LETRA DE CÂMBIO
RELAÇÕES MEDIATAS
AQUISIÇÃO
MÁ FÉ
BOA-FÉ
Sumário

Estando os títulos cambiários alegadamente nas relações mediatas podem os executados opor ao portador de má fé qualquer defesa, posto é que aleguem os factos necessários para cuja prova podem ao Tribunal requerer as necessárias diligências probatórias. Não sendo alegados factos, tão só matéria conclusiva e de direito, o requerimento de diligências instrutórias destinadas a provar a existência ou inexistência dessa alegação de direito e conclusiva deve ser indeferida por inadmissível.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam os juízes na 2.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
APELANTES/OPENTES NA EXECUÇÃO: B... e C....
APELADO/EXEQUENTE NA EXECUÇÃO: D...
Com os sinais dos autos.
*
Inconformados com o despacho de 20/02/09, na parte em que indeferiu a notificação do exequente para evidenciar nos autos a proveniência do seus alegados créditos atinentes à relação material subjacente à relação cartular, a notificação da Repartição de Finanças para informar se estes a existirem constam da respectiva contabilidade apresentada e a notificação da Fábrica ... para informar se B1, S.U., Lda era sua cliente em 2003, se havia valores em dívida, quais e qual a forma e o modo de pagamento da sociedade e, se por letra, se o sócio gerente assinava em nome da sociedade ou em nome pessoal, dela apelaram os opoentes em cujas alegações concluem:
1. A instrução tem por objectivo os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
2. É fundamental para a boa decisão da causa saber a forma, o modo e a que título é que o exequente é portador das letras dos autos.
3. Para isso importa que o exequente esclareça qual o crédito ou créditos que tenha para com a endossante/sacadora a fim de se aferir da sua legitimidade quanto à posse e detenção dos títulos cambiários.
4. Do mesmo modo, e a fim de se aferir se existindo os créditos os mesmos se encontram indiciados nas respectivas contabilidades e se não se trata de título executivo inatacável pelos Recorrentes nas relações subjacentes à relação cartular em que sabem inexistir qualquer causa, a não ser a dívida que tem para com os Recorrentes e não estes para com aquele.
5. A notificação da Fábrica prende-se com o esclarecimento com o modo e a que título os Recorrentes se obrigavam cambiariamente para com esta.
6. Ao não entender assim o meritíssimo Juiz “a quo” violou entre outros, o disposto nos art.ºs 513, 535 e 519 todos do CPC.
Não houve contra-alegações.
Recebido o recurso, foram os autos aos vistos legais dos Meritíssimos juízes-adjuntos que nada sugeriram. Nada obsta ao conhecimento do recurso.

Questão a resolver: Saber se o Meritíssimo Juiz deveria ter deferido o requerimento das diligências instrutórias e não o tendo feito, sabe se o despacho violou o disposto nos art.ºs 513, 535 e 519 do CPC.


II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Encontra-se certificado e com interesse para a decisão do recurso o seguinte:
O exequente por formulário próprio, que se encontra a fls. 34/36, que deu entrada na Secretaria do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha aos ..., munido de duas letras de câmbio que se encontram certificadas a fls. 41, alegando ser portador delas por lhe terem vindo à posse por endosso da sacadora, alegadamente sacadas por Isaac, SA e aceites por B..., avalizadas pelo aceitante e por sua mulher C..., no valor de €25.000,00 cada, moveu execução contra os mencionados B... e C..., indicando à penhora um imóvel.
Encontra-se certificada cópia das letras dadas à execução a fls. 41 desta apelação: em ambas consta no lugar destinado à identificação do sacador “Isaac, S.A.”, no lugar destinado à assinatura do sacador consta carimbo a óleo Isaac, SA, com rubrica ilegível, no lugar destinado à identificação do sacado consta “B... Rua..., Vila Franca do Campo” em ambas consta a mesma identificação do número de contribuinte do sacador e do sacado, sendo a importância a mesma ou seja a de €25.000,00 com a indicação “transacção comercial”. Na primeira consta como data de emissão “05.02.04” e de vencimento “2005.08.04” e na segunda consta como data de emissão “05.06.13” e de vencimento “2006-01-13”. No verso de ambas consta manuscrita a expressão “bom para aval ao aceitante C...”, encimada por uma assinatura seguida do carimbo de óleo “Isaac, SA” com rubrica ilegível.
No seu requerimento de oposição os opoentes em suma alegaram e requereram:

  • As acções do portador contra os endossantes prescrevem no prazo de 1 ano a contar da data do protesto feito em tempo útil ou data de vencimento, se se trata de letra contendo a cláusula “sem despesas” e tendo os executados sido citados em 30/06/2008 prescreveu o pseudo crédito do exequente.
  • Através da presente execução ficou o executado a saber que o Autor do desaparecimento furto de 6 letras de uma pasta que deixara em 2003 na sede da sacadora Isaac foi afinal o sócio gerente desta E..., empresa a quem fornecia gado vivo, nunca o executado lhe tendo comprado o que quer que fosse nem nunca tendo do devedor desta nem nunca se obrigou perante esta, nem nunca lhe entregou letras.
  • As letras dos autos estavam em branco conjuntamente com mais 4 dentro de uma pasta que o executado B... deixou no mencionado escritório e destinavam-se a ser entregues na fábrica, fornecedora do executado.
  • É a Isaac que é devedora do opoente da quantia de €46.088,93 de fornecimento de gado que lhe fez, deixando o opoente em situação difícil com necessidade de recorre à banca para poder pagar a quem lhe vendeu o gado.
  • As letras foram preenchidas, sem causa e com total desconhecimento dos executados, contra a vontade e autorização destes; as assinaturas nele apostas são grosseiras imitações das assinaturas dos opoentes.
  • Nunca o executado B... assinou letras em nome pessoal mas sempre em nome de Sociedade B1... S.U., Lda.
  • O endosso efectuado pela Isaac é uma tentativa de extorsão de dinheiro fácil aos opoentes com a conivência do exequente, que bem conhece a proveniência ilícita das letras e total falta de causa do seu alegado crédito; até hoje nunca fez qualquer tentativa de contacto.
  • Por isso requerem o chamamento à demanda da mencionada sociedade Isaac e seu gerente, considerando, além do mais, a responsabilidade criminal resultante do furto e falsificação.

    O incidente de intervenção não foi admitido, foi elaborado despacho saneador tabelar onde se disse que as partes têm legitimidade para a presente acção, foi julgado improcedente o incidente, dispensada a organização da base instrutória e condensação de factos assentes, foram as partes notificadas para os termos do art.º 512/1, 787/3 817/2 do CPC, ordenada a vista ao Ministério Público face aos ilícitos criminais referidos conforme despacho de 12/01/09 de fls. 50/53.
    Por requerimento digitalmente certificado com a data de 19/01/09, vieram os requerentes apresentar o seu rol de testemunhas e ainda no que aqui interessa requerem: “(…) que para além da exequente ser notificada para evidenciar nos autos a proveniência dos seus alegados créditos atinentes à relação material subjacente à relação cartular, seja notificada a respectiva Repartição de Finanças para informar se estes a existirem constam da respectiva contabilidade apresentada.(…) Requer-se a notificação da Fábrica... sita à Malaca, concelho de Lagoa para informar se a sociedade B1..., S.U., Lda, era sua cliente em 2003, se havia valores em dívida, quais e qual a forma e o modo de pagamento da sociedade e, se por letra, se o sócio gerentes assinava em nome da sociedade ou em nome pessoal”
    Por despacho de 20/02/09 com relevância para a decisão da apelação e no que aqui releva, decidiu-se: “(…)Tendo o Exequente obtido a posse das letras que servem de base à execução por via do endosso, e não estando em causa nos autos a discussão da relação material subjacente à relação cartular, indefere-se a notificação do mesmo nos termos e para os efeitos requeridos pelos Opoentes e concomitantemente a respectiva notificação ao Serviço de Finanças.(…)”
    III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
    Questão a resolver: Saber se o Meritíssimo Juiz deveria ter deferido o requerimento das diligências instrutórias e não o tendo feito, sabe se o despacho violou o disposto nos art.ºs 513, 535 e 519 do CPC.
    Os Recorrentes no corpo das alegações sustentam que não pretendem discutir a relação material subjacente à relação cartular mas aferir a legitimidade ou não do endosso, saber se tem causa ou se houve conluio entre o sacador e o endossado.

    Dispõe o art.º 513 do C.P.C.[1]: “A instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos”
    O art.º 519/1: “Todas as pessoas sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado os factos que forme determinados.”
    Estatui o art.º 535/1: “Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.”
    O n.º 2: “A requisição pode ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros.”
    O art.º 17 da LULL (Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, resultante das Convenções de Genebras de 7/6/1930, aprovadas no Direito Interno pelo Decreto n.º 23.721, d e 29/03/1934 e Decreto n.º 26.556, de 30/04/1936) estatui: “As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.
    O art.º 16 da LULL estabelece: “O detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. Os endossos riscados consideram-se, para esse efeito, como não escritos. Quando um endosso em branco é seguido de um outro endosso, presume-se que o signatário deste adquiriu a lera por endosso em branco. Se uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de uma letras, o portador dela, desde que justifique o seu direito pela maneira indicada na alínea precedente, não é obrigada a restituí-la, salvo se a adquiriu de má-fé ou se adquirindo-a, cometeu falta grave”
    A letra incorpora uma obrigação abstracta que se destaca da relação subjacente que motiva a sua subscrição, sendo a obrigação cambiária a que resulta da letra.
    A obrigação cambiária é de natureza formal e abstracta e, portanto, independente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título.
    As obrigações cartular e subjacente coexistem.
    Além do próprio tomador da letra, seu originário portador, é portador legítimo todo o detentor da letra que justifique o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. É a legitimação formal em consequência da qual se presume que a pessoa legitimada é o portador jurídico do título, ou seja o verdadeiro titular do direito nele incorporado.
    A má fé é o conhecimento da falta de direito do alienante e abrange o dolo e o erro e consiste também na apreensão da letra por meios ilícitos ou no conhecimento da falta de direito do transmitente e constituir excepção oponível ao terceiro portador.
    A falta grave é equiparada à má fé e corresponde à culpa grave, a culpa derivada da falta de diligência e de cuidado que é razoável esperar mesmo de um homem de nível inferior ao médio
    A letra está no domínio das relações imediatas quando está no domínio das relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado, sacador-tomador, tomador-primeiro endossado), ou seja nas relações nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente das relações extracartulares. O portador é o portador imediato.
    A letra está no domínio das relações mediatas quando na posse duma pessoa estranha às convenções extracartulares. Esta é o terceiro portador.
    O carácter autónomo e literal da letra só produz efeitos quando o título entra em circulação e se encontra em poder de terceiros de boa-fé. Em relação aos portadores imediatos e aos terceiros portadores de má fé, o devedor pode deduzir qualquer defesa.

    Os opoentes, recorrentes defendem-se de duas formas: por um lado alegam que os documentos intitulados “letras” dos autos foram furtados ao opoente marido em branco, sem qualquer preenchimento, numa circunstância em que se deslocou ao estabelecimento da suposta sacadora Isaac, e foram preenchidas, assinadas com total desconhecimento, contra a vontade e sem autorização do opoente B..., sendo as assinaturas atribuídas ao opoente B... falsificações grosseiras; com base nesta alegação que os opoentes têm o ónus de demonstrar foi dada vista ao Ministério Público tendo em mente os crimes de furto e de falsificação e foi, em sede instrutória, que aqui se não discute, ordenada perícia às letras e caso se venha a demonstrar a falsificação das assinaturas supostamente imputadas aos opoentes aceitantes e às expressões “bom para aval ao aceitante”, atribuídas aos opoentes, não existirão essas obrigações cambiárias e os opoentes terão de ser absolvidos do pedido executivo, extinguindo-se a execução.
     Por outro lado, alegam especificamente nos art.ºs 16, 17 e 18 e no que aqui releva: “Mais não representando o endosso efectuada pela Sociedade Isaac, que uma tentativa de extorsão de dinheiro fácil aos opoentes com a conivência do exequente(…)que bem conhece a proveniência ilícita das letras(…) e a total falta da causa do seu alegado crédito comercial(…)”
    Ou seja, ainda que se possa considerar a existência das “letras” dadas à execução como títulos cambiários supostamente endossados pela Isaac ao exequente, explicando, ainda que exista qualquer relação subjacente ao endosso à qual os opoentes são estranhos, estando os títulos nas relações mediatas, o que os opoentes pretendem dizer é que esses títulos não podem gozar da abstracção, literalidade e autonomia que em regra caracteriza os títulos que se encontram em circulação por quanto o ora exequente sabia que inexistia qualquer débito dos opoentes ao Isaac que justificasse o saque. Ou seja os opoentes alegam a má fé do portador exequente na aquisição, o que abre a possibilidade da discussão da suposta relação subjacente ao suposto saque, suposto aceite e suposto aval, nos termso do art.º 17 da LULL.

    Aquilo que os opoentes alegam nos art.ºs 16 e 18, ou seja que a Isaac em conivência com o exequente pretendem extorquir dinheiro aos opoente e a “ total falta de causa do seu –do exequente-, alegado crédito comercial” é matéria manifestamente conclusiva e de direito à qual o Tribunal recorrido não pode responder, e se o fizer têm-se por não escritas as respostas dadas a essa alegação nos termso do n.º 4 do art.º 646.
    As diligências instrutórias destinam-se à prova de factos.
    Por isso não cabe nas diligências instrutórias destes autos saber se existem ou inexistem créditos do exequente, portador-terceiro, suposto endossatário das letras, sobre o suposto endossante-sacador Isaac pois tal matéria não foi como tal alegada.
    Por outro lado, os opoentes no requerimento de oposição, em alguma parte dele se fala em negócios entre Isaac e a Sociedade B1..., S.U., entidade esta que não aparece como subscritora dos títulos de crédito dados à execução; também em nenhuma parte do requerimento de oposição se refere a Fábrica que também não aprece como subscritora dos títulos dados à execução. E, por não ter sido alegado no requerimento de oposição não é facto sujeito a prova saber se B1..., S.U., Lda. era em 2003 cliente da Fábrica e se havia dívidas para com esta.
    O resultado pretendido, ou seja, saber se o opoente não assinou os títulos em causa resultará (ou não) da perícia já ordenada.
    Bem andou o Tribunal requerido em indeferir as diligências instrutórias.
    IV- DECISÃO
    Pelo exposto acordam os juízes em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
    Regime de Responsabilidade pelas Custas: os recorrentes decaem no recurso e por força do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 446 são responsáveis pelo pagamento das custas.
    Lxa., 10/12/09
    João Miguel Mourão Vaz Gomes
    Jorge Manuel Leitão Leal
    Ondina Alves

    [1] Código de Processo Civil na redacção que lhe foi dada pelo DL 329-A/95 de 12/12 e Dl 180/96 de 25/09, aqui aplicável atenta a data da entrada em juízo da execução.