ACIDENTE DE VIAÇÃO
FALTA
CARTA DE CONDUÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

Na acção de regresso do art.º 19/c do DL 522/85, de 31/12, sobre a Seguradora recai o ónus de alegação e prova da ocorrência do acidente e suas circunstâncias, do pagamento da indemnização ao lesado e inabilitação legal do segurado condutor; sobre este recai o ónus de alegação e prova de que o acidente se deu por causa de terceiro, do lesado ou de força maior - art.º 342 n.ºs 1 e 2 do CCiv.
(V.G.)

Texto Integral

Acordam os juízes na 2.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

APELANTE/AUTORA: COMPANHIA DE SEGUROS S.A.
APELADOS: RÉ B.... e
INTERVENIENTE PRINCIPAL J..., Lda
Todos com os sinais dos autos.
*
Inconformada com a sentença de 10/10/2008 que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e absolveu a Ré e a chamada do pedido, dela apelou a Autora, em cujas alegações conclui:
a) A Mmº Juiz a quo no despacho sentença de fls., considerou a acção interposta pela recorrente absolutamente improcedente e em consequência absolveu a Ré B...., herdeira legal do condutor da retro escavadora segura e a chamada J..., Lda., do pedido, fundamentando tal decisão na falta de alegação por parte do Recorrente do nexo de causalidade entre a condução do manobrador, nomeadamente sem carta, e o acidente;
b) A Mmª Juiz a quo concluiu que: “ atenta a factualidade dada como provada não há qualquer dúvida de que houve um acidente, acidente que originou danos, danos que a Autora ressarciu” e continua afirmando que “também não há qualquer dúvida de que o manobrador da máquina envolvida no acidente não tinha habilitação legal para conduzir”;
c) A tutela penal exercida sobre esta situação é, por si só, desde logo suficiente para aferir do grau de responsabilidade do condutor da referida retro escavadora e do risco suplementar que acarreta a condução em tal condição, porquanto sempre se presume a impreparação do condutor não habilitado;
d) Na verdade “ a falta de carta de condução por parte do réu faz presumir a sua impreparação e a ignorância bem revelada das regras de trânsito do Código da Estrada. Só a autorização legal de conduzir faz presumir a existência de conhecimentos bastantes que, a existirem teriam de ser demonstrados pelo réu”(…) (Ac. Rel. Porto, de 19-12-75);
e) Cabia ao condutor da referida retro escavadora, não à Autora demonstrar que não terá sido a sua falta de preparação (é manifesto erro a referência a impreparação) que desencadeou o sinistro em causa, ou seja, teria a Ré que demonstrar, ilidindo a presunção que sobre si recaia, que não foi a falta de habilitação legal do seu falecido marido e respectivas consequências em termos de impreparação, que fizeram com que não soubesse ter deixado a máquina bem travada e estacionada, o que, como se viu, não aconteceu, não tendo a Ré logrado ilidir a presunção em causa, ónus que era apenas seu.
f) Mais, a responsabilidade do falecido D..., no caso vertente, sempre se presumiria, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 493 e do art.º 503, ambos do Código Civil.
g) Será de presumir a culpa do condutor da retro escavadora, porquanto, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 503 do Código Civil, “aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar salvo se provar que não houve culpa da sua parte(…)”.
h) Relativamente à Ré J..., Lda. é esta igualmente responsável pelo ressarcimento dos danos do sinistro ora em apreço, nos termos em que o comitente responde pelos danos causados pelo comissário.
i) Com efeito, refere o n.º 1 do art.º 500, do Código Civil que “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar”.
j) Nos termos do n.º 3 do art.º 503 do Código Civil, sempre caberia à Ré B.... a prova de que o seu falecido marido não teve culpa no acidente, o que não logrou fazer.
k) Por último, entende a recorrente que terá sido efectivamente devido à forma que a retro escavadora foi estacionada que o acidente se deu porquanto, ainda que a mesma tenha começado a recuar, desgovernada, passado algum tempo depois de D... a ter estacionado, a verdade é que ficou provado que foi o próprio D... que a estacionou, e não qualquer outro trabalhador.
l) Uma vez provado ter sido o falecido D... que estacionou a referida retro escavadora momentos antes de esta ter começado a recuar desgovernada, e uma vez não se tendo feito prova que outra circunstância que não o modo como a máquina foi estacionada levou a que a mesma começasse a recuar – nomeadamente problema mecânico ou causa de forma maior – então apenas podemos concluir que foi efectivamente a forma como a retro escavadora foi estacionada que desencadeou o sinistro:
m) Dos quinze quesitos da Base Instrutória alegados pela Autora, apenas o quesito 5.º, parte do 7.º e 16.º, relativos à forma como a máquina terá sido imobilizada não ficaram provados;
n) Desta forma entende a recorrente estar o nexo de causalidade devidamente demonstrado na presente acção.
Conclui pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra condenando a Ré a chamada no pedido formulado na petição inicial, assim se fazendo a costumada Justiça.

Em contra-alegações de recurso conclui a Ré B...:
A. A recorrente interpôs o presente recurso de apelação, pedindo, a final, a procedência do mesmo, a ser alcançada mediante uma interpretação distorcida que a mesma faz em relação à matéria de facto;
B. No que concerne ao ónus da prova e ao contrário do que sustenta a recorrente, não caberia à recorrida, enquanto herdeira legal do seu marido, a obrigação de demonstrar que o acidente se ficou a dever à impreparação deste de corrente da falta de habilitação legal para conduzir a retro escavadora interveniente no acidente, conclusão essa que é atingida pela própria dinâmica do acidente constante da matéria dada “como provada”.
C. Ora, como resulta da matéria dada como provada, o condutor D..., no âmbito das funções que desempenhava para a sociedade J..., LDA, estacionou a retro escavadora que era pertença daquela sociedade, no cimo de uma ruía, saído do interior dela logo após ter estacionado.
D. Algum tempo depois após ter sido estacionada a máquina começou a recuar, desgovernada, sem ninguém no seu interior, indo embater posteriormente no veículo SEAT provocando-lhe os danos oportunamente descritos.
E. É importante, antes do mais realçar, até para conferir alguma objectividade à expressão “algum tempo depois”, constante da resposta positiva ao quesito 7.º que a própria recorrente computa esse período de tempo, como aliás o fez no n.º 5 da sua petição inicial, em 15 minutos(!!!).
F. Ora, se assim é, se a retro escavadora estava estacionada num plano inclinado (no cimo da Rua ...), porque foram necessários 15 minutos para que esta começasse a movimentar sozinha?
G. Este conjunto de circunstâncias, aliado ao facto de ter sido considerado não provado o facto do condutor D... ter estacionado a retro escavadora sem accionar correctamente os seus mecanismos de travagem e imobilização (resposta negativa ao quesito 5.º), leva a presumir que o acidente terá sido por uma causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (vd art.º 505 do Código Civil)
H. Ora, não tendo sido possível apurar com exactidão a forma como o acidente ocorreu, então de acordo com as regras do ónus da prova e conforme o disposto no art.º 516 do C:P:C., a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
I. Assim sendo, uma interpretação meramente declarativa d alínea c) do art.º 19 do D.L. 522/85, de 31/12, resulta claro que a seguradora, ora recorrente, tem de provar que satisfez a indemnização, que o condutor interveniente no acidente não estava legalmente habilitado a conduzir e provar o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o acidente, e os danos daí resultantes, o que não logrou fazer.
J. Na dinâmica do acidente descrito dada como provada, resulta a inexistência de qualquer nexo causal entre o acidente e a falta de habilitação legal para a condução, uma vez que que o condutor interveniente nem sequer tinha a direcção efectiva do veículo no momento em que este ocorreu, não tendo sido pela presumível imperícia decorrente da efectiva condução sem título legal que o acidente, já sobejamente descrito, ocorreu.
K. Resulta da matéria assente e da matéria dada como provada que a máquina pertencente à J..., LDA era manobrada, na data do acidente, pelo seu empregado D... no âmbito das funções que aquele exercia para aquela sociedade.
L. Ora, mesmo admitindo por mera hipótese de raciocínio, mas sem conceder, que o D... tenha sido o último condutor a manobrar a máquina e independentemente da sua eventual culpa na produção do acidente (que não a teve), não deixa de existir a responsabilidade fundada no risco, nos termos em que a mesma é definida nos artigos 500 e 503 do Código Civil.
M. Verificados que estão os requisitos atinentes à responsabilidade do comitente nomeadamente a existência de uma comissão fundada numa relação de subordinação do comissário para com o comitente e a circunstância do facto de ter sido cometido pelo comissário no exercício da função que lhe foi confiada.
N. Poderemos concluir que, mesmo admitindo (apenas por mera hipótese de raciocínio) que tenha havido responsabilidade do condutor D.... na produção do acidente, seria a J..., LDA, enquanto comitente responsável pelo ressarcimento dos danos decorrentes do sinistro, atento o disposto no n.º 1 do artigo 501 do Código Civil.
Termina pedindo a manutenção da sentença recorrida.
Em contra-alegações de recurso conclui a Ré J...:
a) A douta sentença considerou que não foi devido à forma como a retro escavadora foi estacionada, nem à falta de carta de condução do manobrador que o acidente se deu;
b) A rua onde ocorreu o acidente é uma via inclinada e se não tivessem sido accionados correctamente os mecanismos de travagem e imobilização da máquina a colisão com o outro veículo ter-se-ia dado, praticamente, de imediato; 
c) As testemunhas, observadores privilegiados do sinistro, descreveram com bastante rigor aquilo a que assistiram, mas nenhuma delas conseguiu avançar com causas para o acidente ou sequer conseguiu imputar culpa ao manobrador, que disseram ser dos melhores, atestando, no essencial, as boas competências profissionais do manobrador da máquina;
d) Nos termos na alínea c) do artº 19º do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, “satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”;
e) No entanto, o direito de regresso é um direito especial, mas que tem que ser demonstrado nos termos gerais de direito, pois não é de funcionamento automático;
f) O DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro não afastou o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral; 
g) Ou seja, não basta o exercício de condução sem habilitação legal para que, satisfeita a indemnização, a companhia de seguros tenha direito de regresso sobre o condutor;
h) A seguradora tem que provar que foi essa condução, sem habilitação legal, que gerou os danos pelos quais o sinistrado foi ressarcido;
i) É de aplicar, por interpretação extensiva, a jurisprudência fixada no acórdão uniformizador n.º 6/2002, de 28 de Maio;
j) Ou seja, que a prova do nexo causal entre a falta de habilitação legal para conduzir do réu, o condutor segurado, e a eclosão do acidente, cabe à seguradora, já que sobre esta impende o ónus da prova do nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente;
k) O acidente terá tido origem numa causa de força maior, estranha ao funcionamento do veículo, o que determina a exclusão da responsabilidade, nos termos do artigo 505.º do Código Civil;
l) No âmbito dos acidentes causados por veículos, o n.º 3 do art.º 503.º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do comissário, quando o acidente cause danos a terceiro.
m) Competindo à R. B...a prova de que o seu falecido marido não teve culpa no acidente. 
Termos em que deve manter-se a decisão recorrida, com as legais consequências, com o que V.Ex.ªs, Senhores Desembargadores, farão

Os autos foram com vista aos Meritíssimos Juízes-Adjuntos, os quais nada sugeriram; nada obsta ao conhecimento do recurso.

Questão a resolver: Saber se na acção de regresso da Seguradora contra a herdeira do condutor de uma retro escavadora que a manobrou, enquanto trabalhador por conta de outrem, proprietário da máquina, sem estar legalmente habilitado para tanto, nos termos do art.º 19, alínea c) do DL 522/85, de 31/12, aquela, gozando da presunção da impreparação decorrente da falta de habilitação e da relação de comissão, apenas tem de alegar e provar que a máquina foi causadora do acidente e dos danos a par da falta de habilitação legal ou se sobre ela recai o ónus de alegação e prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação e os danos.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1) A Autora dedica-se ao exercício da actividade seguradora – cfr. alínea A) dos Factos Assentes.
2) No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com a sociedade J..., LDA, um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº ...., através do qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação da máquina retro escavadora, de marca Caterpillar, com a matrícula .... – cfr. alínea B) dos Factos Assentes.
3) A retro escavadora acima identificada era pertença da sociedade J..., LDA – cfr. alínea C) dos Factos Assentes.
4) À data em que os factos ocorreram, D.... era funcionário da referida sociedade, trabalhando para esta, mediante ordens e instruções daquela, numa relação de subordinação, nos termos do contrato cuja cópia foi junta aos autos a fls. 50-51 – cfr. alínea D) dos Factos Assentes.
5) O D.... exercia, sem prejuízo de outras, as funções de manobrador da retro escavadora identificada em 2) – cfr. alínea E) dos Factos Assentes.
6) No dia 15 de Junho de 2005, pelas 15 horas, a retro escavadora .... esteve envolvida num acidente de viação ocorrido na Rua ...., em Casal de Cambra – cfr. resposta positiva ao quesito 1º da Base Instrutória.
7) A máquina foi conduzida pelo D.... no âmbito das funções que este exercia para a sociedade J..., LDA – cfr. respostas positivas aos quesitos 2º e 3º da Base Instrutória.
8) Após utilização do veículo, o D... estacionou o veículo no cimo da Rua ... – cfr. resposta positiva ao quesito 4º da Base Instrutória.
9) E saiu do interior da retro escavadora – cfr. resposta positiva ao quesito 6º da Base Instrutória.
10) Algum tempo depois do D... dela ter saído, a retro escavadora começou a recuar, desgovernada e sem ninguém no seu interior – cfr. resposta ao quesito 7º da Base Instrutória.
11) Vindo a embater, após ter rodado, com a pá frontal na traseira direita do veículo de marca Seat, com a matrícula Y... – cfr. resposta positiva ao quesito 8º da Base Instrutória.
12) Que se encontrava estacionado do lado esquerdo daquela via, no sentido descendente – cfr. resposta positiva ao quesito 9º da Base Instrutória.
13) Após a colisão, o veículo Y... foi arrastado para o meio da estrada, onde veio a ficar imobilizado – cfr. resposta positiva ao quesito 10º da Base Instrutória.
14) A Rua onde ocorreram os factos é uma via inclinada – cfr. resposta positiva ao quesito 11º da Base Instrutória.
15) A colisão da retro escavadora no veículo Seat causou danos neste – cfr. resposta positiva ao quesito 12º da Base Instrutória.
16) E para reparação dos danos ocorridos em consequência da dita colisão, a Autora despendeu a quantia de € 3.675,01 (três mil seiscentos e setenta e cinco euros e um cêntimo) – cfr. resposta positiva ao quesito 13º da Base Instrutória.
17) A Autora pagou ainda a quantia de € 390,33 (trezentos e noventa euros e trinta e três cêntimos) à sociedade “E..., Lda”, relativa a despesas com o aluguer de uma viatura de substituição, para o proprietário do Y... e pelo período em que o Y... esteve imobilizado para reparação – cfr. resposta positiva ao quesito 14º da Base Instrutória.
18) Aquando do acidente o D... não era titular de título válido que o habilitasse a conduzir a retro escavadora – cfr. resposta positiva ao quesito 15º da Base Instrutória

III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
São as conclusões das alegações de recurso que delimitam o seu objecto sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e daquelas cujo conhecimento esteja prejudicado pela solução dada a outras (art.ºs 660 n.ºs 1 e 2, 684/3, 690, n.º 4, 713 n.º 2 e 514, todos do Código do Processo Civil). É entendimento uniforme na jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Assim a questão a decidir é a enunciada em I:
Saber se na acção de regresso da Seguradora contra a herdeira do condutor de uma retro escavadora que a manobrou, enquanto trabalhador por conta de outrem, proprietário da máquina, sem estar legalmente habilitado para tanto, nos termos do art.º 19, alínea c) do DL 522/85, de 31/12, aquela, gozando da presunção da impreparação decorrente da falta de habilitação e da relação de comissão, apenas tem de alegar e provar que a máquina foi causadora do acidente e dos danos a par da falta de habilitação legal ou se sobre ela recai o ónus de alegação e prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação e os danos.

A sentença recorrida, entre o mais, no seu juízo absolutório, louvou-se no seguinte:
“(…)O direito de regresso é um direito que surge ex novo na titularidade da seguradora com a extinção da obrigação para com o lesado. A seguradora fica na posição de credora em relação ao condutor da viatura “culpada”, pela mesma quantia que pagou ao sinistrado, pelo mesmo facto e pelo mesmo motivo. O segurado ou condutor do veículo tem o dever de pagar à seguradora o que esta despendeu se se verificar o fundamento do regresso. E este, no caso em apreço, funda-se na condução sem título bastante.
Todavia, o direito de regresso tem que ser demonstrado nos termos gerais de direito, não podendo invocar-se qualquer presunção ou outra circunstância que afaste o regime geral. Até porque o direito de regresso apenas abrange os prejuízos que a seguradora suportou e que têm uma relação causal com o acidente. Assim, não basta o exercício da condução sem habilitação legal para que, satisfeita a indemnização, a companhia de seguros tenha direito de regresso sobre o condutor. Na verdade, a norma não exige que o condutor seja o culpado na produção do acidente. Contudo, a mesma não é de funcionamento automático, ou seja, demonstrado que o condutor conduzia sem carta, tem a companhia de seguros que provar que foi essa condução sem carta que gerou os danos pelos quais o sinistrado foi ressarcido. Quer isto dizer que, sendo o fundamento do direito de regresso a condução sem habilitação legal, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui o nexo causal entre a condução sem carta e os danos ( cfr. artigo 342º, n.º 1 do Código Civil ).
Esta foi, em síntese, a jurisprudência uniformizada pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça em Jurisprudência n.º 6/2002, publicada no Diário da República, I série A, de 18 de Julho de 2002, que foi fixada para a condução sob a influência do álcool, mas que seguimos de perto também nos casos em que o direito de regresso se funda na falta de habilitação legal.
Tendo presente a posição jurisprudencial acima exposta, importa realçar que da matéria de facto dada como provada resulta que o falecido D... conduzia a retroescavadora sem dispor do título que lhe permitisse exercer tal condução.
No entanto, não resulta da matéria de facto dada como provada que tenha sido devido à falta de carta de condução que o acidente ocorreu. Mais, no caso sub judice, no momento em que a máquina começou a recuar, desgovernada, atingindo o outro veículo, o D... nem sequer a conduzia, tendo-a estacionado algum tempo antes. Ou seja, nem sequer se pode dizer que foi devido à forma como a retroescavadora foi estacionada que o acidente se deu. (…)
*
Em causa o art.º 19/c do DL 522/85 de 31/12 que estatui: “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado.”
O DL 522/85 citado instituiu o seguro obrigatório, pelo qual “qualquer pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor seus reboques ou semi-reboques, deve para que esses veículos possam circular encontrar-se nos termos do presente diploma coberta por um seguro que garanta essa responsabilidade (art.º 1º/1), obrigação essa de segurar que recai sobre o proprietário, usufrutuário, adquirente no caso de aquisição com reserva de propriedade e locatário quando exista contrato de locação financeira (art.º 2.º), que garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, sujeitos referidos no art.º 2, legítimos detentores e condutores do veículo, autores de furto, roubo, furto de uso de veículo (art.º 8/1), com as excepções do n.º 3 do art.º 8, estando excluídos da garantia as pessoas e situações referidas no art.º 7.
Nos considerandos do preâmbulo do diploma o regime legal do seguro obrigatório impôs-se por razões de socialização do risco de circulação e viaturas automóveis, de desadequação entre os valores fixados pelo DL 190/85 de 24/06 para as situações do art.º 508 do CCiv e os do DL 408/79, necessidade de cumprimento dos princípios contidos na 2.ª Directiva do Conselho de 30/12/1983 84/5/CEE, com alargamento do seguro obrigatório aos passageiros transportados gratuitamente, o alargamento da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel.
No caso que nos ocupa a Seguradora Autora assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação da máquina retro escavadora de marca Caterpillar, com a matrícula ...., mediante contrato de seguro que celebrou com a chamada, proprietária da máquina e titulada pela apólice ..... À data do acidente que envolveu a máquina, D... exercia, numa relação de subordinação de trabalho com a chamada, as funções de manobrador da máquina e no circunstancialismo de tempo e de lugar o mencionado D...l utilizou a máquina no exercício das suas funções, estacionou-a no cimo da Rua mencionada, saiu do seu interior e algum tempo depois a mesma máquina começou a recuar, desgovernada e sem ninguém no seu interior vindo a embater no veículo ligeiro, provocando-lhe danos e prejuízos, que a Autora reparou ao lesado.
Alegou ainda a Autora, na sua petição inicial aperfeiçoada, após convite do Tribunal nesse sentido e ao abrigo do disposto no art.º 508/3 do CPC, que “o condutor da referida retro escavadora, acima mencionado, após utilização do veículo, estacionou-o no cimo daquela rua e, sem accionar correctamente os mecanismos de travagem do mesmo, saiu do seu interior” –art.º 4.da p.i.; “em virtude de tal incorrecta imobilização, cerca de 15 minutos mais tarde, a retro escavadora começou a recuar, desgovernada, sem ninguém no seu interior”-art.º 5.º da p.i. da p.i.
Tais factos foram levados à Base Instrutória sob os artigos 5 e 7.º respectivamente, sendo que a matéria do art.º 5.º da B.I. foi considerada “Não Provada” e a do art.º 7.º foi alvo de uma resposta explicativa e que passou para o ponto 10 da Fundamentação de Facto.
E na motivação da resposta explicativa dada ao art.º 7.º da B.I. assim como a outras (fls 187) o Tribunal refere ter-se louvado no depoimento das testemunhas que identifica considerando-as “(…) observadores privilegiados do sinistro, descreveram com rigor bastante aquilo a que assistiram mas nenhuma delas conseguiu avançar com causas para o acidente ou sequer conseguiu imputar a culpa ao manobrador, que disseram ser dos melhores(..)”
Não vem justificada a resposta restritiva e explicativa dada ao quesito, seja, porque dar como provado que foi “algum tempo depois” e não os 15 minuto como a Autora alegou.

Incumbiria à Autora o ónus da alegação e prova de que o condutor da máquina retro escavadora a estacionou no mencionado local, sem accionar correctamente os mecanismos de travagem do mesmo, saiu do seu interior e que tal imprevidência, seguramente fruto da impreparação de conduzir o veículo por não estar habilitado para tal foi a causa do acidente e seus danos? E não o tendo feito contra ela se resolve a acção (art.º 342/1 do Código Civil[1] e 516 do CP.C.)?
O Supremo Tribunal de Justiça em relação à questão do ónus de alegação e prova nestas acções de regresso, e já depois de tirado o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 6/2002 sobre o direito de regresso da seguradora contra o condutor segurado que conduzia sob a “influência do álcool” teve a oportunidade de sobre a questão do direito de regresso da Seguradora sobre o condutor sem habilitação legal se pronunciar e sempre que se pronunciou foi no sentido de considerar que sobre a Seguradora recai o ónus de alegação e prova da ocorrência do acidente e suas circunstâncias, do pagamento da indemnização ao lesado e inabilitação legal do segurado condutor; sobre este recai o ónus de alegação e prova de que o acidente se deu por causa de terceiro, do lesado ou de força maior- art.º 342 n.ºs 1 e 2 do CCiv. Tal interpretação do art.º 19/c, primeira parte, colhe a sua razão de ser não só no elemento gramatical (previsão normativa não refere a exigência um nexo de causalidade entre a inabilitação legal para conduzir e os danos do acidente) como nos elementos histórico e teleológico (tivesse sido intenção do legislador a de exigir um nexo de causalidade entre a inabilitação legal para conduzir e os eventos danosos, tê-lo-ia dito de forma expressa, directa ou indirecta.
A título de exemplo transcreve-se parte do Ac. do STJ de 20/05/03 relatado pelo ilustre Conselheiro Afonso Correia, disponível no sítio www.dgsi.pt:
(…)
Desenha-se no presente recurso questão velha de anos e que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28 de Maio de 2002, no DR IA, de 18.72002, apenas resolveu, se bem que com a diminuta força vinculativa que caracteriza tais Arestos, em relação à condução sob o efeito do álcool.
Aí se unificou jurisprudência no sentido de a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool exigir a prova, pela Seguradora, do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
No mais não há jurisprudência vinculativa.
Nos termos do art. 46º, n.º 1, a), do Código da Estrada, aprovado pelo Dec-Lei n.º 39672, de 20 de Maio de 1954, ao tempo vigorante, só podem conduzir veículos automóveis nas vias públicas, ... os titulares das cartas de condução a que se refere o artigo seguinte ...
Estas cartas de condução eram emitidas pela Direcção Geral de Viação ou outros serviços competentes e permitiam aos seus titulares conduzir nas vias públicas os veículos para que se encontrem habilitados - art. 47º, n.º 1.
Para obter carta de condução era necessário reunir as condições fixadas no n.º 7 deste art. 47º, de que se destacam as referidas nas alíneas b) e d): ter obtido aprovação nas provas teórica e prática a que se refere o art. 52º do C. Estrada e possuir a necessária robustez psico-física.
O mesmo se passa na legislação posterior, v. g. os art. 124º a 130º do C. Estrada aprovado pelo Dec-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, e no Regulamento da Habilitação Legal Para Conduzir, aprovado pelo Dec-lei n.º 209/98, de 15 de Julho de 1998.
Não bastava, como não chega, conduzir na perfeição, saber efectuar todas as manobras necessárias à circulação automóvel. Além de demonstrar este saber perante o agente administrativo competente, era ainda indispensável demonstrar robustez física e, sobretudo, psíquica para a condução da categoria de veículo pretendida.
No seu aspecto estrutural o seguro de responsabilidade civil automóvel apresenta-se com a fisionomia de um contrato a favor de terceiro, muito embora este não seja propriamente um beneficiário, mas o titular do direito à reparação dos danos sofridos.
A institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel operada, timidamente, pelo Dec-lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, era há muito sentida como medida de alcance social inquestionável para dar resposta aos legítimos interesses dos lesados por acidente de viação - (Do Relatório do Dec-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro).
Com este Dec-lei procurou o Legislador reforçar e aperfeiçoar o regime do seguro obrigatório estabelecido em 1979, adaptando-o às alterações introduzidas no art. 508.° do CC (limites máximos da indemnização por acidentes de viação quando não haja culpa do responsável), alargando a cobertura de tal seguro a passageiros transportados gratuitamente, ainda que parentes do condutor ou do tomador do seguro, e cumprindo princípios consagrados no Direito Comunitário.
A socialização do risco da circulação automóvel que há muito ditara a responsabilidade civil independentemente de culpa, a necessidade de assegurar a reparação dos danos sofridos por terceiros na sua pessoa ou fazenda, ainda que se não conheça a identidade do lesante ou ocasionados por condução com dolo ou culpa grave, impôs a formulação de normas que afectaram a já diminuta contratualidade, a natureza contratual do seguro obrigatório.
Este seguro visa, em primeira linha, o fim social de «garantia do ressarcimento dos danos injustamente causados», num sector «em que os danos se repetem e assumem uma expressiva amplitude», de modo que «seja certa e quanto possível célere a reparação dos lesados» (relatório do Decreto-Lei n.º 165/75, de 28 de Março.
O que antes era um contrato de adesão - e continua a sê-lo no seguro facultativo, em tudo que exceda o capital mínimo obrigatório - passou a reger-se por cláusulas que, em geral, mais não são do que transcrições de normas legais, com o que desapareceu, em grande medida, a já restrita liberdade negocial antes característica dos contratos.
As condições da apólice uniforme, as tarifas e até as tabelas foram prévia e oficialmente aprovadas - art. 39.°, n.º 1 - e as Seguradoras só poderão contratar os seguros nos precisos termos previstos no presente diploma e nas condições contratuais e tarifárias estabelecidas pelo Instituto de Seguros de Portugal - art. 10.°, n.º 1, do Dec-Lei n.º 522/85.
Tal como o responsável pela circulação rodoviária, seja ele proprietário ou mero detentor do veículo, está sujeito, sob pena de coima, à obrigação de segurar (art. 1.°, 2.° e 34.° do referido Dec-Lei), também as Seguradoras não podem recusar-se a aceitar o seguro por mais inapto ou potenciador de maior risco que seja o proponente ou tomador do seguro.
Quando três Seguradoras recusem a aceitação de um seguro, o proponente pode recorrer ao Instituto de Seguros de Portugal que escolherá Seguradora e ditará as condições a que o recusado seguro fica sujeito, sem possibilidade de nova recusa da Seguradora que tem de aceitar o seguro assim imposto sob pena de suspensão da exploração do ramo «Automóvel» por período de seis meses a três anos - art. 11.°, n.º 2.
Estão fixados na lei o âmbito de cobertura do seguro - art. 5.° - as exclusões da respectiva garantia - art. 7.° - determinadas as pessoas cuja responsabilidade é garantida - art. 8.° - e precisadas as excepções oponíveis aos lesados - art. 14°.
Perante regime legal tão apertado forçoso é concluir que pouco resta de contrato ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, calhando-lhe melhor a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir directamente da seguradora a concretização do seu direito à reparação.
Como se acentua em decisão não muito recente do Supremo Tribunal, a lei coloca o acento tónico na defesa e protecção directa das vitimas do acidente, sendo objectivo fundamental do seguro obrigatório assegurar essa protecção.
O seguro obrigatório realiza com a maior evidência o modelo de contrato a favor de terceiro, resultando de todo o seu enquadramento legal a possibilidade ou o direito que assiste ao lesado de accionar directamente a seguradora para obter a indemnização (1).
Com efeito, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal e desde que o pedido se contenha dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a Seguradora que, se assim o entender, pode fazer intervir o tomador do seguro - art. 29º, n.º 1, a) e n.º 2, do Dec-Lei n.º 522/85.
Salvo naqueles expressos e contados casos em que a lei prevê exclusões das garantias de seguro (art. art. 7º da Lei do seguro obrigatório), a Seguradora não pode deixar de indemnizar os lesados, cumprindo, assim, a função social do seguro obrigatório.
Em alguns desses casos ofenderia o sentido dominante de justiça deixar ileso o agente causador do dano e pôr definitivamente a cargo da Seguradora - rectius dos Segurados em geral que vêem anualmente agravado o prémio do seguro automóvel - o pagamento das indemnizações devidas.
São as hipóteses previstas no art. 19º do Dec-Lei n.º 522/85, de que nos interessa agora, apenas, a primeira parte da al. c):
- Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem o direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ...

Qualquer que seja a natureza jurídica do direito de regresso da Seguradora - direito de regresso verdadeiro e próprio, como prevenido nos art. 524º e 497º do CC, ou simples direito de reembolso do que pagou, como primeira e única responsável que não pode opor ao lesado, no domínio do seguro obrigatório, excepções não taxativamente previstas na lei (art. 7º e 14º do Dec-Lei n.º 522/85) - certo é que tal direito visa repor o equilíbrio contratual que a obrigatoriedade do seguro em boa medida afastara.
É apregoada e por todos reconhecida a função sancionatória, além de reparadora, da obrigação de indemnizar, ligada que está a responsabilidade civil à ilicitude e à culpa.
Tem sido orientação praticamente constante do Supremo Tribunal aquela segundo a qual a prova da inobservância de leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência (2).
Em homenagem ao princípio dispositivo, a adução do material de facto a utilizar pelo juiz para a decisão do litígio só compete às partes; estas é que devem proporcionar ao juiz, mediante as suas afirmações de facto (não notórias), a base factual da decisão.
Cada uma das partes suporta, em resultado do princípio dispositivo, um ónus de afirmação (alegação).
Decidir que o ónus de afirmação incumbe a uma das partes significa que será julgado o pleito contra si, se os factos não alegados forem indispensáveis à sua pretensão.
O problema do ónus de afirmação (quem corre o risco da falta de alegação de factos indispensáveis para decidir o pleito em certo sentido) não deixa de ser idêntico ao do ónus da prova (quem corre o risco de o facto alegado se não considerar provado), uma vez que ambos têm na base os princípios da igualdade das partes e da exclusão do non liquet.
Estes critérios, em conformidade com o artigo 342.° do Código Civil, sintetizam-se no seguinte:
Ao autor cabe a afirmação e prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido. O autor terá o ónus de afirmar e provar os factos (constitutivos) correspondentes à situação de facto (Tatbestand) traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão.
Ao réu incumbirá, por sua vez, a afirmação e prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo autor. Compete-lhe, portanto, a prova dos factos impeditivos ou extintivos da pretensão da contraparte, determinados de acordo com a norma em que assenta a excepção por ele invocada.
Ao autor incumbirá, depois, a afirmação dos factos correspondentes à previsão da norma substantiva em que baseia o afastamento da causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo réu.
E, assim operando, a repartição do ónus da afirmação continuará por aí adiante entre autor e réu.
... o ónus da prova (e o da afirmação) quanto a cada facto incumbe à parte cuja pretensão processual só pode obter êxito mediante a aplicação da norma de que ele é pressuposto; donde cada parte terá aquele ónus quanto a todos os pressupostos das normas que lhe são favoráveis.
E assim, se na lei há uma regra e uma excepção (ou várias), a parte cuja pretensão se baseia na norma-regra só tem a provar os factos que constituem a hipótese dessa norma, e não a existência dos que constituem a hipótese da norma-excepção (3).
Esta simplicidade do regime da distribuição do ónus da alegação e prova está longe de verificar-se na prática quotidiana, com os Autores a recorrer ao critério da normalidade ou da anormalidade - ao autor deve pertencer somente a prova da constituição do seu direito, isto é, a prova do que é normal para que ele exista, cabendo ao demandado a prova do que é anormal, quer dizer, das causas que se opõem ao referido direito ou que o extinguem ou modificam (4) ou, como prefere A. Varela, na esteira de Rosemberg, à teoria da norma: Ao autor cabe a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido. O autor terá assim o ónus de provar os factos constitutivos correspondentes à situação de facto (Tatbestand) traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão.
Ao réu incumbirá, por sua vez, a prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que se baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva (do efeito jurídico pretendido pelo autor) por ele (réu) invocada (5).
Dispõe o art. 9.° do CC que a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada - n.º 1.
Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo o intérprete presumir, na fixação do sentido e alcance da lei, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados - n.os 2 e 3.
Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.
Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (6).
O sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório dos diplomas ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo (7), uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei; a letra da lei não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação; o texto funciona também como limite de busca do espírito (8).
Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios:
Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo (9).
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o «lugar sistemático» que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar (10).
Como acima se deixou expresso e no tocante à hipótese que nos ocupa - primeira parte da al. c) do art. 19º do Dec-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro - vista a clara letra da lei (a seguradora tem direito de regresso contra o condutor se este não estiver legalmente habilitado) cedo se desenhou Jurisprudência no sentido de que a lei não exige a quem exerce direito de regresso alegação e prova de que o acidente ocorreu por causa da inabilitação legal do condutor (11).
Já em 1997 este Supremo Tribunal decidiu (12) que só a existência de habilitação legal faz presumir a existência dos necessários conhecimentos e desenvoltura indispensáveis para a condução de pesado de passageiros por quem só é titular de carta de condução de pesado de mercadorias. Mas rejeitou-se a ideia de não permitir ao demandado a prova de inexistência de qualquer nexo de causalidade entre a inabilitação legal e o resultado do acidente.
Na espécie julgada pelo mesmo Supremo em 22.11.99 (13) nem sequer se levantou a questão. Pelo contrário, associou-se à responsabilidade pelo direito de regresso condutor encartado co-autor de condução por quem carecia da legal habilitação.
Por último e quanto ao abandono de sinistrado - hipótese igualmente prevista na parte final da al. c) em apreço - decidiu este Tribunal (14) que ocorrendo o acidente por culpa do R. que logo abandonou o local sem providenciar socorro à vítima, tem a seguradora, que pagou a respectiva indemnização, direito de regresso sobre o R. sem que tenha de alegar e provar que do simples facto do abandono resultou qualquer dano ou o seu agravamento.
É possível conceber casos (não pensando, sequer, em hipóteses extremas de suicídio ou semelhantes) em que o acidente ficou a dever-se, no todo ou em parte, a conduta culposa do lesado ou de terceiro, apesar de o condutor interveniente não estar legalmente habilitado, conduzir sob influência de álcool ou outros tóxicos ou ter abandonado o sinistrado.
E então não estará este lesante obrigado a indemnizar porque a própria responsabilidade pelo risco, já de si excepcional (art. 483.°, n.º 2), é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art. 505° CC).
Não estando o lesante obrigado a indemnizar também não o está a Seguradora que, como é da natureza do contrato de seguro, só responde na medida da responsabilidade do segurado. Se a Seguradora, apesar disso, pagou indemnização ao lesado, fê-lo não em cumprimento da obrigação de indemnizar mas por qualquer outra razão, não tendo, pois, direito de regresso que supõe responsabilidade do solvens (497.°, n.º 2) ou satisfação do direito do credor para além da parte que lhe - ao devedor que paga - competia (524.° CC).
Também não há dúvida que quando se prova a culpa do condutor e o nexo de causalidade entre a condução ilegal e os danos suportados pela Seguradora a esta assiste o direito de reaver quanto desembolsou.
A questão põe-se quando, como é frequente, se não apura a forma como o acidente ocorreu ou, no caso de abandono do sinistrado e para quem entenda necessária tal prova, se desconhece a medida da contribuição do abandono para o agravamento dos danos.
Então, de acordo com as vistas regras do ónus da prova e conforme disposto no art. 516.° do CPC, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

Ora, numa interpretação meramente declarativa de todo o art. 19.°, parece claro que a Seguradora tem de alegar e provar que satisfez a indemnização e que o demandado provocou dolosamente o acidente (al. a), era autor ou cúmplice de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente (al. h), não estava legalmente habilitado a conduzir ou fazia-o sob a influência de álcool ou drogas ou abandonou o sinistrado (al. c), que a carga cuja queda causou danos a terceiros estava deficientemente acondicionada (al. d) e que o obrigado não apresentou em devido tempo o veículo à legal inspecção periódica (al. f).
A letra das al. a), b) e d) - acidente dolosamente causado, veículo causador, queda de carga decorrente de deficiente acondicionamento - inculcam caber à Seguradora a prova do nexo de causalidade entre a conduta dos agentes causadores do acidente e este, bem como dos danos daí resultantes.
Também por expressa disposição da lei (al. f) cabe ao demandado provar que o acidente não foi provocado ou os danos não sofreram agravamento pelo mau funcionamento do veículo. Aqui a lei presume que o veículo sujeito a inspecção obrigatória provocou o acidente por deficiência técnica. Presunção irrazoável em muitos casos, mas claramente consagrada na lei.
Mas é precisamente a partir da redacção desta al. f) que se pode concluir que a lei quis punir, também com as armas do direito civil, os condutores que abandonam o sinistrado, que não têm habilitação legal para conduzir ou que conduzem sob o efeito de álcool ou produtos tóxicos semelhantes, como dito na al. c).
Um Legislador que é suposto consagrar as soluções mais acertadas e exprimir em termos adequados o seu pensamento teria deixado na letra da al. c), se fosse essa a sua intenção, algum elemento no sentido de apenas punir esses condutores quando a inabilitação legal (não interessa considerar aqui as demais hipóteses ali previstas) tivesse sido causa dos danos. E não se enxerga aí rasto de tal mens legislatoris.
Pelo contrário, depois de nas alíneas a), b) e d) ter usado expressões que fazem depender o direito de regresso da prova de comportamentos activos, de causas do acidente e ou dos danos e de na al. f) ter deixado clara a repartição do ónus da prova, na al. c) limitou-se a prever factos, comportamentos passivos e criminalmente censurados noutras disposições legais, já antes ética e socialmente reprovados, sem curar de saber se esses comportamentos foram causais do acidente ou factores de agravamento dos danos.
Este elemento literal e sistemático, a teleologia do preceito em análise, a natureza jurídica e finalidade do seguro obrigatório, a criminalização e a reprovação ético-social do comportamento em apreço permitem-nos concluir que na situação prevenida na primeira parte da al. c) do art. 19.° do Dec-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro (condutor não legalmente habilitado) e para lhe ser deferido o reembolso do que pagou, a Seguradora apenas terá de provar que satisfez a indemnização devida e que o condutor demandado se incluía na referida hipótese.
Naturalmente que fica livre e cabe ao demandado a prova de que, não obstante não estar legalmente habilitado a conduzir, o acidente e ou os maiores danos foram causados por terceiro, pelo lesado ou resultaram de circunstância de todo estranha a essa circunstância, ou que a Seguradora pagou mais que o devido.
Só assim se evitam possíveis conluios ou fraudes entre lesado e Seguradora (conluios apenas por mor de raciocínio aqui falados) e se permite ao obrigado de regresso amplo exercício dos seus direitos de defesa e do contraditório (art. 3.° do CPC e 20.° da Constituição).
No caso sub judicio, assente a total culpa do R. ora Recorrente e a sua inabilitação legal para conduzir, apurado que a Seguradora pagou aquilo a que foi condenada e não mais, tem a Seguradora direito de reembolso do que pagou, ainda que o condutor legalmente inabilitado fosse, à data do acidente e como resulta da factualidade provada (n.os 36 a 39), um artista a ultrapassar, imobilizar e estacionar o veículo, a inverter o sentido de marcha e a recuar.
Pelo que improcede o concluído de a) a c).
(…)
*
Outros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, tirados já depois do mencionado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência reflectem esse sentido do ónus de alegação e prova da Seguradora, como os que a seguir se sumariam e disponíveis no mesmo sítio:
Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 03B1419 
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
DIREITO DE REGRESSO
ÓNUS DA PROVA
CONDUÇÃO SEM CARTA  
Nº do Documento: SJ200307030014192
Data do Acordão: 03-07-2003
Votação: MAIORIA COM 2 VOT VENC
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8204/02
Data: 12-12-2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1  
Meio Processual: REVISTA.  
Sumário : O direito de regresso do segurador contra o responsável civil que não esteja legalmente habilitado a conduzir, previsto na alínea c) do artigo 19º, do Decreto-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, não depende da prova de que essa falta de habilitação tenha sido a causa do acidente .

*

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 06A2774  
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
DIREITO DE REGRESSO  
Nº do Documento: SJ200610240027746
Data do Acordão: 24-10-2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1  
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.  
Sumário : 1 - Não impede o direito de regresso da seguradora contra o responsável civil que não esteja legalmente habilitado para conduzir o facto de este ter sido absolvido no processo crime com fundamento em erro sobre a ilicitude, nos termos do art.º 17º, nº 1, do Código Penal.
2 - Nesse caso, o direito de regresso da seguradora não depende da prova de que a falta de habilitação para conduzir tenha sido a causa do acidente

*
Se o manobrador da máquina que causou os danos na outra viatura, não se encontrava legalmente habilitado a conduzi-la então incorreu em infracção ao disposto no art.º 3.º da Lei 2/98 de 3/1 (ressalvada na revogação pelo art.º 22/b do DL 44/2005, de 23/02 que aprovou o novo Código da Estrada que entrou em vigor em 24 de Março de 2005), infracção criminal essa punida, então Junho de 2005 com a pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.
Diz-se na sentença que no momento em que se dão os danos ninguém se encontrava a conduzir a máquina retro escavadora, como resulta provado, e que por essa razão o manobrador também não a conduzia, tendo-a estacionado algum tempo antes e que isso resulta dos pontos de facto 8, 9, 10.
Estatui o art.º 109/2 do Código da Estrada que “Máquina industrial é o veículo com motor de propulsão dois ou mais eixos, destinado à execução de obras ou trabalhos industriais que só eventualmente transita na via pública, sendo pesado ou ligeiro, consoante o seu peso exceda ou não 3500Kgrs
O veículo seguro uma retro escavadora de marca Catterpillar de uso particular destina-se à actividade de construção civil e obras públicas como bem se diz na apólice de fls. 9.
Este tipo de viaturas destinado à actividade industrial de construção e obras públicas só eventualmente, isto é em caso de necessidade é que transita nas vias públicas e as vias públicas são as vias de comunicação terrestre afectas ao domínio público (art.º 1/v do Código da Estrada).
Por outro lado, é proibido o estacionamento de máquinas industriais salvo nos parques de estacionamento especialmente destinados a esse efeito (art.º 50/1/g do CEst).
Ora a viatura dos autos foi estacionada pelo manobrador, o mencionado D... no cimo da Rua ... que é uma via inclinada (pontos 8 e 14) em manifesta contravenção àquelas disposições do Código da Estrada que também se destinam à prevenção de colisão desse tipo de veículos com aqueles que estão autorizados a circular e a estacionar nas vias públicas.
A última pessoa que manobrou a máquina industrial foi o mencionado D... que a conduziu e estacionou em contravenção às disposições do Código da Estrada. A manobra de estacionamento integra-se nos actos de condução de um veículo e se ela é realizada em contravenção às regras estradais que se presume culposa.
A circunstância de ter decorrido certo lapso temporal entre o acto do estacionamento e a posterior movimentação desgovernada e sem condutor daquela máquina industrial não afasta a nosso ver, a responsabilidade do seu último condutor, apesar de no momento em que se dá a colisão ele não se encontrar a manobrar a máquina. E o facto de o Autor não ter logrado fazer a prova de que o manobrador tenha accionado os mecanismos de travagem não constitui presunção de que o manobrador tenha realizado todos os procedimentos necessários e adequados ao estacionamento daquela viatura que, repete-se, não é um veículo ligeiro, antes uma máquina industrial cuja condução exige conhecimentos especiais, muito diferentes das de um simples veículo ligeiro de passageiros. Sendo aquela máquina industrial conduzida por alguém que não possui habilitação legal para o fazer, é de presumir a impreparação do mesmo para tal actividade, impreparação essa que se denota desde logo na prática daquelas infracções decorrentes de um estacionamento em contravenção ao Código da Estrada como acima se disse. Incumbia à ré alegar e demonstrar que o acidente é imputável ao lesado a terceiro ou força maior estranha ao funcionamento da máquina industrial, o que não ocorre.
Tudo para concluir que a Autora alegou e provou os factos necessários e suficientes à procedência da sua acção de regresso contra o manobrador. Assim a herdeira legal do manobrador, ora Ré, é responsável nos limites do património herdado daquele, pelos comprovados danos de €3.675,01 e 390,33, ou seja por €4.065,34, acrescida de juros de mora à taxa supletiva comercial a contra da citação da Ré.
Deverá a chamada J..., LDA ser responsabilizada solidariamente pelo risco nos termos do art.º 325 e ss, 503/1 e 500 do CCiv, considerando a relação de comissão entre ela e o mencionado manobrador e cujos contornos ficam caracterizados?
Foram esses os pressupostos do chamamento da J..., como se vê de fls. 47; a Autora notificada a pronunciar-se nada disse e por despacho de 11/10/07 decidiu-se: “Por concordar com os argumentos aduzidos na contestação em sede de incidente de intervenção de terceiro, defiro ao requerido e em conformidade, admito o chamamento a título principal da Sociedade “J..., Lda” identificada na contestação.”
A chamada entre o mais veio impugnar factos da p.i. alegar que desconhecia a inabilitação legal do manobrador para conduzir matéria esta última levada aos art.ºs 17 e 18 da Base Instrutória e que quedou improvada.
A circunstância de ter sido admitido o incidente, não faz caso julgado quanto à responsabilidade do chamado, já que os pressupostos da sua responsabilidade devem ser aferidos após a produção da prova e em sede de sentença final como sucedeu no caso em apreço.
Neste tipo de acções só pode haver um réu, qual seja o condutor do veículo causador dos danos. Se, por despacho transitado em julgado, for alargada subjectivamente a instância pelo lado passivo, fica o Tribunal obrigado pelo caso julgado formal a manter na instância todos os sujeitos passivos, mas aquele despacho de admissão não faz caso julgado material quanto à responsabilização. E a responsabilização nesta acção de regresso tem a ver com a condução daquela máquina industrial sem habilitação legal e não também a responsabilização daquele que tem a direcção efectiva do veículo nos termos das disposições legais dos art.ºs 500 e 503/1 do CCiv. E isto na medida em que a Seguradora do veículo causador do acidente ao pagar ao lesado cumpre uma obrigação própria que, para ela, resulta da celebração com o proprietário ou locador a viatura de um contrato de seguro automóvel, para ela se transferindo a responsabilidade. E se bem que a responsabilidade perante o lesado do proprietário do veículo causador do acidente e da seguradora seja solidária, o que o art.º 19 indicado prevê não é o típico direito de regresso entre devedores solidários antes uma acção de regresso do devedor contra uma certa pessoa envolvida na produção do acidente e apenas por essa razão.
Neste sentido veja-se o seguinte aresto do STJ disponível no sítio www.dgsi.pt:
Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 07B3544  
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MENOR
CAPACIDADE
INIMPUTABILIDADE
DIREITO DE REGRESSO
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CULPA DA VÍTIMA
CAPACETE DE PROTECÇÃO  
Nº do Documento: SJ200711080035447
Data do Acordão: 08-11-2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1  
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARICLAMENTE. 
Sumário
(…)
. O direito de regresso só existe nas situações taxativas aludidas no citado art. 19º do Dec-Lei Lei 522/85, de 31 Dezembro e, no caso concreto, o reembolso da quantia satisfeita apenas do condutor porque não legalmente habilitado a conduzir podia ser reclamado. Este direito de regresso já não contempla o proprietário do veículo causador do acidente.
Compreende-se esta solução legislativa porquanto se pretende penalizar, responsabilizando-o civilmente, quem, em violação dos comandos legais, conduz veículos automóveis sem para tal estar habilitado. E nestas condições a seguradora não deve suportar o ressarcimento dos danos causados por esse condutor.
(…)
. se ao réu pode ser exigida a totalidade da indemnização
Para a hipótese de ser responsabilizado pelo ressarcimento dos danos decorrentes do acidente, pretende o recorrente ver partilhada essa responsabilidade com o proprietário do motociclo.
É que, enquanto proprietário desse veículo, sustenta ele, não perdeu a sua direcção efectiva, sendo, por isso, responsável solidariamente com o condutor pela satisfação dessa indemnização.
Através da presente acção, veio a seguradora exercer o seu direito de regresso ao abrigo do disposto na al. c) do art. 19º do Dec-Lei 522/85, de 31 Dezembro.
Reconhecido o direito de indemnização e satisfeito o seu pagamento, a seguradora tem direito a ser reembolsada do montante pago se o condutor responsável pelo acidente não estiver legalmente habilitado a conduzir e provado que seja o nexo de causalidade entre a condução desse condutor e o acidente.
A seguradora quando satisfaz esta indemnização está a cumprir uma obrigação própria, obrigação decorrente do contrato de seguro celebrado com o proprietário do veículo causador do acidente e porque o condutor se constituiu ele próprio nessa obrigação.
Mas este direito de regresso só existe nas situações taxativas aludidas no citado art. 19º e, no caso concreto, o reembolso da quantia satisfeita apenas do condutor porque não legalmente habilitado a conduzir podia ser reclamado. Este direito de regresso já não contempla o proprietário do veículo causador do acidente.(…)
*
Tal solução nem de perto nem de longe prejudica o direito de regresso da Ré (art.ºs 518 e 524 do CCiv) em razão da natureza solidária da obrigação de indemnizar o lesado (art.º 497/1 do CCiv), do proprietário comitente e do condutor/comissário.
IV- DECISÃO
Pelo exposto acordam os juízes em julgar a apelação parcialmente procedente, revogar a sentença recorrida, julgar a acção procedente por provada e condenar a Ré B... a pagar à Autora a quantia de € 4.065,34 (quatro mil e sessenta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a sua citação em 6/12/06 (cfr fls. 43); mais acordam, pelas razões referida em III, em absolver do pedido a chamada J... Lda.
Custas pela Autora e Ré B... de ¼ e ¾ respectivamente, em razão do decaimento parcial da Autora quanto ao número de responsáveis e decaimento total da Ré B... (art.º 446 n.ºs 1 e 2 do CCiv).
Lxa., 1/10/2009
João Miguel Mourão Vaz Gomes
Jorge Manuel Leitão Leal
Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro


[1] A este diploma pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem.