende tão somente que o Despacho judicial de que ora se recorre, que diz que o Assistente não tem legitimidade para deduzir a Acusação particular, pondo em causa o prosseguimento e a aplicação da Justiça para com aquele, cujo M.P. considerou terem sido recolhidos indícios suficientes da prática de factos integradores do Crime de Difamação, previsto e punido pelos Artigos 180º-nº 1, 182º e 183º-nº 1-a) todos do Código Penal, seja revogado e substituído por outro que designe data para a realização da audiência de julgamento do Arguido.”
1.5. O recurso foi admitido por despacho de fls. 298, de 23/11/2016.
1.6. O Ministério Público respondeu ao recurso, de fls. 302 a 304 destes autos, considerando não ser de relevar o lapso de escrita alegadamente contido no art.º 16º da contestação, por se tratar de uma “subsunção jurídica de factos”, baseada num exercício hermenêutico que não pode ter ali aparecido por mera distração ou incúria, concluindo pela improcedência do recurso.
1.7. Respondeu também o arguido, de fls. 305 a 308, concluindo por não ser de relevar o lapso invocado pelo assistente, bem como pela improcedência do recurso.
1.8. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto emitiu o parecer de fls. 317 e 318, concluindo pela improcedência do recurso.
1.9. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.10. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo assistente e os poderes de cognição deste Tribunal, importa apreciar e decidir a seguinte questão:
1.10.1. Se o assistente tem ou não legitimidade processual para deduzir a acusação particular. O que implica, precipuamente, apurar se tem fundamento a pretensão de retificação do alegado erro material contido no art.º 16º da acusação particular, isto é, o facto jurídico-conclusivo que no fundo dá sentido e fundamento àquela ilegitimidade, na medida em que confere a natureza de crimes semipúblicos aos factos ali imputados ao arguido.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar
2.1.1. A 29/02/2016, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
“Notifique o assistente nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 285º, nº 1, do Código de Processo Penal para, no prazo de 10 dias, deduzir acusação particular contra o arguido.
Para os efeitos do disposto no nº 2 da citada norma, consigno que se considera terem sido recolhidos indícios suficientes da prática pelo arguido de factos integradores do crime de difamação, previsto e punido pelos art.ºs 180º, nº 1, 182º e 183º, nº 1, al. a), todos do Código Penal.”
2.1.2. Na acusação particular deduzida, de fls. 250 a 253, o assistente imputou ao arguido, os seguintes factos (transcrição considerada relevante):
“1º
Sendo o ora assistente selecionador nacional de E…, o aqui arguido tem vindo a difamá-lo, injuriando-o publicamente, quer em redes sociais (Facebook e fóruns diversos) quer em conversas públicas que tem com pessoas ligadas ao ciclismo e a vários órgãos de comunicação social, Federações e Institutos de desporto.
Durante vários anos, anteriores a 2013, altura em que o Assistente tomou conhecimento de tais acontecimentos (fevereiro de 2013)
O arguido difamou o aqui Assistente, chegando ao desplante de apresentar queixa contra ele no Conselho Diretivo do IPDJ, por alegados favorecimentos com dinheiros públicos à esposa do Assistente, conforme documento nº 1 que se encontra junto aos Autos.
O arguido quando se referia às provas de D… utilizava expressões contra o aqui Assistente que atentam contra a sua hora, dignidade e consideração, pondo em causa de forma indigna as capacidades e o desempenho do Assistente à frente da Seleção nacional E….
O arguido referiu-se ao aqui assistente chamando-o de: burro, jumento, tipo de mau caráter.
E ainda, que o aqui Assistente: toma atitudes baixas, muito feias e más como selecionador nacional.
Ainda, referindo-se ao assistente, o arguido disse:
‘E não haja nenhum burro mau e de mau caráter que, por perseguição pessoal apenas, o impeça de fazer o que pode fazer… como nitidamente o fez este ano o Selecionador nacional, infelizmente a coberto da passividade da Direção desta Federação… com critérios salazaristas, que deixam meninos gordos brincar ao poder.’
(…)
Tendo-se dirigido, em abril de 2013, ao aqui Assistente por e-mail em que o acusa de perseguição individual claríssima a atletas, de fazer favores e vigarices, tendo feito o mesmo no Facebook de forma pública, conforme consta dos documentos nº 2 e nº 3 que se encontra nos Autos.
E em junho de 2013 o arguido continuou com insultos, acusando Assistente de: corrupto porco vigarista e de patrocinar análises fraudulentas à sua mulher, como consta do documento nº 4 junto aos Autos.
Tendo ainda o arguido, chamado ao Assistente, com uma foto deste, de: ‘Parasita, merda, bale nada, nojento, cobarde, sem personalidade, sem caráter, como consta do documento nº 5, junto a estes Autos.
10º
Todos estes impropérios e as expressões foram amplamente divulgadas através de meios que facilitaram a sua divulgação - as referidas redes sociais e também junto do público em geral e dos patrocinadores, com consequências muito negativas para a imagem do selecionador, aqui ora Assistente.
(…)
16º
Devendo o arguido ser condenado com o agravamento previsto no artigo 184º do Código Penal, dado tratar-se de difamação dirigida ao selecionador nacional de E…, no exercício das suas funções e por causa delas.”
2.1.3. Remetidos os autos à distribuição, pelo Mmo. Juiz competente foi proferido o seguinte despacho:
“O tribunal é competente. O processo é o próprio.
*
I)
O assistente B… deduziu acusação particular contra o arguido C…, imputando-lhe a prática de vários (sic) crimes de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, nº 1, 182º e 183º, nº 1, al. a) todos do CP, «com o agravamento previsto no Art.º184º do Código Penal, dado tratar-se de difamação dirigida ao selecionador nacional E…, no exercício das suas funções e por causa delas» (cfr. art.º 16º da douta acusação particular).
O Mº Pº não acompanhou a sobredita acusação por entender que o crime imputado tem natureza semipública e, por isso, carecia o assistente de legitimidade para deduzir acusação.
Veio, então, o assistente dizer tratar-se de mero lapso de escrita, devendo o art.º 16º do seu articulado considerado não escrito.
Ouvido, o arguido alinhou a sua posição pela do Mº Pº, pugnando pela rejeição da acusação particular. Cumpre decidir:
É incontornável que o crime (ou crimes, já que o assistente alude a "vários" mas não os quantifica ou discrimina), cuja prática foi atribuída ao arguido reveste(m) natureza semipública, pelo que é o Mº Pº quem tem legitimidade para deduzir acusação (art.º 184º, 188º, nº 1, al. a), do CP e 49º do CPP).
A questão que se coloca é se a referência contida no art.º 16º daquela peça processual - «com o agravamento previsto no Art.º 184º Código Penal, dado tratar-se de difamação dirigida ao selecionador nacional de E…, no exercício das suas funções e por causa delas» - pode ser considerada à guisa de mero lapso de escrita.
Nos termos previstos no art.º 249° do CC, o erro de escrita deve ser revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que esta é feita. Só assim dará lugar à sua retificação.
Lida a acusação particular, verificamos que logo no primeiro artigo, e a título de introito explicativo, o acusador situa a questão nos seguintes termos: «Sendo o ora Assistente selecionador nacional E…., o aqui arguido tem vindo a difamá-lo».
Mais adiante, o assistente volta a aludir a essa sua qualidade, referindo:
- «…as capacidades e o desempenho do Assistente à frente da Seleção nacional E…» (art.º 4°) e;
- «…com consequências muito negativas para a imagem do Selecionador, aqui ora Assistente» (art.º 10º).
É, por isso, ostensivo da economia geral da acusação, que a qualidade de selecionador nacional E… é recorrentemente invocada, erigindo-se como um fator fundamental - na perspetiva do assistente, bem-entendido - para a gravidade do comportamento do arguido.
Ademais, os erros de escrita são, na sua génese, um lapso, uma falta de atenção. Algo que quem o comete nem reparou que o fez. O art.º 16° da acusação particular, como toda a subsunção jurídica de factos, convoca um exercício hermenêutico que não pode ter ali aparecido por mera distração ou incúria.
Só que aquelas situações em que, de caso-pensado, se escreve qualquer coisa que depois se conclui não ser acertada, não configuram erros de escrita, mas erros de ciência.
Por isso, o reconhecimento do assistente de que não há qualquer «agravamento nos termos do Art.184° Código Penal, porque efetivamente o Assistente não é nenhuma das pessoas referidas na alínea I) do nº 2 do Art.º 132º do Código Penal» (cfr. fls. 271), não equivale ao reconhecimento de um lapso de escrita, antes ao de ter feito uma errada subsunção jurídica dos factos ao seu dispor.
Só que, insiste-se, o contexto da declaração, rectius da acusação particular, não revela, antes pelo contrário, que a qualidade de selecionador nacional de E… do assistente fosse um pormenor sem relevo ou mera contextualização, outrossim um aspeto essencial, cuja pedra de toque tomou forma justamente no já referido art.º 16º.
Assim, por falta de legitimidade do assistente, não recebo a acusação particular acima epigrafada (art.ºs 184º, 188º, nº 1, al. a), do CP e 49º do CPP).
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal. Notifique.”
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
2.2.1. Do lapso de escrita alegadamente contido no art.º 16º da acusação deduzida pelo assistente
Quer se considere a aplicação analógica do art.º 380º, nº 1, al. b), ou a subsunção dos factos ao art.146º, nº 1, do Código de Processo civil, ambos ex vi do art.º 4º do CPP, sempre a solução seria a mesma.
Dispõe o art.º 380º, nº 1, al. b), do CPP que o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando a mesma contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
Enquanto que o art.º 146º, nº 1, do Código de Processo Civil estabelece que “é admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual”.
Disposição análoga a esta é a contida no art.º 249º do Código Civil, aplicável aos atos jurídicos em geral, por via do art.º 295º do mesmo diploma, na media em que a analogia das situações o justifique.
Em relação à questão decidenda é pacífico o entendimento de que os erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, são aqueles que resultam da e na expressão material do juízo operado na peça processual escrita, no contexto da comunicação nela expressa, de tal maneira que o erro ou lapso possa ser percebido por qualquer pessoa, ao mesmo tempo que permita também concluir que não estamos perante um erro de julgamento, de caráter técnico ou científico.
É paradigmático o ensinamento do Professor Alberto dos Reis, embora no âmbito do erro ou lapso material produzido pelo juiz na sentença, mas perfeitamente transponível para o caso em análise, bastando substituir os substantivos “juiz” pelo de “assistente” e “despacho” ou “sentença” por “acusação particular”: “Importa distinguir cuidadosamente o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever ‘absolvo’ e por lapso, inconsideração, distração, escreveu precisamente o contrário: condeno.
Erro de julgamento, é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode (…) emendar o erro.”[1]
Ora, no caso dos autos o art.º 16º da acusação particular deduzida pelo assistente é um corolário jurídico-conclusivo perfeito de toda a factualidade concretamente alegada nos artigos anteriores, sendo por assim dizer a conclusão que, relativamente àqueles, silogisticamente se impunha.
Ou seja, o assistente começou por alegar, logo no art.º 1º, que era selecionador nacional E…, e que o aqui arguido o vinha difamando e injuriando publicamente, quer em redes sociais (Facebook e fóruns diversos) quer em conversas públicas que tem com pessoas ligadas ao ciclismo e a vários órgãos de comunicação social, Federações e Institutos de desporto. Acrescentando no art.º 3º que o mesmo arguido chegou ao desplante de apresentar queixa contra ele no Conselho Diretivo do IPDJ, por alegados favorecimentos com dinheiros públicos à esposa do Assistente, conforme documento nº 1 que se encontra junto aos Autos. E no art.º 4º que o arguido, quando se referia às provas de D…, utilizava expressões contra o aqui Assistente que atentam contra a sua honra, dignidade e consideração, pondo em causa de forma indigna as capacidades e o desempenho do Assistente à frente da Seleção Nacional E…. Concretizando tais factos nos artigos seguintes e, designadamente, no art.º 7º, onde alega que o arguido, ao referir-se ao assistente, terá dito: “E não haja nenhum burro mau e de mau caráter que, por perseguição pessoal apenas, o impeça de fazer o que pode fazer… como nitidamente o fez este ano o Selecionador nacional, infelizmente a coberto da passividade da Direção desta Federação… com critérios salazaristas, que deixam meninos gordos brincar ao poder.” Enfatizando no art.º 10º do mesmo articulado que “todos estes impropérios e as expressões foram amplamente divulgadas através de meios que facilitaram a sua divulgação - as referidas redes sociais e também junto do público em geral e dos patrocinadores, com consequências muito negativas para a imagem do selecionador, aqui ora Assistente.”
Daí que, no art.º 16º, numa proposição lógico-jurídica inatacável, conclua:
“Devendo o arguido ser condenado com o agravamento previsto no artigo 184º do Código Penal, dado tratar-se de difamação dirigida ao selecionador nacional E…, no exercício das suas funções e por causa delas.”
A conclusão contida no art.º 16º é assim um juízo técnico, fáctico-jurídico e conclusivo, perfeitamente harmonizável com os fundamentos que o antecedem. E ao ponto de podermos afirmar que, logicamente, nos pressupostos e conclusão produzidos, não vislumbramos sequer qualquer erro que possa ser apontado e, muito menos, que o mesmo pudesse ser enquadrável no conceito de mero erro ou lapso material, de escrita ou de cálculo, que no contexto da peça processual apresentada, permitisse a sua retificação, de harmonia com as disposições normativas acima citadas.
Razão por que, nesta parte, deve ser negado provimento ao recurso.
2.2.2. Da nulidade da acusação deduzida pelo assistente
Como se deixou referido supra em 2.1.1., o Ministério Público, dando cumprimento ao disposto no art.º 285º do CPP, e por considerar terem sido recolhidos indícios suficientes da prática pelo arguido de factos integradores do crime de difamação, previsto e punido pelos art.ºs 180º, nº 1, 182º e 183º, nº 1, al. a), do Código Penal, determinou a notificação do assistente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 285º, nº 1, do Código de Processo Penal para, no prazo de 10 dias, deduzir acusação particular contra o arguido.
Na sequência de tal notificação, veio o assistente alegar factos constitutivos de “vários” crimes de difamação agravada, nos termos já supra referidos em 2.2.1., subsumíveis às disposições conjugadas dos art.ºs 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, al. a), e 184º do CPP.
Ora, como resulta do disposto no art.º 188º, nº 1, al. a), do CPP, o procedimento criminal pelo crime previsto no art.º 184º, está dependente de queixa ou participação, e não já de acusação particular. De
facto, diz o art.º 188º, nº 1, al. a), que “O procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular, ressalvados os casos: a) do art.º 184º (…) em que é suficiente a queixa ou participação.
Ou seja, assume tal crime a natureza de crime semipúblico, no sentido de que, e por contraposição aos crimes públicos, em que o Ministério Público atua oficiosamente, ademais devido à sua estreita conexão com a gravidade do ilícito típico, por referência ao bem jurídico violado, o legislador considerou que o respetivo procedimento criminal deve estar dependente de queixa, dizendo-o, nesses casos expressamente, no âmbito das normas que estabelecem o respetivo tipo-de-ilícito. Isto é, naqueles casos em que positivamente considere que a infração não assume suficiente gravidade, do ponto de vista comunitário, por não se relacionarem “com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão direto e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – v.g. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infrator”[2], como acontece com os crimes públicos.
Por outro lado, a titularidade da ação penal, condicionada ou não à prévia dedução de queixa, sob pena de ilegitimidade, pertence exclusivamente ao Ministério Público – art.ºs 219º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 1º do Estatuto do Ministério Público (Lei nº 47/86, de 15 de outubro) e art.º 48º do Código de Processo Penal.
Resultando ainda das disposições conjugadas dos art.ºs 48º, 49º e 50º do CPP que é ao Ministério Público que cabe deduzir acusação, exceto nos casos de procedimento dependente de acusação particular. Ou seja, nas hipóteses em que os indícios recolhidos são atinentes a um crime público ou semipúblico, é sempre ao Ministério Público que cabe deduzir acusação, podendo apenas o assistente, até 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, deduzir também acusação pelos factos por aquele acusados, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial dos primeiros – art.º 284º do CPP.
Mas tratando-se de crime particular, aqui já a iniciativa de acusar cabe ao assistente, após a notificação a que alude o art.º 285º, nº 1 do CPP, já supra referida, podendo o Ministério Público, nos 5 dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles – art.º 285º, nº 4, do CPP.
Na sequência da notificação efetuada pelo Ministério Público, ao abrigo do art.º 285º do CPP, se o assistente entender que dos autos resultam indícios da prática de um crime público ou semipúblico, o que deverá fazer é requerer a abertura de instrução, nos termos do art.º 287º, nº 1, al. b), do CPP, mas não substituir-se ao Ministério Público e deduzir ele a acusação, pois a lei atribui o domínio de uma tal possibilidade, em exclusivo, ao Ministério Publico. E se o assistente o fizer, isto é, se deduzir acusação por crime público ou semipúblico, estará a realizar ato que só seria possível ao abrigo do art.º 284º do CPP, ou seja, depois da notificação da acusação previamente deduzida pelo Ministério Público e, assim, também sem a necessária e prévia promoção processual penal, a que alude o art.º 48º do CPP.
Tal facto, isto é, ter o assistente deduzido a acusação que constitui fls. 250 a 253, sem prévia acusação do Ministério Público, tem como consequência a nulidade insanável prevista no art.º 119º, al. b), do CPP, primeira parte, bem como as consequências determinadas no art.º 122º do CPP[3]. Isto é, não só a invalidade da acusação deduzida pelo assistente, mas também de todos os atos praticados no seguimento dela.
Trata-se de uma nulidade insanável, oficiosamente cognoscível, a ser declarada em qualquer fase do procedimento – art.º 119º do CPP. E sendo nula uma tal acusação, bem como os atos a ela subsequentes, é bom de ver que não merece atendimento a pretensão deduzida pelo assistente no presente recurso, de ver revogada a decisão recorrida, que não admitiu tal acusação, e a sua substituição por outra em que se designe data para realização da audiência de julgamento.
Razão por que deve ser negado provimento ao recurso, declarando-se nula a acusação deduzida pelo assistente, de fls. 250 a 253 dos autos, bem como de todos os atos praticados no seguimento dela e, consequentemente, determinar-se ainda a devolução dos autos ao Ministério Público.
2.3. Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que o assistente decaiu no recurso, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça (artigos 515.º, nº 1, al. b e nº 2), do Código de Processo Penal).
Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 ½ UC.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Negar provimento ao recurso interposto pelo assistente B…, declarando nula a acusação por si deduzida, de fls. 250 a 253 dos autos, bem como todos os atos praticados no seguimento dela, determinando-se, consequentemente, a devolução do processo ao Ministério Público.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 4 ½ UC.
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Porto, 05 de abril de 2017
Francisco Mota Ribeiro
Borges Martins
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[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora Lim., Coimbra, 1984, p. 130.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, p. 121.
[3] Neste sentido se pronunciaram: Ac. de fixação de jurisprudência nº 1/2000, do Supremo Tribunal de Justiça, DR, de 06-01-2000; Ac. TRL, de 06/02/2002 e Ac. do TRP, de 06/02/2002, in CJ, XXVII, Tomo I, p. 147 e 233; Ac. TRG, de 20/01/2014, Pº 298/13.4TAVCT.G1, disponíveis in http://www.dgsi.pt.