FURTO
COISA MÓVEL
COISAS INCORPÓREAS
CONTRA-ORDENAÇÃO
Sumário

I – Uma ligação não autorizada à rede de distribuição da televisão por cabo que permite a fruição de um serviço não contratado e, por isso, não pago e que é causa de um prejuízo patrimonial para a empresa prestadora desse serviço não integra a prática de um crime de furto.
II - O sinal recebido por cabo não é equiparável a qualquer forma de energia e não é, por conseguinte, uma coisa no sentido em que este conceito é utilizado no art. 203º do C. Penal.
III – Esse comportamento constitui uma contra-ordenação prevista e punida nos arts. 104º, nº 1, al. d) e 113º, nºs 1, al. sss) e 3 da Lei nº 5/2004, de 10 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pelo Dec. Lei nº 176/2007, de 8 de Maio, “lei especial” posterior que derroga lei geral anterior.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

No processo comum singular n.º …/… do …º Juízo Criminal de …, por sentença de 13-03-2009 (cfr. fls. 171 a 187), no que agora interessa, foi decidido:

«Em face do exposto, decide-se:
· Condenar o arguido T… pela prática do crime de furto previsto e punido no artigo 203º, nº 1 do Código Penal na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 10 (dez) euros, o que totaliza a quantia de 2000 (dois mil) euros.
· Julgar parcialmente provado o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante …. Cabo Portugal, S.A., e em consequência, condenar o demandado T…, a pagar-lhe a quantia € 193,92 (cento e noventa e três euros e noventa e dois cêntimos) a título de prejuízos materiais, e de € 500 (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora vencidos desde a notificação do pedido cível (28 de Dezembro de 2008) e vincendos até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4%.
O arguido/demandado T…não aceitou esta decisão e dela recorreu (cfr. fls. 189 a 196), extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«I. Tendo o arguido sido condenado por um crime de furto, por alegadamente ter efectuado uma ligação não autorizada a um terminal de sinal ... cabo, após ter terminado o seu contrato com esta mesma entidade.
II. Porque o tribunal entendeu que tal facto consubstanciava um crime de furto, por considerar que o sinal ... cabo é uma coisa móvel alheia nos termos do artigo 203.º do CP, equiparada a uma forma de energia, como a electricidade, gás ou informação armazenada em suportes informáticos.
III. Fundamentando na sentença os argumentos de que: “o intérprete julgador interpreta as normas necessariamente genéricas e abstractas de uma forma actualista, sob pena de, face à inovação e progresso tecnológicos galopantes nos dias de hoje e, os tipos legais e os conceitos ali insertos se verem esvaziados de sentido e de aplicação prática” deste modo, esta conduta nunca seria punida a titulo contra-ordenacional e não seria de todo sancionada caso não fosse subsumida, como é, ao disposto no artigo 203º n.º l do CP.
IV. A qualificação que o tribunal a quo fez dos factos, mal e forçadamente, foi efectuada através de uma interpretação extensiva, ou pior, pelo recurso à analogia.
V. A interpretação jurídica das normas penais deve obedecer a um limite máximo de interpretação: o “sentido literal possível dos termos linguísticos utilizados na redacção do texto legal. Em direito penal toda a interpretação que exceda este sentido literal possível, deixa de ser interpretação para se converter em criação do direito por via judicial ou doutrinal e, na medida em que sirva para fundamentar ou agravar a responsabilidade penal, viola o princípio da legalidade." (Sousa Brito, A lei penal na Constituição - Estudos sobre a Constituição, Vol. II, pág. 244).
VI. Pelo que se discorda plenamente, da equiparação que o Tribunal a quo faz do sinal de ... Cabo ao conceito legal de energia eléctrica ou outra que tenha valor económico, baseado em meros critérios de semelhança. Pois “não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime ...”; n.º 3 do Artigo 1.º do Código Penal por forma a subsumir os factos num ilícito penal.
VII. Quem intercepta o sinal de televisão a cabo não o tira, faz desaparecer, retira ou, mesmo em última análise, dele se apodera. Não há qualquer subtracção, o prejuízo decorre do que a empresa - em virtude da utilização indevida do sinal - deixa de receber, não do que desta se subtrai.
VIII. Não consubstancia assim um crime de furto previsto no artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal mas sim uma contra-ordenação prevista e punida pelo Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de Maio, que veio alterar a Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
IX. Efectivamente o tribunal a quo dá como provado que o arguido alterou "o Terminal Acess Point" da ... Cabo o qual estava protegido e aí procedeu a uma ligação não autorizada, tendo que utilizar equipamento e manter dispositivos electrónicos (para assegurar a ligação) não pertencentes à ... cabo com vista a permitir o acesso a um serviço protegido.
X. Ora, tal comportamento subsume-se por inteiro na previsão do artigo 104.º da Lei das Comunicações Electrónicas.
XI. Aliás, assim tem sido o entendimento perfilhado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, (vide neste sentido o acórdão n.º 10876/2008-3 de 17-12­-2008 in www.dgsi.pt):
V - O estabelecimento de uma ligação não autorizada à infra-estrutura de rede da "... Cabo", que permite a fruição de um serviço não contratualizado e, por isso, não pago e causa um prjuízo patrimonial àquela empresa, não consubstancia a prática de um crime de furto porquanto o sinal de televisão recebido por cabo não é uma coisa, no sentido em que este conceito é utilizado no artigo 203.º do Código Penal, não sendo o sinal equiparável a qual forma de energia.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo em consequência ser revogada a sentença que considerou que os factos dados como provados consubstanciavam um crime de furto, e não uma contra-ordenação.»

Efectuadas as necessárias notificações, apresentaram resposta o Mº Pº (cfr. fls. 202 a 205) e a assistente … Cabo Portugal (cfr. fls. 206 a 209), em que concluíram:

I – O Mº Pº

«Termos em que, deverá ser negado total provimento ao recurso interposto, e confirmada a sentença recorrida, nos precisos e exactos termos em que foi proferida.
Porém, V. Exas. melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA!»

II - A assistente … Cabo Portugal

«1. O arguido fez uma ligação não autorizada entre um cabo proveniente da sua residência a uma das saídas secundárias do Terminal Access Point.
2. O sinal televisivo é susceptível de ser transportado e de ser materialmente apreendido, enquadrando-se por isso no conceito de coisa móvel.
3. O arguido ao proceder a ligação supra, desviando o sinal de televisão por cabo para a sua residência, consubstancia a prática de uma subtracção, retirando tal sinal da esfera da ... Cabo e colocando-a na sua esfera.
4. O tribunal a quo não recorreu a qualquer interpretação extensiva ou analógica na qualificação jurídica dos factos, antes encontra-se fundamentada em diversa doutrina e jurisprudência relevante.
5. A factualidade dos autos é subsumível ao ilícito penal de furto previsto e punido pelo artigo 203°, nº 1, do Código Penal (CP), encontrando-se de todo afastada a hipótese de tal actuação se enquadrar no artigo 104° da Lei das Comunicações Electrónicas, desde logo porque não se encontra em apreciação a utilização de qualquer dispositivo ilícito por parte do arguido.
Face ao exposto deve ser negado provimento ao presente recurso, devendo manter­-se nos seus precisos termos a douta sentença objecto de recurso.»

Na sequência do que veio a ser admitido o presente recurso (cfr. fls. 215).

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (cfr. fls. 223 e 224) no sentido da procedência do recurso.

Tendo sido dado cumprimento ao disposto no Art.º 417°, n.° 2 do C.P.Penal, veio a assistente responder (cfr. fls. 227 e 228), sustentando dever manter-se a sentença impugnada nos termos do já por si invocado em sede de resposta.

Proferido o despacho preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.


O objecto do recurso, em face das conclusões da respectiva motivação, reporta-se:
- ao pretenso entendimento que, in casu, o comportamento do arguido não consubstancia um crime de furto previsto no Art.º 203º, n.º 1 do C. Penal mas sim uma contra-ordenação p. e p. pelo Decreto-Lei n.º 176/2007 de 8 de Maio, que veio alterar a Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro.

No que ora interessa, é do seguinte teor a sentença recorrida:

«II – Dos factos
Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma apurou-se a seguinte factualidade:
2.1. Factos Provados
1. O arguido celebrou em Janeiro de 1999 um contrato com a …Cabo Portugal, S.A., através do qual esta última fornecia-lhe na sua residência sita na Rua …, nº , 2º .. C…, a distribuição do sinal de televisão por cabo, mediante o pagamento de uma mensalidade por parte do ora arguido.
2. Esse contrato vigorou até Outubro de 2002, data em que cessou por falta de pagamento das mensalidades por parte do ora arguido.
3. Em data não concretamente apurada, mas certamente entre 10 de Dezembro de 2002 e 25 de Junho de 2007, o arguido fez uma ligação não autorizada entre um cabo proveniente da sua residência a uma das saídas secundárias do “Terminal Access Point”.
4. O “Terminal Acess Point” é um elemento electrónico através do qual é efectuada a distribuição do sinal da televisão aos assinantes da … Cabo.
5. E dessa forma, pelo menos desde 25 de Junho de 2007 até 3 de Março de 2008, o arguido passou a ter acesso em sua casa aos serviços do pacote Clássico da … Cabo sem que pagasse a respectiva contraprestação pecuniária;
6. A mensalidade correspondente ao Pacote Clássico é de 22,99 euros.
7. A … Cabo cobra 25 euros pelo serviço de instalação e activação do serviço.
8. O arguido não pagou a quantia referida em 7..
9. A … Cabo suportou o custo de desligamento do cabo no valor de 10 euros.
10. O arguido bem sabia que o sinal da … Cabo não lhe pertencia, que agia sem autorização e contra a vontade da sua proprietária e quis fazer dele coisa sua.
11. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por lei.
12. As ligações não autorizadas provocam uma alteração no normal funcionamento da exploração do serviço prestado pela … Cabo.
13. E lesam a imagem da ... Cabo.
14. A … Cabo criou o Programa Vercli para fazer face, entre outros fins, às ligações de rede não autorizadas.
15. Na criação desse programa e de outras acções destinadas ao combate a tais ligações, a ... Cabo realizou um investimento pecuniário de valor não concretamente apurado.
16. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
17. O arguido é gerente e aufere 964 euros líquidos por mês.
18. O arguido paga uma renda de casa de 230 euros e cerca de 80 euros de despesas em água, electricidade e gás.
2.2.Factos não provados:
Não há factos não provados com relevância para a decisão da causa.

IV. Motivação de Direito
Fixados os factos provados, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal e verificar se estão preenchidos os elementos constitutivos do tipo penal de furto de que o arguido vem acusado, previsto pelo artigo 203.º, nº 1 do Código Penal.
Comete o crime de furto, previsto pelo artigo 203.º, nº 1 do Código Penal, “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia”, sendo punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
São elementos objectivos deste tipo de ilícito:
- A subtracção;
- De uma coisa móvel e alheia;
- E um dolo específico de ilegítima intenção de apropriação.
Analisemos em concreto cada um destes elementos.
Coisa móvel alheia
A definição de “coisa” para efeitos da incriminação de crimes contra o património não tem colhido unanimidade na doutrina e na jurisprudência.
Para José Faria Costa, in Comentário Conimbricense, Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora 1999, pág. 34 e seguintes, a pedra de toque para tal definição reside na corporeidade, enquanto susceptível de apropriação individual.
Por seu turno, Paulo Saragoça da Mata, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, de páginas 1000 a 1003, partindo do mesmo conceito de Faria e Costa, defende que o conceito de “coisa” para efeitos de incriminação de um crime “ (…) tem de ter características que nem todas as coisas, para o Direito em geral têm (…)”, seguidamente ao que, para melhor explicitação analisa detalhadamente alguns dos casos mais dúbios, como seja o caso das energias mecânicas e outras substâncias não palpáveis: electricidade, energia térmica e gás e informação armazenada em suportes informáticos, concluindo que em todos estes casos se pode verificar a apropriação por outrem.
Posição idêntica à de Faria Costa, tem Manuel da Costa Andrade conforme o mesmo defende em anotação ao artigo 212.º, do Código Penal, in Comentário Conimbricense vol. II, a páginas 208 e 209, assentando tal definição na corporeidade, entendida esta no sentido de se tratar de coisa materialmente apreensível ou, de qualquer forma, exposta à acção do homem, quer destrutiva quer modificativa, independentemente do seu estado físico.
Ora, entende este tribunal que, em suma, é coisa móvel alheia tudo aquilo que é susceptível de subtracção e apropriação por outrem, devendo o intérprete e julgador interpretar as normas necessariamente genéricas e abstractas de uma forma actualista, sob pena de, face à inovação e progresso tecnológicos galopantes nos dias de hoje, os tipos legais e os conceitos ali insertos se verem esvaziados de sentido e de aplicação prática.
Posto isto, será que o sinal de televisão por cabo é uma coisa móvel (sendo indiscutivelmente alheia) nos termos e para os efeitos supra referidos?
Cremos que sim.
Com efeito, o sinal de ... cabo, tal como a energia eléctrica e o impulso telefónico, é indiscutivelmente susceptível de ser transportado e de ser materialmente apreendido devendo nos termos do raciocínio supra expendido considerar-se enquadrável no conceito de coisa móvel.
Aliás, a jurisprudência largamente maioritária dos tribunais superiores tem pugnado precisamente pela posição de que a energia eléctrica, impulsos telefónicos, sinal de TV e de ... Cabo, são susceptíveis de apreensão e por isso subsumíveis ao conceito de coisa móvel supra referido (vide, neste sentido, entre outros, o Acórdão do Porto de 05.04.2006 in www.dgsi.pt).
Nem se diga que esta posição é contraditória com a criminalização do comportamento daqueles que fabricam, importam, distribuem, vendem, locam ou detêm, para fins comerciais, “equipamento ou programa informático concebido ou adaptado com vista a permitir o acesso a um serviço protegido, sob forma inteligível, sem autorização do prestador do serviço”, operada pelo disposto no n.º 3 do artigo 104.º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro. Na verdade, a conduta daquele que subtrai uma coisa móvel, ainda que seja um sinal de ... Cabo, não cabe de todo naquela incriminação e vice-versa, tendo o legislador optado, e em nosso entender bem, por sancionar criminalmente aqueles que “facilitam” a referida subtracção através do fornecimento do equipamento adequado a esse fim, o que não colide de forma alguma com a incriminação daqueles que recorrendo àqueles dispositivos ilícitos acabam por concretizar a subtracção.
Nem se diga tampouco que o Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de Maio, que, alterou a Lei das Comunicações Electrónicas, passando a punir como contra-ordenação a “aquisição, utilização, propriedade ou mera detenção, a qualquer título, de dispositivos ilícitos para fins privados do adquirente, do utilizador, do proprietário ou do detentor, bem como de terceiro» (cfr. nova alínea d) do n.º 1 do artigo 104.º e novo n.º 3 do artigo 113.º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro) inviabiliza de qualquer forma o nosso raciocínio. Na verdade, não só não seria a primeira vez nem a última que uma determinada conduta poderia ser subsumível simultaneamente a um tipo contra-ordenacional e a um tipo penal, como também se trata, em bom rigor, de sancionar condutas diferentes, já que a aquisição, utilização ou detenção dos referidos dispositivos ilícitos é desde logo coisa diferente da subtracção do sinal. Mais, em muitos casos, e em concreto no caso sub judice, a subtracção da coisa móvel (sinal televisivo) não é obtida mediante a utilização ou detenção de qualquer dispositivo ilícito, mas tão só através da realização de uma ligação não autorizada a um terminal de acesso. Deste modo, esta conduta nunca seria punida a título contra-ordenacional e não seria de todo sancionada caso não fosse subsumida, como é, ao disposto no artigo 203,º, n.º 1 do C.P..
Em suma, entendemos que o legislador ao criar um novo tipo criminal e um contra-ordenacional, não procurou afastar a subsunção de condutas como as em apreço ao tipo de furto, mas tão só incluir outras condutas que não eram sancionadas.
Subtracção
No que concerne ao conceito de “subtracção”, deve este ser entendido como uma conduta que faz com que as utilidades da coisa saiam do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor, entrando por essa via no domínio de facto do agente da infracção. Trata-se de uma ruptura de uma detenção originária e da constituição de uma nova detenção.
A subtracção não exige de facto a “apreensão”, pois basta que o ofendido fique desapossado e a coisa fique na “disponibilidade do agente ou de terceiro”, sendo, pois, decisivo a perda da “posse” por parte da vítima (vide, neste sentido, José Barreiros, in “Crimes Contra o Património”, página 23).
Para a prossecução do resultado final “apreensão”, são absolutamente indiferentes e irrelevantes as modalidades e os meios de realização da conduta. Conforme se defende no Acórdão da Relação de Coimbra de 24.11.2004 “Neste sentido, pode dizer-se, então, que o comportamento de subtracção é indesmentivelmente de realização livre. Consideramos mesmo, a esta luz, que o “desapossamento” e o consequente “apossamento”, com o sentido que lhe damos, possa ser feito sem apreensão manual ou mesmo sem dispêndio de energias físicas pessoais. Ilustrações do que se acaba de afirmar, se bem que sem representação estatística com forte valor heurístico, são as subtracções levadas a cabo por animais amestrados e aquelas outras prosseguidas por meios mecânicos, nomeadamente, os utilizados na apropriação ilícita de electricidade e de gás (Fiandaca/Musco Diritto penal. I delitti contro il patrimonio-pag. 61)( - José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pag. 44.)” (sublinhado nosso).
Serve esta breve enunciação teórica para sustentar que, no caso concreto, a conduta do arguido ao proceder à ligação de um cabo secundário ao terminal de acesso à rede, assim “desviando” sinal de televisão por cabo para a sua residência, consubstancia uma subtracção nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 203.º, n.º 1 do C.P., retirando tal sinal da esfera da sua proprietária (... Cabo) e colocando-a na sua esfera de forma segura e “pacífica”. A consumação formal ocorre assim no momento em que o arguido introduz o cabo no terminal respectivo, sem o consentimento da Assistente, passando a receber sinal de televisão, tendo a sua consumação material continuado no tempo ao longo de cerca de oito meses (crime de execução continuada ou duradoura).
Da intenção de apropriação
Encontrando-se delimitada a vertente objectiva do tipo de crime em análise, resta referir que, no que se refere à componente subjectiva do mesmo, se exige o dolo (art. 13.º do Código Penal), numa forma que tem sido qualificada como dolo específico (art. 203.º do mesmo diploma legal), para que o tipo seja plenamente preenchido.
Essa ilegítima intenção de apropriação, como explica José de Faria Costa (in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, p. 33) é uma “vontade intencional do agente de se comportar, relativamente à coisa móvel, que sabe não ser sua, como seu proprietário, querendo, assim, integrá-la na sua esfera patrimonial ou na de outrem, manifestando, assim, em primeiro lugar, uma intenção de (des)apropriar terceiro”.
Ora, atenta a factualidade provada dúvidas não subsistem de que o arguido agiu com a intenção de fazer seu o sinal de televisão por cabo, como fez, e agiu conhecendo (elemento intelectual do dolo) e querendo (elemento volitivo do dolo) o resultado da sua conduta, bem sabendo que tal lhe era proibido por lei.
Não se verificaram causas de exclusão da ilicitude nem da culpa.
Resta pois concluir que estão preenchidos quer os elementos objectivos quer os subjectivos do tipo de crime imputado ao arguido.
V- Das consequências jurídico-penais do crime
Da medida da pena
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VI. Do pedido de indemnização cível
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E, por isso, foi proferida a decisão que se transcreveu no início do presente acórdão.

Vejamos:

O âmbito dos recursos delimita-se pelas conclusões da motivação em que se resumem as razões do pedido. Sendo as conclusões proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Edição de 1981, Pág. 359).

No que releva para a única questão suscitada, torna-se, de imediato, forçoso referir que, de acordo com o disposto no Art.º 203º, n.º 1 do C. Penal, quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
São, assim, elementos deste tipo de crime: a) a subtracção; b) carácter alheio da coisa (móvel) e c) ilegítima intenção de apropriação (cfr. Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, II Volume, 3ª Edição – 2000, Pág. 619).
Nesta conformidade, para efeito do tipo legal do crime que acaba de se enunciar, importa, desde logo, determinar materialmente o conceito jurídico-penal de “coisa”.
Ora, segundo a Doutrina, em ordem a tal definição, deve valorizar-se essencialmente a noção de corporeidade, ainda que compreendendo realidades com alguma imaterialidade, como acontece com as energias mecânicas e outras substâncias não palpáveis, maxime a electricidade, a energia térmica e o gás.
Por conseguinte, o processo indutivo de determinação do conceito que ora se trilha, e que parte em última análise dos concretos tipos desenhados na legislação vigente para determinação do conceito global, permite constatar que a “coisa” susceptível de subtracção para que de um furto se trate tem de ter características que nem todas as “coisas”, para o Direito em geral, têm. Daí que Faria Costa, tanto quanto nos é dado a perceber, utilize indiciariamente, e bem, o critério da “autónoma corporeidade” para significar a susceptibilidade de física apropriação que as coisas têm que ter para poderem ser objecto material de subtracção para os efeitos do crime de furto (cfr. Paulo Saragoça da Matta, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Edição de 2003, Pág. 1002, com referência a José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Edição de 1999, Págs. 33 a 41).
Outrossim, sustentando posição idêntica, defende Manuel da Costa Andrade que a “corporeidade” deve entender-se no sentido de se tratar de coisa materialmente apreensível ou, de qualquer forma, exposta à acção do homem, quer destrutiva, quer modificativa, independentemente do seu estado físico (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Edição de 1999, Págs. 208 e seg.).
Mais ficou assente, in casu, que, em data não concretamente apurada, mas certamente entre 10 de Dezembro de 2002 e 25 de Junho de 2007, o arguido fez uma ligação não autorizada entre um cabo proveniente da sua residência a uma das saídas secundárias do “Terminal Access Point”, sendo certo que este se trata de um elemento electrónico através do qual é efectuada a distribuição do sinal da televisão aos assinantes da ... Cabo.
E dessa forma, pelo menos desde 25 de Junho de 2007 até 3 de Março de 2008, o arguido passou a ter acesso em sua casa aos serviços do pacote Clássico da ... Cabo sem que pagasse a respectiva contraprestação pecuniária.
Afigura-se-nos, porém, que o sinal de televisão recebido por cabo não deve, nesta perspectiva, ser valorizado como “coisa”.
E dizemos isto porque, de tudo o que supra se expendeu, flui inequivocamente que tal sinal, pela sua própria natureza, não é equiparável a qualquer forma de energia, muito embora se possa reconhecer que, para o seu transporte, seja necessária a sua utilização (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 17-12-2008, relatado pelo Exm.º Desembargador Carlos Almeida, in www.dgsi.pt).
Por sua vez, no momento da prática dos factos, já vigorava o Regime Jurídico das Comunicações Electrónicas, aprovado pela Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro, diploma este que não tutelou normativamente tal conduta, já que apenas aí foi criminalizada, nos termos do respectivo Art.º 104°, a actuação dos agentes que violem a proibição de fabricar, importar, distribuir, vender, locar ou deter, para fins comerciais, os dispositivos ilícitos que permitem o acesso ilegítimo a um serviço digital protegido.
Com efeito, só posteriormente, com a publicação do Decreto-Lei n.º 176/2007 de 8 de Maio, foi alterada a redacção dos Art.ºs 104° e 113° da mencionada Lei, passando a sancionar-se como contra-­ordenação "a aquisição, utilização, propriedade ou mera detenção, a qualquer titulo, de dispositivos ilícitos para fins privados do adquirente, do utilizador, do proprietário ou do detentor, bem como de terceiro”..
Aliás, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 176/2007 de 8 de Maio, diz-se expressamente que o legislador de 2004 não tinha pretendido abranger com a incriminação contida no n.º 3 do supra referido Art.º 104º «os comportamentos com finalidade privada, não comercial», mas que se entendia ser «necessário sancionar também o utilizador finar pela aquisição, pela utilização ou pela propriedade ou mera detenção, a qualquer título, de dispositivos ilícitos», passando a considerar-se que esses comportamentos consubstanciavam um ilícito de mera ordenação social.
Em consequência, tendo em conta, por um lado, que o citado Regime Jurídico das Comunicações Electrónicas configura "lei especial" e que, por outro, a lei especial posterior derroga a lei geral anterior (cfr. Art.º 7º do C. Civil), há que concluir que, tendo os factos dados como provados ocorrido em plena vigência daquele Regime Jurídico - com as alterações introduzidas por aquele último diploma legal -, no momento da sua prática não eram passíveis de tutela penal, mas antes meramente contra-ordenacional, o que sempre teria imposto - em lugar da prolação da sentença recorrida - a remessa dos autos ou de certidão deles á autoridade administrativa competente para conhecer da matéria contra-ordenacional participada (cfr. Art.ºs 115º e segs. da citada Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro e Art.º 38°, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro), conforme, aliás, bem salienta a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta.
Sendo de acrescentar, ainda para mais, que nem sequer se compreenderia a decisão de criminalizar, no n.º 3 do Art.º 104° da Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro, o comportamento daqueles que fabricam, importam, distribuem, vendem, locam ou detêm, para fins comerciais, «equipamento ou programa informático concebido ou adaptado com vista a permitir o acesso a um serviço protegido, sob forma inteligível, sem autorização do prestador do serviço», prevendo a aplicação de uma pena de prisão até 3 anos ou de uma pena de multa, quando se punia simultaneamente com a mesma pena abstracta, por força de uma disposição do Código Penal, aqueles que apenas tinham, ilicitamente, acedido ao serviço, o que aconteceria se se aceitasse a pretensão da assistente e a posição do tribunal de 1ª instância.
Daí que, a nosso ver, o comportamento do recorrente não consubstancia, em nosso entendimento, a prática do crime de furto pelo qual o mesmo foi acusado e condenado mas tão-somente a contra-ordenação p. e p. nos Art.ºs 104°, n.° 1, alínea d) e 113º, n.°s l, alínea sss) e 3, ambos da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 176/2007 de 8 de Maio.
Assim sendo, só se pode legitimamente concluir pela inexistência de tal crime, ao contrário do que se entendeu na sentença em crise.
Por outro lado, torna-se imperioso referir que o pedido de indemnização civil deduzido em processo criminal terá sempre de estar alicerçado na prática de um crime (cfr. Art.º 71º do C.P.Penal).
Como, em face do que supra se deixou expendido, resulta que não foi praticado o ilícito criminal em causa, apenas se pode extrapolar que inexistem, na sua globalidade, os pressupostos susceptíveis de levar à parcial procedência do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente nos termos consagrados na decisão recorrida.
Não pode, por conseguinte, deixar de se dar razão ao recorrente, o qual deverá ser, assim, absolvido, quer do crime que lhe foi imputado, quer do pedido cível.

*

Pelo exposto, acordam os juízes em conceder provimento ao recurso, com os fundamentos supra indicados e consequentemente:
- Absolver o arguido T… do crime de furto, pelo qual vinha acusado, bem como do pedido de indemnização cível contra si formulado.

Sem custas, nesta instância e, mercê do provimento do recurso, na parte cível, com a consequente absolvição do demandado, ficam as custas da 1ª Instância a cargo da demandante.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2009

José Simões de Carvalho
Margarida Bacelar