CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ACÇÃO DE DESPEJO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
Sumário

A conjugação do disposto nos artºs. 14º nºs. 3 a 5 do NRAU, 1048º nºs. 1 e 3 e 1084º nº 3 do Código Civil, permite concluir que a acção declarativa de condenação por falta de pagamento de rendas no âmbito de um contrato de arrendamento continua a constituir meio que pode ser utilizado pelo senhorio para fazer cessar a relação de arrendamento, uma vez que a resolução extrajudicial do contrato com base em tal fundamento encontra-se prevista na lei enquanto mera faculdade concedida ao senhorio.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório
1- “A, Ldª” demandou “B, Ldª”, peticionado a resolução do contrato de arrendamento celebrado com esta última, o consequente despejo do locado e a sua condenação no pagamento das rendas vencidas e não pagas, bem como juros moratórios.
Para fundamentar o seu pedido, a A. alegou a celebração, em 2/5/1964, de um contrato de arrendamento comercial entre a R. e os então proprietários do imóvel identificado nos autos, bem como a falta de pagamento das rendas convencionadas relativas aos meses de Agosto a Outubro do ano de 2008.
2- Regularmente citada, a R. não deduziu contestação, constituindo-se em revelia absoluta (artºs. 483º e 484º do Código de Processo Civil, aplicáveis ao caso “ex vi” artº 463º nº 1 do Código de Processo Civil).
3- Foi proferido despacho a declarar confessados os factos articulados pela A., nos termos dos artºs 484º e 485º do Código de Processo Civil, aplicáveis ao caso “ex vi” artº 463º nº 1 do Código de Processo Civil.
4- Foi, de imediato, proferido despacho saneador nos seguintes termos :
“O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da hierarquia e da matéria.
Inexistem nulidades que afectem todo o processo.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e encontram-se devidamente representadas, estando a A. devidamente patrocinada.
Com a entrada em vigor da Lei nº 6/2006 de 27/02, o que aconteceu a 27 de Junho do mesmo ano (cfr. artigo 65º do diploma legal em análise), o regime do arrendamento urbano foi profundamente alterado, tendo-se, inclusivamente, alterado o paradigma do vinculismo que regia esta matéria no âmbito da disciplina legal pretérita.
Semelhante alteração passou por permitir ao locador a resolução do contrato de arrendamento urbano, habitacional ou não, com fundamento na falta de pagamento de rendas com recurso a um processo extrajudicial, previsto actualmente nos artigos 1083º n.ºs 1 e 3 e 1084º do Cód. Civil (o qual passou novamente a contemplar a matéria em apreço), e nos artigos 9º, n.º 7, 15º e 14º, este último interpretado a contrario, da Lei nº 6/2006.
Assim, e nos termos das disposições acima referidas, basta ao locador dirigir comunicação, efectuada nos termos previsto no artigo 1084º do Cód. Civil, ao arrendatário relapso para obter não só o efeito resolutivo do contrato de arrendamento, mas também para ficar munido de título executivo que lhe permite obter a desocupação do locado e o pagamento coercivo das rendas em dívida.
Contudo, atendendo ao conteúdo da previsão normativa do artigo 15º da Lei nº 6/2006, não restam dúvidas a este Tribunal que o título executivo em apreço é constituído não só pela comunicação resolutiva, mas também – e necessariamente – pelo contrato de arrendamento cujo termo de vigência se alcançou por via daquela comunicação.
Como escreve Maria Olinda Garcia (Acção Executiva para Entrega de Imóvel Arrendado, páginas 45 e 46) trata-se de um título executivo complexo ou composto já que integrado por dois elementos, a saber, o contrato de arrendamento escrito e a comunicação resolutiva.
A tudo o acima exposto, acresce o facto de o regime introduzido pela Lei nº 6/2006 aplicar-se aos contratos de arrendamento celebrados antes da sua entrada em vigor, tal como resulta expressamente do vertido no artigo 59º do diploma legal referido. Do que resulta que à resolução do contrato de arrendamento sub judicio e por factos ocorridos posteriormente à entrada em vigor daquela Lei, aplica-se o regime nesta previsto (neste sentido, Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 4.ª Edição actualizado, Vol. II, página 1014).
Considerando que o facto resolutivo alegado pela A. iniciou-se já durante a vigência da Lei nº 6/2006, dúvidas não restam que poderia ter lançado mão do modo de resolução do contrato acima melhor descrito ; tanto mais que o contrato de arrendamento celebrado o foi por escrito, ou seja, as declarações de vontade concordantes no sentido de ser cedido o gozo temporário do imóvel mediante retribuição, foram vertidas num documento, in casu, numa escritura pública.
Na verdade, afigura-se a este Tribunal que, inexistindo contrato de arrendamento escrito – o que, efectivamente, pode acontecer, atendendo ao vertido no regime do arrendamento urbano ora revogado, nomeadamente, ao constante do seu artigo 7º, nºs. 2 e 3, conjugado com o constante no nº 2 do artigo 12º do Cód. Civil – impossível se torna obter título executivo nos termos e para os efeitos do artigo 15º, nº 1, alínea e) da Lei nº 6/2006, uma vez que falha um dos elementos do complexo título executivo aí previsto, a saber, e como é evidente, o documento concernente ao arrendamento.
Nestas situações de inexistência de contrato escrito, indispensável se revela o recurso a acção declarativa na qual se solicite o reconhecimento de ter sido o contrato resolvido nos termos legais. O que, no entender deste Tribunal, é exclusiva justificação do regime contido no artigo 1048º, nº 1 do Cód. Civil e que respeita à expurgação da mora na situação de atraso no pagamento de rendas.
Passando a explicar, lê-se no preceito em referência que o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da acção declarativa ou para oposição à execução, destinadas a fazer valer esse direito, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no nº 1 do artigo 1041º do Cód. Civil.
O facto de neste preceito se referir a acção declarativa destinada a fazer valer o direito à resolução do contrato de arrendamento tem sustentado a posição jurisprudencial e doutrinal de que nas situações previstas no artigo 1084º do Cód. Civil, e pese embora a letra do nº 1 do artigo 14º da Lei nº 6/2006, é facultado ao locador o recurso à acção despejo prevista na última das disposições legais referidas (neste sentido, Acs.R Lisboa de 25.02.2008 e RPorto de 26.02.2008, ambos in www.dgsi,pt). Semelhante posição defende que a referência realizada no preceito em análise deve ser interpretada no sentido de dispor o locador dos dois meios para pôr termo ao contrato de arrendamento. E sendo certo que sustentando posição diferente, Pinto Furtado (in op. cit., página 1027) manifesta perplexidade relativamente à referência legal à acção declarativa, atribuindo tal alusão a um puro lapso, fruto da mecânica reprodução do texto anterior, quando o processo resolutivo por parte do senhorio era a acção de despejo.
Ora, e como acima já se foi adiantando, entende este Tribunal que a referência em apreço tem todo o cabimento em face dos inúmeros contratos de arrendamento verbais, formalmente válidos e ainda em vigor na actualidade, não se devendo apenas a um lapso de adequação do texto legal ao novo regime.
Afigura-se antes, e na senda da regra interpretativa contida no nº 3 do artigo 9º do Cód. Civil, que o legislador consagrou a solução acertada, tendo sabido exprimir o seu pensamento, uma vez que não se olvidou do regime pretérito do arrendamento urbano e do facto de os contratos validamente celebrados no seu âmbito, mas verbalmente, jamais poderem constituir título executivo no termos do artigo 15º da Lei nº 6/2006.
Donde, entende-se que o argumento extraído do artigo 1048º, n.º 1 do Cód. Civil pelos defensores da tese acima referida não é decisivo para a fundamentar.
Por outro lado, não se pode olvidar a letra do artigo 14º, nº 1 da Lei nº 6/2006 no qual se lê : A acção de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação.
Parece, assim, ter pretendido o legislador limitar o recurso à via judiciária às situações em que não seja possível resolver o contrato de arrendamento por outra forma. Aliás, neste sentido escreve Maria Olinda Garcia (in op. cit., página 29): Como resulta do nº 1 do artigo 14º, a acção de despejo tem o seu âmbito limitado às hipóteses em que a lei impõe o recurso à via judicial para fazer cessar o arrendamento e, como já se referiu, essa imposição legal verifica-se apenas em certas hipótese de resolução e de denúncia por parte do senhorio. No mesmo sentido, propugnam Pinto Furtado, Menezes Leitão e Fernando Baptista de Oliveira (in, respectivamente, op. cit., página 1027, A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano, páginas 129/139, e Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, páginas 96, 162, 163 e 165 a 169).
Semelhante posição é também defendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra prolatado a 15.04.2008 no processo nº 937/07.6TBGRD.C1, in www.dgsi.pt.
Acompanhando esta posição, afigura-se a este Tribunal que não sendo possível, porque implicitamente proibido pelas normas legais acima referidas, resolver o contrato de arrendamento reduzido a escrito por via da acção de despejo, então falha à presente o pressuposto processual do interesse em agir ou da necessidade da tutela judiciária.
Na verdade, sendo a acção de despejo uma verdadeira acção constitutiva, através da qual se altera a ordem jurídica por via do exercício do direito potestativo de fazer cessar a relação jurídica de arrendamento, e derivando nesta espécie de acção o interesse em agir do puro facto de o direito potestativo correspondente não ser daqueles que se exercem por simples declaração unilateral da vontade do respectivo titular (Anselmo de Castro in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, páginas 252), podendo e devendo o direito potestativo exercido nos autos sê-lo extrajudicialmente e com carácter de exclusividade, falha à A. o interesse em agir, pressuposto processual inominado, do conhecimento oficioso, insuprível e conducente, por tal, à absolvição do executado da presente instância executiva (cfr. artigos 493º, nºs 1 e 2, 494º, 495º e, finalmente, 288º, nº 1, alínea d), aplicáveis por via do disposto no artigo 466º, todos do Cód. Proc. Civil).
Pelo exposto, absolvo a R. da presente instância”.
5- Desta decisão interpôs a A. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1. A questão reside em saber se, com a alteração legislativa operada em 2006, nomeadamente com alteração dada aos artºs 1083º nºs 1 e 3 e 1084º do CC e disposto nos artºs 9º nº 7 e 14º da Lei 6/2006, ficou vedado ao senhorio o recurso à via judicial para obter a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de renda.
2. Ao contrário do sustentado na Sentença recorrida, considera a apelante que a resolução extrajudicial do contrato com tal fundamento é apenas uma faculdade.
3. Nem a letra da lei, nem a sua interpretação de acordo com o artº 9º do CC afastam a possibilidade de o senhorio recorrer à via judicial para obter a resolução do contrato de arrendamento (verbal ou reduzido a escrito) tendo como fundamento a falta de pagamento de renda.
4. Assim, não se verifica falta do pressuposto processual do interesse em agir ou da necessidade da tutela judiciária.
5. Decidindo como decidiu, o Tribunal “a quo” fez incorrecta interpretação e aplicação da legislação aplicável, nomeadamente do disposto nos artºs 1083 nºs 1 e 3, 1084º ambos do CC e artº 9º nº 7 e 14º da Lei 6/2006.
6. Atendendo a que se consideram confessados os factos articulados pela apelante (atenta a revelia da R.), deveria ter sido proferida Sentença que, considerando a acção provada, considera-se resolvido o contrato de arrendamento dos autos, com fundamento na falta de pagamento da renda devida, condenando a R. a entregar imediatamente o locado e a pagar à A., ora Apelante, as rendas devidas até ao transito da decisão, bem como a quantia correspondente ao valor da renda, a titulo de indemnização, desde aquela data até à entrega do locado.
Termos em que, deve o presente recurso ser recebido, e a final considerado procedente, revogando-se como pedido a Sentença recorrida, assim se fazendo,
JUSTIÇA”.

* * *

II – Fundamentação
a) A matéria de facto a considera é a seguinte :
1- A A. é proprietária da fracção autónoma designada pela letra , correspondente à área comercial , com entrada pelo nº da Calçada de ..., do prédio urbano afecto ao regime de propriedade horizontal sito na Calçada de ... nºs. , Largo do ..., nºs. … a … e Calçada de ..., nºs. …a …, em São..., freguesia de ... , Concelho de , descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de sob o nº e inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o nº .
2- Por escritura celebrada em 2/6/1964, lavrada a fls. … vº do Livro …-B do º Cartório Notarial de Lisboa, as anteriores proprietárias do imóvel declararam dar de arrendamento à R. a loja a que corresponde actualmente a fracção autónoma designada pela letra … do prédio identificado em 1.
3- Destinava-se o local dado de arrendamento exclusivamente a depósito de pão da R..
4- A renda mensal inicial era de 150$00 (moeda corrente na altura), a qual foi sendo sucessivamente actualizada, sendo, a partir de Fevereiro de 2008 de 41 €.
5- A R. não procedeu ao pagamento das rendas vencidas em Agosto, Setembro e Outubro de 2008.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da recorrente a única questão em recurso consiste em determinar se, perante a actual redacção dos artºs. 1083º nºs. 1 e 3 e 1084º do Código Civil e do disposto nos artºs. 9º nº 7 e 14º da Lei 6/2006 de 27/2, ficou vedado ao senhorio o recurso à via judicial para obter a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
c) Decidindo :
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) foi aprovado pela Lei nº 6/2006 de 27/2, tendo entrado em vigor, como decorre dos artºs. 1º e 65º, em 28/6/2006.
O Título III dessa Lei contém normas transitórias, sendo as do seu Capítulo II referentes aos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais celebrados antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15/10.
O artº 27º do NRAU estabelece que tais contratos passam a estar submetidos ao NRAU.
E o artº 59º nº 1 do mesmo NRAU preceitua que este “aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.
Refira-se ainda que a presente acção entrou em juízo em 30/10/2008, estando, pois, já em vigor o NRAU.
Assim sendo, não oferece dúvida a aplicabilidade do novo regime do arrendamento urbano (o já mencionado NRAU) à situação “sub judice”, já que a presente acção judicial, de despejo com fundamento na falta de pagamento de rendas por parte do arrendatário, não se mostra excepcionada pelos artºs. 26º e 28º da Lei nº 6/2006 de 27/2 (cf. artºs. 59º nº1 e 60º nº1 da referida Lei).
Ora, a artº 3º do NRAU, conjugadamente com a revogação em bloco do RAU e salvas as excepções na lei indicadas, aditou ao Código Civil os artºs. 1064º a 1113º, reintroduzindo naquele Código a disciplina material específica do arrendamento de prédios urbanos, que o normativo revogado havia dele retirado, mas dando aos artigos reintroduzidos um conteúdo inovatório.
A resolução é um deles, sendo disciplinada nos artºs. 1083º a 1087º do Código Civil.
O artº 1083º do Código Civil, para além de uma enunciação dos fundamentos de resolução (estabelecendo no corpo do seu nº 2 um critério genérico, que depois as alíneas subsequentes exemplificam), prevê no nº 3 que “é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, ou de oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto no nº 3 e nº 4 do artigo seguinte”.
Assim nesse domínio tão relevante do não cumprimento pontual de uma das obrigações essenciais do contrato de locação (o pagamento de uma retribuição), aqui denominada “renda” (artºs. 1022º e 1038º al. a) do Código Civil), estabeleceu-se um caso de presunção “iuris et de iure” de incumprimento que, pela gravidade ou consequências, torna inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
O modo de operar da resolução pelo senhorio está prevista no artº 1084º do Código Civil, que constitui norma especial em relação ao novo regime regra da locação, estabelecido no artº 1047º do Código Civil com a redacção que o NRAU alterou, que admite indistintamente que a resolução da locação civil se faça judicial ou extrajudicialmente.
O nº 1 do artº 1084º do Código Civil dispõe que “a resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no nº 3 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte, onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida”, sendo que tal comunicação é feita por “notificação avulsa, ou mediante contacto pessoal de advogado, solicitador ou solicitador de execução, sendo neste caso feita na pessoa do notificando, com entrega de duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original” (cf. artº 9º nº 7 do NRAU), prevendo o nº 2 do referido artº 1084º do Código Civil que, quando a resolução pelo senhorio tenha fundamento numa das causas previstas no n º 2 do artº 1083º do Código Civil, seja “decretada nos termos da lei de processo”, o que vale por dizer que deverá o senhorio de intentar uma acção declarativa com processo comum, que, embora sem especialidade alguma, continua a ser vulgarmente denominada como “acção de despejo”, dado ser esse um dos efeitos práticos que se alcança com a resolução.
Por sua vez, o artº 14º do NRAU, no seu nº 1, refere qual o objecto da chamada “acção de despejo”, dizendo que a mesma “destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação, e segue a forma de processo comum declarativo”.
Aparentemente, do artº 1084º nº 1 do Código Civil, em conjugação com o artº 14º nº 1 do NRAU, parece resultar que, no caso de resolução fundada na mora no pagamento de renda por mais de três meses, a via extrajudicial da comunicação tem carácter taxativo, não parecendo deixar lugar para dúvidas sobre a sua aplicação imperativa.
Alguns autores inclinam-se nesse sentido (ver Fernando Baptista de Oliveira, in “A Resolução do Contrato de Arrendamento no Novo Regime do Arrendamento Urbano – Causas de Resolução e Questões Conexas (em especial a cláusula especial resolutiva do nº 2 do artº 1083º do CC)”, pg. 130, e Maria Olinda Garcia, in “A acção executiva para entrega de imóvel arrendado segundo a Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro”, pgs. 26 e 27).
Outros autores defendem posição contrária (ver Fernando de Gravato Morais in “Novo Regime do Arrendamento Comercial”, 2ª Edição, pgs. 219 e 220, e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, in “O Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2ª Edição, pgs. 324 e ss).
Tendemos para esta última posição (baseando-nos, por exemplo, no Acórdão da Relação de Lisboa de 28/5/2009, consultado em www.dgsi.pt e que abaixo seguimos de perto), ou seja, a da não imperatividade do meio resolutivo extrajudicial e da possibilidade de, mesmo quando se invoque a causa de resolução do nº 3 do artº 1083º do Código Civil, poder o senhorio lançar mão da acção declarativa (acção de despejo).
Em primeiro lugar, a unidade do sistema jurídico, como muito bem se mostra referido no Acórdão da Relação do Porto de 20/4/2009 (consultado em www.dgsi.pt), aponta nesse sentido.
É que, como todos referem, o artº 14º nº 1 do NRAU aparece como simplesmente decalcado do antigo artº 55º do RAU, sem ter sido tomado o cuidado de o adoptar à nova disciplina, em que outros meios de resolução estão revistos.
Na realidade, e como assinalam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 23/1/2007 e de 25/2/2008 (consultados em www.dgsi.pt), no caso da resolução fundada em mora no pagamento de renda, a acção de despejo oferece vantagens que se não descortina razões para que o legislador delas quisesse privar o senhorio.
Assim :
-Dispensa o locador de um tempo de espera desde o início da mora, que é de três meses, desde o início desta, e mais três meses, considerando o período de 3 meses de purgação da mora que o artº 1084º nº 3 do Código Civil prevê ;
-Evita as dificuldades inerentes à notificação avulsa ou ao contacto pessoal exigidos pela lei, e que a indeterminação do paradeiro do arrendatário pode gerar ;
-Evita-se que a execução para entrega de coisa certa fique suspensa se for recebida oposição à execução (artº 930º-B nº 1, al. a) do Código de Processo Civil) ;
-Afasta-se uma eventual responsabilização nos termos do artº 930º-E do Código de Processo Civil ;
-Faculta a cumulação de pedidos de resolução com o de indemnização ou de rendas ou com a denúncia, quando esta tenha de operar por via judicial (artº 1086º do Código Civil), e ainda a cumulação de fundamentos e resolução ;
-Permite ao arrendatário a dedução de pedido reconvencional, sem ter de aguardar a oposição à execução ;
-Força-se a uma purgação da mora mais célere, esgotando-se o recurso a essa faculdade, já que apenas pode ser usada uma vez na fase judicial (artº 1048º nºs. 1 e 2 do Código Civil) ;
-Propicia-se o recurso ao incidente de despejo imediato (artº 14º nºs. 4 e 5 do NRAU).
Acrescente-se que esta solução é, como se começou por assinalar, mais congruente com outros aspectos da disciplina legal.
Assim, se quiser impugnar o depósito das rendas, o senhorio só o poderá fazer em sede de acção de despejo, mesmo que haja feito a comunicação para resolução extrajudicial (artº 21º nº 2 do NRAU).
Por outro lado, a exigibilidade de apresentação do contrato de arrendamento como elemento do título executivo compósito, como resulta da al. e) do artº 15º do NRAU (exigência que, no entanto, não é colocada na hipótese da al. f)), não se coaduna com a imperatividade da via extrajudicial para alcançar a resolução fundada em mora de renda por mais de três meses, sabido como é que em muitos arrendamentos do pretérito (aos quais a lei se aplica, como vimos), não existe contrato escrito.
Acresce ainda que da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 34/X, de que resultou a Lei nº 6/2006 de 27/2, resulta, com grande nitidez, que a nova via de resolução extrajudicial prevista no artº 1084º nº 1 do Código Civil é meramente facultativa, o que se revela patente na parte final do ponto 2, sob o título “A agilização processual”, onde consta o seguinte :
“Tendo em vista aligeirar a pendência processual em fase declarativa, prevê-se a ampliação do número de títulos executivos de formação extrajudicial, possibilitando-se ao senhorio o recurso imediato à acção executiva, por exemplo, nos casos em que o contrato de arrendamento tenha cessado por revogação das partes, por caducidade por decurso do prazo ou por oposição à renovação.
De igual modo, nos casos de cessação por resolução com base em mora no pagamento da renda superior a três meses, ou devido a oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública, se o senhorio proceder à notificação judicial do arrendatário, ou à sua notificação através de contacto pessoal pelo advogado ou solicitador de execução, e o arrendatário mantiver a sua conduta inadimplente, permite-se a formação de título executivo extrajudicial”.
E também tal se evidencia no ponto 1 da aludida Exposição de Motivos, sob a designação “O novo regime do arrendamento urbano”, no seguinte parágrafo :
“O regime jurídico mantém a sua imperatividade em sede de cessação do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resolução extrajudicial do contrato, com base em incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.
Em face do exposto, impõe-se concluir que a lei não estabelece a comunicação do artº 1084º nº 1 do Código Civil e artº 9º nº 7 do NRAU como meio único de o senhorio alcançar a resolução do contrato de arrendamento em caso de mora de renda por período superior a três meses, sendo de admitir que, facultativamente (e por vezes, como único meio concretamente possível), possa lançar mão da via judicial (da acção declarativa de despejo).
Não se verificando, assim, qualquer obrigatoriedade legal de recurso à via extrajudicial para cessação do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de renda, mostra-se plenamente válida a alternativa à via judicial levada a cabo pela recorrente através da presente acção, o que significa que a recorrente no caso “sub judice” tem interesse processual em agir, utilizando a arma judiciária do presente processo de “acção de despejo”, sendo certo que o seu direito que pretende fazer valer não está carecido de tutela judicial.
E, deste modo, haverá que decretar o despejo.
Resumindo :
A conjugação do disposto nos artºs. 14º nºs. 3 a 5 do NRAU, 1048º nºs. 1 e 3 e 1084º nº 3 do Código Civil, permite concluir que a acção declarativa de condenação por falta de pagamento de rendas no âmbito de um contrato de arrendamento continua a constituir meio que pode ser utilizado pelo senhorio para fazer cessar a relação de arrendamento, uma vez que a resolução extrajudicial do contrato com base em tal fundamento encontra-se prevista na lei enquanto mera faculdade concedida ao senhorio.

* * *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e nessa medida, revogando a decisão recorrida, determina-se :
1º- Declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado com a R..
2º- Condenar a R. a despejar a fracção arrendada e a devolvê-la à A. livre e devoluta de pessoas e bens ;
3º- Condenar a R. a pagar à A. o valor das rendas vencidas até à data da propositura da acção (30/10/2008), bem como nas vincendas até efectiva entrega da fracção.
Custas : Pela recorrida (artigo 446º do Código do Processo Civil

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 15 de Dezembro de 2009

Pedro Brighton
Anabela Calafate
Antas de Barros