INSOLVÊNCIA
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
FALTA
ADIAMENTO
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
JUSTO IMPEDIMENTO
Sumário

I – Em processo especial de insolvência, a falta de comparência à audiência de discussão e julgamento do requerente ou de um seu representante com poderes especiais, ainda que esta coincida com a pessoa do seu mandatário judicial, não determina o adiamento da audiência, por ser aplicável àquela falta de comparência o regime especial do artigo 35º, nºs 1 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que se sobrepõe em face da natureza urgente que o ditou, ao regime de adiamentos por falta dos mandatários judiciais do artigo 651º do Código de Processo Civil.
II – É, porém, admissível a invocação do incidente de justo impedimento da comparência da parte ou do seu representante com poderes especiais.
III – Para este efeito, o justo impedimento deve consistir em acontecimento não imputável à parte ou ao seu representante, que impeça, não só a comparência de um ou de outro, como, no caso de respeitar à pessoa do representante, de avisar a parte em tempo útil a parte para que ela própria compareça.
IV – Tendo sido passada pelo requerente procuração forense simultaneamente a dois advogados a quem são conferidos igualmente poderes especiais para transigir, confessar e desistir, o dito acontecimento respeitante a um dos representantes deve ainda ser impeditivo da comunicação em tempo útil ao outro, como representante, para que assegure alternativamente a comparência à audiência.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

            I – C..., SA requereu a declaração de insolvência de ABD..., LDA, alegando, em síntese, ser titular de um crédito judicialmente reconhecido sobre esta, de valor que, no momento em que instaurou a correspondente execução, ascendia a € 32.212,76, e que, pelas diligências nesse âmbito executivo realizadas, se veio a apurar não haver bens penhoráveis em nome da requerida, havendo suspeitas de tal situação ter sido fraudulentamente provocada.
            Ofereceu desde logo rol de testemunhas.
            Citada, a requerida veio deduzir oposição, impugnando os factos invocados e alegando que o requerimento apresentado visa apenas coagi-la a aceitar condições gravosas de pagamento que passam por garantias fora do enquadramento da empresa devedora.
            Designada data para a realização da audiência de julgamento, tendo as partes sido notificadas com explícita menção da advertência e das cominações previstas no artigo 35º, nºs 1, 2 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, veio a mesma a ter lugar na referida data (16.4.2009), a que apenas compareceram o legal representante da requerida e a sua ilustre mandatária, não comparecendo legal representante da requerente nem o seu ilustre mandatário, factos que ficaram registados em acta, a fls. 145, tendo de imediato, com registo também na mesma acta, sido proferido pela Mma Juíza despacho em que, com invocação da falta de comparência da requerente ou de representante seu, foi considerado ser de aplicar a disposição do artigo 35º, nº 3 do supra referido Código e, consequentemente, foi homologada e julgada válida a desistência do pedido e, consequentemente, julgada extinta a instância, com custas pela desistente.
            Por requerimento recebido em 17.4.2009, veio o ilustre mandatário da requerente, invocando ter poderes especiais, alegar ter tido, na noite de 15.4.2009, “uma indisposição, seguida de perda de consciência”, sendo assistido pelo seu médico de família, que lhe prescreveu repouso absoluto durante o dia 16.4.2009, razão por que não pôde comparecer, nem fazer-se substituir por outro colega, tendo ainda acontecido que o seu secretariado não conseguiu contactar directamente os representantes legais da empresa para que comparecessem pessoalmente, tendo, porém, conseguido avisar as testemunhas dessa impossibilidade.
            Concluiu o dito requerimento, solicitando “que se digne admitir o incidente de justo impedimento e, consequentemente, que se digne agendar nova data para a realização do julgamento”, oferecendo uma testemunha (médico).
            Juntou cópia de um atestado médico subscrito pelo mesmo médico e deu cumprimento ao disposto nos artigos 229º-A e 260º-A do Código de Processo Civil.
            Presentes os autos sob conclusão em 23.4.2009, nessa mesma data foi proferido despacho indeferindo o requerimento, com fundamento na circunstância de haver entrado após o momento da audiência marcada, pelo que, não poderia “o tribunal atender ao requerido e designar nova data por não haver qualquer causa que abale o fundamento que levou à prolação da referida decisão”.
            Enviado em data anterior (22.4.2009), mas só junto aos autos após a prolação da decisão acabada de referir, veio aos autos (fls. 158-160) requerimento de resposta da requerida, manifestando-se pela improcedência do pedido e da própria invocação de justo impedimento.
            Interpôs a requerente o presente recurso de apelação, acompanhado das respectivas alegações, em que formulou as seguintes conclusões:
I. A não comparência à audiência de julgamento, no âmbito de processo de insolvência, não constitui presunção inilidível de desistência do pedido, nem a homologação dessa desistência pode assentar unicamente numa tal presunção, que não tem força e dignidade bastantes para revelar essa vontade,
II. Pois que tal evento poderá nem ser livremente determinado, ocorrendo antes por motivos de força maior, designadamente relativos a questões de saúde ou de facto fortuito inultrapassável.
III. É absolutamente equívoco admitir que, nestas circunstâncias, o Requerente da insolvência seja imediatamente onerado com uma decisão de mérito, que transitada, lhe retira, para o futuro, a possibilidade de requerer a insolvência, com o inerente prejuízo do interesse público subjacente e legitimador da declaração da insolvência.
V. Neste enquadramento e face à severidade da solução consignada no art.º 35.º, do CIRE, impõe-se uma interpretação que não se limite à literalidade do referido preceito, recorrendo outrossim aos elementos fundamentais da «lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual».
V. A falta à audiência de julgamento, não pode deixar de determinar que o juiz proceda nos termos do art. 651.º n.º 5 do CPC, conferindo à parte uma possibilidade para justificar a respectiva falta,
VI. Sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, através de uma interpretação de que não transparece qualquer preocupação de ajustar as circunstâncias aos determinados efeitos,
VII. Sob pena ser proferida uma decisão surpresa, sem contraditório e consequentemente violadora o principio da proibição da indefesa ínsito no princípio geral do acesso ao direito consignado no art. 20.º da CRP.
VIII. E sob pena de se proferir despacho de homologação de uma desistência materialmente inexistente, sem qualquer correspondência àquilo que seja a vontade real e livremente determinada, não fazer a justiça devida, por se assentar numa verdade formal e não numa verdade material.
IX. A douta sentença recorrida violou, assim, os artigos 35º do CIRE, 651.º e 656.º do CPC e o princípio do acesso ao direito na sua manifestação de proibição da indefesa, bem como dos princípios ínsitos do Estado de Direito consubstanciados na proibição do excesso ou da proporcionalidade, da cooperação, da adequação e da juridicidade, consignados nos artigos 2.° e 20.º da CRP, sendo ainda uma decisão nula, por falta de fundamentação.
Sem conceder,
X. E note-se que, mesmo que assim não se considere, sempre o justo impedimento da parte obstará aos efeitos estatuídos no art.º 35º, do CIRE, pois o processo justo e leal e a confiança como elemento do princípio do processo equitativo, não permitem outra decisão que não seja garantir aqueles referidos direitos que, no caso, passam pelo desencadear dos mecanismos necessários tendentes a acautelar qualquer evento imprevisível e não culposo, como o seja uma situação de doença súbita.
XI. Assim que lhe foi possível, o mandatário da Requerente veio requerer ao Tribunal a designação de nova data para realização da audiência, alegando ter sofrido, na noite anterior, uma indisposição seguida de perda de consciência, tendo sido assistido por médico, que prescreveu, cautelarmente, repouso absoluto, juntando o correspondente atestado médico e arrolando o médico subscritor desse atestado como testemunha.
XII. Os factos alegados pelo Mandatário da Requerente - impossibilidade de comparência por força de doença súbita - subsumem-se integralmente ao conceito de justa causa, plasmado no art.º 146.º, do CPC: evento que obste à prática atempada de acto jurisdicional e que não seja imputável à parte que o invoca nem aos seus representantes ou mandatários, com demonstração dessa qualidade impeditiva e comprovação da inexistência de culpa.
XIII. Equacionando as hipóteses de fundamento - à sua  míngua - do despacho recorrido, é certo que o art.º 35.º, do CIRE, exige a presença do representante do Requerente da insolvência, pessoalmente, ou representado «por quem tenha poderes para transigir», como certo é que o signatário tem tais poderes, razão pela qual essa questão não chega a suscitar quaisquer mais considerações.
XIV. E sempre equacionando os possíveis "fundamentos" para o liminar indeferimento do alegado justo impedimento, dir-se-á que, a obrigatoriedade de o mandatário comunicar ao Tribunal a impossibilidade de comparecer, não decorre do disposto no art.º 146.º do CPC, não se podendo exigir às partes condutas que tenham em conta a eventual ocorrência de circunstâncias anormais ou excepcionais, não previsíveis, caso a caso: pois pela própria natureza do impedimento, sempre será inevitável consignar que a impossibilidade de acautelar a impossibilidade de comparência, decorre da natureza dos motivos que impossibilitaram a comparência.
XV. Por tudo quanto vem exposto, a decisão de fls. 154 viola os artigos 35.º do CIRE, e 146.º do Código de Processo Civil, consubstanciando grave prejuízo para o interesse público subjacente à declaração de insolvência e autêntica denegação de justiça, causando prejuízo irreparável ao requerente, na medida que inibe o mesmo de propor outra acção com o mesmo objecto, a fim de assegurar o seu direito, violando, consequentemente, o princípio do acesso ao direito, bem como dos princípios ínsitos do Estado de Direito consubstanciados na proibição do excesso ou da proporcionalidade, da cooperação, da adequação e da juridicidade, consignados nos artigos 2.º e 20.º da CRP.
XVI. O despacho de fls. 154 é objectivamente arbitrário, pois indefere o requerimento de justo impedimento apresentado pelo mandatário da Requerente, sem invocar um único preceito legal e sem para o efeito apresentar qualquer discurso argumentativo, pois não consubstancia quaisquer razões pelas quais entende que não há «qualquer causa que abale o fundamento» da decisão de fls. 145, sendo por isso, um despacho nulo por falta de fundamentação, nos termos do art.º 668.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Nestes termos e com o douto suprimento de V. Ex.ª, deverá a decisão de fls. 145 e ss. ser revogada e face aos elementos dos autos, ser substituída por outra que ordene a realização de audiência de julgamento; Ou, caso assim não se entenda, deverá a decisão de fls. 154 ser revogada e substituída por outra que, julgando procedente o justo impedimento alegado, ordene o agendamento de nova data para realização daquela audiência.

            Houve contra-alegações, tendo a apelada formulado as seguintes conclusões:
A) A norma do artigo 35° n° 3 não permite interpretação restritiva, sob pena de resultar em prejuízo da parte a favor de quem foi estabelecido o princípio dela constante.
B) Em todo o caso, em processo de insolvência, só uma situação de justo impedimento da parte, conforme prevista no artigo 146.° do Código de Processo Civil, poderia relevar, uma vez que o artigo 35.° do CIRE impõe a presença pessoal e necessária em Audiência de Julgamento do credor ou de um seu representante munido com poderes especiais para transigir, o que exigia, no caso dos autos, o comparecimento, na impossibilidade do seu mandatário, de um administrador da Requerente ou de uma pessoa mandatada com poderes especiais para a representar e acordar em nome dela.
C) O ilustre mandatário da requerente não esteve impedido para avisar as testemunhas da sua falta como ele próprio refere no seu requerimento de fls. , pelo que, de igual modo e por maioria de razão, poderia ter avisado o Tribunal.
            Nesta conformidade, deve, pois, manter-se inalterado o douto despacho recorrido, que de nenhum vício enferma.
            Cumprido o disposto no artigo 707º, nºs 2 e 4 do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

            II – QUESTÕES A DECIDIR
            Das conclusões das alegações da recorrente – que, nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nºs 1 e 3 do referido Código delimitam o objecto do recurso – resulta serem as seguintes as questões que demandam decisão por este Tribunal:
            A) Se, em face da falta à audiência de discussão e julgamento do mandatário do requerente da insolvência não justificada antes da hora designada para o efeito, bem como da falta do próprio requerente ou do seu representante com poderes para transigir, confessar ou desistir, o tribunal deve adiar a diligência, designando nova data para a sua realização, nos termos do artigo 155º e 651º do Código de Processo Civil, ou antes deve de imediato ditar para a acta despacho homologando a desistência do pedido, nos termos previstos no artigo 35º, nºs 3 e 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
            B) Se é admissível a designação de nova data para audiência, quando for apresentado justificação da falta do mandatário e for invocado justo impedimento do representante do requerente com poderes especiais, em momento posterior à prolação do despacho referido na 2ª parte da alínea anterior;
            C) Se, “in casu”, tendo o mandatário da requerente apresentado no dia a seguir ao designado para a dita audiência, requerimento justificando a falta por motivo de doença e invocando justo impedimento, o despacho que sobre tal requerimento foi proferido, a fls. 154, é nulo por falta absoluta de fundamentação, nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil);
            D) Em caso afirmativo e conhecendo este tribunal de mérito, nos termos do artigo 715º, nº 1 do mesmo Código, se deve obter provimento a alegação de justo impedimento apresentada.

            III – OS ACTOS E OCORRÊNCIAS PROCESSUAIS RELEVANTES
            Resultam dos autos, com relevo para o conhecimento das questões a decidir, os seguintes actos e ocorrências processuais:
            a) A ora apelante requereu, pela petição de fls. 3 a 10, a declaração de insolvência da ora apelada, oferecendo com o articulado o rol de testemunhas e juntando a procuração que está a fls. 14, constituindo “seus bastantes Procuradores os Senhores Dr. B... e Dr. D...., com escritório na Rua ... Lisboa, aos quais confere os mais amplos poderes forenses em direito permitidos incluindo os poderes especiais para confessar, desistir e transigir” ;
            b) A ora apelada ofereceu, após citação, a contestação que está de fls. 60 a 69, em que igualmente indicou o seu rol de testemunhas;
            c) Pelo despacho de 11.3.2009, exarado a fls. 89, foi designado o dia 16.4.2009, pelas 14,00 horas, para realização de audiência de discussão e julgamento, sendo determinado que as partes fossem notificadas “de que terão de comparecer pessoalmente ou de se fazer representar por quem tenha poderes para transigir e de que a sua não comparência vale como desistência do pedido, no caso da requerente, ou como confissão no pedido, no caso da requerida - art. 35º nº 1 a 3 do CIRE";
            d) Por ofícios datados de 12.3.2009, enviados sob registo e com duplicados a fls. 90 e 92, foram os senhores mandatários notificados do despacho referido na alínea anterior, constando de ambos os ofícios que “As partes foram advertidas nos termos do disposto nos números 2 e 3 do artº 35º do CIRE";
            e) Por ofícios datados de 12.3.2009 enviados sob registo e com duplicados a fls. 91 e 93, foram a requerente e a requerida, respectivamente, notificadas de que se encontra designada o dia 16.4.2009 às 14,00 horas para a audiência de discussão e julgamento e “de que deve comparecer pessoalmente à referida diligência ou fazer-se representar por quem tenha poderes para transigir”, acrescentando-se no ofício de fls. 91, dirigido à requerente, que “A sua não comparência ou de um seu representante, na data prevista, vale como desistência do pedido, caso o devedor esteja presente ou devidamente representado” e acrescentando-se no ofício de fls. 93, dirigido à requerida que “Na sua falta ou de um representante, na data prevista, têm-se por confessados os factos alegados na petição inicial, caso a sua audiência não tenha sido dispensada nos termos do artº 12º do CIRE";
            f) No dia 16.4.2009, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, sendo lavrada a acta de fls. 145 e 146, da qual consta que a mesma teve início às 14,25 horas e fim às 14,35 horas, estando presentes o legal representante da requerida, acompanhado da sua ilustre mandatária e a testemunha arrolada pela requerente, E... e ausentes a requerente, o seu legal representante, Dr. B... e as testemunhas arroladas pela requerida;
            g) Mais consta que, aberta a audiência, pela Mma Juíza foi proferido o seguinte despacho: “A requerente, devidamente notificada da data para a presente audiência, não compareceu pessoalmente, nem se fez representar, tendo também faltado o seu ilustre mandatário, igualmente notificado, não tendo sido junta aos autos qualquer justificação para ambas as faltas.
            Dispõe o artº 35º, nº 3 do C.I.R.E., que a não comparência da Requerente por si ou através do seu representante vale como desistência do pedido.
            Assim, face à não comparência do requerente e do seu mandatário, considera-se que o requerente desistiu do pedido.
            Face ao exposto, na presente acção com processo especial de insolvência que “C..., S.A.” intentou contra “M..., S.A.” julgo válida a desistência do pedido e, consequentemente, declaro extinta a instância (artº 295º, nº 1, 296º, nº 2, 299º “a contrario” do C.P.C. e artº 35º do C.I.R.E.).
            Custas pelo desistente, com taxa de justiça reduzida a metade […];
            h) Em 17.4.2009, o ilustre mandatário da requerente, Dr. B..., enviou por correio electrónico aos presentes autos (fls. 148), com notificação por “fax” à ilustre mandatária da requerida, o requerimento que está a fls. 149, em que veio “deduzir incidente de justo impedimento, o que faz nos termos do artigo 146º do C.P.C. e com os fundamentos seguintes:
            1. O Requerente e Mandatário da Requerente, com poderes especiais para representar e acordar em nome dela.
            2. Na noite de 15 de Abril, o Requerente teve uma indisposição, seguida de perda de consciência, tendo sido assistido pelo seu médico de família, Dr. F.....
            3. Foi prescrito ao doente que permanecesse em absoluto repouso durante o dia 16/04/2009.
            4. Atenta a situação supra referida, o Mandatário não pôde comparecer na audiência de julgamento agendada, nem teve qualquer possibilidade de providenciar a respectiva substituição por outro colega.
            5. O Secretariado do Requerente não conseguiu contactar directamente os representantes legais da Requerente de forma a que estes comparecessem pessoalmente, tendo porém conseguido avisar as testemunhas dessa impossibilidade.
            Termos em que se requer a V. Exª que se digne admitir o incidente de justo impedimento e consequentemente, que se digne agendar nova data para a realização do julgamento”, oferecendo como testemunha, para o caso de se entender necessária a prova testemunhal, o Dr. F...., médico.
            Com o requerimento juntou o “Atestado Médico” que está a fls. 150, subscrito pelo dito médico e aqui se dá por reproduzido;
            i) Conclusos os autos em 23.4.2009, nessa data foi proferido o despacho de fls. 154, cuja segunda parte, única para os efeitos com interesse, consta o seguinte: “Face ao teor da decisão proferida e uma vez que o requerimento deu entrada não antes da hora designada mas sim no dia seguinte, às 23,53, não pode o tribunal atender ao requerido e designar nova data por não haver qualquer causa que abale o fundamento que levou à prolação da referida decisão”.

            IV – A PRIMEIRA QUESTÃO – ALÍNEA A)
            A questão acima enunciada sob a alínea A) é, afinal, a de saber se o tribunal, em face da falta a julgamento do mandatário da parte, ou até desta, quando notificada para comparecer pessoalmente, pode e deve determinar o adiamento, mesmo que se não faça chegar ao tribunal, até ao momento em que se inicia o julgamento, qualquer justificação para a não comparência.
            Ou, considerando o regime constante do artigo 35º, nºs 1, 3 e 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, se este deve prevalecer sobre o regime dos artigos 651º e 155º do Código de Processo Civil sobre ele.
            A nosso ver, a questão da aplicação do regime de adiamento, por falta de mandatário – que só em sede de recurso é suscitada como tal, pois que no requerimento que apresentou em 17.4.2009, a parte se limitou a invocar o incidente de justo impedimento, nos termos do artigo 146º do Código de Processo – não prevalece sobre o regime especialíssimo do citado artigo 35º, já que esta é uma norma que concretiza (entre outras) o princípio da urgência do processo especial de insolvência, tendo em vista a mais rápida defesa dos interesses dos credores, genericamente consagrado no artigo 9º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que dita, nomeadamente, os curtos prazos dos artigos 27º, 28º e 35º, nºs 1 e 8.
            Como já decidiu o Acórdão desta Relação de 25.9.2008, Proc. 6428/08-6, Rel. José Eduardo Sapateiro (publicado em http://www.dgsi.pt), “Muito embora não se ignore o teor do artigo 17.º do CIRE (“O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”), é manifesto que o artigo 35.º desse mesmo diploma legal, acima transcrito, constitui uma norma especial, afeiçoada à natureza urgente dos processos especiais de insolvência e recuperação de empresas (artigo 9.º do CIRE), sendo expressa, no seu número 1, relativamente ao período muito curto (5 dias) em que deve ser realizada a Audiência de Discussão e Julgamento, que afasta o regime geral do artigo 155.º ou, pelo menos, exige, numa tentativa de conciliar ambos os quadros legais, derrogação ou adaptação de alguns dos comportamentos ali previstos.”.
            Aliás, esta última disposição legal rege para as faltas dos mandatários e não das partes, quando obrigadas a comparecer pessoalmente ou por representante com poderes especiais, pelo que apenas uma situação de justo impedimento da parte ou do seu representante com poderes especiais para transigir, confessar ou desistir poderá ser tida em conta, se a sua não comparência poder ser justificada por evento a si ou ao seu representante não imputável (artigo 146º, n º 1 do Código de Processo Civil).
            E nem se diga que o não adiamento conduziu a uma decisão surpresa, como afirma a apelante, pois que a decisão proferida correspondeu, nos seus precisos termos, ao que a lei, no artigo 35º, nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, estabelece: a falta equivale a desistência do pedido e, nos termos do nº 4 desse artigo, “O juiz dita logo para a acta, […] sentença homologatória da desistência do pedido”, do que a própria parte foi, aliás, explicitamente advertida quando pessoalmente notificada para comparecer à audiência de discussão e julgamento, por si ou por representante com poderes.
            Neste sentido igualmente se decidiu no Acórdão desta Relação de 27.2.2007, Proc. 1640-07-1, Rel. Rui Machado e Moura, em que se invocam precisamente o âmbito do artigo 651º do Código de Processo Civil restrito às simples faltas dos mandatários e não das partes quando pessoalmente obrigadas a comparecer, bem como a natureza especial do regime do artigo 35º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.[1]
            E diga-se ainda, a finalizar a discussão desta questão, que mesmo a disposição do nº 5 do artigo 651º do Código de Processo, que possibilita, nos casos em que a falta do mandatário não seja motivo de adiamento, a renovação de determinadas provas, com registo, continua a ser específica da simples falta do mandatário, “qua tale” e que a previsão do nº 6 do mesmo artigo, que admite a justificação de qualquer pessoa que deva comparecer na própria audiência ou nos 5 dias imediatos, se revela inaplicável à falta da parte, pois que, se assim não fosse, não estabeleceria a lei, de modo peremptório, que o juiz dita logo para a acta a sentença homologatória da desistência do pedido.
            E, dada a prevalência das razões de urgência que impuseram a solução do artigo 35º, nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sobre as que ditaram as soluções que possibilitam o adiamento em geral de julgamentos por falta de mandatários e atentos os diversos campos de aplicação subjectiva, de modo algum o entendimento perfilhado viola os invocados princípios da proporcionalidade, da cooperação, da adequação e da jurisdicidade, nem os princípios gerais dos artigos 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa, sendo ainda manifestamente desprovida de fundamento a alegação de que o despacho exarado em acta é nulo, por falta de fundamentação, com a sua leitura evidencia (e sendo certo que só a total falta de fundamentação seria determinante da nulidade invocada).
            Improcede, assim, a 1ª questão enunciada.

            V – A SEGUNDA QUESTÃO – ALÍNEA B)
            Esta questão suscita-se em relação tanto à parte como ao seu mandatário, desde que este seja o representante daquela, estando munido dos referidos poderes especiais.
            Com efeito, e tal como admite o Acórdão desta Relação de 25.9.2008, já citado, “só uma situação de justo impedimento da parte, conforme prevista no artigo 146.º do Código de Processo Civil, poderá obstar ou anular o funcionamento peremptório do dito regime”.
            O incidente do justo impedimento vem previsto no artigo 146º nos seguintes termos:
            “1 - Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.
2 - A parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respectiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o acto fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.
3 - É do conhecimento oficioso a verificação do impedimento quando o evento a que se refere o nº 1 constitua facto notório, nos termos do nº 1 do artigo 514º, e seja previsível a impossibilidade da prática do acto dentro do prazo”.
Como referem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto[2], “Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento [alusão à redacção do preceito anterior ao Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro] para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário”.
Obviamente, o acontecimento tem de ser, por si, causa da não prática atempada do acto.
Pese embora a estranheza que possa causar o efeito jurídico que a invocação de justo impedimento seja susceptível de originar que, por força exactamente do acto não praticado – no caso, a comparência a juízo de um representante da parte com poderes especiais – poderá mesmo de chegar à anulação da diligência a que a falta de comparência respeita, afigura-se-nos possível a sua invocação e, por conseguinte, a sua admissão liminar, ainda que o impedimento apenas respeite ao representante.
Com efeito, se a parte obrigada a comparecer pessoalmente se fizer representar por outrem (mesmo o seu mandatário judicial) a quem confira os poderes de vinculação que são exigidos, – como a própria lei admite que possa fazer –, caso se verifique uma ocorrência que constitua justo impedimento da comparência do representante e se este não puder concretamente disso avisar atempadamente a própria parte, para que ela própria compareça em pessoa, não poderá deixar de se dar relevo a esse justo impedimento, pois que não é razoável que quem se pode fazer substituir por um representante se tenha de assegurar espontânea, pessoal e previamente da comparência deste, visto que ao outorgar os requeridos poderes de representação já o fez legitimamente para ficar pessoalmente desonerado da obrigação de comparência.
Temos, assim, que considerar em princípio admissível a invocação de justo impedimento do representante, quando este se reporta não apenas à comparência dele, com à impossibilidade de avisar em tempo o representado da sua impossibilidade de assegurar no acto a representação.
Procedendo a segunda questão enunciada.

            VI – A TERCEIRA QUESTÃO – A ALÍNEA C)
            Arguiu a apelante a absoluta falta de fundamentação do despacho proferido sobre o seu requerimento de justo impedimento.
            Fundamentação existe, como o despacho reproduzido na alínea i) da matéria de facto deixa entrever.
            O que sucede é que tal fundamentação passa totalmente ao lado da própria invocação do incidente de justo impedimento, conhecendo apenas da questão do adiamento com designação de nova data.
            Assim, a nulidade que manifestamente afecta tal despacho não é a de falta absoluta de fundamentação, mas a de omissão de pronúncia, prevista na 1ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
            Tratando-se de um erro de qualificação jurídica, e considerando o princípio de que o juiz não está vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 664º do citado Código), entende-se dever declarar a nulidade do dito despacho, por omissão de pronúncia sobre a questão suscitada no requerimento que decidiu.
            Procedendo, pois, esta questão.

            VII – A QUARTA QUESTÃO – A ALÍNEA D)
            Em obediência à regra de substituição ao tribunal recorrido do artigo 715º do Código de Processo Civil, passa-se, nos termos do nº 1 desse artigo, a conhecer do objecto do recurso, no tocante ao concreto incidente de justo impedimento.
            Já se reproduziu o preceito legal que consagra tal figura incidental, a qual visa permitir à parte ou mandatário que não possa praticar atempadamente um acto processual de que tenha a obrigação ou o ónus de praticar em dado prazo ou momento, por motivo que lhe não seja imputável, a sua prática posterior.
            Esta redacção do artigo 146º, que vem da reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, veio subjectivizar o justo impedimento, que de acontecimento imprevisível (noção predominantemente objectiva) passou a ser não imputável (o que aponta para a falta de cuidado, de zelo, enfim, para a noção de culpa).
            O interessado tem o ónus da prova quer do evento impeditivo (isto é, de ter, só por si, efeito obstativo da prática atempada do acto), quer da não imputabilidade do evento.
            Vejamos, pois, em concreto, e à luz do alegado, se tais ónus foram actuados, sendo certo que é sempre dentro dos limites materiais da factualidade alegada que o justo impedimento tem de ser apreciado, como causa adequada da impossibilidade de prática atempada do acto.
            A doença pode ser, abstractamente, um acontecimento gerador de um justo impedimento.
            Na medida em que assume simultaneamente a qualidade de mandatário e de representante com poderes especiais, a doença do ilustre mandatário da requerente poderá ser tida como tal, pois que ocorrida alegadamente na véspera à noite e alegadamente impeditiva não apenas da comparência em juízo na diligência designada para as 14 horas do dia seguinte, como da comunicação desse impedimento à própria parte (sendo uma sociedade, a um seu gerente) bem como da substituição por outro advogado.
            Pese embora a apresentação de um atestado médico que se mostra ainda mais vago do que a própria alegação do senhor advogado – uma “indisposição seguida de perda de consciência” que levou à prescrição de repouso absoluto (presume-se que em casa) no dia 16.4.2009 (data designada para a audiência) – o facto é que a perda de consciência não impediu o senhor advogado de contactar o seu Secretariado que avisou as testemunhas, como ele próprio admitiu no requerimento em apreço.
            Alegou, é certo, o ilustre mandatário que não conseguiu contactar o legal representante da requerente nem providenciar pela sua substituição por outro colega.
            Mas não alegou por que motivo não pôde o seu colega Dr. D...., que compartilha consigo as instalações de escritório e está constituído mandatário forense da requerente e com os mesmos poderes conferidos no mesmo instrumento de “Procuração” (v. fls. 14), ser contactado pelo seu Secretariado, que decerto funciona nas mesmas instalações dos escritórios de ambos.
            Ora, em face do teor dessa procuração e pese embora o facto de ter sido sempre o Sr. Dr. B... quem interveio em todos os actos dos presentes autos, decerto por se tratar de cliente seu, o certo é que os poderes foram conferidos a ambos e nos mesmos termos e medida, facto que se para alguma coisa serve é certamente para que a substituição de um pelo outro se possa realizar da forma mais simples e expedita, sem se ter de cuidar de o mandante passar nova procuração “ad hoc”.
            A prova oferecida – sendo simplesmente uma testemunha que é o senhor médico que assistiu o Sr. Dr. B... – não poderá suprir a falta de alegação da impossibilidade de, pela via do Secretariado, avisar o segundo mandatário constituído nem a falta de alegação da impossibilidade de este, ainda que contactado, assegurar a comparência no acto – e nem poderá, dada a natureza das funções da testemunha, fazer prova da impossibilidade de o ilustre mandatário contactar o legal representante da requerente ou um colega que o substitua.
            Ora, se o justo impedimento é um acontecimento não imputável à parte ou ao seu mandatário, o mesmo só poderá ser operante se por si só não permitir de todo em todo a prática do acto.
E este é, não única e exclusivamente, a comparência do Sr. Dr. B..., na audiência de discussão e julgamento, mas também, em alternativa, a comparência da parte, por si ou representada por quem também tenha poderes para em seu nome transigir confessar ou desistir, no caso o Sr. Dr. D....
Conclui-se assim que o evento invocado pelo ilustre mandatário da apelante, mesmo que confirmada a doença pela única testemunha oferecida, não só não é suficiente como justo impedimento da falta de possibilidade de contactar o senhor advogado a quem a parte conferiu iguais poderes para o substituir na audiência, como não se mostra instruído com oferecimento de meios de prova da impossibilidade de avisar a própria parte para pessoalmente comparecer, alegação que, assim, sempre se imporia julgar não provada.
Assim sendo, há que julgar esta questão, que é nuclear, improcedente, o que conduz à improcedência da própria apelação.
            Importa ainda dizer, a propósito da invocação incidental na conclusão XV das alegações da apelante, de que o facto de o indeferimento do incidente de justo impedimento a impossibilitar de assegurar o seu direito, ao inibi-la de propor outra acção, que tal resulta de falta sua e do insucesso do incidente, pois que das consequências da falta de comparência foram as próprias partes e os seus ilustres mandatários explicitamente advertidos.
            Assim, mais uma vez se não descortinam razões sólidas para a invocação da violação dos artigos 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
            VIII – DECISÃO
            Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida de fls. 145-146 e, anulando por omissão de pronúncia o despacho de fls. 154, decidem, nos termos do artigo 715º, nº 1 do Código de Processo Civil, do mérito do incidente de justo impedimento, negando-lhe provimento.
            Custas pela apelante.
            Lisboa, 16 de Julho de 2009
António Neto Neves
Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas

[1] Discordamos assim, e salvo o devido respeito, da posição seguida no douto Acórdão da Relação do Porto de 29.1.2008, Proc. 0746020, Rel Carlos Moreira, em que se defende que o juiz apenas deve proferir a decisão prevista no artigo 35º, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas “Se a falta for acompanhada por outros factos ou elementos que indiciem, com toda a probabilidade, que o requerente se desinteressou da sua pretensão”, interpretação que, pese embora a argumentação aduzida, se nos afigura não encontrar a mínima correspondência literal no preceito nem respeitar a sua razão de ser.
[2] Em “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 257-258.