CASO JULGADO PENAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
Sumário

I - A eficácia do caso julgado, em processo civil e em processo penal, restringe-se à decisão em si mesma, e não à respetiva fundamentação, ainda que desta regra possam decorrer sentenças teoricamente contraditórias.
II - A indicação global de um depoimento não cumpre a exigência do n.º 4, in fine, do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

Texto Integral

Pr 324/14.0SGPRT.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 4 da Secção Criminal da Instância Local do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que o condenou, pela prática de um crime de desobediência qualificado, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal, com referência ao artigo 138.º, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de cinco euros.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
a) o arguido não praticou os factos pelos quais foi condenado,
b) Impõem-se uma valoração diferente da prova produzida;
c) a má prática provada pelos depoimentos dos Agente da PSP referenciados não pode levar a uma condenação de um terceiro que sofreu diretamente os efeitos dessa mesma má prática;
c) deve ser considerado como provado que não era o arguido que conduzia o veículo naquela data;
e) não pode o arguido ser julgado e condenado, em tribunais diferentes, pelos mesmos factos;
e) tendo o arguido sido absolvido pelo acórdão do tribunal da Relação do Porto no processo que correu termos em primeiro lugar terá que, forçosamente, ser absolvido também no presente recurso.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se o arguido foi julgado noutro processo pelo prática dos factos por que neste foi condenado;
- saber se a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo o arguido e recorrente ser absolvido do crime por que foi condenado;

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«(...)

II - Fundamentação de facto:
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
A) No âmbito do proc. de contraordenação nº 269181504 que correu termos na ANSR, foi o arguido B… condenado, por decisão, definitiva, de 19/5/014, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 dias;
B) Para cumprimento de tal sanção acessória de inibição de conduzir, o arguido procedeu à entrega da sua carta de condução no posto da GNR de … no dia 8/7/014; em tal ocasião foi o arguido pessoalmente notificado que, caso conduzisse veículo a motor durante o período de inibição, incorreria na prática de crime de desobediência qualificada;
C) Não obstante, no dia 19.Setembro.2014, pelas 3horas, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula .. - .. - QL pela Rua …, nesta cidade, quando foi fiscalizado por agentes da PSP no exercício das suas funções;
D) Ao actuar do modo descrito, conduzindo na referida ocasião o veículo automóvel com a matrícula .. - .. - QL na via pública, quando estava a decorrer o prazo de inibição de conduzir que lhe havia sido imposto por decisão administrativa, o arguido agiu com o propósito, concretizado, de desobedecer à ordem legítima que lhe foi regularmente comunicada e emanada de autoridade competente, ciente que, não a acatando, incorria na prática de crime de desobediência qualificada;
E) O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei;
F) No âmbito do proc. 1568/11.1PEGDM, do 2º Juízo Criminal do TJ de Gondomar, foi o arguido condenado, por sentença de 30/4/013, transitada em julgado em 3/2/014, pela prática de crime de violência doméstica, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período de tempo e sujeita a deveres, por factos cometidos em 19/11/010;
G) O arguido encontra-se actualmente desempregado, tendo requerido a prestação de rendimento social de inserção; vive sozinho em casa já entregue ao banco; tem um filho de 9 anos de idade, que vive com a mãe, não contribuindo com pensão de alimentos; possui o 12º ano de escolaridade.
*
III - Motivação:
A convicção do Tribunal apoia-se no conjunto da prova produzida em julgamento:
- nas declarações do arguido, que confirmou ter procedido à entrega da sua carta de condução na GNR para cumprimento da inibição de conduzir que lhe foi imposta e ter ficado ciente que, no período fixado, não podia conduzir qualquer veículo; afirmou que, uma vez que se encontrava inibido de conduzir, o seu veículo com a matrícula .. - .. -QL ficou na posse de seu pai; afirmou que veículo foi subtraído quando se encontrava estacionado à porta de casa de seu pai, motivo pelo qual apresentou queixa por esses factos, tendo o mesmo sido recuperado uns dias depois, apresentando danos; negou que na referida ocasião se encontrasse a conduzir tal veículo automóvel, referindo que na altura se encontrava na associação recreativa, onde permaneceu até à meia-noite;
- no depoimento da testemunha C…, agente da PSP que elaborou o auto de notícia de fls. 3, tendo afirmado que na referida ocasião, no exercício das suas funções de fiscalização de trânsito, fiscalizou o referido veículo automóvel, tendo o respectivo condutor referido na altura não possuir consigo os seus documentos de identificação e os documentos do veículo, motivo pelo qual lhe foi passado aviso de apresentação de documentos, afirmando que tal condutor se identificou verbalmente como sendo D…; afirmou não ter qualquer dúvida ser o arguido o condutor de tal veículo na referida ocasião;
- no depoimento da testemunha E…, agente da PSP que acompanhava a testemunha anterior na acção de fiscalização de trânsito, tendo afirmado que o condutor do referido veículo automóvel afirmou não possuir consigo os seus documentos de identificação e os documentos do veículo, razão pela qual lhe foi passado aviso de apresentação de documentos, identificando-se tal condutor como sendo D…; afirmou que, como é procedimento habitual, foi consultada na ocasião a base de dados do IMT para confirmar se tal condutor se encontrava habilitado a conduzir, o que deu resultado positivo, pelo que está em crer que, nessa ocasião, o arguido forneceu a sua verdadeira identidade, fornecendo uma outra quando foi passado o aviso de apresentação de documentos; afirmou não ter qualquer dúvida ser o arguido o condutor de tal veículo na referida ocasião;
- no depoimento da testemunha F…, elemento da GNR, que confirmou ter recebido do arguido a sua carta de condução;
- no depoimento da testemunha G…, agente da PSP a exercer funções na Divisão de Trânsito, tendo afirmado que, pelo facto de não terem sido apresentados os documentos referidos no aviso de apresentação de documentos, se dirigiu à morada que havia sido fornecida, sendo que aí ninguém conhecia D…; afirmou que também contactou o arguido, como proprietário do veículo, o qual lhe disse não conhecer tal pessoa; afirmou que, nesse seguimento, os colegas que procederam à fiscalização logo reconheceram o arguido como sendo o condutor fiscalizado através da fotografia constante da base de dados do IMT;
- no depoimento da testemunha H…, pai do arguido, que confirmou o relatado por seu filho, no sentido de ter ficado na posse do veículo com a matrícula ..-..-QL durante o período de inibição, sendo que, certo dia, pela manhã, verificou que tal veículo não se encontrava estacionado no lugar onde o tinha deixado, tendo logo alertado seu filho, acabando este por apresentar queixa por furto;
- no depoimento da testemunha I…, amigo e colega de trabalho do arguido, que afirmou recordar-se de ter havido um torneio de sueca na associação recreativa, no qual esteve presente, bem como o arguido, recordando que este dali se retirou por volta da meia-noite e meia na companhia de seu pai; afirmou não se recordar a data em que tal aconteceu; afirmou que no período em que o arguido esteve inibido de conduzir fazia-se transportar para o local de trabalho de transportes públicos, acompanhado pela testemunha, sendo que, anteriormente, o arguido lhe dava boleia;
- no depoimento da testemunha J…, na altura companheira do arguido, que afirmou que o pai deste lhe deu conta que não sabia onde se encontrava o referido veículo; afirmou que o arguido chegou a casa com um amigo por volta da meia-noite, uma hora da manhã, não sabendo onde tinha estado até aí;
- no doc. de fls. 3 (auto de notícia);
- nos doc. de fls. 4 e 5 (participação de trânsito e aviso de apresentação de documentos, dos mesmos constando o nome de D… e demais elementos de identificação);
- no doc. de fls. 7 (auto de recepção da carta de condução do arguido para cumprimento da inibição de conduzir imposta, da mesma constando a advertência de incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada);
- no doc. de fls. 9 (print do IMT relativo à carta de condução do arguido);
- nos doc. de fls. 11 e 12, 16 e 17 e 18 e 19 (cópia do auto de denúncia apresentada pelo arguido no dia 19/9/014 relativa ao furto do veículo com a matrícula .. - .. - QL, aditamento relativo à recuperação de tal veículo e termo de entrega);
- no doc. de fls. 23 a 25 (certidão da decisão administrativa);
- da conjugação do depoimento das testemunhas C… e E… resulta ser o arguido a pessoa que conduzia o veículo com a matrícula .. - .. - QL pela Rua … no dia 19/9/014, pelas 3horas, e que foi sujeito a fiscalização de trânsito – ambas são peremptórias em reconhecer o arguido, sendo que o facto de ter sido anotada uma outra identificação do condutor quando já havia sido efectuada consulta à base de dados do IMT se mostra plausível atendendo às regras da experiência comum, sabido como funcionam as operações de fiscalização de trânsito e a intervenção dos agentes fiscalizadores;
- a versão dos factos apresentada pelo arguido foi, assim, totalmente contrariada pelo depoimento das referidas testemunhas, com conhecimento directo dos factos e que depuseram de forma segura e sem qualquer interesse pessoal no desfecho do processo, sendo que o depoimento das testemunhas por si arroladas se revelaram frágeis e pouco consistentes;
- assim, da conjugação de toda a prova produzida em julgamento com as regras da experiência, logrou o Tribunal formar a convicção que, ao actuar do modo descrito, conduzindo na referida ocasião o veículo automóvel com a matrícula .. - .. - QL na via pública, quando estava a decorrer o prazo de inibição de conduzir que lhe havia sido imposto por decisão administrativa, o arguido agiu com o propósito, concretizado, de desobedecer à ordem legítima que lhe foi regularmente comunicada e emanada de autoridade competente, ciente que, não a acatando, incorria na prática de crime de desobediência qualificada, tendo agido livre e conscientemente e sabendo a sua conduta proibida e punida por lei;
- no doc. de fls. 99 e 100 (CRC do arguido).
(...)»
IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que foi julgado pelos mesmos factos aqui em apreço no processo n.º 1023/14.8PEGDM, do Juiz 2 da Seção Criminal da Instância Local de Gondomar do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. Foi, nesse processo, condenado em primeira instância (conforme sentença cuja cópia está junto a fls. 108 a 115), mas interpôs recurso para esta Relação, a que foi dado provimento, tendo sido, por isso, absolvido (conforme acórdão cuja cópia está junta a fls. 151 a 155).
Vejamos.
Nesse processo, o arguido e recorrente era acusado da prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal, não da prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal, com referência ao artigo 138.º, n. 3, do Código da Estrada, por que nestes autos foi acusado e condenado.
Seja qual for o critério adotado quanto à noção de objeto do processo, naturalístico, jurídico ou ético social, não há dúvida de que o objeto de um e outro dos dois processos não é o mesmo. E, portanto, o alcance do caso julgado da absolvição do arguido e recorrente no primeiro desses processos não abrange o presente processo.
É verdade que um e outro dos processos estão estreitamente ligados e que essa ligação poderia justificar a sua conexão, nos termos do artigo 24.º, n. 1, b), do Código de Processo Penal (na medida em que o crime de desobediência ora em apreço terá sido causa do crime de simulação de crime por que o arguido foi acusado no outro processo referido). Na verdade, de acordo com a descrição dos factos provados no processo em que o arguido foi acusado de simulação de crime (concretamente, de ter apresentado uma queixa alegadamente falsa por furto do veículo a que é relativo o presente processo), essa simulação terá sido motivada pelo propósito de negar a prática do crime de desobediência aqui em apreço (pois o veículo que é acusado de conduzir em violação de uma proibição teria sido furtado e, por isso, não teria sido por ele conduzido). Mais especificamente, como se pode deduzir da leitura do acórdão desta Relação cuja cópia está junta aos autos, a ausência de prova de que seria o arguido ora recorrente a conduzir o veículo em causa quando foi fiscalizado por agentes da G.N.R. que elaboraram a participação que deu origem a este processo (e que, constitui, pois, o objeto do presente processo) foi decisiva para a sua absolvição do crime de simulação de crime por que foi acusado no regerido processo da Instância Local de Gondomar.
A respeito da eficácia do caso julgado em processo civil (questão que poderá também relevar em processo penal com as devidas adaptações, nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal), é hoje doutrina geralmente aceite a de que essa eficácia se restringe à decisão em si mesma, e não à respetiva fundamentação, ainda que desta regra possam decorrer sentenças teoricamente contraditórias As razões de certeza jurídica e a conveniência de evitar decisões contraditórias não chega ao ponto de alargar a eficácia do caso julgado a tal fundamentação. Podem ver-se, neste sentido, entre outros, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, Coimbra, 1985, pgs. 714-719, e João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, A.A.F.D.L., Lisboa, 1982, pgs. 282-283.
No referido processo processo da Instância Local de Gondomar, em que o arguido ora recorrente era acusado da prática de crime de simulação de crime, a ausência de prova dos factos em apreço nestes autos serviu de fundamento à absolvição, mas tais factos não constituiam, em si mesmos, objeto do processo e da decisão. Por isso, não são abrangidos pela eficácia do caso julgado. Não impedem, portanto, que nos presentes autos seja apreciada também a prova desses factos, em termos que até poderão ser teoricamente contraditórios com o acórdão que conduziu à absolvição do arguido nesse outro processo.
Deverá, pois, ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.
IV 2. –
Vem o arguido e recorrente alegar que a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo ser ele absolvido do crime por que foi condenado. Alega que os depoimentos dos agentes policiais em que se baseia tal decisão não são credíveis e que não é credível a versão desses agentes segundo a qual ele se identificou inicialmente pelo nome verdadeiro, que com esse nome verificaram (no computador que tinham no carro de serviço) que ele era titular de carta de condução, mas, depois, preencheram a participação e o aviso para apresentação posterior de documentos com nome e outros dados falsos por ele fornecidos.
Deve considerar-se que o arguido e recorrente impugna a matéria de facto provada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal,
Há que considerar, antes de mais, o seguinte.
Nos termos desse número 3, quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados (alínea a)); as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b)); e as provas que devem ser renovadas (alínea c)). Nos termos do número 4 deste mesmo artigo, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nestas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no número 2 do artigo 364º do mesmo Código, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Ora, o arguido e recorrente limita-se a indicar os depoimentos das testemunhas em causa de forma global. Esta indicação global não cumpre a exigência do citado nº 4, in fine, do artigo 412º do Código de Processo Penal, como vem sendo entendido pela jurisprudência (ver, por exemplo, os acórdãos desta Relação de 19 de janeiro de 2000, in C.J., XXV, I, pg. 235; e de 15 de novembro de 2006, in C.J., XXXI, 5, pg. 204).
A respeito da impugnação da matéria de facto provada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, há que considerar, também, o seguinte.
Como se refere nos doutos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006 (procs. Nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e acessíveis in www.dgsi.pt), e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (assim, o acórdão do S.T.J. de 21 de janeiro de 2003, proc. nº 02ª4324, relatado por Afonso Correia, também acessível in www.dgsi.pt).
E, como se refere no douto acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pgs. 176 e segs.), «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (assim, o citado acórdão do S.T.J. de 21 de janeiro 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do S.T.J. de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412º, nº 3, b), do C.P.P., se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
Ora, a decisão em apreço assenta, fundamentalmente, num juízo de credibilidade dos depoimentos de testemunhas que afirmam, perentoriamente, que foi o arguido e recorrente quem fiscalizaram e que este conduzia o veículo em causa no local e ocasião referidos na acusação. Esse juízo de credibilidade baseia-se, essencialmente, em fatores que dependem da imediação e de que nesta sede estamos privados.
Pode, porém, dizer-se que esse juízo também depende de critérios de razoabilidade e das regras da experiência comum (podendo verificar-se, em caso de contrariedade a tais regras e critérios, erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal). E será assim no que se refere à verosimilhança da versão apresentada pelas testemunhas em causa, segundo a qual o arguido e recorrente se identificou inicialmente pelo nome verdadeiro, que com esse nome tais testemunhas verificaram (no computador que tinham no carro de serviço) que este era titular de carta de condução, mas, depois, preencheram a participação e o aviso para apresentação posterior de documentos com nome e outros dados falsos por ele fornecidos.
Não se afigura de todo inverosímel esta versão, apesar do insólito da situação. Pura e simplesmente, as testemunhas deixaram-se enganar pelo arguido e recorrente e não repararam que o nome completo inicialmente fornecido por este era diferente (sendo igual quanto ao primeiro nome) daquele que ele forneceu posteriormente e que levou a que preenchessem com dados falsos (todos eles fornecidos pelo arguido e já não conferidos por outra via na altura) a participação e o aviso de apresentação posterior de documentos. A sinceridade desta versão também não pode ser ajuizada prescindindo de fatores que dependem da imediação e de que nesta sede estamos privados. A desconfiança que possa suscitar esta versão será superável pela confiança que decorre da forma segura e inequívoca como as testemunhas declararam que era o arguido e recorrente quem fiscalizaram e que ele conduzia o veículo em causa no local e ocasião referidos na acusação. Foi isso que se verificou neste caso. E essa confiança baseia-se em fatores que dependem da imediação e de que nesta sede estamos privados.
A douta sentença recorrida não é, pois, merecedora de reparo, também quanto a este aspeto.
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso, também quanto a este aspeto.

O arguido e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513º, nº1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.

Condenam o arguido e recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.

Notifique

Porto, 10/5/2017
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo