CRIME
CORRUPÇÃO
DENÚNCIA ANÓNIMA
ESCUTAS TELEFÓNICAS
Sumário

I - No crime de corrupção a denuncia anonima aparece muitas vezes como a única possibilidade ao dispor de cidadãos desfavorecidos social e economicamente de denunciar o cometimento do crime sendo consagrada a sua possibilidade e relevância pelo artº 13º2 da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção de 9/12/23003 (Mérida/ México aprovada pela Resolução da AR nº 47/2007 de 21/9.
II - Tal crime constitui uma violação dos princípios gerais da actividade administrativa p.p. pelos artºs 3 a 19º do CPA, e constitui um crime de grande danosidade social.
III - Devido às consequências que resultam de uma tal actividade criminosa a compressão dos direitos individuais que implica a utilização dos meios de obtenção de prova traduzidos quer nas escutas telefónicas, quer no registo de voz e de imagem, não pode considerar-se desproporcionada ou excessiva, nem ser considerada desadequada.
IV - A necessidade de tais meios de prova decorre do facto de tornarem praticamente impossível a obtenção de provas dos factos denunciados por outros meios.
V - O artº 6º, nº1 da Lei 5/2002 de 11/1 apenas exige como requisito de admissibilidade do registo de voz e de imagem a sua necessidade para a investigação.

Texto Integral

Rec. Penal n.º 229/16.0T9MCN-A.P1
Comarca do Porto Este.
Instrução Criminal do Marco de Canavezes.

Acordam, em Conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I- Relatório.
Nos autos de inquérito registados sob o número supra referido a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, DIAP de Paredes, mas que se deslocaram ao Juízo de Instrução Criminal do Marco de Canaveses, juiz 2, onde foi proferido, com data de 03.03.2017, o despacho de fls. 87 a 92 dos autos [15 a 20 destes autos] que indeferiu as intercepções telefónicas e dados de tráfego requeridos e bem assim, a captação de imagem e voz, que haviam sido requeridos pelo Ministério Público.

O Ministério Público inconformado com o despacho veio interpor recurso, consoante motivação constante de fls. 22 a 36 destes autos, que rematou com as seguintes conclusões:
1. … entende-se, erroneamente, que é necessária a “suspeita fundada da prática de certo crime do catálogo”, entendendo que as fundadas suspeitas pressupõem que já ‘haja um certo nível de indícios, logo que não basta a mera notícia do crime e muito menos a denúncia anónima, mesmo que muito verossímeis e suficientemente concretizadas”, para deferimento da interceção do telemóvel ……… da operadora B…, por um período não inferior a 60 dias, bem como a identificação dos IMEI’s, através dos quais se encontra a operar o presente número, disponibilização da faturação detalhada, bem como a localização das células ativadas nas comunicações e o pedido de autorização para se proceder ao registo de áudio e imagem, quer do suspeito, quer de indivíduos que com ele contactem nos termos da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro, por um período não inferior a 60 dias.
2. Lida a promoção do Ministério Público é patente que o fundamento da solicitação das escutas telefónicas e da captação de áudio e imagem é o de ser praticamente inviável a realização de qualquer outro tipo de diligência, que não seja o recurso às interceções telefónicas, no sentido de controlar os movimentos, contactos e negócios que o mesmo efetua, para o cabal esclarecimento da atividade ilícita que o denunciado vem desenvolvendo. Ou seja, o fundamento das escutas telefónicas e da captação de áudio e imagem promovidas pelo Ministério Público é o de que há razões para crer que a diligência é indispensável para descoberta da verdade e que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter.
3. O alvo visado é suspeito neste processo, uma vez que há uma denúncia contra este, que deu lugar à abertura de inquérito onde o mesmo é investigado pelos factos que lhe são imputáveis.
4. Com bem se refere no Acórdão da Relação do Porto de 11.02.15, publicado in “O suspeito de um crime não tem que ser completamente identificado ou individualizado bastando que seja pessoa determinável ou identificável”.
5. Acrescentando nós que, nos presentes autos, para além de um suspeito devidamente identificado, temos a indicação, na denúncia, de factos concretos, perfeitamente comprováveis, de enorme gravidade, e que integram, a comprovarem-se, a prática de vários crimes de “Corrupção ativa” p. e p. pelo art. 374º n.º1 e a prática de vários crimes de “Corrupção passiva” p. e p. pelo art. 373º do CP.
6. A fase processual em que a escuta pode ser autorizada é o inquérito, que existe.
7. Para deferimento da interceção de escutas telefónicas e para autorização para se proceder ao registo de áudio e imagem, em caso de indiciação por crimes de “Corrupção ativa” p. e p. pelo art 374º n.º1 e de crimes de “Corrupção passiva” p. e p. pelo art. 373º do CP, a lei prevê um regime especifico, descrito na Lei 5/2002 de 11 de janeiro (Medidas de combate à criminalidade organizada), no art. 6º nº1 a lei exige apenas que essa captação seja necessária para a investigação dos crimes referidos no art. 1, que na sua al. e) refere os crimes de corrupção ativa e passiva.
8. Não se exige, no primeiro caso (escutas telefónicas) que a diligência seja indispensável para a descoberta da verdade ou da prova, relativamente aos crimes de catálogo, em que se inclui o crime em investigação, na al. a) nº1 do art. 187, mas apenas que seja necessária para a investigação dos crimes em apreço.
9. No entanto no caso em apreço também se verifica a indispensabilidade para a descoberta da verdade ou da prova, pelo que se encontram preenchidos os requisitos dos dois regimes.
10. A lei portuguesa, ao contrário do que sucede com outros ordenamentos jurídicos, não exige que existam indícios de crime, cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, página 295 a 296.
11. Como se disse, precisamente, porque a ingerência pelas autoridades públicas na correspondência e nas telecomunicações, só é constitucionalmente admissível no quadro de uma previsão legal atinente ao processo penal, uma vez que constitui um limite a um direito fundamental, a escuta telefónica estará sempre sujeita ao princípio da proporcionalidade, subjacente ao art. 18, n.º 2, da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa, se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente.
12. Não assiste razão ao Mmº Juiz, porque as razões invocadas por este ferem, aliás, o conteúdo essencial do direito à investigação criminal e à Administração da Justiça, porque não permitem investigar para se descobrir a verdade.
13.Sobretudo quando se trata da proporcionalidade entre a restrição dos direitos fundamentais do suspeito e o direito ao ius puniendi, direito à investigação criminal, descoberta da verdade e administração da justiça, este deve prevalecer, se a intercepção de escuta telefónica e a captação áudio e de imagem forem a única forma de obter prova da prática do crime.
14. Para o deferimento duma a intercepção de escuta telefónica e a captação áudio e de imagem, não é necessária suspeita fundada, ou seja um certo nível de indícios da prática do crime, como afirma o Mmº JIC.
15. O Estado, como titular do ius puniendi, quer que os culpados de actos criminosos sejam punidos, mas também está interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra o perigo de injustiças. Por isso, também, em processo penal, a descoberta da verdade material não pode ser obtida a todo o custo, antes havendo que exigir da decisão que ela tenha sido lograda de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas.
16.Seguindo de perto a publicação “Pressupostos de autorização de escutas telefónicas” de C… publicado in www.verbojurídico.net: “A sua proliferação das escutas telefónicas e o crescimento exponencial dos métodos ocultos de investigação acompanha o crescimento da própria criminalidade organizada e altamente complexa, onde os métodos de investigação “tradicionais” não são adequados à sua investigação.
17.Citando o Acórdão da Relação do Porto de 3.12.12, publicado in www.dgsi.pt:
18 “A consciência jurídica comunitária é particularmente sensível à gravidade do crime de corrupção, pelo que ele representa de afronta aos alicerces do Estado de Direito democrático e de menosprezo do bem público, e pelo descrédito que gera na população quanto ao funcionamento das instituições públicas (neste caso, das forças policiais) (…).
19. Violou assim, o Juiz a quo, o disposto nos artigos 187, nº 1 do CPP e o art. 52 da Lei 5/2002 de 11 de janeiro.
20. Deve, por isso, a decisão do Mmº JIC ser revogada e substituída por outra que defira a intercepção do telemóvel ……… da operadora B…, por um período não inferior a 60 dias, bem como a identificação dos IMEI’ s, através dos quais se encontra a operar o presente número, disponibilização da facturação detalhada, bem como a localização das células activadas nas comunicações e o pedido de autorização para se proceder ao registo de áudio e imagem, quer do suspeito, quer de indivíduos que com ele contactem nos termos da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro, p um período não inferior a 60 dias, solicitadas pelo MP.
Termina pedindo a procedência do presente recurso e revogada a decisão que indefere a intercepção do telemóvel ……… da operadora B…, por um período não inferior a 60 dias, bem como a identificação dos IMEI s, através dos quais se encontra a operar o presente número, disponibilização da facturação e detalhada, bem como a localização das células ativadas nas comunicações e o pedido de autorização para se proceder ao registo de áudio e imagem, quer do suspeito, quer de indivíduos que com ele contactem nos termos da Lei 512002 de 11 de Janeiro, por um período não inferior a 60 dias, e substituída por outra que defira as referidas diligências.

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O recurso foi admitido por despacho constante a fls. 37 destes autos.
Nesta instância, o Excelentíssimo PGA apôs mero visto.
Colhidos os vistos e realizada a conferência cumpre decidir em conformidade.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada é a seguinte a única questão a decidir:
Saber se deve subsistir, ou não, o despacho que indeferiu a requerida realização de escutas telefónicas e a recolha de imagens a suspeito de crime de corrupção.
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2.- Elementos que relevam para a decisão:
Promoção do MP:
«Fls. 72:
Os presentes autos tiveram origem na IS constante de fls. 4, onde é comunicada a prática de atos ilícitos por parte do militar da GNR, D…, nomeadamente, a solicitação a terceiros de entrega de contrapartidas monetárias e sexuais para não aplicação de coimas.
Tais factos são susceptíveis de configurar a prática de vários crimes de crimes de “Corrupção ativa” p. e p. pelo art 374º n.º1 e vários crimes de “Corrupção passiva” p. e p. pelo art. 373º do CP.
Das diligências entretanto realizadas na zona de residência do denunciado, não foi possível colher melhor informação acerca dos factos, pois, de uma forma unanime ninguém se mostrou disponível para fornecer elementos acerca do visado, por temerem represálias por parte do mesmo, em virtude das funções que exerce, nem mesmo anonimamente.
Da informação recolhida, verifica-se que este militar já foi interveniente no âmbito de uma investigação que correu termos na PJ, por factos, alguns deles idênticos aos agora denunciados.
O denunciado encontra-se a utilizar o telemóvel com o número ………, o qual usa para marcar encontros relacionados com atividades ilícitas, em horários pós laborais.
De acordo com o “modus operandi’ do suspeito, pelo meio geográfico em que o mesmo se movimenta, dado o facto de conhecer alguns elementos desta Polícia, em virtude da investigação anterior e das funções que exerce, é praticamente inviável a realização de qualquer outro tipo de diligência, que não seja o recurso às intercepções telefónicas, no sentido de controlar os movimentos, contactos e negócios que o mesmo efectua, para o cabal esclarecimento da actividade ilícita que o denunciado vem desenvolvendo.
Importa, por isso abordar este suspeito, mas de acordo com a estratégia da investigação, tais abordagens serão mais profícuas se as conversações efectuadas a partir do telemóvel utilizado pelo referido suspeito forem interceptadas aquando da realização dessas diligências, uma vez que podem resultar conversações com interesse para a descoberta da verdade.
Atento o exposto, e conforme sugerido pela PJ, a fls. 72, conclua os autos à Mmº JIC, a quem se promove que, ao abrigo do disposto no art. 187º n.º1 al. a), do C.P.P e nos termos dos art.ºs 1º, nº1, e) e 6 da Lei 5/2002 de 11/01 e 268º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal e por se tratar de um meio de prova necessário, adequado, proporcional e de manifesta eficácia à investigação dos crimes em causa nos autos:
- Autorização para se proceder à intercepção do telemóvel ………, da operadora B…, por um período não inferior a 60 dias, bem como a identificação dos IMEI’s, através dos quais se encontra a operar o presente número, disponibilização da facturação e detalhada, bem como a localização das células activadas nas comunicações.
- Autorização para se proceder ao registo de áudio e imagem, quer do suspeito, quer de indivíduos que com ele contactem nos termos da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro, por um período não inferior a 60 dias.
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Despacho sob recurso:
«Fls. 81/82.
Promove o Ministério Público que seja autorizado por 60 dias a intercepção telefónica ao n.º … … …. Identificação do último IMEI, facturação detalhada, localização de células activadas bem como a captação e registo de imagem e som, tudo relativamente ao suspeito, considerando a existência de indícios da prática pelo mesmo de vários crimes corrupção passiva.
Decidindo.
Não podemos pretextar crimes do catálogo só para, por esse meio, poderem investigar-se crimes para os quais não poderia recorrer-se à intercepção telefónica e ao registo de voz e imagem - Manuel da Costa Andrade (“Bruscamente no verão passado”, a reforma do CPP — observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, Revista de Legislação e Jurisprudência 137.º, pág. 350).
Embora sendo certo que em sede de qualificação jurídica dos factos vigora o princípio jura novit curia, também é certo é que enquanto o objecto do processo não estiver fixado aquela poderá sofrer contingências.
Mas em abstracto não há dúvida que o crime de corrupção (passiva ou activa) é um crime de catálogo - artigo 187º/l -a) do CPP.
Cabe então perguntar: são exigíveis indícios da prática de tal crime e, sendo-o, o alvo visado é suspeito?
Como refere Carlos Alberto Teixeira, in Revista do CEJ, n.º 9 (Especial), p. 244/245 “leio a actual formulação do n.º 1 do artigo 187º do CPP como representando:
i) uma mais exigente ponderação, no plano concreto, sobre a necessidade, a proporcionalidade, a adequação ou a idoneidade do meio (escuta);
i) a exigência de uma suspeita fundada — não uma mera suspeita — da prática de certo crime do catálogo; julgo que fundada suspeita pressupõe que já haja um certo nível de indícios; logo, não basta a mera “noticia do crime” e muito menos a denúncia anónima, mesmo que muito verosímeis e suficientemente concretizadas;
i) uma utilização prática subsidiária da intercepção telefónica, o que vale por dizer que só se mostra admissível o recurso a este meio intrusivo se não for possível alcançar ‘a mesma eficácia probatória à custa de meios menos gravosos’.
O alvo da escuta deve ser, pelo menos, suspeito da prática de tais factos.
Na verdade, nos termos do n.º 4, alínea a) do artigo 187.º do Código de Processo Penal a intercepção e gravação previstas nos números anteriores só pode ser autorizada, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra suspeito ou arguido.
No caso dos autos o alvo visado não é arguido e suspeito, nos termos do artigo 1.º/e) do Código de Processo Penal, é toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para cometer. Ora, no caso concreto, temos apenas uma informação de serviço (fls. 4) decorrente de denúncia realizada por pessoa que, nos dizeres de tal informação, pretende manter o anonimato. Mesmo que não seja considerada uma denúncia anónima, nos termos do artigo 246.º/6 do CPP, em termos práticos não é relevantemente diferente.
E isto para dizer que, no presente momento, não existem aqueles indícios mínimos exigíveis para afirmar que o alvo visado é suspeito da prática dos factos que se pretendem investigar (praticados ou a praticar). Na verdade, se é certo que na fase inicial do processo de investigação não pode ser acolhido um grau de exigência equiparável aos fortes indícios, pelo menos alguns indícios importava que tivessem sido já recolhidos.
E no caso concreto, relativamente aos factos ditos já praticados, decorre da referida informação de serviço que o suspeito utiliza o n.º de telemóvel … … … para abordar as vítimas (no caso as pessoas alvo das contra-ordenações) e dessa forma delas obter vantagens, Ora, sem que o Tribunal pretenda imiscuir-se na investigação, o certo é que em face desta realidade no imediato o conhecimento de um conjunto de contra-ordenações e o correspondente (pedido de) facturação detalhada das comunicações já realizadas e o seu confronto com os respectivos autos de contra-ordenação (por referência às pessoas nelas visadas) permitiria de certa forma saber se efectivamente o suspeito realizou em algum momento qualquer tipo de comunicação para uma ou mais pessoa que tivesse sido alvo dessas contra-ordenações, caso em que, se positivo o resultado, então seria possível afirmar a existência de indícios fundamentadores de um posterior deferimento de um meio de obtenção de prova intrusivo como a intercepção telefónica.
Na verdade, uma diligência de intercepção telefónica tem de se encontrar numa relação de adequação com a gravidade do crime cometido ou a cometer, com a força da respectiva indiciação nos autos, com a sua indispensabilidade, devendo ainda surgir como uma diligência promissora de sucesso relativamente aos objectivos delineados na investigação. Se é certo que a avaliação da oportunidade ou utilidade das medidas de investigação é indiscutivelmente da competência dos investigadores, também é certo que o recurso a uma medida fortemente lesiva ou restritiva dos direitos fundamentais pressupõe a avaliação da possibilidade de empreendimento de outras medidas menos lesivas, sendo esta uma avaliação que cabe apenas ao juiz.
No caso concreto, na sua objectividade abstracta, não se questiona a gravidade dos factos. Mas em concreto neste momento já se questionam os indícios da sua prática pelo alvo visado (que por isso nem é suspeito), o que decorre também de uma avaliação de que neste momento outras medidas ainda não desencadeadas, mas desencadeáveis, nos termos supra, se afiguram capazes de consolidarem os factos levados à informação se serviço referida, sendo certo que toda a demais informação documental junta se reporta a outras situações que tiveram palco de investigação nos respectivos processos e que em termos de sustentação dos factos a investigar neste processo por si nenhum contributo determinante transportam.
Quanto a situações de insustentabilidade de autorização de intercepções telefónicas assentes em denúncia anónima ou informações de serviço podem ver-se, entre outros, os acórdãos do TRL, de 10/05/2011, proc. 65/1 1.OJAFUN-A.L1-5; TRL de 11/01/2011. proc. 97/1O.5PJAMD-A.LI-5; www.dgsi.pt.
Como se sabe, as escutas telefónicas podem por em crise valores fundamentais inerentes à reserva da vida privada e familiar, ao sigilo e à inviolabilidade no domínio das telecomunicações (artigos 26.°/l e 34.°/1 e 4 da CRP), pelo que as mesmas só serão admissíveis em situações em que é necessário salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos - artigo 18.º da CRP.
No âmbito da intercepção de conversações telefónicas rege o artigo 187.º/l do Código de Processo Penal, o qual preceitua da seguinte forma:
“A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só pode ser ordenada ou autorizada por despacho do juiz” quanto aos crimes aí elencados e “se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter...”
Como requisitos ou pressupostos de que depende a realização daquilo que vulgarmente se apelida de escutas telefónicas, verifica-se, assim, um duplo segmento:
- um, de ordem formal, reportado à circunstância de o objecto dos autos ser referente a um dos crimes constantes do catálogo descriminado nas diversas alíneas de tal normativo, o que só em abstracto no caso dos autos acontece, como se referiu.
- outro, reportado à verificação de razões que façam crer que tal diligência se revela indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter e que está é dirigida contra uma das pessoas referidas na lei, o que no caso dos autos não acontece.
Na verdade, no caso concreto (e no presente momento) a intercepção telefónica requerida é desproporcionada e como tal não é indispensável para a descoberta da verdade, nem se vislumbra que a prova seja, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, atento o que supra se disse.
Termos em que indefiro quer a requerida intercepção quer o demais requerido (dados de tráfego).
2. Quanto à requerida captação de imagem.
O que acaba de dizer-se quanto à intercepção telefónica tem idêntica aplicação quanto à pretendida autorização de captação de imagem e voz.
É certo que nos termos do regime previsto na Lei 5/2002, concretamente do artigo 6.º da referida Lei, ao deferimento da diligência requerida importa apenas um juízo de necessidade para a investigação na obtenção da prova (e já não de indispensabilidade ou de muito difícil obtenção, como nas escutas). Mas o certo é que a questão fundadora do indeferimento encontra-se a montante, ou seja ao nível da exigência mínima da verificação de indícios do cometimento de crime de catálogo, pelo que os fundamentos supra são perfeitamente transponíveis para aqui. Termos em que indefiro quer a requerida captação de imagem e voz.
(…)»
*
3. Apreciação do recurso.
Como já antes definimos a questão a decidir consiste em saber se deve subsistir, ou não, o despacho que indeferiu a requerida realização de escutas telefónicas e a recolha de imagens a suspeito de crime de corrupção.
Antes de atacarmos directamente a questão a decidir cumpre referir que decorre da informação de serviço, mencionada na promoção e despacho transcritos, que:
- Nos presentes autos investiga-se a prática, por D…, de factos susceptíveis de configurarem, pelo menos crimes de corrupção passiva, p. e p. pelo art. 374.º/1 do Cód. Penal, a que cabe uma pena de prisão de 1 a 8 anos.
- Resulta dos autos (fls. 4 e 12) que o suspeito, militar da GNR, a prestar serviço no comando territorial do Porto, no âmbito das suas funções, solicitará a terceiros, a entrega de contrapartidas monetárias e sexuais para não aplicação de coimas. Após a abordagem das vítimas marca encontros para horários pós laborais utilizando o telefone com o n.º ……….
Resulta ainda da informação que antecede a conclusão de fls. 11, nomeadamente, a fls. 10 destes autos [fls. 72 e 73 do processo principal] que “Das diligências entretanto realizadas na zona de residência do denunciado, não foi possível colher melhor informação acerca dos factos, pois, de uma forma unanime ninguém se mostrou disponível para fornecer elementos acerca do visado, por temerem represálias por parte do mesmo, em virtude das funções que exerce, mesmo anonimamente.
Da informação recolhida, verifica-se que este militar já foi interveniente no âmbito de uma investigação que correu termos na SRIC, por factos alguns deles idênticos aos agora denunciados.
O denunciado encontra-se a utilizar o telemóvel com o número ………, o qual usa para marcar encontros relacionados com actividades ilícitas, em horários pós laborais.
….de acordo com o ….meio geográfico em que o mesmo se movimenta, dado o facto de conhecer alguns elementos desta polícia, em virtude da investigação anterior e das funções que exerce….é praticamente inviável a realização de qualquer outro tipo de diligência…”

Impõe-se agora atacar o cerne da questão colocada.
O artigo 34.º da Constituição da República consagra a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, estabelecendo no seu n.º 1 que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis e acrescentando no seu n.º 4 que é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
O artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República, por seu turno, determina que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sendo que, de harmonia com o n.º 3, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Conclui-se, portanto, que não pode haver intromissão arbitrária quer no domicílio, quer na correspondência, quer nas telecomunicações ou nos demais meios de comunicação de qualquer cidadão.
Por sua vez, a Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, estabelece um regime específico de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, em relação aos crimes enunciados no n.º 1 do seu artigo 1.º, onde se incluem os crimes de corrupção activa e passiva - al. e)
De acordo com o disposto no artigo 6.º, n.º 1 desta lei, é admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado. E nos termos do n.º 2 do citado artigo, a produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos, acrescentando o n.º 3, do mesmo artigo, que são aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.
Decorre, assim, ter sido propósito do legislador estender a aplicação, com as necessárias adaptações, das formalidades a observar na realização das escutas telefónicas ao registo de voz e imagem, regulado na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, sendo que na base da extensão das formalidades encontram-se razões de ordem constitucional.
Efectivamente, a Constituição da República Portuguesa reconhece, no artigo 26.º, n.º 1, além de outros, os direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, impondo, no n.º 2, à lei ordinária a obrigação de estabelecer as efectivas garantias de respeito por tais direitos.
E, em conformidade, a legislação processual penal, no artigo 187.º estabelece as condições de admissibilidade da intercepção e da gravação de conversações ou comunicações telefónicas, elencando os crimes em relação aos quais é possível efectuar escutas telefónicas.
Nos termos do n.º 1 do inciso, a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas «se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público (…)».
A redacção vigente foi introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, que procedeu à revisão do Código de Processo Penal de 2007, a qual pretendeu tornar mais apertada a possibilidade de realização de escutas devido à sua natureza manifestamente intrusiva e consensualmente vista como uma medida portadora de um elevado potencial de «danosidade social». (vide Manuel da Costa Andrade, in “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, págs. 272, 275, 281, 283 e 285).
Enquanto no regime anterior as escutas podiam ser validamente realizadas se houvesse razões para crer que a diligência tinha «grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», agora só é possível o recurso a este meio de prova «se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter».
Com a enunciação deste pressuposto para autorização da intercepção e gravação de conversas telefónicas, procurou-se salientar a excepcionalidade e a proporcionalidade de que o recurso às escutas se deve revestir.
Assim, para a escuta telefónica ser admissível, visto que tem um caracter altamente restritivo de direitos fundamentais, é necessário que seja observado o princípio da proporcionalidade lato sensu ou da proibição do excesso (art. 18º nº2 da CRP), que se decompõe em três subprincípios: adequação ou idoneidade (que a escuta seja um meio adequado/idóneo a satisfazer o fim pretendido), necessidade (só se deve recorrer à escuta se, dos meios que poderiam ser escolhidos in abstracto, este se revelar in concreto o mais eficaz) e proporcionalidade stricto sensu ou racionalidade (a escuta não pode ser excessiva relativamente ao fim que se pretende atingir, devendo procurar-se a justa medida.).
Assim, como primeira garantia do respeito pelo princípio da proporcionalidade, encontramos a exigência de estabelecimento na lei da natureza das infracções em relação às quais é admissível a escuta telefónica, falamos do catálogo legal de crimes. São enumerados vários crimes relativamente aos quais poderá ocorrer a referida autorização. Na lei portuguesa o crime de corrupção, em causa nos autos, está incluído no referido catálogo através da cláusula geral, que inclui os “crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos”.
Além de um catálogo de crimes cuja investigação pode ser efectuada mediante autorização de escutas telefónicas, na redacção do artigo 187º, do CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, estabeleceu-se ainda um “catálogo fechado de alvos” susceptíveis de escuta telefónica, nos quais se inclui o suspeito ou arguido – alínea a) do n.º 4.
Como assinala Germano Marques da Silva, diferentemente do que sucede noutras legislações a lei portuguesa não exige que existam já indícios de crime, nem que as informações pretendidas não possam ser obtidas por outros meios. É de qualquer modo exigido para aferir dessa indispensabilidade um “grande interesse” subjacente, o que significa que «não será legítimo ordenar as escutas telefónicas nos casos em que os resultados probatórios almejados possam, sem dificuldades particularmente acrescidas, ser alcançados, por outro meio mais benigno de afronta aos direitos fundamentais». «É, para além disso, necessário que a escuta telefónica se revele um meio em concreto adequado a mediatizar aquele resultado.» Curso de Processo Penal, II, Verbo, 2008, págs. 248-249.
Assim, quando procede à análise do pedido de autorização de realização de escutas telefónicas, o juiz terá que apurar, se:
- i. decorre um inquérito por suspeita fundada da prática de algum dos crimes para cuja investigação é possível utilizar a escuta e elencados no n.º 1 do artigo 187.º;
- ii. há razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter;
- iv. há já um suspeito ou arguido; ou…
A resposta positiva a estas questões conduz ao deferimento da autorização.
No caso em apreço, como vimos, o Mmº Juiz de Instrução indeferiu a realização das promovidas intercepções telefónicas e recolha de imagens grosso modo pelas seguintes razões: «… não existem aqueles indícios mínimos exigíveis para afirmar que o alvo visado é suspeito da prática dos factos que se pretendem investigar (praticados ou a praticar).
E no caso concreto, relativamente aos factos ditos já praticados, decorre da referida informação de serviço que o suspeito utiliza o n.º de telemóvel … … … [quereria dizer ………] para abordar as vítimas (no caso as pessoas alvo das contra-ordenações) e dessa forma delas obter vantagens, Ora, sem que o Tribunal pretenda imiscuir-se na investigação, o certo é que em face desta realidade no imediato o conhecimento de um conjunto de contra-ordenações e o correspondente (pedido de) facturação detalhada das comunicações já realizadas e o seu confronto com os respectivos autos de contra-ordenação (por referência às pessoas nelas visadas) permitiria de certa forma saber se efectivamente o suspeito realizou em algum momento qualquer tipo de comunicação para uma ou mais pessoa que tivesse sido alvo dessas contra-ordenações, caso em que, se positivo o resultado, então seria possível afirmar a existência de indícios fundamentadores de um posterior deferimento de um meio de obtenção de prova intrusivo como a intercepção telefónica.»
Como bem enfatiza o Magistrado do MP recorrente a Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, não exige, como requisito de admissibilidade do registo de voz e de imagem, a «indispensabilidade» da diligência mas sim a sua necessidade para a investigação – artigo 6.º, n.º 1.
A exigência de que a diligência seja «indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter» é pressuposto exclusivo da autorização das escutas telefónicas - artigo 187.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Como ressalta Paulo Pinto de Albuquerque, «o catálogo legal do artigo 6.º da Lei n.º 5/2002 é mais apertado do que o do artigo 187.º, n.º 1 do CPP, mas o crivo “da necessidade para a investigação” é mais lasso que o crivo da “indispensabilidade para a descoberta da verdade” do CPP». Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, página 546, nota 12, e ainda nota prévia ao artigo 189º do CPP, págs. 540 a 543.
E se é incontroverso que não cabe ao juiz definir a estratégia da investigação atenta a estrutura acusatória do processo penal, por outro lado verifica-se que as diligências levadas a cabo não infirmam a qualidade de suspeito do arguido, antes pelo contrário, atento o que consta de fls. 4 a 9 destes autos, e o aí retratado baixo nível de valores éticos do suspeito [índice sempre presente em qualquer estudo do perfil da pessoa do corrupto] e o que consta de fls. 10 e 11 [de onde decorre que o suspeito já foi noutra ocasião foi suspeito por alguns factos de natureza idêntica aos denunciados]; e confirmam a grande dificuldade ou mesmo impossibilidade de obter prova por outro meio já que as pessoas contactadas não se mostraram disponíveis para fornecer elementos acerca do visado, mesmo anonimamente, por terem medo de represálias, em virtude da profissão que exerce [vide 2º § de fls. 10].
Portanto, as diligências realizadas e de que se deu devida nota esclarecem da dificuldade da investigação, atento o meio geográfico em que o suspeito se movimenta, mas também pelo facto de conhecer alguns elementos da PJ em virtude da investigação anterior, e ainda pelas funções que exerce.
A diligência alternativa proposta no despacho recorrido para dizer que a escuta não é ainda necessária parece-nos inviável. Se a suspeita é a de que o arguido não levantava autos de contra-ordenação a quem ceda às suas pretensões, verificar a facturação detalhada dele com os números das pessoas que constam nos autos não resolve nada, na medida em que nos crimes que se tiverem porventura consumado não existirão autos.
Acresce que o crime da corrupção tem várias características que dificultam a actuação das instâncias formais de controlo, variados factores que o tornam menos transparente para a justiça penal, “características como a complexidade das condutas e a opacidade daí resultante; a ocorrência dos comportamentos em espaços não públicos mas antes privados e de reserva; a inexistência de um conflito patente entre um agente e uma vítima; a dispersão da vitimização” e a estes factores acabados de enunciar surge uma especificidade de maior relevo “a existência, entre o corruptor e o corrupto, de uma tendencial comunhão de interesses que faz com que nenhum deles se veja a si próprio como uma vítima do outro.” Vide Cláudia Cruz Santos, Débora Thaís de Melo e Claudio Bidino in “A Corrupção Reflexões (A Partir da Lei, da Doutrina e da Jurisprudência) Sobre o Seu Regime Jurídico-Criminal em Expansão no Brasil e em Portugal”, Coimbra Editora, 2009, página 103.
Com efeito, no crime de corrupção, não há um agressor directo e uma vítima directa, pelo contrário, os envolvidos são, geralmente, agentes ou de corrupção activa ou de corrupção passiva.
O tribunal a quo, citando arestos do Tribunal da Rel. de Lisboa, defende uma posição restritiva em relação à denúncia anónima, o que nos parece completamente desfasado da realidade sociológica imanente a tais crimes e ainda do quadro legal a que o Estado Português se obrigou no quadro internacional.
Com efeito, a denúncia anónima aparece muitas vezes como única possibilidade ao dispor de cidadãos desfavorecidos social e economicamente e a tal, por isso, não foi alheia a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, assinada em Mérida, no México, em 9 de Dezembro de 2003 [aprovada em Portugal pela Resolução da AR n.º 47/2007, de 21 de Setembro], ao consagrar, nomeadamente, no seu artigo 13º, n.º2, a possibilidade da denúncia anónima, como uma forma de participação da sociedade na luta anticorrupção [Cada Estado Parte deverá adoptar as medidas adequadas para assegurar que os órgãos de luta contra a corrupção competentes, referidos na presente Convenção, sejam conhecidos do público e, quando apropriado, que este tenha acesso a eles, com vista à comunicação, incluindo ao abrigo do anonimato, dos factos passíveis de serem considerados infracção nos termos da presente Convenção.]
Também a doutrina assinala que «O caráter endémico que a corrupção tende a assumir, o envolvimento de titulares de poderes do Estado e o justo receio de retaliações ilícitas ou até legais (estas últimas potenciadas pela insuficiente “performance” dos órgãos de repressão, frequentemente traduzida em decisões de arquivamento ou absolvição) aconselham vivamente a que não se desvalorizem as denúncias anónimas. Elas constituem, muitas vezes, a única forma de participação dos cidadãos na atividade de controlo social da corrupção.» vide, Euclides Dâmaso Simões, “Contra a Corrupção (Propostas terapêuticas para uma endemia antiga)”, Julgar Online, pág. 10.
Acresce que o crime de corrupção é um crime de grande danosidade social, com efeito pode ler-se no preâmbulo da Convenção das Nações Unidas Anticorrupção, já citada “Preocupados com a gravidade dos problemas e com as ameaças decorrentes da corrupção, para a estabilidade e a segurança das sociedades, ao enfraquecer as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça e ao comprometer o desenvolvimento sustentável e o Estado de Direito”.
Por outro lado, embora a corrupção possa assumir diferentes formas e os seus efeitos variem em função do tipo e extensão do acto ilícito, certo é que independentemente da sua tipologia, a corrupção constitui, antes de mais, uma violação dos princípios gerais da actividade administrativa, previstos nos art. 3.º a 19º do Código do Procedimento Administrativo, tais como: o Princípio da Prossecução do Interesse Público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, Princípio da Igualdade e da Proporcionalidade, Princípio da Transparência, Princípio da Justiça e da razoabilidade, princípio da Imparcialidade, Princípio da Boa-fé e, Princípio da Colaboração da Administração.
Assim, devido ao conjunto de consequências que resultam de uma tal actividade criminosa, a compressão dos direitos individuais que implica a utilização dos referidos meios de obtenção de prova não pode considerar-se desproporcionada ou excessiva.
Também não podem ser considerados desadequados na medida em que constituem um meio de prova documental de grande relevância para a prova do crime, pois quer as escutas telefónicas, quer o registo de voz e de imagem, constituem documentos no sentido de uma declaração corporizada num suporte técnico (artigos 164.º do Código de Processo Penal e 255.º, a) do Código Penal), meio que está sujeito ao controlo judicial, a quem são presentes, sendo judicialmente valorado se os elementos recolhidos são, ou não, relevantes para a prova.
A sua necessidade decorre do facto de atento o meio geográfico em que o suspeito se movimenta, o facto de conhecer alguns elementos da PJ em virtude da investigação anterior, as funções que exerce, tornarem praticamente impossível a obtenção de provas dos factos denunciados, dificuldade que se evidenciou na não obtenção de elementos contra o suspeito, mesmo anonimamente, por medo de represálias.
Torna-se, assim, evidente que as escutas telefónicas, tal como o registo voz e de imagem, constituem um poderoso instrumento de investigação particularmente adequado, eficaz e necessário à investigação em curso.
Acresce que no tipo de crime em investigação, até pelo que supra referimos, é difícil e improvável a obtenção de outros meios de prova, como, por exemplo, a prova testemunhal (quase impossível atento o medo de represálias), além de que são crimes onde nada se passa em público mas com especial reserva, onde os diversos intervenientes observam cautelas para manutenção de sigilo absoluto da sua actividade e/ou da sua identidade, e que, no caso, se traduzem também no recurso à utilização de telemóvel para a realização de contactos entre o suspeito e as pessoas que se lhe interpõem directamente tendo em vista o desenvolvimento da sua actuação.
Pelo exposto, temos razões para crer que o recurso às escutas telefónicas não só se mostra indispensável para a descoberta da verdade, como a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, justificando-se a requerida intercepção e gravação das comunicações telefónicas, assim como se justifica a recolha de imagens pois os resultados de investigação que se pretendem com a realização de tal diligência não são passíveis de ser alcançados através do recurso a outros meios de produção de prova.
Procede, portanto, o recurso.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal deste Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por outro que conceda Autorização para se proceder à intercepção do telemóvel ………, da operadora B…, por um período de 60 dias, bem como a identificação dos IMEI’s, através dos quais se encontra a operar o presente número, disponibilização da facturação detalhada, bem como a localização das células activadas nas comunicações e ainda Autorização para se proceder ao registo de áudio e imagem, quer do suspeito, quer de indivíduos que com ele contactem, por um período de 60 dias.
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Sem tributação.
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Notifique.
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Processado em computador e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do C.P.P.
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Porto, 10 de Maio de 2017.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares