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PROPRIEDADE HORIZONTAL
ESCRITURA PÚBLICA
NULIDADE
ERRO
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I - A definição do estatuto jurídico das diversas partes do edifício – correspondentes às diversas fracções, ou comuns – é da estrita esfera do título constitutivo da propriedade horizontal. II - Tendo sido respeitado o fim ou destino constante do projecto aprovado para determinado espaço, é indiferente que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tal espaço integre as partes comuns do edifício ou se inclua no sector das fracções autónomas. III – De qualquer modo não podem os condóminos que tiveram a possibilidade de aceder àquele título, antes da escritura de aquisição das fracções autónomas respectivas, pedir a declaração da nulidade parcial do mesmo, invocando um desfasamento entre o aí constante e o que constava do projecto de obra aprovado pela Câmara Municipal e do licenciamento do prédio por esta feito, sob pena de tal actuação poder ser considerada um abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação
I- B.... e C... intentaram acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra R...Lda., pedindo:
A) Seja declarada nula a escritura de propriedade horizontal relativa ao prédio urbano que identificam, pelo menos na parte em que destina o estacionamento como fracção autónoma designada pela letra “A”;
B) Devendo o estacionamento desenhado no pavimento como correspondente ao primeiro andar direito ficar afecto à fracção “E”, propriedade dos AA.;
C) Sejam determinados os competentes averbamentos nos registos da Conservatória do Registo Predial de Cascais, de conformidade com o pedido constante das alíneas anteriores.
Alegam, para tanto, que compraram à Ré a referida fracção autónoma, correspondente ao 1º andar Dt.º do aludido prédio, convencidos de que dela fazia parte um estacionamento na garagem, conforme lhes foi indicado e sempre esteve marcado no chão.
Tendo-se vindo a saber, após a mudança para a casa adquirida, que o referido estacionamento constituía uma fracção individualizada, de acordo com a escritura de propriedade horizontal respectiva.
Tal escritura, porém, está ferida de nulidade, por desconforme ao projecto aprovado pela Câmara Municipal de Cascais, e auto de vistoria respectivo, que previam 4 estacionamentos na garagem, a fazerem partes integrantes do 1º andar Esq.º e Dt.º e do 2º andar Esq.º e Dt.º.
Para além de merecerem tutela a confiança e a boa fé dos AA. depositadas nas expectativas jurídicas que lhes foram transmitidas e reiteradas pela R.
Contestou a Ré, por excepção, arguindo a caducidade do direito dos AA. à anulação do negócio com fundamento em – não concedido – erro sobre os motivos determinantes da vontade…
Impugnando o alegado “convencimento” dos AA., que estariam bem cientes do que integrava a fracção comprada.
Remata com a procedência da arguida excepção, absolvendo-se a Ré do pedido, ou, sem conceder, a improcedência, por não provada, da acção, absolvendo-se a Ré dos pedidos, requerendo ainda a condenação dos AA., enquanto litigantes de má-fé, em multa e indemnização.
Replicaram os AA., assinalando a irrelevância, na perspectiva dos pedidos formulados, da arguida excepção, e contestando a sua requerida condenação como litigantes de má-fé.
O processo seguiu seus termos, com saneamento – relegando-se “para final o conhecimento da excepção deduzida” – e condensação.
Vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença que, julgando improcedente a arguida matéria de excepção, julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo a Ré do pedido.
Inconformados, recorreram os AA., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1) A Douta Sentença de 28/07/2008, proferida pelo Tribunal A Quo, sustenta a improcedência da acção, essencialmente por: "O facto das telas finais constarem marcadas nos lugares de garagem (apenas quatro) a referência a algumas fracções não significa que os mesmos não pudessem ser comercializados autonomamente."
2) Com todo o respeito, é um entendimento que não pode colher, porque são justamente as telas finais, que incorporam a configuração jurídica do imóvel melhor descrito nos autos,
3) Não sendo por isso admissível, nenhuma desconformidade, entre o projecto aprovado e a propriedade horizontal, nos termos do art.° 1418° do C.C..
4) Por outro lado, não é verdadeiro, o vertido na Douta Sentença do Tribunal A Quo: "... a não obrigação na altura da construção de um lugar de garagem por cada fracção ... ", uma vez que, em 22 de Setembro de 1999, data de aprovação das ditas telas finais, já estava publicado, desde 1 de Agosto de 1997, o Plano Director Municipal da Câmara Municipal de Cascais, que exigia esses requisitos,
5) Assim, de acordo com o art.° 10° do Código Civil, é aplicável a directiva do PDM de Cascais, Resolução do Conselho de Ministros N.° 96/97, D.R. N.° 139/97, Série 1-B, de 19/06/97, designadamente nos art.ºs 84° e 87° do PDM, minime, interpretativamente.
6) Além de que, a Ré R...., ora Recorrida, ao agir como agiu, não respeitando a garagem do imóvel na afectação a quatro fracções dos inquilinos, mas vindo a destacá-la como fracção autónoma, na constituição da propriedade horizontal, ao arrepio do projecto aprovado, maxime, telas finais, actuou com Abuso de Direito, na vertente venire contra factum proprium, (Art.° 334° do Código Civil).
7) Também não se percebe, face à junção aos autos das telas finais aprovadas pela Câmara Municipal de Cascais, mediante certidão emitida pela mesma, que, segundo a Douta Sentença, se afirme: "ora, da prova produzida não resulta que se verifique a falta de coincidência do fim a que se destina a fracção que constitui a garagem".
8) Há ainda que ter também em consideração, os Princípios Fundamentais de Direito Constitucional em matéria de Direito do Urbanismo, designadamente, O Princípio da Prossecução do Interesse Público (Art.° 266, n.° 1, 1ª parte da C.R.P.), O Princípio do Dever da Boa Administração, O Princípio do Respeito pelos Direitos e Interesses Legítimos dos Cidadãos na Prossecução do Interesse Público, O Princípio da Justiça e da Imparcialidade na Actuação da Administração (Art.° 266°, n° 2 da C.R.P.), O Princípio da Igualdade dos Cidadãos (Tb. Art.° 13° da C.R.P.), O Princípio da Boa Fé, da Segurança Jurídica e da Confiança Legítima, O Princípio da Proporcionalidade, etc. (Direito do Urbanismo, INA, 1989, Fausto Quadros, Princípios Fundamentais de Direito Constitucional e de Direito Administrativo em matéria de Direito do Urbanismo, págs. 269 e ss.).
9) Estes Princípios, tiveram imperativamente de formatar a licença de construção-telas finais, e terão de ser considerados numa interpretação jurídica de qualquer decisão jurisprudencial, seja de que competência for, administrativa ou civil (Art.° 204° da C.R.P.).
10) Se assim não for, a sentença do Tribunal A Quo, viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, os Princípios constitucionais supra referidos.”
Requerem a revogação da sentença recorrida, decidindo-se conforme o peticionado na p.i.
Contra-alegou a Ré, pugnando pela manutenção do julgado.
II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – são questões proposta à resolução deste Tribunal:
- se a escritura pública de constituição da propriedade horizontal do prédio respectivo enferma de nulidade.
- se se verifica abuso de direito por parte da Ré.
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Considerou-se assente, na 1ª instância, sem impugnação a propósito, e nada impondo diversamente, a factualidade seguinte:
A. Por escritura pública outorgada no .... Cartório Notarial .... no dia ..... 2003, os autores declararam comprar à ré, que declarou vender, pelo preço de € 94.772,00, a fracção autónoma individualizada pela letra "E", correspondente ao primeiro andar direito, destinado a habitação e uma arrecadação no sótão, do prédio urbano designado por lote 13, sito nas K...., limites do X....., freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° .... daquela freguesia e inscrito na matriz sob o artigo .......
B. Consta da escritura de propriedade horizontal do prédio dos autos, a fls. 23 a 28:
«Prédio urbano composto de cave para garagens, rés-do-chão, primeiros e segundos andares com lados direito e esquerdo, para habitação, e sótão para arrecadações, (...).
«Fracção A - Cave, composta por uma divisão ampla destinada a quatro estacionamentos numerados e um a quatro, (…) ;
«Fracção E - Primeiro andar direito, composto por quatro divisões assoalhadas, cozinha, dois quartos de banho, vestíbulo de entrada, quatro varandas, e arrecadação no sótão, destina-se a habitação, (…)».
C. Consta do auto de vistoria de fls. 30: «A construção encontra-se de acordo com o projecto aprovado, destinando-se o primeiro piso (cave) a estacionamento, o último piso (sótão) a arrecadações e os pisos intermédios a habitação».
D. Constam de fls. 31 a 40 a memória descritiva e justificativa do prédio e as telas finais do mesmo.
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E apreciando:
II-1- Da pretendida nulidade da escritura de constituição da propriedade horizontal.
Radicam os Recorrentes uma tal invalidade na circunstância, cuja verificação sustentam, da desconformidade entre o fim assinalado aos lugares de estacionamento, no projecto aprovado pela Câmara Municipal de Cascais e o estabelecido na referida escritura.
E isto, assim, na medida em que no projecto se “determinou que quatro lugares de garagens teriam de ser afectos respectivamente ao 1º andar direito, 1º andar esquerdo, 2º andar esquerdo e 2º andar direito”, sendo que na dita escritura se “veio a estabelecer a garagem do prédio como fracção autónoma.”.
Sob a epígrafe “Conteúdo do título constitutivo” dispõe o art.º 1418º do Código Civil:
“1 - No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.
2 - Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente:
a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum;
b) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas;
c) Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio.
3 - A falta da especificação exigida pelo n.º 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do n.º 2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo.”.
Diga-se que aquele n.º 3, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, acolheu a doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 1989[1] – agora com o valor dos Acórdãos uniformizadores de jurisprudência, nos termos dos art.ºs 732º-A e 732º-B, do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 17º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – segundo o qual “Nos termos do artigo 294º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir a parte comum ou a fracção autónoma do edifício, destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal.”.
Nos termos do art.º 2º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, in Diário do Governo, I Série, Suplemento, nº 166, 1951-08-07, aqui sobrelevante, “A execução das obras e trabalhos a que alude o artigo anterior não pode ser levada a efeito sem prévia licença das câmaras municipais, às quais incumbe também a fiscalização do cumprimento das disposições deste regulamento.”.
E o art.º 6º do mesmo Regulamento determina que “Nos projectos de novas construções e de reconstrução, ampliação e alteração de construções existentes serão sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos.”.
Referindo-se Marcello Caetano[2] a tal diploma como regendo o que ele chamava de “polícia das edificações”, que “atende, na realização das obras, à segurança, à salubridade e à estética.”.
E, na verdade, tanto a fixação inicial do fim a que se destinam as fracções, como ulterior alteração do seu uso contendem, em primeira linha, com interesses de natureza e ordem pública, e, em segunda linha, com interesses privados.
Estando a destinação de um piso a determinado fim intimamente conexionada, antes de mais, com questões urbanísticas, e, depois, com o direito material de construção, ou seja, nomeadamente, com as condições de segurança exigidas na construção dos edifícios e que variam em função do tipo de utilização previsto.
Por isso, e v.g., o Regulamento de Segurança e Acções para Estruturas de Edifícios e Pontes, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 235/83, de 31 de Maio, ao definir, no seu art.º 35º, as sobrecargas em pavimentos, distingue entre utilizações em que a concentração de pessoas é o elemento preponderante e as utilizações em que o elemento preponderante não é a concentração de pessoas.
Assim, e como assinala Abílio Neto,[3] “se o pavimento foi projectado para suportar uma carga de 2,0KN/m2 (habitação) e vem a ser utilizado como salas de venda ao público, restaurante ou café, para o que se exige uma construção que suporte 4.0KN/m2, é evidente que ao instituidor da propriedade horizontal deve estar vedado alterar na escritura de constituição do condomínio o fim de determinada ou determinadas fracções, constante do projecto, sempre que ao fim pretendido correspondam maiores exigências de segurança na construção do que aquelas que correspondiam ao fim declarado no projecto. Assim o exige o interesse público consubstanciado na indispensável salvaguarda da segurança e solidez das edificações”.
Do mesmo modo, “se a fracção se destina a estabelecimento comercial terá de preencher os requisitos fixados no Regulamento Geral de Higiene e Segurança no Trabalho nos Estabelecimentos Comerciais (Decreto-Lei n.º 243/86, de 20-8)”, etc. etc.
E, “Ou seja, o que o n.º 3 do art.º 1418º veda, sob pena de nulidade, é que se estabeleça, no título constitutivo da propriedade horizontal, como fim a que se destina cada fracção ou parte comum, algo de diferente do que foi fixado no projecto aprovado pela entidade competente.”.[4]
Mas já não a definição do estatuto jurídico das diversas partes do edifício – correspondentes às diversas fracções, ou comuns – em divergência do constante do projecto aprovado.
Tal definição, e para além do que resulta directamente da lei – cfr. art.º 1421º, do Código Civil – é da estrita esfera do título constitutivo da propriedade horizontal, o qual, nas palavras de Henrique Mesquita,[5] “é um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal e as suas determinações têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes.”.
Sendo que a circunstância de lugares de estacionamento numa cave, que no projecto aprovado se mostravam individualmente afectos a específicas fracções autónomas, terem ficado a integrar, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, uma fracção autónoma correspondente à dita cave, em nada contende com a definição do fim ou utilização de tais lugares, como estacionamento, no mesmo projecto.
No sentido exposto podendo ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2004,[6] em cuja fundamentação se considerou:
“Tais exigências têm uma motivação de natureza estritamente técnica, relacionada com as condições de segurança exigidas na construção dos edifícios, condições essas que variam em função do tipo de utilização prevista (…). Mas sendo essa a razão de ser de tal exigência, a especificação feita num projecto de construção no sentido de que as caves do edifício a construir se destinam a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não pode condicionar a futura organização da propriedade horizontal, impondo designadamente a inclusão dessas caves no elenco das respectivas partes comuns.
Para a lei, o ponto fulcral reside na falta de conformidade entre o fim ou utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado pela Câmara Municipal, e o fim ou utilização que a esse espaço é conferido pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
Tendo sido respeitado o fim ou destino constante do projecto aprovado para determinado espaço, é indiferente que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tal espaço integre as partes comuns do edifício ou se inclua no sector das fracções autónomas.”.
E, bem assim, o Acórdão daquele Tribunal, de 14-02-2008,[7]onde, em citação de Marcello Caetano,[8] se refere que “a licença administrativa, indispensável para a celebração da também necessária escritura de constituição ou modificação do título da propriedade horizontal (arts. 59.º e 60.º do C. Notariado), não é mais do que um acto administrativo (permissivo) que autoriza o exercício do direito que o seu titular possui sobre a coisa (….), não atribuindo aos condóminos direitos que porventura não tenham nem se lhes impondo, imperativamente, contra direitos que já possuam”.
E, contra o assim concluído, nem se invoquem os art.ºs 84º e 87º do PDM de Cascais (Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/97, de 15 de Maio de 1997, in DR n.º 139/97, Série I-B, de 19-06-1997), que em nada obstam à concluída inexistência de falta de coincidência entre o fim referido no título, relativamente ao espaço da cave do prédio, e o fixado ao mesmo, no projecto aprovado pela CM de Cascais.
Para além de tendo o edifício sido “construído de acordo com o processo de obras n.º 4182/97” – cfr. Auto de vistoria de folhas 30 – nada nos permitir assim concluir, na ausência de outros elementos, que a licença de construção n.º 439/98, emitida em 19 de Maio de 1998 – vd. mesmo Auto – reportou já ao referido PDM…cujas directrizes se não mostrariam então acolhidas no próprio projecto aprovado pela CM de Cascais…
No tocante à desconsideração, na sentença recorrida, da miríade de “Princípios fundamentais de direito constitucional em matéria de direito do urbanismo” – “designadamente, O princípio da Prossecução do Interesse Público (…), O Princípio do Dever de Boa Administração, O Princípio do Respeito pelos Direitos e Interesses Legítimos dos Cidadãos na Prossecução do Interesse Público, O Princípio da Justiça e da Imparcialidade na Actuação da Administração (…), O Princípio da Igualdade dos Cidadãos (…), O Princípio da Boa Fé, da Segurança Jurídica e da Confiança Legítima, O Princípio da Proporcionalidade, etc.” – ponto é que não substanciaram os Recorrentes os termos daquela.
Não se vislumbrando os mesmos.
Apenas se assinalará que sendo as fracções autónomas destinadas a habitação, no prédio em causa, no número de seis, e delas quatro T-2 e duas T-3, deveriam ter, no âmbito de aplicação do referido PDM e em vista dos citados normativos daquele…onze (11) lugares de estacionamento…contra os quatro existentes…
Não se vendo assim como, mesmo na perspectiva dos Recorrentes, a pretendida – e não concedida – “contradição” haveria de ser resolvida, à luz dos princípios estabelecidos em tal PDM, com a reclamada afectação de um dos quatro lugares de estacionamento à fracção daqueles.
II-2 – Do invocado abuso de direito.
Sustentam os Recorrentes que a Ré R...., ora Recorrida, ao agir como agiu, não respeitando a garagem do imóvel na afectação a quatro fracções dos inquilinos, mas vindo a destacá-la como fracção autónoma, na constituição da propriedade horizontal, ao arrepio do projecto aprovado, maxime, telas finais, teria incorrido em tal abuso, na vertente venire contra factum proprium.
O Cód. Civil, no seu art.° 334º, dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A referência à boa fé – que representa em direito um conceito polissémico – tem, no preceito, um sentido objectivo ou normativo, que se manifesta noutras disposições do Código Civil quais sejam os art.ºs 227º, 239º, 437º e 762º, n.º 2, concretizando, em todos esses casos, regras de actuação,[9] exprimindo “os valores basilares da ordem jurídica, vocacionados para intervir em cada caso concreto considerado.”.[10]
E “Os bons costumes, correspondentes à moral social da linguagem clássica portuguesa, traduzem um conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico acolhidas pelo direito em cada momento histórico”.[11]
Nas palavras de Almeida Costa, por aqueles “há-de entender-se um conjunto de regras de convivência, de práticas de vida, que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente.”.[12]
De entre as várias categorias de actos inadmissíveis por abuso doutrinariamente autonomizadas, a saber, a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque, e o desequilíbrio no exercício, pretendem os Recorrentes, como visto, estar verificado, de banda da Recorrida, o venire contra factum proprium.
Tratando-se, aquele, de exemplo típico de exercício inadmissível de direito à qual se aparenta aquela “outra” modalidade típica de tal exercício inadmissível, qual seja a supressio,[13] em que o exercício do direito, decorrido um determinado lapso de tempo, a par de indícios objectivos de que esse direito não seria mais exercido, contrariaria a boa-fé.
Assinalando Menezes Cordeiro quanto à supressio, chegar-se “por uma via independente, a conclusões paralelas às alcançadas no estudo do venire contra factum proprium. Não é apenas coincidência.”.[14]
Também Rita Amaral Cabral[15] recusando autonomia a tal figura, no confronto do venire contra factum proprium.
Quanto àquele último temos que “só se considera venire contra factum proprium a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor”.[16]
Sendo que a proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança.[17]
Assim, a invocação do venire contra factum proprium pressupõe, forçosamente:
- Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva;
- Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível;
- Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
- A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante.[18]
Sendo necessário que a segunda conduta, contraditória do factum proprium, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e correcção, represente uma manifesta ultrapassagem dos limites impostos pela boa fé.
Deverá o venire contra factum proprium atingir proporções juridicamente intoleráveis, traduzidas em aberrante e chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito.[19]
E, como refere Pedro Pais de Vasconcelos[20] "há contradição inadmissível em boa fé entre uma omissão prolongada do exercício do direito, em circunstâncias tais que suscitam a expectativa de que ele não virá a ser exercido. Uma vez consolidada a confiança e a expectativa – a fé – e desde que essa consolidação da confiança seja imputável ao titular do direito, a brusca inflexão de atitude é contrária à boa fé".
De quanto se deixou dito relativamente à liberdade de organização da propriedade horizontal, desde que respeitado o fim atribuído ao espaço respectivo, constante do projecto aprovado pela Câmara Municipal, logo resulta o improcedente do pretendido abuso.
E, assim, conjugadamente presente que o alegado pelos AA. em sede de convencimento quanto à afectação de um lugar de estacionamento na garagem à fracção autónoma que compraram, às promessas do R. “de legalização da situação”, à “superveniência” da informação de constituir tal lugar “uma fracção individualizada”, e ao desconhecimento “antes ou durante a escritura de compra e venda” da escritura de propriedade horizontal”, carreado para os art.ºs 1º a 4º da B.I., resultou não provado.
Com prejuízo, portanto da verificação seja da situação de confiança…seja da justificação para essa confiança…seja, finalmente, do investimento de confiança…
Sendo aliás que no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-11-2003,[21] se decidiu que “Tendo todas as aquisições sido feitas após a escritura de constituição de propriedade horizontal, não podem os condóminos – que tiveram acesso ao título dessa constituição – pedir a nulidade parcial do título, invocando um desfasamento entre o aí constante e o que constava do projecto de obra aprovado pela Câmara Municipal e do licenciamento do prédio por esta feito, sob pena de tal actuação poder ser considerada um abuso de direito, na modalidade do “venire contra factum proprium”.
Sendo esse o caso dos autos, posto que a escritura de constituição de propriedade horizontal data de 17-09-1999, e a de compra e venda da fracção autónoma respectiva de ....2003.
Daquela última resultando que os Recorrentes/compradores recorreram ao crédito bancário, que como é sabido implica a realização de prévios registos provisórios, por natureza, de hipoteca – a que aliás se alude na mesma escritura: “já registada pela inscrição C-1” – o que naturalmente contempla a possibilidade de acesso ao título constitutivo respectivo.
*
Improcedem dest’arte as conclusões dos Recorrentes.
III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes, que apenas eles decaíram.
Lisboa, 2009-07-16
(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)
(Neto Neves)
[1] Proc. 072164, in www.dgsi.pt/jstj.nsf. Também publicado no B.M.J. 387º, 79 [2] In “Manual de Direito Administrativo”, 9ª Ed., Tomo II, Coimbra Editora, 1972, pág. 1171-1172. [3] In “Manual da Propriedade Horizontal”, 3ª ed., Ediforum, 2006, págs. 81-82. [4] Idem, pág. 82. [5] In “A propriedade Horizontal no Código Civil Português”, in RDES, Ano XXIII, n.º 1-4, 1976, pág. 90. [6] Proc. 04A3538, in www.dgsi.pt/jstj.nsf. [7] Proc. 08B29, in www.dgsi.pt/jstj.nsf. [8] In “Direito Administrativo, I, pág. 417 e II, pág. 1028.”. [9] Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo I, 1999, Almedina, pág. 180. Cfr. também Teles de Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 4ª ed., Almedina, 2005, pág. 54. [10] Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 193. [11] Ibidem. [12] Almeida e Costa, in “Direito das Obrigações”, 10ª ed., pág. 76. [13] Vd. a propósito, Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina (2ª Reimpressão), 2001, pág. 810-811. [14] Idem, pág. 821. 15 In RDES, 1993, pág. 315. [16] Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina (2ª Reimpressão), 2001, pág. 746. 17 Menezes Cordeiro, in op. cit. supra em nota 8, págs. 753-770. 18 Menezes Cordeiro, in op. cit. supra em nota 1., pág. 186. Vd. tb. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-2002, in CJAcSTJ, Ano X, Tomo I, págs. 51-54. 19 Vd. Acórdão cit. em nota 10. No Acórdão do mesmo Tribunal, de 20-06-2000, proc. n.º 00A1605, in www.dgsi.pt/jstj.nsf, refere-se a necessidade de o excesso cometido representar uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante. A. Varela, citando M. Andrade, refere-se, a propósito do abuso de direito, indiferenciadamente, ao exercício daquele «em termos clamorosamente ofensivos da justiça», in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, pág. 545. 20 In “Teoria Geral de Direito Civil”, 2ª Ed., Almedina, pág. 685.
21 Processo 03A3322, in www.dgsi.pt/jstj.nsf., proferido embora com reporte à anterior redacção do art.º 1418º, n.º 3, do Código Civil.