CONTRATO DE EMPREITADA
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Sumário

I - As empreitadas realizadas em imóveis, não são passíveis de se enquadrar na previsão da prescrição presuntiva constante do art.º 317.º, al. b) do Código Civil, dada a sua especial natureza.
II - A prescrição presuntiva apenas faz presumir o cumprimento da obrigação respectiva pelo decurso de um certo prazo - art. 312º C. Civil – sendo que não confere ao devedor, como sucede com a prescrição ordinária, a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito, visto não ser extintiva de direitos.
III - A sua razão de ser encontra-se na circunstância de as obrigações a que se referem costumarem ser pagas em prazo curto e não ser usual exigir documento de quitação ou guardá-lo por muito tempo. Decorrido o prazo legal, presume a lei que o pagamento foi efectuado, dispensando o devedor da sua difícil prova, dada a ausência de recibo.
IV - A expressão “execução de trabalhos”, ínsita no art.º 317.º, al. b) do Código Civil, não abrange a execução de qualquer tipo de trabalhos, antes destina-se a resolver de forma mais justa e eficaz, as situações relativas a trabalhos ocasionais que normalmente são executados e habitualmente pagos de imediato, sejam eles resultantes de prestações de serviços de execução rápida ou não.
(sumário do relator)

Texto Integral

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa,
I – RELATÓRIO
S, S.A., intentou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato contra CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO em Lisboa, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia €4.802,69, acrescida de juros de mora vincendos.
Para fundamentar tal pedido alegou, em síntese, que face a um orçamento que apresentou ao Réu, a solicitação deste, realizou trabalhos de impermeabilização no indicado prédio que o mesmo não pagou na íntegra.
O Réu contestou, invocando a prescrição presuntiva do crédito invocado pela Autora.
A Autora respondeu, defendendo a inaplicabilidade da prescrição presuntiva aos contratos de empreitada, como o que se mostra em discussão nos autos.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todo o formalismo legal.
Foi proferida sentença, onde se apreciou a invocada excepção da prescrição, considerando-se a mesma não verificada, e se julgou a acção procedente, por provada, tendo-se condenado o Réu a pagar à Autora a quantia de €2.676,44, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados de acordo com as sucessivas taxas previstas para os juros comerciais, desde a data de vencimento da factura e até integral pagamento.
Inconformado com tal decisão veio o Réu recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões:   
1.        A Recorrida dedica-se, entre outras, à actividade de revestimentos e impermeabilizações de edifícios.
2.        No âmbito da sua actividade comercial a Recorrida foi contactada pela Recorrente para executar os trabalhos de impermeabilização das fachadas e da cobertura não acessível do prédio.
3.        Os trabalhos foram executados, tiveram início em finais de Março de 2000 e foram concluídos em Maio de 2000.
4.        Em 31.05.2000, como resultado dos serviços prestados, a Recorrida emitiu uma factura com vencimento imediato (31.05.2000).
5.        Volvidos quase sete anos sobre a data da emissão da factura, veio a Recorrida intentar acção contra a Recorrente alegando para o efeito que esta não teria pago a totalidade da factura (no valor de €6.666,83), estando por isso em dívida €2.676,44.
6.        Para além de negar a dívida e alegar o integral pagamento da factura reclamada, a Recorrente alegou a prescrição presuntiva da dívida, por aplicação do disposto na alínea b) do art. 317.º do Código Civil.
7.        Sucede porém, que o tribunal recorrido entendeu não se aplicar o instituto da prescrição presuntiva por o caso em apreço se tratar de um contrato de empreitada.
8.        Para tal, o Mm. Juiz a quo fundamentou a sua decisão em duas motivações:
9.        Primeira: "(...) à dívida emergente de contrato de empreitada não é de aplicar o regime do artigo 317.º, alínea b) do Código Civil, porque não se enquadra na expressão "execução de trabalhos";
10.     Segunda: "Não se trata de uma dívida que costuma ser paga em prazo curto e de cujo pagamento não é costume exigir quitação, motivos que levaram o legislador a estabelecer para os créditos previstos nos artigos 316.º e 317.° do Código Civil, prazos curtos para a prescrição presuntiva.”
11.     Da douta sentença, retira-se que o Mmo. Juiz suportou a sua decisão com base no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28.11.1994, o qual se debruça sobre a aplicabilidade do regime da prescrição presuntiva aos contratos de empreitada para construção de imóveis de longa duração.
12.     Sucede contudo, e com o devido respeito, que o caso em apreço não é de um contrato de empreitada para a construção de imóveis, mas antes um contrato de empreitada para impermeabilizar partes do edifício, já construído, portanto.
13.     Assim, como dificilmente se poderá qualificar o contrato em apreço como um contrato de longa duração, uma vez que os trabalhos foram executados em cerca de um mês e meio.
14.     No que concerne ao segundo argumento apresentado pelo tribunal recorrido para afastar a aplicação do art. 317.º, al. b), entende a Recorrida que também este não colhe.
15.     O pagamento a que a Recorrente estava obrigada como contraprestação dos serviços prestados pela Recorrida, tinha um prazo certo.
 16.    Certo e imediato! A factura apresentada pela Recorrida vencia-se no próprio dia da sua emissão (31.05.2000).
17.     Nestes termos, entende a Recorrente não estarem reunidos os pressupostos que justificariam a inaplicabilidade do instituto da prescrição presuntiva ao caso sub judice.
18.     Pelo contrário, mantém a Recorrente o alegado em sede de contestação, isto e, encontram-se reunidos os pressupostos de aplicação do disposto na alínea b) do artigo 317.º do Código Civil, como a seguir se demonstra.
19.     A Recorrente é comerciante.
20.     Os créditos peticionados pela Recorrida estão relacionados com a sua actividade comercial.
21.     A prestação de serviços realizou-se entre a Recorrida, comerciante, e um não comerciante, a Recorrente (a qual também não exerce profissionalmente uma indústria).
22.     A Recorrente já efectuou o pagamento integral da factura em causa.
23.     A Recorrida vem reclamar o alegado crédito sete anos após o vencimento do mesmo.
24.     Assim, goza a Recorrida, e de acordo com o disposto na alínea b) do art. 317.º do Código Civil da prescrição presuntiva dos créditos alegados pela Recorrente, fundada na presunção do cumprimento.
25.     Atendendo a que decorreram mais de dois anos sobre a data de vencimento da factura em causa e que não houve qualquer interrupção do prazo de prescrição do crédito alegado, dão-se os efeitos da prescrição.
26.     Assim, estão preenchidos todos os pressupostos para a verificação da prescrição presuntiva com base no disposto no art. 317.º, alínea b) do C.C..
27.     Invocando a Ré tal prescrição presuntiva, esta «é liberatória do ónus de prova do cumprimento, limitando-se o prazo prescricional a balizar o termo a partir do qual o réu fica dispensado desse encargo probatório» (in Acórdão de Relação de Coimbra de 17.11.1998: CJ, 1998, 5.°-16).
28.     Consubstanciando o que acima se aduziu uma excepção peremptória extintiva, a sua verificação extingue o efeito jurídico dos factos articulados pela Recorrida e importa a absolvição total da Recorrente Réu do pedido (arts. 487.º, n.°s 1 e 2, última parte e 493.º, n.°s 1 e 3 do Código de Processo Civil).  

A Autora/Recorrida apresentou contra-alegações, no âmbito das quais sustentou ser de manter a decisão recorrida.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
           
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir a questão colocada pelo apelante, sendo certo que o objecto dos recursos se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, n.º 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).
É essencialmente uma a questão que nos é colocada e que se prende com o saber se no caso em apreço se verifica ou não a excepção da prescrição presuntiva, prevista no art.º 317.º, alínea b), do Código Civil, o que passará por apurar se a mesma é aplicável a contratos de empreitada como aquele que se mostra em discussão nesta acção.

III – FUNDAMENTOS

1.  De facto

São os seguintes os factos dados como provados na sentença:
1)       A Autora dedica-se, entre outras, à actividade de revestimentos e impermeabilizações de edifícios.
2)       No exercício da sua actividade, a Autora foi contactada pela Ré, a fim de ser a esta apresentado um orçamento de trabalhos de impermeabilização de fachadas e cobertura do edifício sito ..., em Lisboa.
3)       A Autora, em 5.11.1999 enviou à Ré o orçamento n.° JC/SM-99.1.0289, constante de fls. 8 a 11 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4)       Tal orçamento previa a execução de trabalhos de impermeabilização nos seguintes locais do edifício:
-          Nas coberturas em fibrocimento (lado esquerdo e lado direito);
-          Na casa das máquinas;
-          Na fachada;
-          No terraço da cobertura, e
-          Na varanda do 1 ° andar.
5)       Tal orçamento foi aceite pela Ré mas apenas no tocante aos trabalhos de impermeabilização das fachadas e da cobertura não acessível.
6)       A Autora iniciou os trabalhos em finais de Março de 2000 e concluiu os mesmos em Maio de 2000.
7)       Terminados os trabalhos, foram os mesmos aceites pela Ré e assim a Autora emitiu e enviou àquela a factura final dos trabalhos, em 31/05/2000.
8)       Factura essa com vencimento imediato (31/05/2000) e no valor de € 6.666,83.
9)       Valor esse que não foi na íntegra satisfeito pela Ré, uma vez que ficou por pagar a quantia de € 2.676,44 até ao presente.
10)     A presente acção deu entrada em juízo em 14.03.2007 tendo o Réu sido citado em 10.07.2007.

Foi ainda dado como não provado que o Réu efectuou o pagamento integral dos créditos peticionados pela Autora.

2. De direito

Como referimos supra, a questão que é suscitada pela apelante traduz-                       -se em saber se no caso em apreço se verifica ou não a excepção da prescrição presuntiva, prevista no art.º 317.º, alínea b), do Código Civil, o que passará por apurar se a mesma é aplicável a contratos de empreitada como aquele que se mostra em discussão nesta acção.
As partes não questionam o tipo de contrato entre si celebrado, reputando-o de empreitada, o que foi reconhecido na sentença e é por nós aqui avalizado, dado, por um lado, a noção constante do art.º 1207.º do Código Civil, e, por outro, o constante dos pontos 1 a 7 da matéria dada por provada.
Ora, após leitura atenta quer das alegações de recurso quer da sentença recorrida, consideramos que esta se encontra bem estruturada e fundamentada, focando todos os pontos de facto e de direito que se nos afiguram importantes serem abordados, sendo que, por outro lado, a recorrente não trouxe com as suas alegações quaisquer elementos relevantes que ponham em causa o decidido e que nos levem a alterar o teor da decisão de direito proferida.
Entendemos assim estarem reunidos os pressupostos para que se lance mão da prerrogativa ínsita no art.º 713.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, confirmando-se a decisão proferida pelo Senhor Juiz da 1.ª Instância.
Antes porém, acrescentaremos alguma argumentação à já exposta na sentença, no sentido de melhor se cimentar a posição nela vertida.
Com efeito, sempre se dirá que existe forte tendência jurisprudencial que considera que as empreitadas realizadas em imóveis, não são passíveis de se enquadrar na previsão da prescrição presuntiva constante do art.º 317.º, al. b) do Código Civil, dada a especial natureza desta.
Na realidade, a tal propósito, será interessante ver o que se dizia no Ac. do STJ de 29/11/2006[1]:
De notar que, na procura do sentido decisivo da lei, o intérprete não deve cingir-se à sua letra, mas reconstituir, partindo dela, o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as do tempo em que é aplicada, presumindo que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados - art. 9º C. Civil.
Haverá que atender ao elemento literal mas, também, aos elementos lógico, sistemático, histórico e teleológico.
A prescrição presuntiva funda-se na presunção de cumprimento, ou seja, apenas faz presumir o cumprimento da obrigação respectiva pelo decurso de um certo prazo - art. 312º C. Civ.. Não confere ao devedor, como sucede com a prescrição ordinária, a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito, visto não ser extintiva de direitos.
A sua razão de ser encontra-se na circunstância de as obrigações a que se referem costumarem ser pagas em prazo curto e não ser usual exigir documento de quitação ou guardá-lo por muito tempo. Decorrido o prazo legal, presume a lei que o pagamento foi efectuado, dispensando o devedor da sua difícil prova, dada a ausência de recibo.
Pretende a lei, ao fim e ao cabo, nos casos que inclui no regime, proteger o devedor contra o risco de se ver obrigado a pagar duas vezes dívidas de que não é costume pedir ou guardar recibo ou que, elas próprias, habitualmente não constam de documento ( vd. VAZ SERRA, BMJ 106º - 45 e ss.; ALMEIDA E COSTA, "Direito das Obrigações", 5ª ed., pp. 964).
Também no mesmo sentido e a propósito da interpretação a dar à expressão “execução de trabalhos” consagrada na referida alínea b) do art.º 317.º, do Código Civil, pode ler-se no Ac. da Relação de Lisboa de 23/03/2006[2]:
Há assim que apurar se a expressão “execução de trabalhos” na disposição legal transcrita, se destina a abranger a execução de qualquer tipo de trabalhos, desde que efectuados para cumprimento de qualquer contrato.
Entendemos que não, e diremos as razões do nosso entendimento.
A nosso ver, resulta claro, da análise do referido preceito legal que a previsão nele espelhada, se destina a resolver de forma mais justa e eficaz, as situações relativas a trabalhos ocasionais que normalmente são executados e habitualmente pagos de imediato, sejam eles resultantes de prestações de serviços de execução rápida ou não, em que na maior parte das vezes nem sequer são emitidas facturas e recibos de quitação.
É do conhecimento geral que isso acontece com frequência na generalidade dos contratos de empreitada relativos a reparações de automóveis, electrodomésticos, computadores e tantos outros bens móveis não consumíveis.
A questão é tão comum, que se vai ao ponto do legislador ter de intervir para afastar a tradição e a tão falada e reconhecida fuga ao fisco por todos esses agentes económicos, que não passam facturas nem documentos de quitação.
É este também o entendimento que resulta das lições do Prof.º Almeida Costa (Como refere o Ilustre Prof.º que as prescrições presuntivas, “Explicam-             -se pelo facto de as obrigações a que respeitam costumarem ser pagas em prazo bastante curto, e não se exigir, por via de regra, quitação, ou, quando menos, não se conservar por muito tempo essa quitação” – Direito das Obrigações -7.ª Ed., pgs.1010 – Almedina –COIMBRA.).
A expressão em apreciação, não se destina a abranger, empreitadas relativas a obras levadas a efeito na construção de imóveis, que habitualmente demoram largos meses e até anos em que, como se sabe, até mesmo no que respeita à garantia da reparação dos eventuais defeitos, que entretanto ocorram, é de cinco anos, para os imóveis e para os móveis não consumíveis a garantia fica-se pelos dois anos (art.ºs 916.º n.º 3 e 1225.º n.º1 do C. Civil e art.º 5.º n.º1 do Dec-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril).
O facto de no caso dos presentes autos se estar perante uma empreitada, não de edificação de imóvel (como aquela a que se reporta o acórdão que acabámos de citar), mas sim de reparação de um edifício, em nada retira ao que se disse, pois que os considerandos aí indicados (com excepção da menor duração da obra) continuam a ser perfeitamente válidos para estas situações, tanto mais que o próprio art.º 1225.º, respeitante à garantia da reparação dos eventuais defeitos, abarca tanto as empreitadas de edificação, como as de reparação.
De outro lado ainda, há que salientar que a alusão que é feita pelo recorrente na conclusão 13, no sentido de que o contrato em apreço não é um contrato de longa duração, parte do pressuposto errado de que a lei no apontado art.º 1225.º, n.º do Código Civil se está a reportar à duração do contrato, quando é certo que o preceito em causa, do que fala é da duração dos imóveis – “… se a empreitada tiver por objecto a … reparação de edifícios ou outros imóveis destinados por sua natureza a longa duração … .” Assim sendo falece por inteiro tal argumentação.
Por último, resta-nos ainda referir que também no Ac. de 18/05/2006 desta Relação de Lisboa[3], se defendeu a posição que aqui acabamos por sustentar.
Desta forma, reiterando-se que se confirma a sentença proferida pela 1.ª Instância (art.º 713.º, n.º 5 do Código de Processo Civil), entende-se que o recurso terá de improceder.

IV – DECISÃO

Assim, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, nessa conformidade, confirma-se a sentença recorrida, nos seus precisos termos.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 16 de Julho de 2009.
(José Maria Sousa Pinto)
(Jorge Vilaça Nunes)
(João Vaz Gomes)

[1] Em que foi Relator o Senhor Juiz Conselheiro, Dr. Alves Velho, in www.dgsi.pt
[2] Em que foi Relator o Senhor Juiz Desembargador, Dr. Gil Roque, in www.dgsi.pt
[3] Em que foi Relator o Senhor Juiz Desembargador, Dr. Ferreira Lopes, in www.dgsi.pt