ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - Na falta de acordo entre as partes quanto à imputação do cumprimento, prevalece a vontade do devedor, atendendo-se à imputação por ele feita.
II - O que verdadeiramente legitima o exercício do direito de resolução do contrato de arrendamento é a prova do comportamento tipificado do locatário que, consubstanciando uma violação dos seus deveres contratuais, genericamente referenciados no artº 1038º, do Código Civil, habilita o senhorio, por esse motivo, à cessação unilateral da relação jurídica locatícia entre eles estabelecida.
III - Para subsistir o motivo para o despejo, com base na falta de pagamento de rendas, era necessário que o senhorio - a aquém competia o respectivo ónus de prova - tivesse demonstrado que a vontade da inquilina não era a de satisfazer as prestações vencidas naquele mesmo mês, mas outras, largamente pretéritas, que por motivos de caducidade do fundamento de resolução do contrato de arrendamento, não eram idóneas para obter a resolução do mesmo.
IV - Relativamente à dívida inerente à falta de pagamento das rendas que não são susceptíveis de fundar a resolução do contrato de arrendamento em apreço, já o ónus de prova competia, naturalmente, à devedora, dado que o pagamento não se presume.
(sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.
Intentou P, Lda., a presente acção de despejo, sob a forma de processo sumário, contra A e D.
Alegou, essencialmente, que :
É proprietária de uma fracção autónoma sita na Rua..  tendo a mesma sido dada de arrendamento, em data anterior à sua aquisição, à R. A, sendo o R. D fiador.
Os RR. não procederam ao pagamento de rendas desde Fevereiro de 2001 até à data da entrada em juízo da presente acção, em Dezembro de 2005.
Contudo, a R. fez seis pagamentos, no segundo semestre de 2005.
Conclui pedindo a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento das rendas ; o pagamento das rendas vencidas e vincendas, acrescida dos respectivos juros de mora ; uma sanção pecuniária compulsória de € 200,00 diários por cada dia de atraso na entrega da casa, livre e devoluta de pessoas e bens, e uma taxa de 5% sobre as rendas vencidas e não pagas.
Veio a R. A deduzir a sua contestação, impugnando o facto de não terem sido pagas as rendas, afirmando que o foram, e deduzir excepção de caducidade, por já ter decorrido mais de um ano desde o não pagamento de rendas até que a presente acção foi intentada.
A R. referindo que as rendas do segundo semestre de 2005 se encontram pagas, assim resultando alegado pelo A. na sua p.i., procede ao depósito das rendas com o acréscimo da indemnização de 50% do devido, relativamente às rendas referentes a Dezembro de 2004 até Junho de 2005.
Deduz ainda pedido reconvencional de indemnização por danos, incluindo os morais, derivados da interposição da presente acção, ao impugnar a qualidade de senhoria da A., com motivos que constam da peça processual apresentada.
A A. respondeu à excepção de caducidade pugnando pela inadmissibilidade da excepção nos termos apresentados.
Entretanto, veio a A. desistir da instância relativamente ao Réu D, o que foi homologado por despacho de fls. 153, com a sua consequente absolvição da instância.
                 Procedeu-se ao saneamento dos autos conforme fls. 189 a 205.
Realizou-se audiência final, tendo sido proferida decisão de facto conforme fls. 325 a 326.
Foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente, decretando-se a resolução do contrato de arrendamento, condenando-se a R. A a entregar o imóvel livre e desocupado ao A. ; condenando os RR.[1]. a pagar à A. as rendas vencidas de Agosto de 2001 até Novembro de 2004, e as de Julho de 2005 a Dezembro de 2005, acrescidas de juros de mora desde o seu vencimento, até integral pagamento e a a pagar à A. as rendas vincendas acrescidas de juros de mora até à entrega do locado  ( cfr. fls. 330 a 339 ).
Apresentou a R. A recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação ( cfr. fls. 346 ).
Juntas as competentes alegações, a fls. 349 a 370, formulou a R. apelante as seguintes conclusões :
1ª - A sentença final é contrária aos próprios factos em que se baseia o seu raciocínio e fundamento. Os fundamentos estão em oposição com a decisão - o que é razão fundada para o presente recurso ( alínea c), do nº 1, do artº 688º, do Cod. Proc. Civil ).
2ª - A sentença baseia-se no estatuído no artº 784º, do Código Civil para aí deduzir que os factos descritos na alínea E) da matéria de facto provado “ devem ser consideradas e imputadas a uma dívida vincenda já em 2001 “, sem inclusivamente especificar e quantificar afinal qual é essa dívida, sem sequer essa dívida ter sido provada pela A. como lhe competia fazer e não o fez.
Ao invés, a sentença, pura e simplesmente, desconheceu a existência do estatuído no nº 1, do artº 783º, do Código Civil que deveria ser a lei a aplicar-se ao caso, e acabou por a sentença, não só desrespeitar a lei ( artigo 783º, do Código Civil ) como contra ela decidiu.
3ª - Deve, pois, a sentença de que se recorre ser revogada e ser considerado e decidido que o direito à resolução do contrato de arrendamento em causa caducou, por inclusivamente as rendas devidas há um ano, invocadas pela Ré, já estarem pagas, e inclusive parte delas à disposição do Tribunal desde o início dos autos.
Devendo, pois, considerar-se em pleno vigor o arrendamento habitacional em causa.
4ª- Deverá a Ré ser ainda absolvida do pagamento das rendas vencidas, por esta não serem devidas, pois inclusivamente a sua falta de pagamento atempadamente e mensalmente devida, nem sequer foi provada, nem quantificada, pois se a A. que intentou a acção não conseguiu sequer fazer a mínima prova dessas dívidas por parte da Ré, não é justo, nem legal, que uma sentença meramente arbitrária e violadora da lei, tal venha a impor.
Foram apresentadas contra-alegações, nas quais a apelada pugnou pela manutenção do decidido.
 
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provado nos autos que :
a) Por escritura pública de compra e venda, de 24 de Janeiro de 1984, outorgada no 16º cartório notarial de Lisboa, a A. declarou adquirir a fracção sita na Rua,  em termos que constam de fls. 52 a 56;
b) Acontece que a referida fracção já estava arrendada à R. desde 1 de Setembro de 1972, por contrato escrito, em termos e condições que constam de fls. 18 e 19, que ora se dão por reproduzidos;
c) No dia 7 de Fevereiro de 2006 a R. procedeu ao depósito da renda, em impresso da Caixa Geral de depósitos, na agência do Palácio da Justiça, no valor de € 663,29, à ordem deste processo, relativa a rendas de Dezembro de 2004 a Junho de 2005, e “compensação legal”, em termos e condições que constam de fls. 49;
d) Por força das sucessivas actualizações, o valor da renda era em 2005 de €63,17, tendo passado a partir de Janeiro de 2006 para €64,5;
e) Em 8/7/2005 a R. depositou a quantia de €65 na conta da A.; em 25/7/2005 a R. depositou a quantia de €65 na conta da A; em 22/8/2005 a R. depositou a quantia de €65 na conta da A; em 26/9/2005 a R. depositou a quantia de €60 na conta da A.; em 2/11/2005 a R. depositou a quantia de €63,17 na conta da A., em 2/12/2005 a R. depositou a quantia de €63,17 na conta da A..

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
As questões jurídicas que importa dilucidar são as seguintes :
1 - Da invocada nulidade da sentença, nos termos da alínea c), do nº 1, do artº 668º, do Cod. Proc. Civil.
2 - Impugnação da decisão de facto.
3 - Do fundamento para a resolução do contrato de arrendamento. Imputação dos pagamentos realizados pela Ré. Ónus de prova.
4 - Das rendas em dívida.
Passemos à sua análise :
 1 - Da invocada nulidade da sentença, nos termos da alínea c), do nº 1, do artº 668º, do Cod. Proc. Civil.
Os fundamentos expendidos na decisão recorrida - independentemente da sua valoração na concernente perspectiva jurídica - são inteligíveis, deles resultando, sem quebra das regras da lógica, a decisão final ora impugnada.
Não se verifica, portanto, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão com base neles proferida.
Diferentemente,
Existe, sim, frontal discordância da ora recorrente relativamente à decisão de mérito, o que constitui, de resto, a justificação substancial para o presente recurso de apelação.
Improcede, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos a arguida nulidade da sentença.
2 - Impugnação da decisão de facto.
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões[2] nelas colocadas[3], artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, 660.º, n.º 2, e 713.º, todos do Cod. Proc. Civil.
Nas conclusões das alegações de recurso a apelante nada refere a respeito da impugnação da decisão de facto, não especificando quais as concretas respostas aos pontos da base instrutória que deveriam ser, no seu entender, modificadas.
Logo, em conformidade com as disposições legais supra citadas, tal matéria não pode, por esse mesmo motivo, ser conhecida no âmbito da apelação. 
3 - Do fundamento para a resolução do contrato de arrendamento. Imputação dos pagamentos realizados pela Ré. Ónus de prova.
Encontra-se provado que :
No dia 7 de Fevereiro de 2006 a R. procedeu ao depósito da renda, em impresso da Caixa Geral de depósitos, na agência do Palácio da Justiça, no valor de € 663,29, à ordem deste processo, relativa a rendas de Dezembro de 2004 a Junho de 2005, e “compensação legal”, em termos e condições que constam de fls. 49;
           Por força das sucessivas actualizações, o valor da renda era em 2005 de €63,17, tendo passado a partir de Janeiro de 2006 para €64,5;
           Em 8 de Julho de 2005, a R. depositou a quantia de € 65 na conta da A.; em 25 de Julho de 2005, a R. depositou a quantia de € 65 na conta da A; em 22 de Agosto de 2005, a R. depositou a quantia de € 65 na conta da A; em 26 de Setembro de 2005, a R. depositou a quantia de € 60 na conta da A.; em 2 de Novembro de 2005, a R. depositou a quantia de € 63,17 na conta da A. ; em 2 de Dezembro de 2005, a R. depositou a quantia de € 63,17 na conta da A..
Consta da decisão recorrida, a propósito do fundamento da resolução do contrato de arrendamento :
“ O pagamento das rendas não caduca, mas sim prescreve, e nos termos do art. 310º b) CC, ou seja em 5 anos a contar do momento em que seriam devidas. O A. invoca o não pagamento de rendas desde Fevereiro de 2001, e a presente acção entrou ainda não tinham decorrido os cinco anos. Fica assim assente que as rendas não prescreveram (para o caso de se entender que quando a R. alega a caducidade erra na denominação jurídica e quer-se referir à prescrição). E nessa medida, as rendas que não tenham sido pagas e sejam peticionadas são necessariamente devidas.
E quanto à excepção de caducidade relativa ao pedido de resolução do contrato?!
Como referia Aragão Seia, in Regime do Arrendamento Urbano, anotado e comentado, 4ª edição, pág. 377, se o fundamento da acção forem rendas devidas há mais e menos de um ano, as primeiras não têm qualquer influência na resolução do contrato, por ter caducado o direito à resolução com tal fundamento, mas o arrendatário será condenado a pagar todas as rendas devidas, em singelo.
Como refere, citando o acórdão da Relação de Lisboa de 30/5/1980, CJ V, 3, 181, cada uma das prestações vencidas constitui um facto com autonomia para o efeito de contagem do prazo de caducidade. Se esta for invocada tem de se considerar caduco o direito de resolução do contrato quanto às rendas devidas há mais de um ano.
Não tem pois natureza continuada o não pagamento de rendas, mas sim instantânea.
Ora, a A. peticiona a resolução do contrato com base na falta de pagamento de rendas desde 2001, e a presente acção deu entrada em juízo em Dezembro de 2005. Destarte, pelo que atrás se expôs, e que já tinha ficado decidido na audiência preliminar, apenas o não pagamento das rendas devidas de Dezembro de 2004 a Dezembro de 2005 pode fundar a pretensão da A. e constituir fundamento d resolução do contrato de arrendamento.
E o que se provou quanto a estas?!
Com a citação para a presente acção, e antes do prazo da contestação, a 1ªR. procedeu ao depósito na Caixa Geral de Depósitos, nos moldes dados por assentes, das rendas de Dezembro de 2004 a Junho de 2005, e “compensação legal”, em termos que constam de fls. 49.
Estatui o art. 22º do RAU que o arrendatário pode depositar a renda quando ocorram determinados pressupostos, de entre os quais, o de fazer caducar o direito à resolução do contrato, por falta de pagamento de rendas, nos termos do art. 1041º nº 2 do CC e 1048º do mesmo diploma. E assim sendo, se o arrendatário depositar o valor das rendas acrescido de uma indemnização de 50% desse valor, caduca o direito à resolução do contrato com esse fundamento.
E a arrendatária assim o fez, mas fê-lo apenas relativamente às rendas de Dezembro de 2004 a Junho de 2005. Ora, como vimos, as rendas de Julho de 2005 a Dezembro de 2005 têm ainda relevância para efeitos de resolução do presente contrato.
E quanto a estas que se provou?! Que em 8/7/2005 a R. depositou a quantia de €65 na conta da A.; em 25/7/2005 a R. depositou a quantia de €65 na conta da A; em 22/8/2005 depositou a quantia de €65 na conta da A; em 26/9/2005 depositou a quantia de €60 na conta da A.; em 2/11/2005 depositou a quantia de €63,17 na conta da A., em 2/12/2005 depositou a quantia de €63,17 na conta da A.
Alegou a A. que tais pagamentos se deveram a rendas atrasadas, e foram imputadas a essas. Alega a R. que as rendas respeitam ao mês em que foram depositadas.
Vejamos.
É o A., que pretende fazer valer um direito, de resolver o contrato, que deve e cabe provar os factos que servem de suporte à sua pretensão, como é o caso do não pagamento de rendas, que no caso em concreto se traduz no que invocou, no facto de os valores depositados respeitarem a rendas antigas e não às desse mês.
Não se logrou provar tal facto, mas significa isto que os pagamentos efectuados em Julho a Dezembro de 2005 (com excepção de Outubro) se devem imputar a esses mesmos meses?!
Refere o art. 784º CC (normas supletivas, precisamente para as situações em que nada se encontra previsto quanto à imputação dos pagamentos às dividas) que: se o devedor não fizer a designação, deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data.
Como é bom de ver, qualquer renda oferece a mesma garantia para o credor, e todas são igualmente onerosas, donde, a haver aplicação do preceito, devem os pagamento efectuados ser imputados às rendas em atraso e não às rendas do mês em que foram depositadas.
Tal significa que importa aferir se existem rendas em atraso, por parte dos RR, para as quais possam ser imputados tais pagamentos provados.
Tendo presente que o contrato de arrendamento é um contrato sinalagmático, o pagamento das rendas afigura-se como a contraprestação dessa relação contratual pela cedência do locado. Destarte, o seu incumprimento investe o obrigado no dever de proceder à prestação em falta (rendas vencidas e vincendas).
Como no caso dos autos a A. disponibilizou o locado, cumprindo a sua parte, por parte dos R.R. sempre haveria a correspondente obrigação de pagar as rendas. Na verdade, nos termos do art. 1045º do CC, "se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, (...)".
Por força do contrato celebrado, é automaticamente devida a renda (excepto se a R algo invocar que a isso obste). E cabe aos RR. demonstrar que o pagamento foi efectuado. E tal sucede não apenas porque se trata de uma prestação negativa, mas sobretudo, porque não compete ao A. demonstrá-lo.
Para a sua pretensão só tem de provar que disponibilizou o locado, para que de imediato o pagamento lhe seja devido. É ao locatário que cabe provar que pagou, ou algum facto que seja impeditivo, modificativo ou extintivo desse pagamento.
E a R. não o provou.
É pois fácil concluir que o pedido de condenação no pagamento das rendas tem de proceder, pelo menos parcialmente, pois as rendas devidas desde Fevereiro de 2001 até Novembro de 2004 não foram liquidadas (não provaram os RR o seu pagamento).
As rendas a partir de Dezembro de 2004 a Junho de 2005 foram depositadas na Caixa Geral de Depósitos, nos termos do art. 22º RAU, já o vimos, e como tal não podem ser devidas.
E os pagamentos efectuados, e provados nos autos, feitos na conta da A. de Julho de 2005, feitos sem determinação (provou-se apenas que a R. depositou na conta da A., e não que o fez para pagamento de rendas) até Dezembro desse ano, 2005, por força do art. 784º CC têm de ser imputados às seis rendas vencidas mais antigas, ou seja, às de Fevereiro de 2001 a Julho de 2001.
É que note-se. Nunca se provou que a R. tenha pago a renda dos meses de Julho de 2005 a Dezembro desse ano, mas sim que em determinadas datas, duas vezes em Julho, uma em Agosto, uma em Setembro, uma em Novembro e uma em Dezembro, depositou valores análogos (umas vezes superiores, outras inferiores) ao valor das rendas. Mas por força do disposto normativo legal invocado, os pagamentos efectuados, por existir uma dívida têm de ser imputados às dívidas – rendas – mais antigas.
E nessa medida constata-se que as rendas cujo pagamento é devido ao A. são as de Agosto de 2001 até Novembro de 2004, e as de Julho de 2005 a Dezembro de 2005 (e as que entretanto se tiverem vencido, com a presente acção, desconhecendo-se se algum pagamento foi mais efectuado). E constata-se que precisamente as rendas de Julho de 2005 a Dezembro desse ano, por não estarem pagas são suficientes para decretar a resolução do contrato, e consequentemente o despejo da 1ªR do locado.
Tem assim a A. direito a receber as quantias equivalentes às rendas vencidas até à entrega do locado, acrescida de juros de mora, sendo devidos juros desde a data de vencimento de cada renda. Ou seja, por cada mês em falta que não seja paga a renda, esta é devida assim como os juros relativos a esse mês. “.
Apreciando :
A decisão da questão jurídica fulcral que conduziu à procedência da acção, mediante a conclusão de que a A. era efectivamente titular do direito de resolução do contrato de arrendamento sub judice, prendeu-se, essencialmente, com a operação jurídica de imputação dos pagamentos realizada na decisão recorrida ( referidos no artº 15º, da petição inicial e no artº 8º, da contestação - rendas vencidas nos meses de Julho a Dezembro de 2005 - ).
Segundo o juiz a quo, não tendo a Ré feito prova de que tais pagamentos se reportassem às rendas referentes aos meses de Julho a Dezembro de 2005, e na ausência de designação do devedor quanto à respectiva imputação, valeria a norma supletiva do artº 784º, do Código Civil : tais pagamentos seriam imputados às rendas em débito de Fevereiro a Julho de 2001, por serem as mais antigas.
Este pressuposto teve como consequente implicação considerarem-se em dívida as rendas respeitantes aos meses de Julho a Dezembro de 2005 - passíveis de fundamentar à resolução do contrato, preenchendo-se a previsão do artº 64º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano ( R.A.U. ), aprovado pelo Decreto-lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
Daí o decretado despejo.
Afigura-se-nos não ser de sufragar tal posição.
Vejamos :
Cumpre, em primeiro lugar, salientar que
O primeiro e prevalecente critério de imputação do cumprimento consta do artº 783º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual :
“ Se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere. “.
Ou seja,
Na falta de acordo entre as partes quanto à imputação do cumprimento, prevalece a vontade do devedor, atendendo-se à imputação por ele feita[4].
Ora,
Precisamente sobre esta mesma matéria,
Perguntava-se no ponto 4º, da base instrutória :
“ Os depósitos referidos em E) dos Factos Assentes, respeitaram a pagamentos efectuados pela Ré, relativos a rendas atrasadas, ou seja, rendas devidas desde a renda do mês de Março de 2001 ? “.
Em seguida,
Foi elaborado o ponto 5º, da base instrutória, questionando-se se :
“ Os depósitos referidos em E) dos Factos Assentes, foram relativos às rendas de cada mês que dos depósitos consta ? “.
Isto é,
Através deste dois pontos da base instrutória, elaborados acerca duma questão de facto absolutamente decisiva para a sorte do pleito, perguntava-se exactamente a mesma realidade, o seu verso e reverso, primeiramente na óptica do ónus de prova a cargo da A. - ponto 4º, da base instrutória -, e depois na perspectiva do ónus de prova a cargo da Ré - ponto 5º, da base instrutória.
Acontece que,
neste domínio,
apenas uma das partes teria que suportar a incumbência legal de provar tal factualidade, sob pena de, não o fazendo, dever arcar com as respectivas consequências desfavoráveis, no plano substantivo.
É o que determina, em termos gerais, a regra da repartição do ónus da prova[5].
Conforme sublinha o Prof. Manuel de Andrade in “ Noções Elementares de Processo Civil “, pag. 199 : “ …diz-se que tem o ónus da prova aquela parte contra a qual, na dúvida, o juiz sentenciará - resolvendo, para o efeito, o non liquet desfavorável a essa parte. “.
Na situação sub judice,
Ambos os pontos da base instrutória foram respondidos negativamente, acabando por penalizar-se a Ré inquilina, com recurso, supletivamente[6], à previsão do artº 784º, do Código Civil.
Não se nos afigura correcto este raciocínio.
Neste tocante,
haveria, antes de mais, que decidir sobre quem ( A. ou Ré ) recaía, segundo a lei, o ónus de provar tal factualidade.
Só depois de previamente definido o funcionamento desta basilar regra processual, seria possível retirar as inerentes consequências, no plano da aplicação do direito substantivo, em conformidade com a prova produzida ou em função da falta dela.
Aqui chegados,
Cumpre afirmar que
Entendemos que o ónus de prova competia, neste particular, à A., senhoria.
Com efeito,
Encontramo-nos no âmbito duma acção destinada à declaração da resolução do contrato de arrendamento.
A verificação de cada um dos fundamentos previstos nas diversas alíneas do nº 1, do artº 64º, do R.A.U., constitui, obviamente, um facto constitutivo do direito daquele que intenta, com base neles, a respectiva acção de despejo.
De salientar que,
Na situação sub judice, e neste ponto concreto, não está em causa a mera falta de cumprimento duma determinada obrigação pecuniária.
Note-se que
A presente acção não reveste, neste aspecto, a natureza duma simples acção de dívida.
De salientar, ainda, que
 não está invocada, neste caso particular e no que concerne aos pressupostos de facto de que depende este despejo, a pura e dura ausência da entrega do dinheiro necessário ao pagamento da renda ( esta foi efectivamente realizada e recebida pelo senhorio - restando saber, apenas, dos seus efeitos extintos da obrigação do locatário, em virtude da subsequente operação de imputação do cumprimento ).
Assim sendo,
O que verdadeiramente legitima o exercício do direito de resolução do contrato de arrendamento é a prova do comportamento tipificado do locatário que, consubstanciando uma violação dos seus deveres contratuais, genericamente referenciados no artº 1038º, do Código Civil, habilita o senhorio, por esse motivo, à cessação unilateral da relação jurídica locatícia entre eles estabelecida.
Logo,
O que essencialmente se discute, no âmbito específico da prova do fundamento de resolução do contrato de arrendamento, é se determinados pagamentos, efectiva e pacificamente reconhecidos como tendo acontecido, foram feitos pela inquilina com vista a cumprir a sua obrigação de pagamento das rendas respeitante aos meses em que ocorreram ou se, pelo contrário, visavam pagar rendas em dívida, vencidas quatro anos antes.
Só demonstrando esta segunda - e altamente insólita, diga-se - hipótese, existiria in casu o invocado fundamento para o despejo.
Recorde-se, a este propósito, que
bastava a Ré inquilina ter entregue os montantes mensais com o intuito de satisfazer as rendas referentes àqueles meses ( e não a quaisquer outros ), para a operação jurídica de imputação do cumprimento dever ocorrer de acordo com a sua exclusiva vontade, nos termos do artº 783º, do Código Civil, independentemente dos interesses ou atitudes do senhorio credor.
Era, portanto, o A. quem, nos termos gerais do artº 342º, nº 1, do Código Civil, teria que produzir tal prova, justificando a grave violação dos deveres do locatário, legalmente incompatível com o seu ( dele ) direito à manutenção do contrato.
Não o havendo feito, cumpre tão somente concluir que não se encontram em dívida as rendas respeitantes aos meses de Julho a Dezembro de 2005, falecendo, inevitavelmente, o fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto na alínea a), do nº 1, do R.A.U..
Ou seja,
No fundo,
 Prevalece a simplicidade dos factos lineares que demonstram aquilo que, insofismavelmente, a sua evidência revela : um pagamento de renda feito em Julho de 2005 dirá, naturalmente, respeito à renda vencida nesse mês ou no mês seguinte e não às rendas - que a inquilina sempre negou encontrarem-se em dívida - de três ou quatro anos antes….
Parece comum, lógico e óbvio.
Pelo que a presente acção, no que concerne ao pedido de despejo, terá inevitavelmente que ser julgada improcedente.
Acrescente-se, a este propósito, que
não faz sentido conceber, em termos totalmente artificiais e desprendidos da realidade da vida - que o Direito é suposto, instrumentalmente, servir -, que tal entrega, na perspectiva de quem a realizou, foi dirigida, de forma indiferenciada e sem causa próxima, ao pagamento duma prestação de renda, qualquer que ela fosse, do presente ou do longínquo passado.
É óbvio que quando a Ré entregava à A., mensalmente, determinado montante pecuniário para pagamento da renda, e esta, correspondente e consecutivamente, o ia recebendo, aceitando-o, com naturalidade e sem indícios de rejeição ou reserva, teve necessariamente em mente a extinção, pelo cumprimento, de determinada obrigação concreta, vencida nesse mesmo mês ou em data relativamente próxima.
No mesmo sentido,
ofende todas as regras da experiência da vida, que o mesmo senhorio disso não tivesse consciência ou que julgasse que esse pagamento se destinava a satisfazer uma ínfima parte da dívida global de rendas acumulada há anos, permitindo, nesse pressuposto, simultaneamente e sem rebuço, que as rendas actuais continuassem, tranquilamente, por pagar.
Em suma,
Para subsistir o fundamento para o despejo era necessário demonstrar que a vontade da devedora - a quem competia o direito de decidir qual das prestações pretende cumprir - não era a de satisfazer as prestações vencidas naquele mesmo mês, mas outras, largamente pretéritas, que, com tão magra amortização, sempre ficariam muito longe de cobrir o saldo devedor ao longo dos anos engrandecido.
A apelação procede neste particular.
4 - Das rendas em dívida.
Relativamente à dívida inerente à falta de pagamento das rendas que, pelos motivos desenvolvidos na decisão recorrida, não são susceptíveis de fundar a resolução do contrato de arrendamento em apreço, já o ónus de prova competia, naturalmente, à devedora, dado que o pagamento não se presume.
Neste tocante,
A Ré não produziu prova de ter procedido ao pagamento das rendas em que foi condenada - com excepção das referentes a Julho a Dezembro de 2005, pelos motivos explanados supra[7].
Neste particular,
a impossibilidade de modificação da decisão de facto proferida obsta à possibilidade duma decisão diversa da constante na sentença recorrida.
Impõe-se, desse modo, a sua condenação conforme o decidido.
A apelação improcede, neste ponto.

IV - DECISÃO :
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida na parte em que considera verificado o fundamento para a resolução do contrato de arrendamento sub judice, absolvendo-se a Ré desse pedido - não se decretando o despejo -, e confirmando-se a mesma na parte sobrante.
Custas pela apelante e pela apelada, em partes iguais.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2009.
      
Luís Espírito Santo                                              
Pires Robalo       
Cristina Coelho
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[1] Verificar-se-á, neste tocante um manifesto lapso, uma vez que o Réu D foi absolvido da instância, por via da desistência judicialmente homologada ( cfr. fls. 153 ).
[2] O Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está o mesmo sujeito às razões jurídicas invocadas também pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, nos termos do art.º 664º, do Cod. Proc. Civil.
[3] Bem como as que forem de conhecimento oficioso, com excepção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras.
[4] Sobre este ponto, vide Prof. Inocêncio Galvão Telles in “ Direito das Obrigações “, pag. 215 ; Prof. Antunes Varela in “ Das Obrigações em Geral “, II Volume, pag. 55 a 56 ; Luís Menezes Leitão in “ Direito das Obrigações “, pag. 166, onde refere que “ A lei considera que a imputação do cumprimento é uma faculdade do devedor, cabendo, portanto, a este, sem necessidade de qualquer acordo com o credor, escolher a dívida ou dívidas a que o cumprimento se refere ( artº 783º, nº 1 ). Essa faculdade de designação sofre, no entanto, algumas restrições em relação a certas categorias de dívidas, que só podem ser designadas pelo devedor para imputação do cumprimento se o credor der o seu assentimento.”.
[5] Sobre este ponto, vide Prof. Antunes Varela, in “ Manual de Processo Civil “, pags. 430 a 442, onde o insigne autor salienta : “ À parte interessada é que incumbe, não só a iniciativa de afirmar os factos essenciais ao direito ou à excepção que invoca ( ónus de afirmação ), mas também o encargo de desenvolver toda a actividade instrutória capaz de provar a verificação desses factos, sob pena de se considerarem como inexistentes e o de o direito ou a excepção não procederem. “ ; sobre a distribuição do ónus da prova, vide, ainda, Prof. Anselmo de Castro, in “ Direito Processual Civil Declaratório “, Volume III, pags. 351 a 365.
[6] Por se haver interpretado tais respostas negativas como falta de prova da designação da imputação do cumprimento por parte do devedor.
[7] Não tendo a A. apelada prevenido, através do recurso ao expediente técnico-processual previsto no artº 684º-A, do Cod. Proc. Civil, a hipótese de vencimento da versão sustentada pela apelante, deixará, por esse mesmo motivo, de ver judicialmente reconhecido o seu direito ao recebimento das rendas erroneamente dadas como pagas (  respeitantes ao ano de 2001 ), por via da incorrecta aplicação do mecanismo jurídico de imputação de pagamentos.