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APREENSÃO DE VEÍCULO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
TERCEIRO
BOA-FÉ
Sumário
I - Nos termos do artº 178º, nº 6, do CPP, os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, sendo correspondentemente aplicável o disposto no artº 68º, nº 5 do mesmo diploma legal. O propósito do legislador foi o de proteger o direito de propriedade, enxertando um incidente judicial e contraditório no âmbito do inquérito, confiando a sua decisão à imparcialidade e neutralidade do juiz. O incidente em presença constitui uma via de tutela jurisdicional especificada do direito de propriedade atinente a bens ou objectos afectados por medidas de investigação criminal, mormente meios de obtenção de prova. Uma tutela reclamada pela natureza de direito fundamental do direito de propriedade.
II - Esta confiança da decisão a reserva judicial indica necessariamente uma maior margem de apreciação assente na assunção de uma responsabilidade própria, o que significa que o juiz não está limitado nem vinculado às afirmações produzidas na promoção do Ministério Público, antes devendo formar uma convicção própria dos elementos que lhe são apresentados, decidindo em responsabilidade própria.
III – Apesar de ser dever de toda a «pronúncia jurisdicional» a obrigação de fundamentação (artº 97º, nº 5, do CPP), o Tribunal Constitucional tem admitido a fundamentação das decisões judiciais proferidas no âmbito do inquérito criminal por simples remissão para a promoção do Ministério Público. Indispensável é que ao decidir, «o juiz o faça por decisão sua (…) – e não por se ter deixado ‘arrastar’ pelo requerimento do Ministério Público nesse sentido».
IV - No inquérito em presença investiga-se a prática de crime de tráfico de estupefacientes, regendo, pois, na matéria, o normativo inserto no artº 36º-A, do DL nº 15/93, de 22/01 (aditado pela Lei nº 45/95, de 3/09). Não configura mera questão de pormenor o facto de o Juiz “a quo” não ter mandado processar o incidente autónomo. Ao proceder com procedeu, o Mmº Juiz “a quo” ignorou a dimensão procedimental da tutela de um direito fundamental, no caso o direito de propriedade (arts. 20º, nº 5 e 62º da CRP). Esta dimensão procedimental do direito fundamental traduzida no status activus processualis implica a necessidade de compreender os direitos fundamentais não só estaticamente, ou da perspectiva do seu conteúdo, mas também dinamicamente, através das formas da sua efectivação pelo procedimento em ordem a permitir a adequada ponderação da situação, depois de produzida a prova e estabelecido o devido contraditório, se necessário com a audição presencial do visado.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo de inquérito (actos jurisdicionais) n.º 17/09.0TELSB-B.L1 do Tribunal Central de Instrução Criminal, por despacho proferido em 19 de Maio de 2009, foi indeferida a pretensão do requerente J… no sentido de ser revogada a restituição de um veículo automóvel apreendido nos autos.
2. Inconformado com aquela decisão, o requerente interpôs recurso da mesma, pugnando pela revogação daquele despacho e extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1) O recorrente veio ao abrigo dos arts. 178.º, n.º 6 e 186.º, n.º 1 do CPP requerer a revogação da decisão que ordenou a apreensão do seu veículo automóvel, de marca BMW, modelo 525 Diesel, com a matrícula 00-00-00;
Para tanto,
2) Alegou, em suma, ser legítimo proprietário do veículo, tê-lo adquirido em França e pago por meio de transferência bancária de uma conta da sociedade B…, Lda, da qual é sócio, desconhecer a prática de actividades ilícitas pelo arguido A…, e justificou a razão de o arguido estar na posse do referido veículo automóvel, que é seu;
3) Alegou ainda desconhecer em absoluto o documento junto aos autos e que estava na posse do arguido denominado “Cétificat de Céssion d’un Véhicule” no qual figura o arguido como proprietário do referido veículo automóvel;
Contudo,
4) Entendeu o douto despacho recorrido que o ora requerente não demonstrou de forma concludente e inequívoca a propriedade do veículo;
5) Face ao requerimento apresentado, não tem razão, salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz a quo, que não pôs em causa a veracidade dos factos alegados pelo recorrente;
6) Não haverá nos autos indício que demonstre qualquer relação do recorrente com as práticas ilícitas do arguido;
7) Assim como não haverá igualmente nos autos indícios de pagamento pela transmissão do referido veículo a favor do arguido;
8) Resulta isso sim, claro e demonstrado nos autos que o recorrente emprestou o referido veículo ao arguido por forma a que este promovesse a sua venda;
9) Dispõe o n.º 2 do art. 36-A, do Dec. Lei 15/93 de 22 de Janeiro, que “entende-se por boa-fé a ignorância desculpável de que os objectos estivessem nas situações previstas no n.º 1 do art. 35”.
10) Cabe ao Tribunal, que tem acesso aos autos, retirar dos mesmos que o terceiro se encontra de boa-fé;
11) Tal despacho é ainda contrário ao entendimento dos Acórdãos da Relação de Lisboa de 16-1-2003, proc. n.º 0079029, rel. Goês Pinheiro e de 26-5-2004, proc. n.º 2392/2004-3, rel. António Simões, ambos www.dgsi.pt, e ainda do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24-11-2008, proc. n.º 1872/08-2, rel. Cruz Bucho, também disponível www.dgsi.pt;
12) foram violadas as disposições dos arts. 178.º, n.º 6, 186.º, n.º 1 do CPP e ainda art. 36 e 36-A do Dec. Lei 15/93 de 22 de Janeiro;
13) Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, entendendo o recorrente que os factos expostos, relacionados e conjugados, não são suficientes para conduzirem à manutenção da medida de apreensão do referido veículo automóvel.
3. Respondeu o MP, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, extraindo, por sua vez, as seguintes conclusões:
1) Nestes autos investiga-se a actividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida por um grupo de indivíduos de que faz parte o arguido A…, soldado da GNR-BF que, na noite de 14 de Outubro de 2008, desembarcou cerca de 6.336 Kg de haxixe, proveniente de Marrocos, no porto de Sesimbra com destino a outros países da Europa.
2) Em face das fortes suspeitas de poder ter sido adquirido pelo arguido A… com os proventos obtidos com essa actividade, veio a ser-lhe apreendido o veículo automóvel BMW 525 Diesel com matrícula 00-00-00 que estava na sua posse, um “Certificat de Cession d’un véhicle” um Certificado Internacional de Seguro Automóvel e uma apólice de seguro relativos ao aludido veículo onde aquele figurava, respectivamente, como adquirente do veículo e tomador do respectivo seguro (cfr. fls. 2032-3038, 3030).
3) Invocando ser seu proprietário, o recorrente veio requerer o levantamento da apreensão e a restituição daquele veículo.
4) Inicialmente justificou estar aquele veículo em poder do arguido porque lhe tinha pedido para o guardar até arranjar comprador e
5) Depois, porque lho tinha entregue para que ele, arguido, o vendesse.
6) O arguido A… afirma que o recorrente lho entregou para o guardar até estar legalizado.
7) A abundância de versões sobre esse facto, conjugada com a existência de dois “Certificats d’Immatriculation” onde figuram como adquirentes, num deles o recorrente e num outro o arguido e a mal explicada existência de um contrato de seguro em nome do arguido,
8) São de molde a criar sérias dúvidas quanto à efectiva propriedade do veículo que o recorrente não demonstrou pertencer-lhe, de forma concludente e inequívoca.
9) Existindo sérias dúvidas se o veículo pertence ao recorrente ou ao arguido e, neste último caso, se foi ou não adquirido com os proventos da actividade criminosa,
10) Salvo o devido respeito por opinião contrária, era e é de manter a sua apreensão, pelo que o despacho recorrido não merece qualquer reparo, não tendo violado quaisquer normas legais e nomeadamente o disposto nos arts. 178.º, n.º 6, 186.º, n.º1 do CPP e ainda art. 36 e 36-A do Dec.Lei 15/93 de 22 de Janeiro ou quaisquer outras.
4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação acompanhando a resposta apresentada pelo MP em primeira instância, e salientando a dúvida que subsiste sobre a verdadeira titularidade do bem, emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
5. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
2. A questão suscitada ao recurso consiste em saber se deve, ou não, manter-se o despacho que indeferiu a pretensão do recorrente em ver levantada a apreensão de um veículo que alega ser seu.
3.Os elementos relevantes para a decisão são os seguintes:
3.1. Teor do despacho recorrido (transcrição): «J… veio requerer a revogação da apreensão e consequentemente restituição do veículo automóvel de marca BMW, modelo 525 diesel com a matrícula 00-00-00 nos termos de fls. 4524 a 4530 que se dão por reproduzidos. O M.ºP.º opõe-se. Dou por reproduzida a promoção do M.ºP.º de fls. 4548 a 4551, com a qual concordo, indeferindo o requerido. Notifique».
Perante a fundamentação por remissão adoptada no despacho, impõe-se reproduzir também a promoção do M.P.exarada em 15 de Maio de 2009 a fls. 4524 a 4530 dos autos (transcrição):
Remetam-se os autos ao TCIC para apreciação e decisão pelo Mº Juiz de Instrução – Requerimento de fls. 4524-4530 apresentado por J….
Na sequência do douto despacho judicial de fls. 4072 que indeferiu o requerido a fls. 3999-4002 (cfr. fls. 4023-4037) e 4061-4063 por J… nos quais peticionava o levantamento da apreensão e a restituição do veiculo automóvel de marca BMW, modelo 525 D, matricula 00-00-00 apreendido ao arguido A… (fls. 3030), veio aquele requerente, uma vez mais, insistir pela restituição daquele veiculo por ser seu proprietário, alegando novos factos.
Refere agora e em síntese que:
- o veículo foi entregue por M…, sua proprietária ao concessionário “BMW V…”, como retoma, acompanhado do “Certificat d`Ímmatriculation” – a “BMW V…” vendeu-o à “E… AUTO” do Sr. O…, mantendo-se o “Certificat de Cession d`un vehicule” em nome de M…. - o requerente comprou o veiculo à “E… AUTO” do Sr. O…, conforme cópia de factura que juntou, tendo deslocado a França para levantar o veiculo. - o requerente é possuidor do “Certificat de Cession d`un vehicule” onde consta como vendedor M… e o requerente como comprador - e pagou o veiculo por transferência bancária da conta nº 000000000000 de que a “B…, Lda“ é titular e da qual o requerente foi sócio. - o requerente efectuou um seguro para transportar o veiculo de França para Portugal - entregou o veiculo ao arguido A… para que este promovesse a sua venda e, nesse sentido, tratou da emissão de seguro em nome do arguido porque era do seu interesse que aquele pudesse deslocar-se no mesmo por forma a angariar comprador. Por fim, conclui que a apreensão do aludido veiculo é desnecessária, desproporcional e inadequada às exigências cautelares que o caso requer, violando o disposto no artº. 187º nºs 1 e 7 do CPP e que, por outro lado, determina o artº. 186º nº 1 do CPP que logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos devem ser restituídos a quem de direito. Juntou vários documentos, assumindo especial relevância, as cópias de uma declaração de compra de veículo pela “V…”, de facturas relativas a venda feita pela V… à E… AUTO e de venda feita pela E… AUTO ao requerente e vários talões de auto-estradas de França e Espanha (fls. 4531-4543), remetendo no mais para as cópias de documentos já anteriormente apresentadas (fls. 4003 a 4012), ou seja para cópias do “Certificat d`Immatriculation”, certificado internacional de seguro automóvel e a respectiva apólice de seguro (dos quais consta o requerente como tomador do seguro), extracto relativo à conta bancária NIB 0000 0000 00000000000 00 e certidão de registo comercial relativo à sociedade “B…, Lda” e para o duplicado de um “Certificat de Cession d`un véhicule” relativo ao aludido veiculo, datado de 28.04.2008, onde consta o requerente como comprador. Do nosso ponto de vista, os novos factos e documentos apresentados pelo requerente continuam a não ter energia para ilidir o facto de o arguido A… ter na sua posse um documento denominado “Certificat de Cession d`un véhicule”, datado 22-06-2008 (fls. 4357) no qual figura como adquirente daquele veiculo a que acresce ainda a circunstância daquela viatura ter sido encontrada efectivamente na sua posse. Contrariamente ao que pretende veicular o requerente no requerimento agora apresentado, os objectos susceptíveis de apreensão em processo penal não se limitam aos que se destinam à prova dos factos; para além desses também poderão ser apreendidos os que serviram ou que se destinavam a servir à prática do crime e ainda os que são seu produto, lucro, preço ou recompensa, sendo neste último grupo de objectos que se inclui aquele veículo. Daí que, também, por outro lado, a invocada norma do art. 186º nº 1 do CPP não tenha aplicação no caso. Aquela visa especificamente a restituição de objectos apreendidos para efeitos de prova. Pelo exposto, segundo se nos afigura, uma vez mais o requerente não logrou demonstrar de forma concludente e inequívoca a propriedade do veiculo pelo que, até ser devidamente esclarecido esse aspecto, o mesmo deverá continuar apreendido à ordem dos autos não devendo, pelo menos por ora, ser revogada a sua apreensão e ordenada a restituição ao requerente.
3.2 Recordada, assim, a decisão recorrida, cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do art. 178.º/6 do CPP, os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, sendo correspondentemente aplicável o disposto no art. 68.º/5 do mesmo diploma legal. O propósito do legislador foi o de proteger o direito de propriedade, enxertando um incidente judicial e contraditório no âmbito do inquérito, confiando a sua decisão à imparcialidade e neutralidade do juiz. O n.º 7 do referido art. 178.º determina mesmo que, no caso de o os objectos reclamados não pertencerem ao arguido, e os mesmos serem susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado, «a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o», no que constitui uma clara expressão do direito a ser ouvido antes de ser tomada uma decisão restritiva de um direito de que se é titular.
O incidente em presença constitui, assim, uma via de tutela jurisdicional especificada do direito de propriedade atinente a bens ou objectos afectados por medidas de investigação criminal, mormente meios de obtenção de prova. Uma tutela reclamada pela natureza de direito fundamental do direito de propriedade.
O CPP de 87, na sua versão original, não previa nenhum meio de impugnação de uma apreensão autorizada, ordenada ou validada pelo MP por parte de quem se considerasse ilegitimamente lesado por aquela medida. Tratava-se de uma omissão grave que importava colmatar, como observado por Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Legislação Complementar, 17.ª, Coimbra, Almedina, 2009, em anotação ao art. 178.º. Foi a revisão do CPP introduzida pela Lei n.º 59/98, que veio permitir a impugnação judicial, perante o juiz de instrução, das apreensões autorizadas, ordenadas ou validadas pelo MP e garantindo, na medida do possível, a concretização do princípio do contraditório. Esta inovação importou, pois, uma relevante concretização da tutela jurisdicional dos direitos individuais no âmbito do inquérito criminal.
Esta confiança da decisão a reserva judicial indica necessariamente uma maior margem de apreciação assente na assunção de uma responsabilidade própria, o que significa que o juiz não está limitado nem vinculado às afirmações produzidas na promoção do MP, antes devendo formar uma convicção própria dos elementos que lhe são apresentados, decidindo em responsabilidade própria.
Ora é dever de toda a «pronúncia jurisdicional», e não apenas da sentença, a obrigação de fundamentação, como sublinhado por Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória, Porto, Publicações Universidade Católica, 2002, p. 568-569.
Os actos decisórios devem ser fundamentados (art. 97.º, n.º 5, do CPP)
O aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais importado pela revisão constitucional de 89, que deu lugar à actual redacção do artigo 205º nº 1 «reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas» (AC. TC n.º 147/00 (www.tribunalconstitucional.pt ). Na feliz expressão de António Barreiros, «a fundamentação é um acto de lealdade pois que é garantia de sindicabilidade da decisão: relaxar o dever de fundamentar é garantir à decisão a protecção da opacidade, pelo secretismo, negar um direito em nome de um abuso. José António Barreiros, «Eficácia e Garantia do Modelo de Recursos Penais», A Reforma do Sistema Penal de 2007. Garantias e Eficácia, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 79.
Dito isto, não se ignora que o Tribunal Constitucional tem, apesar de tudo, admitido a fundamentação das decisões judiciais proferidas no âmbito do inquérito criminal por simples remissão para a promoção do MP. Indispensável é que ao decidir, «o juiz o faça por decisão sua (…) – e não por se ter deixado ‘arrastar’ pelo requerimento do Ministério Público nesse sentido», como sustentado foi no AC. TC n.º 396/2003 (www.tribunalconstitucional.pt), a propósito de uma decisão de prisão preventiva decretada por remissão para a promoção do MP. Depois – prossegue ainda o mesmo acórdão do TC, «é essencial que essa ordem [judicial - no caso, uma ordem de prisão] surja aos olhos do cidadão, efectivamente, como uma decisão pessoal do juiz que a determina: é que, no Estado de Direito, as aparências também têm o seu valor. Por último, é ainda importante que o [visado pela medida – no caso, o arguido] possa ter acesso às peças do processo que lhe permitam avaliar a justeza da decisão tomada contra si, a fim de, sendo o caso, a poder impugnar, em via de recurso. Isto dito, é óbvio que o despacho, que melhor espelha a responsabilização pessoal do juiz pela ordem de prisão que dá, é aquele em que o juiz enuncia, ele próprio, os motivos de facto da decisão tomada, em vez de se remeter para as razões invocadas pelo Ministério Público. Tal, porém, não significa que o exacto cumprimento do dever constitucional de fundamentação (…), proscreva, em absoluto, a possibilidade de o juiz fundamentar a sua decisão, mediante remissão para a promoção do Ministério Público, a cujo conteúdo dá a sua adesão (ou por remissão para o conteúdo de outras peças processuais). A proibição de um tal modo de fundamentar existirá, seguramente, quando ele for susceptível de, legitimamente, criar a dúvida sobre se a ordem de prisão é uma decisão pessoal do juiz ou apenas um ‘ir atrás’ do Ministério Público. Só então, com efeito, o juiz deixa de desempenhar o papel, que é o seu, de garante das liberdades».
No caso da decisão sob apreciação no presente recurso o juiz remeteu a fundamentação para a promoção do MP, o que, em abstracto, e tal como decorre do que vem de ser referido, não lhe estava vedado fazer. Ponto é que da leitura do seu despacho seja possível afirmar que não se limitou a ir atrás do titular da investigação. Ora, lamentavelmente, a primeira impressão que suscita a leitura do despacho não é essa. Desde logo sobressai a total e exclusiva fundamentação por remissão. O juiz não apresenta uma só palavra da sua autoria para fundamentar a sua decisão, limitando-se a concordar com o MP, sem, todavia, se dar sequer ao trabalho de explicar as razões da sua total concordância. Nem tão pouco no que respeita a aspectos que o MP apresenta como dúvidas ou, pelo menos sem conseguir afirmar a sua certeza. Assim, refere-se na promoção em referência: «parece-nos existirem evidentes contradições entre os documentos (…) causa-nos enorme estranheza a alegada necessidade de o requerente efectuar um novo seguro (…) também nos suscita grande perplexidade que, sendo negociante de automóveis, o requerente não dispusesse de um local adequado para armazenamento de veículos (…)». As mesmas dúvidas que voltam a ser reafirmadas nas conclusões apresentadas pelo MP em resposta ao recurso («existindo sérias dúvidas se o veículo pertence ao recorrente ou ao arguido e, neste último caso, se foi ou não adquirido com os proventos da actividade criminosa» – conclusão 9).
E ao juiz, suscitaram-se as mesmas dúvidas? É que se também as teve, o que parece ser o caso, na medida em que se limita a concordar com o promovido, manifesto é que deveria ter diligenciado por removê-las, tanto mais por a lei o prever expressamente na regulamentação que estabeleceu para a tramitação do incidente.
Conforme resulta da leitura do expediente que integra os presentes autos de recurso, processados em separado, no inquérito em presença investiga-se a prática de crime de tráfico de estupefacientes, regendo, pois, na matéria, o normativo inserto no art. 36.º-A do DL n.º 15/93, de 22/1 (aditado pela Lei n.º 45/95, de 3.9). Dispõe o citado artigo: 1) «O terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão (…) pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa fé, indicando logo todos os elementos de prova. 2) Entende-se por boa fé a ignorância desculpável de que os objectos estivessem nas situações previstas no art. 35.º [objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista naquele diploma ou que por esta tiverem sido produzidas]. 3) O requerimento a que se refere o n.º 1 é autuado por apenso, notificando-se o MP para, em 10 dias, deduzir oposição. 4) Realizadas as diligências que considere necessárias, o juiz decide. 5) Se, quanto à titularidade dos objectos, coisas ou direitos a questão se revelar complexa ou susceptível de causar perturbação ao normal andamento do processo, pode o juiz remeter o terceiro para os meios cíveis».
Nada disto foi feito pelo Juiz a quo que, desde logo, não mandou processar o incidente autónomo, o que não configura mera questão de pormenor, antes um veículo do justo procedimento. Numa palavra, ao proceder com procedeu, o Mmº Juiz a quo ignorou a dimensão procedimental da tutela de um direito fundamental, no caso o direito de propriedade (arts. 20.º/5 e 62.º da CRP), uma dimensão traduzida no status activus processualis, que implica a necessidade de compreender os direitos fundamentais não só estaticamente, ou da perspectiva do seu conteúdo, mas também dinamicamente, através das formas da sua efectivação pelo procedimento. Um procedimento que permita a adequada ponderação da situação, depois de produzida a prova e estabelecido o devido contraditório, se necessário (leia-se, no caso de dúvida sobre a respectiva boa fé) com a audição presencial do visado. Em sentido convergente com este imperativo de seguimento do procedimento legalmente regulamentado para apreciação da reclamação de levantamento de uma apreensão, se pronunciaram, com efeito, também os Acórdãos do TRL de 16/1/2003 e 26/5/2004, bem como o Acórdão do TG de 24/11/2008, citados pelo recorrente e disponíveis in www.dgsi.pt.
Não admira, assim, que o juiz a quo não tenha proferido pronunciamento próprio sobre o que lhe era dado a decidir. Atente-se que, no que respeita ao requisito de devolução do bem, traduzido na boa fé do requerente, nem a remissão para a promoção do MP consegue suprir a omissão de pronúncia. É que neste particular, o MP não tomou posição, preocupando-se tão só em afirmar a ausência de prova «concludente e inequívoca» da alegada propriedade do veículo, e ignorando, desta maneira, o regime legal especificamente previsto para a decisão destas questões acima reproduzido. E que o requerente invocava a sua boa fé no(s) requerimento(s) apresentado(s), disso, sim, não restam dúvidas. Resta, pois, agora, promover a tramitação própria do incidente em presença, para que, no seu termo, removidas as dúvidas sobre a titularidade e boa fé (ou falta delas) do requerente, seja tomada posição jurisdicional sobre os factos alegados e decidido, em conformidade, sobre o requerido.
Resta, pois, decidir em conformidade.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção deste Tribunal da Relação em:
Conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão proferida em primeira instância, devendo em sua substituição ser ordenada a tramitação do art. 36.º-A do DL n.º 15/93, e cumpridos que sejam os seus termos, proferida decisão que, tomando posição expressa sobre a prova (ou não prova) dos factos alegados pelo requerente, suportada da respectiva motivação, decida a pretensão pelo mesmo apresentada.
Sem tributação.
Notifique. (Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – art. 94º, nº 2 do C.P.Penal) *
Lisboa, 26 de Novembro de 2009