FURTO QUALIFICADO
DEPÓSITO BANCÁRIO
CONTA BANCÁRIA
CONTA SOLIDÁRIA
Sumário

I - O princípio in dubio pro reo pressupõe a verificação de dúvida.

II - Uma coisa é o direito de crédito de que é titular o depositante numa conta solidária, presumindo-se, por força do disposto no artº 516º, do C. Civil, que os credores solidários comparticipam em partes iguais no crédito. Outra coisa, bem distinta, é o direito de propriedade das quantias depositadas na referida conta.

III- A presunção estabelecida no artº 516º, do C. Civil de que os credores solidários comparticipam em montantes iguais no crédito é uma presunção ilidível, bem podendo acontecer que sejam distintos os montantes dos respectivos créditos ou até exclusivo de um só dos titulares da conta. Se, designadamente, se provar que o dinheiro do depósito tem origem na propriedade exclusiva de um dos titulares da conta, ilidida fica, necessariamente, a presunção de comparticipação igualitária no crédito consubstanciado no depósito, estabelecida no referido normativo legal.

IV - No caso, não se verifica nenhuma entrega à arguida da coisa (leia-se, quantia monetária) por título não translativo da propriedade, elemento este indispensável à integração do crime de abuso de confiança tipificado no artº 205º, do C. Penal e que, de resto, constitui simultaneamente elemento que o diferencia do crime de furto.
De acordo com os factos apurados, a arguida surge como titular, solidariamente com o assistente, da conta em referência, no sistema informático do banco por virtude de fusão com outra conta do assistente operada depois da entrada do Banco…no Grupo….

V – Tendo-se a arguida apropriado de quantia monetária que não lhe pertencia, e bem sabia não lhe pertencer, fazendo-o contra a vontade do seu legítimo dono, nenhuma censura merece a qualificação jurídica dos factos como integradores do crime de furto afirmada na sentença recorrida.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No processo comum singular n.º 1834/06.8TDLSB.L1 do 3.º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença proferida em 4 de Março de 2009, foi a arguida A…, melhor identificada nos autos, condenada
a) pela prática, como autora material, de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. a), com referência ao art. 202.º, al. a), todos do CP 95, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de E 8,00, perfazendo o montante global de E 1.440,00, a que correspondem 120 dias de prisão subsidiária.;
b) a pagar ao assistente, demandante civil a quantia de E 15.0001,50 correspondente à dívida e capital, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa supletiva vigente, computados sobre a dívida de capital, a partir de 8-06-08 e até integral e efectivo pagamento.

2. Inconformada com aquela decisão, a arguida interpôs recurso da mesma, entendendo que a sentença recorrida violou os arts. 342.º/1 e 346.º do CC e ainda os arts. 156.º/1, 515.º, 653.º/2, 668.º/1c) e d) do CPC, pelo que deve ser considerada nula, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1) Desde 1990 a arguida e o assistente foram titulares de uma conta bancária aberta em nome de ambos e da filha da arguida no Banco …..
2) Depois da entrada do Banco… no Grupo …. foi feita uma fusão da conta que ambos possuíam naquele banco e que passaram para uma única conta no actual X… sob o n.º 00000000000 com os mesmos titulares.
3) Fez o assistente prova (segundo o Tribunal a quo) de que todo o dinheiro na referida conta era seu através da junção de um extracto combinado emitido pelo Banco… com data de 31 de Agosto de 2005.
4) Deixou efectivamente a arguida de exercer a sua actividade profissional em 1996 mantendo-se no entanto a referida conta solidária.
5) A transferência efectuada pela arguida para uma outra conta foi perfeitamente normal e legal, tendo inclusivé assinado o respectivo documento de transferência junto do Banco.
6) O assistente teve sempre acesso aos extractos bancários e a todas as outras informações da conta bancária.
7) Verifica-se a existência de um erro grosseiro por parte do Tribunbal a quo na apreciação das provas.
8) O Tribunal oferece a existência de dúvidas e reiteradamente, por causa delas, decide contra a arguida.
9) O Tribunal viola gosseiramente o princípio in dubio pro reo.
10) Torna-se evidente que o dinheiro depositado numa conta solidária é propriedade dos dois titulares.

3. Respondeu o MP, extraindo, por sua vez, as seguintes conclusões:
1) Os factos dados como provados não consubstanciam um crime de furto qualificado, poderiam eventualmente integrar um crime de abuso de confiança.
2) A arguida ao proceder ao levantamento da quantia que existia na conta de que era co-titular com o assistente, e a apurar-se sem sombra de qualquer dúvida que sabia que lhe não pertencia, que nenhum direito sobre ela tinha, - pois que o assistente constituiu com ela aquela conta, porque ambos tinham negócios de compra de ouro -, fazendo-o seu e não o restituindo, incorria, efectivamente, enquanto autora material, na forma consumada, na prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 202º alínea b) e 205.º, n.º 1 e 4 alínea b) do Código Penal e não no crime de furto qualificado de que foi condenada.
3) Mas, o certo é que também não ficou provado sem sombra de qualquer dúvida que a arguida soubesse, no momento do levantamento do capital, que o mesmo não lhe pertencia, pelo que não é possível a sua condenação pelo crime de abuso de confiança.
4) Por outro lado o assistente, dadas as suas funções de gerente, qualidade que lhe dá especial acuidade para a fiscalização e controle do seu património, não nos convenceu com a sua atitude de inércia com laivos de ingenuidade.
5) No entanto, entendendo-se que deveria ter sido a arguida condenada por crime de abuso de confiança ficaríamos perante uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da pronúncia que obrigava, a fim de assegurar de forma cabal as garantias da defesa, no tocante ao exercício do contraditório, ao cumprimento do estatuído no artigo 358.º, n.º 3 do Código Penal, o que não aconteceu.
6) Mas, considera-se no entanto que ficaram dúvidas que não podem vingar em desfavor da arguida.
7) Pelo que imperando o princípio in dubio pro reo faz-se justiça, devendo a arguida ser absolvida.

4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação limitou-se a apor o seu visto, «atenta a posição do M. Público, respondente, na 1ª instância», nada mais acrescentando.

5. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.


II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

2. São duas as questões suscitadas ao recurso: saber se houve erro na apreciação da prova e, na negativa, se os factos apurados suportam, ou não, a condenação pelo crime de furto.

3. Os elementos relevantes para a decisão são os seguintes:

3.1. Teor da sentença recorrida (transcrição das partes relevantes):
Fundamentação de facto.
1. Da instrução e discussão da causa, e com relevo para a respectiva decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1.1. Do despacho de pronúncia e do pedido de indemnização civil:
Em data não apurada, o assistente/demandante e a arguida/demandada abriram uma conta no “Banco…”, figurando como titular da mesma, além deles, a filha da arguida/demandada.
O assistente/demandante é titular da conta no banco “….” com o n.º 00000000000, da sucursal “Alexandre Herculano”, conta essa onde era creditado o seu ordenado e, actualmente, é creditada a sua pensão de reforma.
E que usava e usa para pagamento das suas despesas e outras operações correntes, quer a crédito, quer a débito.
Sendo sua propriedade as quantias nela depositadas.
Em 12 de Agosto de 2005, a referida conta surgia, no sistema informático da mencionada instituição bancária, como sendo titulada, solidariamente, pelo assistente/demandante e pela ora arguida/demandada.
A arguida/demandada inteirou-se dessa circunstância, bem como do saldo da referida conta, em data não apurada.
E, em 12 de Agosto de 2005, a arguida/demandada ordenou a transferência de €15.000,00 (quinze mil euros) da conta n.º 00000000000 para a conta n.º 0000000000, de que é única titular nos citados banco e sucursal.
Sabia a arguida/demandada que a referida quantia lhe não pertencia, antes dela era dono o assistente/demandante.
E que ao ordenar a transferência, nos termos expostos, actuava contra a vontade e em prejuízo do assistente/demandante.
Porém, agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por Lei.
O assistente/demandante suportou €1,50 (um euro, cinquenta cêntimos) relativo ao custo da transferência ordenada pela arguida/demandada.
1.2. Provou-se ainda que (arts. 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, parte final do proémio, do CPPenal):
A arguida/demandada desenvolveu, até ao ano de 1996, uma actividade de compra e venda de peças de ouro, na qual o assistente/demandante, de forma não exactamente apurada, cooperava.
E mantiveram ambos uma relação afectiva, terminada no ano de 2002.
Após os factos descritos em 1.1., a arguida/demandada emitiu e endossou ao assistente/demandante, datando-o de 16 de Janeiro de 2006, um cheque no montante de €15.000,00, com vista a reembolsá-lo da quantia transferida – cf. documento de fls. 9 (cheque), que aqui se dá como reproduzido.
O pagamento de tal cheque foi recusado pelo banco sacado (“…”), com fundamento em falta de provisão – cf. verso do sobredito cheque.
A arguida/demandada enviou ao assistente/demandante um telegrama, a 13 de Janeiro de 2006, pedindo-lhe para retardar a apresentação a pagamento do dito cheque pelo período de 15 dias; e um outro telegrama, a 17 de Janeiro de 2006, no qual referia: “(…) agora não sei se consigo resolver este problema.” – cf. documentos de fls. 43-44, que aqui se dão por reproduzidos.
Também após os factos descritos em 1.1. a arguida/demandada se desvinculou da conta n.º 50118963466, da qual deixou de ser titular.
A arguida/demandada refere ter sido condenada pela prática de crime de burla, em pena de prisão suspensa na sua execução, mas actualmente não se mostra averbada no seu certificado de registo criminal qualquer condenação.
A arguida/demandada aufere uma pensão de reforma no montante de €1.300,00.
Reside em casa arrendada, pagando, de sua parte, a renda mensal de €320,00.
Frequentou o Liceu, em Braga.
2. Da instrução e discussão da causa resultaram não provados os seguintes factos:
2.1. Da acusação e do pedido de indemnização civil (sem prejuízo do exarado em 1. supra):
Em 1990, a solicitação da arguida/demandada, o assistente/demandante, então administrador de uma sociedade financeira, aceitou figurar como titular de uma conta bancária aberta em nome daquela e da filha no “Banco…”, por forma a poder gerir de forma mais eficaz os seus interesses financeiros.
Depois da entrada do “Banco…” no “Grupo …”, foi feita uma fusão das contas que o assistente/demandante tinha naquele banco e que passaram para uma única conta no actual banco “…”, sob o n.º 00000000000.
O assistente/demandante gastou €35,00 com as despesas de devolução do cheque emitido pela arguida/demandada, acima referenciado.
Bem como €1.000,00 em despesas com Advogados.

Fundamentou o tribunal do seguinte modo a convicção adquirida (transcrição):
Motivação da decisão de facto
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto provada e não provada, resultou da análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, analisada de forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º do CPPenal.
Começando pelos factos provados, foram os mesmos confirmados pelo assistente/demandante, de forma serena, coerente e objectiva (merecendo, pois, credibilidade), nomeadamente, os relativos à propriedade das quantias depositadas na conta n.º 00000000000 e aos movimentos nesta efectuados, todos pelo próprio assistente/demandante e por este explicados/justificados em consonância com extracto combinado emitido pelo banco “…” (com data de 31 de Agosto de 2005), constante de fls. 07, examinado em audiência de julgamento (cf., neste documento, em especial, o lançamento a crédito da pensão de reforma sob “credito vencimento grupo”, no montante de €1.869,12, a fls. 07v.º).
Quanto à arguida/demandada, confirmou ter procedido à ordem de transferência para a sua conta particular identificada (primeiro, por solicitação telefónica e depois formalizando-a por escrito, conforme documento de fls. 08, examinado em audiência de julgamento); também confirmou a emissão do cheque a favor do assistente/demandante, com a finalidade de reembolsá-lo da quantia transferida, bem como a autoria dos telegramas nos quais solicitava, além do mais, o retardamento da apresentação do dito cheque a pagamento.
O depoimento da testemunha B… (funcionária do banco “…”) foi de molde a corroborar a natureza solidária, à data, da conta bancária n.º 00000000000, de acordo com a informação constante do sistema informático da instituição; daí que, a pedido da ora arguida/demandada, tenha procedido à transferência monetária em causa sem hesitações, apesar de não se recordar, note-se, de qualquer outro movimento que tivesse sido efectuado pela arguida/demandada em relação a tal conta (na verdade, a própria arguida mencionou ter falado com a testemunha apenas por duas vezes: uma, a primeira, para se inteirar do saldo da conta; outra, para ordenar o movimento bancário).
Os depoimentos das testemunhas C… (irmão da arguida/demandada) e D… tiveram por objecto, essencialmente, a confirmação de uma passada relação afectiva – de intimidade e confiança – entre o assistente/demandante e a arguida/demandada, bem como do envolvimento do primeiro na actividade de compra e venda de ouro desenvolvida pela segunda, embora não soubessem exactamente precisar os respectivos contornos; ademais, a testemunha C… recorda-se que houve uma conta “conjunta” no “Banco…”, desconhecendo, contudo, quem a movimentava; a testemunha D… afirmou desconhecer quaisquer factos relativos a contas bancárias, tendo aludido, de forma bastante vaga, a que a arguida/demandada se terá queixado, aquando da cessação das relações com o assistente/demandante, a “contas por fazer”.
Os depoimentos destas testemunhas confirmaram, neste particular, as declarações prestadas pela arguida/demandada, segundo a qual o assistente/demandante era uma espécie de “sócio” (sic) na sua actividade de compra e venda de peças de ouro, tratando, essencialmente, das contas e dos “dinheiros” (sic) emergentes dessa actividade.
Todas as citadas testemunhas depuseram de forma objectiva e coerente, sendo, por isso, merecedoras da credibilidade do Tribunal.
Quanto à propriedade da quantia transferida, que é, pode dizer-se, o ponto fulcral em apreciação, anote-se que nenhuma das testemunhas demonstrou conhecimento, directo ou indirecto, sobre tal facto. Já se disse que o assistente/demandante sustentou tratar-se de quantia sua e, bem assim, serem de sua autoria todos os movimentos efectuados no âmbito da conta n.º 00000000000 (aspecto corroborado pelo documento de fls. 07, igualmente também já referido, justificando aquele todos os preditos movimentos).
Ora, a arguida/demandada, pelo contrário, afirmou ter a convicção que quantia em questão era sua; todavia, no entender do Tribunal, tal afirmação foi, meramente, voluntarista, não sendo merecedora de credibilidade, nem possuindo qualquer suporte probatório. Com efeito, a própria arguida/demandada admitiu que as relações “comerciais” entre ela e o assistente/demandante – cujos contornos, relembre-se, não se apuraram com exactidão – terminaram em 1996, ou seja, quase dez anos antes da ocorrência dos factos em apreço, sendo de todo incompreensível que só passado todo esse tempo a arguida/demandada tenha resolvido apropriar-se de uma quantia que considerava sua (mencione-se que o próprio relacionamento afectivo entre os intervenientes terminara em 2002); admitiu, também, nunca ter recebido qualquer extracto da conta, nem ter tido cheques ou cartões de débito ou crédito associados à mesma conta (n.º 00000000000); referiu, imprecisamente, ter talvez efectuado um ou dois levantamentos de numerário através de cheques avulsos (não havendo qualquer outro meio de prova que sustente tal afirmação, seja em relação aos levantamentos em si, seja no tocante à conta bancária a que se reportariam). E, além disso, a arguida/demandada admitiu ter emitido o assinalado cheque para reembolso do assistente/demandante, justificando, agora, essa emissão pelo facto de ter sido pressionada para o efeito pelo Advogado daquele, o que se crê não ter plausibilidade (cf. também os telegramas expedidos solicitando o retardamento da não apresentação a pagamento do cheque em causa).
Ou seja, a afirmação da arguida/demandada da convicção de que a quantia era sua não surge sustentada por qualquer meio de prova e é contraditada pelo seu próprio comportamento posterior (emissão do cheque e desvinculação da conta bancária em causa), conduzindo, no entender do Tribunal, à conclusão de que a quantia, pertencia, de facto, ao assistente/demandante – tal como por este afirmado.
Resta salientar que a factualidade concernente à situação social e económica da arguida/demandada apurou-se com recurso às suas declarações e ao depoimento da testemunha C…, seu irmão; a ausência de antecedentes criminais registados resultou do exame do certificado de registo criminal junto aos presentes autos, examinado em audiência de julgamento.
Quanto aos factos não provados, a convicção do Tribunal fundamentou-se na ausência de prova bastante dos mesmos, nomeadamente a nível testemunhal ou documental, designadamente, a alegada fusão das contas bancárias. Poderá, eventualmente, essa fusão ter ocorrido, mas crê o Tribunal carecer a mesma de substrato documental não apresentado.

Finalmente, foi a seguinte a fundamentação expendida no respeitante à subsunção jurídico-penal dos factos apurados:
Fundamentação de Direito: Responsabilidade Penal.
1. A arguida/demandada vem acusada da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º e 204.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a) do CPenal95.
O art. 203.º, n.º 1, do CPenal dispõe: “Quem, com ilegítima intenção para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido neste tipo de crime é a propriedade entendida em sentido muito lato como um “poder de facto sobre a coisa, tutelando-se, dessa maneira, a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa”. Não é, pois, essencial que se esteja rigorosamente perante o direito de propriedade na acepção civilística do termo.
No art. 204.º do CPenal95 prevêem-se diversas circunstâncias qualificativas agravantes. Uma delas consiste no “valor elevado” da coisa objecto do furto, reportado ao momento da prática do facto nos termos do art. 204.º, n.º 1, al. a), por referência ao art. 202.º, al. a), todos do CPenal95, ou seja, aquele que exceda 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, correspondendo a €4.450,00 (50 x €89,00) no ano de 2005.
2. A conduta típica, no crime de furto, é a “subtracção de coisa alheia”, que consiste na quebra do domínio fáctico, não normativo, sobre uma coisa, com a subsequente passagem da coisa da esfera de domínio do detentor para a nova esfera de domínio, contra a vontade daquele. Tal subtracção inclui não apenas a transferência física para o domínio fáctico de outrem, mas também a transferência simbólica para o domínio fáctico de outrem, uma vez que pode não haver deslocação, nem apreensão física da coisa.
Por outro lado, a nova esfera de domínio do agente do crime não tem de ser definitiva, no sentido de permitir um total aproveitamento das faculdades da coisa, podendo ser meramente precária; porém, não se esgota com a mera apreensão material da coisa.
O objecto (material e jurídico) do crime é uma coisa móvel, no sentido corrente ou comum do termo (que pode não coincidir completamente com a definição civilística constante do art.º 202.º do CCivil); coisa móvel, para efeitos penais, é toda a coisa, corpórea ou incorpórea, que tem existência física autónoma quantificável e pode ser utilizada ou fruída por uma pessoa. À coisa, enquanto objecto do crime, é inerente um valor, consistente na “(…) mera utilidade para o seu dono (valor de uso) e o valor simplesmente moral (valor de afeição) ” só não podendo constituir “objecto de um crime de furto aquelas coisa de valor juridicamente irrelevante, como por exemplo um palito, uma flor vulgar, etc.”.
Além de móvel, a coisa subtraída deve ser alheia, isto é, não pertencer ao agente do crime, ou não ter este nenhuma pretensão jurídico-material à sua titularidade. Nesta vertente, é de acordo com as regras do Direito Civil que se há-de estabelecer a natureza alheia da coisa em relação ao agente do crime (elemento normativo do tipo, cujo conhecimento, para efeitos de dolo – cf. infra – apenas exige uma apreensão de sentido social ou “valoração paralela na esfera do leigo”).
3. O elemento subjectivo do crime é constituído pelo dolo, em qualquer das suas formas descriminadas no art. 15.º do CPenal95. O dolo, grosso modo, é constituído por um elemento intelectual – conhecimento de um certo estado de coisas – e por um elemento volitivo e elemento volitivo – a vontade de obtenção de um certo resultado, tendo em conta aquele conhecimento.
No crime de furto, ao dolo acresce, ainda, uma “ilegítima intenção de apropriação”, qualificável como elemento subjectivo da ilicitude. Trata-se, portanto, de um elemento pertencente ao próprio tipo-de-ilícito, i.e., ao tipo subjectivo do ilícito, estreitamente ligado ao dolo do tipo.
4. No caso vertente, carecem de algum esclarecimento complementar dois aspectos, relativos ao objecto do crime.
4.1. O primeiro tem a ver com a coisa dele objecto. Perante o que fica dito, crê-se não restarem quaisquer dúvidas quanto à moeda escritural poder ser objecto de subtracção (e apropriação), em sentido jurídico-penal. Actualmente existem, grosso modo, duas formas de moeda – ou meios de pagamento – disponíveis: a moeda em espécie e a moeda escritural. A primeira e constituída por um meio ou suporte físico – notas ou moedas – dotadas de valor fiduciário; a segunda é constituída por um pelos valores das contas de depósitos registadas na contabilidade dos bancos. As duas formas monetárias são equivalentes em valor entre elas existem, fundamentalmente, duas operações de conversão: os depósitos, pelos quais se converte moeda em espécie em moeda escritural; e os levantamentos, por que se processa a operação inversa.
Por conseguinte, a moeda escritural deve, de acordo com os critérios acima consignados, ser considerada como coisa móvel para efeitos dos arts. 203.º e 204.º do CPenal95, bem como para efeitos de outros crimes de natureza patrimonial. Aliás, registe-se, que ela será, por excelência objecto do crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punível pelo art. 221.º, o qual – não obstante a sua epígrafe – mais não é do que uma forma especial do crime de furto (verificando-se, entre as respectivas incriminações, uma relação de subsidiariedade ou especialidade no caso concreto), preconizando, mesmo, alguns o seu futuro desaparecimento dada a cobertura que as acções típicas nele previstas já têm em conformidade com o art. 203.º do CPenal95.
A talho de foice, refira-se, justamente, que o caso sub judice não se enquadra no âmbito do crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punível pelo art. 221.º do CPenal95, porque, além do mais, não se verifica a acção típica daquele ilícito, nalguma das suas prevenidas modalidades: interferência no resultado de tratamento de dados ou estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados; utilização de dados sem autorização; ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento.
4.2. Esta afirmação conduz, precisamente, ao segundo aspecto a analisar, respeitante ao carácter “alheio” da coisa objecto do crime (a quantia de €15.000, 00 em moeda escritural). Com efeito, demonstrou-se que a arguida/demandada possuía legitimidade para movimentar a conta em apreço, dada a natureza solidária desta, pelos menos de acordo com os dados constantes do sistema informático da instituição bancária os quais, para este efeito, têm de considera-se como válidos, na ausência de qualquer outra prova em contrário, como se viu.
No douto despacho de pronúncia alude-se a dois arestos que, aparentemente, decidiram diversamente. Assim, citaram-se
— O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Fevereiro de 1999, segundo o qual (...) O marido que levanta de uma conta bancária, solidária, constituída por ele e pela sua mulher, dinheiro pertença do casal, fazendo-o contra a vontade do cônjuge, não comete nem o crime de furto nem o de abuso de confiança, pois tal dinheiro não deve ser considerado coisa alheia (…).”
E opostamente
— O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03 de Outubro de 2001, defendendo que “A situação em que o co-titular de uma conta bancária, não proprietário das respectivas importâncias, que, sem autorização do co-titular proprietário, levanta o seu montante e o dissipa em proveito próprio, pode ser teoricamente enquadrada nas figuras criminais do abuso de confiança, da burla, da infidelidade ou do furto.”
Contudo, é contradição aparente, e não real.
Na verdade, dentro da categoria das contas bancárias plurais ou colectivas, ou seja, das contas de depósito bancário com mais de um titular são duas as modalidades ou variantes se distinguem: há, por um lado, as contas plurais (ou colectivas) conjuntas e, por outro, as contas plurais (ou colectivas) solidárias. Nestas, qualquer dos credores (depositantes ou titulares da conta), apesar da divisibilidade da prestação, tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e a prestação assim efectuada libera o devedor (o banco depositário) para com todos eles (art. 512.° do CCivil). Ou seja, no âmbito das chamadas relações externas, a satisfação do direito de um dos credores provoca a extinção da obrigação do devedor relativamente aos restantes credores (cf. art. 532.° do CCivil).
Já no domínio das relações internas, isto é, relativamente a participação dos credores no crédito, muito embora de deva presumir, conforme o disposto no art. 516.º do CCivil, que os credores solidários comparticipam no crédito em montantes iguais, tal presunção é elidível (iuris tantum) por força do mesmo preceito, podendo concluir-se que as respectivas partes são diferentes ou até mesmo que só um dos credores deve beneficiar do crédito. Logo, e por aplicação do mencionado regime ao contrato de deposito bancário, verifica-se que, apesar de qualquer dos depositantes poder exigir do banco a restituição integral do dinheiro depositado, o certo é que na esfera patrimonial do depositante que procede ao levantamento só se insere um direito real sobre o numerário se, efectivamente, lhe couber qualquer parte no saldo de deposito, e só dentro dos limites dessa parte, podendo ate dar--se o caso de não lhe caber parte alguma no montante levantado. Donde se conclui que são perfeitamente distintos o direito de crédito de que é titular cada um dos depositantes solidários e que se traduz num poder de mobilização do saldo; e o direito real que recai sobre o dinheiro, de que podem apenas algum ou alguns dos depositantes ser titulares.
Em conclusão, no regime de solidariedade activa (aplicável aos depósitos bancários solidários), presume-se, enquanto se não fizer prova noutro sentido, que cada um dos depositantes é titular de metade da conta; mas a presunção pode ser elidida (art. 516.º do CCivil), sendo o meio mais directo e frontal de a exclusão do seu pressuposto, ou seja, de o depósito não foi feito com dinheiro, em partes iguais, dos titulares da conta independentemente da prova do motivo do regime da conta. Na verdade, a abertura da conta bancária não e adequada, só por si, a alterar a relação anteriormente existente entre os seus titulares e a propriedade do dinheiro, o qual deve ter como destinatário – rebus sic stantibus – quem era o seu dono na altura do depósito.
Pode, por isso, asseverar-se que os arestos inicialmente citados não se contradizem, pois o primeiro refere-se a uma situação de comunhão em mão própria [sobre a qual, enquanto universalidade, cada um dos cônjuges tem um direito de (com)propriedade], enquanto o segundo se refere, de facto, a uma situação de solidariedade activa, tal como acabada de retratar.
5. Realizando a subsunção dos factos provados à norma incriminadora, após a análise jurídica indispensável, resulta, da matéria de facto provada, que a arguida/demandada subtraiu, mediante transferência bancária por si ordenada, coisa (moeda escritural no valor de €15.000,00) alheia, porquanto, não obstante se estar perante conta solidária, ficou demonstrado que o dinheiro depositado era exclusiva propriedade do assistente/demandante (assim se elidindo a presunção decorrente do art. 516.º do CCivil, caso se entendesse a mesma aplicável em sede penal). A arguida/demandada, em suma, apropriou-se de tal quantia e utilizou-a em proveito próprio, da forma que lhe aprouve, não obstante saber que a mesma lhe não pertencia e que agia contra a vontade do respectivo dono, ora assistente/demandante (ilegítima intenção de apropriação), actuando de forma livre, deliberada e consciente, numa palavra, dolosa (art. 15.º, n.º 1, do CPenal95).
Cometeu, pois, o ilícito que lhe vinha imputado, cumprindo proceder à determinação da pena aplicável.

3.2 Recordada a sentença proferida, nas partes relevantes para a decisão do presente recurso, cumpre agora apreciar e decidir:

I) Pretende a arguida que houve «erro grosseiro por parte do Tribunal a quo na apreciação das provas» e que «o Tribunal oferece a existência de dúvidas e reiteradamente, por causa delas, decide contra a arguida», violando «grosseiramente o princípio in dubio pro reo».

No caso sob apreciação este Tribunal pode conhecer de facto, em conformidade com o preceituado no art. 428°, do CPP, uma vez que houve documentação da prova produzida, oralmente, na audiência em 1a Instância.
Porém, em conformidade com o disposto na al. b), do art. 431°, do CPP, e sem prejuízo do disposto no art. 410°, do mesmo Código, a decisão sobre a matéria de facto só pode ser modificada, havendo documentação da prova, se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412° n° 3.
Recorde-se que, para esse efeito, mesmo que não seja requerida renovação da prova, como no caso sub judice, haverão de ser cumpridas as regras das alíneas a) e b) do art. 412°, n° 3 do Código de Processo Penal, de acordo com as quais quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente deve especificar quer «os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados» quer «as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida».
No caso sub judice, a recorrente não deu cumprimento às exigências contidas no n.º 3 do art. 412.º do CPP. Em primeiro lugar, não concretizou, nas conclusões que extraiu da sua motivação, os factos que entende deveriam ter sido dados como provados, bem como os que o não deveriam ter sido, isto é, não especificou «os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados», como exigido na alínea a) da citada disposição legal. Acresce que além de não haver dado cumprimento às especificações a que se refere nº 3/a) e b) do art. 412.º do CPP nas respectivas conclusões, a recorrente não o fez, tão pouco, devidamente ao longo de toda a motivação do recurso, razão pela qual não houve, nem podia haver, lugar ao convite para aperfeiçoamento, uma vez que tal se traduziria na ultrapassagem do limite que o texto da motivação consiste, o que se encontra vedado pela lei, designadamente no art. 417.º/4 do CPP.
Com efeito, ao longo da exposição da sua motivação, o recorrente começa por reproduzir os factos dados como assentes na sentença proferida, contrapondo de seguida a sua leitura dos acontecimentos e o enquadramento jurídico que dos mesmos faz.
Como é sabido, o recurso da matéria de facto não configura um novo julgamento. Tal como vem entendendo pacificamente o Supremo Tribunal de Justiça, «o recurso de matéria de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» (cfr. Ac. STJ de 9/3/2006 in www. dgsi.pt).
Não cabe, com efeito, ao recorrente substituir a sua convicção à convicção do julgador. Cabe-lhe, isso sim, individualizar os concretos factos que, em seu entender, não deviam ter sido considerados provados e aqueles que, pelo contrário, o deveriam ter sido. Exigência que não se mostra cumprida nem nas conclusões, nem devidamente ao longo de toda a motivação, onde se insurge, afinal, genericamente contra a subsunção jurídica dos factos apurados que assumida foi no tribunal de primeira instância.
Para além da individualização dos concretos factos que considera mal julgados, na impugnação da matéria de facto, por via de recurso, a lei exige ainda que o recorrente explique as razões para cada uma das apontadas divergências, como decorre da al. b) do citado n.º 3 do art. 412.º do CPP.
A especificação das «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida» (art. 412.º/3b) só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico da prova que impõe a pretendida alteração. E, como sublinha Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCP, p. 1135, «o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação» sendo que «o grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado». Finalmente, importa ainda lembrar, no caso de as provas terem sido gravadas, como é o caso dos presentes autos, da motivação tem de constar a referência ao consignado em acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação – art. 412°, n° 4 do C.P.P.
Lida a motivação do recurso apresentado pela recorrente, verifica-se que a mesma se apresenta como totalmente omissa quanto a este aspecto.
Diferentemente, a sentença recorrida indica pormenorizada e detalhadamente as provas que serviram como fundamentação da convicção do tribunal, fazendo um juízo crítico das mesmas que não se mostra, pois, impugnado pela recorrente.
A clareza do raciocínio lógico seguido pelo julgador na formação da sua convicção, em nada sai abalada pela motivação do recurso apresentada pela recorrente.
Perante o exposto, forçoso será concluir que a motivação apresentada pela recorrente se revela manifestamente insuficiente para impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, afigurando-se, pelo contrário, que a convicção do juiz a quo se apoia nos elementos probatórios resultantes do julgamento, evidenciando um raciocínio lógico na respectiva formação. Inquestionável é que a sentença sob apreciação permite a completa reconstituição do procedimento lógico que presidiu à solução encontrada e que determinou que fossem dados uns factos como provados e outros como não provados.
Nem se diga, como pretende a recorrente, que o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo, já que este pressupõe a verificação de dúvida e da leitura da sentença recorrida não se evidencia a subsistência de qualquer dúvida na convicção afirmada pelo Tribunal. Se a recorrente, embora sem o esclarecer devidamente na sua motivação de recurso, pretende referir-se ao facto de não ter admitido o conhecimento de que a quantia que transferiu não lhe pertencia, antes afirmando em julgamento a sua convicção de que a quantia em questão era sua, será conveniente recordar-ser que, a este propósito, a sentença recorrida se espraia num lúcido e exaustivo exame crítico destas declarações, contrapondo-lhes a demais prova recolhida, onde se inclui a emissão de cheque (sem provisão) por parte da arguida ao ofendido para o reembolsar da quantia transferia, tempos depois da referida transferência, bem como a subsequente desviunculação da titularidade da conta. Estes elementos, a par de todo o historial de movimentação da conta do ofendido, onde era depositado o vencimento deste e subsequentemente a respectiva pensão de reforma, e que não regista documentalmente nenhuma movimentação por parte da arguida, permitiram ao Tribunal formar uma convicção firme de que a arguida não podia desconhecer a propriedade alheia das quantias tituladas na conta que movimentou. Diferentemente, pois, do pretendido pela arguida na motivação de recurso, o Tribunal não teve dúvidas, mas sim a certeza da sua consicência e conhecimento de estar a movimentar dinheiro alheio, sublinhando, finalmente ainda na motivação da convicção, que as relações comerciais entre arguida e ofendida cessaram em 1996, e a operação informática referente à conta bancária que ambos haviam aberto há anos e outra conta do ofendido que levou à solidariedade na titularidade desta última com a arguida só se deu em 2005. Concluiu, pois, legítima e fundamente o Tribunal a quo, pela falta de credibilidade da referida negação de conhecimento de não ser seu o quantitativo transferido.
Em suma, pretendendo embora por em causa o acerto da factualidade dada como provada na sentença recorrida, a recorrente limita-se, afinal a discordar da valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, sem, todavia, apresentar argumentos válidos ou suficientes para infirmar a convicção afirmada pelo julgador.
O mesmo se diga das lacónicas alusões feitas à matéria de facto na resposta apresentada ao recurso pelo MP, em 1ª instância, designadamente quando ali se refere, por exemplo, que não se fez prova «sem sombra de qualquer dúvida que a arguida soubesse, no momento do levantamento do capital, que o mesmo não lhe pertencia». Ainda que feitas num contexto de uma subsunção jurídica dos factos no crime de abuso de confiança, e não do crime de furto, estas referências apresentam-se como manifestamente insuficientes, aos olhos da lei, para impugnar a matéria de facto dada como assente em primeira instância.
E, assim sendo, impossível será ao tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto (al. b), do art. 431°, do CPP, como vinha sendo entendido já pela jurisprudência dos nossos tribunais mesmo antes das últimas alterações ao CPP introduzidas pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto que reforçaram as exigências da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. Acolhendo a constitucionalidade deste entendimento, cfr, Ac. do Tribunal Constitucional n° 140/2004, de 10.03.04, in DR, II Série, de 17.04.04, aliás na senda do que tem sido o entendimento também do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de afirmar que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação (cfr, entre outros, os Acs do STJ de 4-12-03, proc. n.º 3253/03-5 e de 15-12-05, proc. n.º 2951/05-5, do mesmo Relator).
Refira-se, finalmente, que da análise dos autos não se evidencia a verificação de nenhum dos vícios referentes à matéria de facto de conhecimento oficioso previstos no art. 410./2 do CPP.
Termos em que improcede a impugnação da matéria de facto suscitada no presente recurso.

2. Pretende ainda a recorrente que não pode ser condenada pela prática do crime de furto uma vez que a transferência de verba que fez de uma conta titulada por si e o assistente, em regime de solidariedade, para uma outra conta bancária, da sua exclusiva titularidade, se apresentou como perfeitamente normal, sendo, para si, evidente que o dinheiro depositado numa conta solidária é propriedade dos dois titulares.
Não tem, todavia, razão.
Na verdade, uma coisa é o direito de crédito de que é titular o depositante numa conta solidária, presumindo-se, por força do disposto no art. 516.º do CC, que os credores solidários comparticipam em partes iguais no crédito. Outra coisa, bem distinta, é o direito de propriedade das quantias depositadas na referida conta. Na verdade, a presunção estabelecida no citado normativo legal de que os credores solidários comparticipam em montantes iguais no crédito é uma presunção ilidível, bem podendo acontecer que sejam distintos os montantes dos respectivos créditos ou até exclusivo de um só dos titulares da conta. Se, designadamente, se provar que o dinheiro do depósito tem origem na propriedade exclusiva de um dos titulares da conta, ilidida fica, necessariamente, a presunção de comparticipação igualitária no crédito consubstanciado no depósito, estabelecida no referido art. 516.º
Não pode, assim, deixar de se concordar inteiramente com o enquadramento jurídico-penal dos factos registado na sentença recorrida, nada havendo a acrescentar em sua sustentação. Com efeito, demonstrado ficou, e a recorrente nem sequer o contesta (refugiando-se, em sede de facto na invocação da sua ignorância, já acima afastada e, em sede de direito, na mera invocação das características de uma conta solidária), que o dinheiro depositado na conta (onde era depositado o vencimento do assistente e mais tarde a sua pensão de reforma) constituía exclusiva propriedade do assistente. E sendo assim, manifesto é que ao transferir para uma conta da sua exclusiva titularidade determinada quantia depositada na conta que titulava em conjunto com o assistente (no regime de solidariedade), fazendo-o contra a vontade do outro titular, agiu em prejuízo deste, apropriando-se de coisa (neste caso quantia monetária) que não lhe pertencia.
Não colhe a argumentação expendida pelo MP na resposta apresentada ao recurso em primeira instância, no sentido de, a serem verdadeiros, os factos deverem antes ser subsumidos no crime de abuso de confiança, e, nessa medida se impor a absolvição da arguida, por verificação de alteração da qualificação jurídica dos factos relativamente à pronúncia, sem que fosse dada à arguida a devida oportunidade de defesa, nos termos estabelecidos no art. 358.º/3 do CPP. Não deixando de se registar surpresa pelo facto de não ser possível encontrar nenhum eco dessa posição sustentada pelo MP na acta elaborada da audiência de julgamento, certo é que, no caso, não se verifica nenhuma entrega à arguida da coisa (leia-se, quantia monetária) por título não translativo da propriedade, elemento este indispensável à integração do crime de abuso de confiança tipificado no art. 205.º do CP e que, de resto, constitui simultaneamente elemento que o diferencia do crime de furto. Recorde-se que, de acordo com os factos apurados, a arguida surge como titular, solidariamente com o assistente, da conta em referência, no sistema informático do banco, e de acordo com o que a própria alega na motivação de recurso, por virtude de fusão com outra conta do assistente operada depois da entrada do Banco … no Grupo …. Não houve, assim, qualquer acto de entrega do valor do depósito do seu proprietário para a arguida, o que, só por si afasta a qualificação jurídica proposta pelo MP.
Certo é que a arguida se apropriou de quantia monetária que não lhe pertencia, e bem sabia não lhe pertencer, fazendo-o contra a vontade do seu legítimo dono, pelo que nenhuma censura merece a qualificação jurídica dos factos afirmada na sentença recorrida.
Nenhuma outra questão sendo suscitada ao recurso, e não se vislumbrando questões de que este Tribunal de segunda instância deva oficiosamente conhecer, resta, assim, decidir em conformidade.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção deste Tribunal da Relação em:
Negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença proferida em primeira instância
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – art. 94º, nº 2 do C.P.Penal)
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Lisboa, 26 de Novembro de 2009

Maria de Fátima Mata-Mouros
João Abrunhosa