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DOAÇÃO
CLÁUSULA MODAL
INCUMPRIMENTO
DEVER ACESSÓRIO
ABUSO DE DIREITO
Sumário
1.Os autores/doadores celebraram o contrato de doação por terem confiado que ao bem doado a filha iria dar determinado destino, vindo o donatário, contudo, a dar-lhe, depois da celebração do negócio, destino diferente daquele que, por acordo de ambas as partes, ficou a constar da escritura de doação. 2. Ora, assim sendo este destino do imóvel doado, porque acordado e declarado expressamente no documento formalizador do contrato, configura uma obrigação do donatário juridicamente vinculante – ou seja, consubstancia um encargo da doação. 3.Constitui, assim, uma autêntica cláusula modal (artigo 963 do Código Civil), que foi incumprida pelo donatária/recorrida. 4. E, como se sabe, a violação dos deveres laterais ou deveres acessórios de conduta – integrantes da chamada relação obrigacional complexa ou relação contratual e essenciais ao correcto processamento da obrigação principal, atento o principio geral da boa fé estabelecido no artigo 762 do Código Civil – também acarreta, pela sua gravidade, as mesmas consequências que o incumprimento das obrigações principais. (sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I – A e B, intentaram acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra D, E e G, pedindo que se declarem nulos ou anulados os actos de doação e compra e venda constantes, respectivamente, das escrituras de 15 de Fevereiro de 2005, do Cartório Notarial e de 3 de Junho de 2005, do Cartório do Notário J, com todas as legais consequências.
Alegaram ter outorgado a primeira das referidas escrituras com a 1ª ré, sua filha, na qual declaram doar a esta a fracção autónoma que constitui a residência permanente e casa de morada de família dos autores, em virtude da 3a ré ter urdido e levado a cabo um plano em seu proveito próprio, o qual consistiu em ter feito crer aos autores – que na altura tinham problemas financeiros relacionados com uma sociedade da qual era sócio o autor e que o colocavam numa situação de ver o seu património ameaçado pelas dívidas da mesma –, que tinha conhecimentos ao mais alto nível, nomeadamente com a ministra da Justiça da altura, poderes de "vidente" e relações naturais com uma "mãe de santo", e que fazendo uso dos seus poderes sobrenaturais resolveria os problemas dos autores, sendo a solução por si proposta a doação da aludida fracção à filha dos autores, o que foi aceite por estes que, sob as ordens, instruções e direcção coercivas da 3a ré, recorreram à família, conseguindo reunir o dinheiro suficiente para distratar as duas hipotecas que incidiam sobre a fracção em causa, após o que veio a ser celebrada a escritura de doação cuja anulação é agora pedida, sendo que a filha dos autores dizia que a casa seria sempre dos pais.
As ré contestaram impugnado os factos e dando um versão diferente dos mesmos.
A 1ª ré alegou que foram os avós que lhe deram o dinheiro para fazer o distarte das hipotecas. Que vendeu de livre vontade e recebeu a importância acordada.
As 2ª e 3ª rés defenderam que agiram de boa fé e que adquiriu a casa com as suas economias. Já no que respeita à 3a ré, negaram que a mesma tivesse alguma vez incutido ou induzido os autores a doarem o imóvel à filha, não tendo marcado a respectiva escritura, sendo tal decisão unicamente dos autores, e as vezes em que foi vista junta com a 1a ré deve-se ao facto de serem amigas e com o fim de evitar insultos e agressões dos autores à filha, nunca tendo também afixado qualquer anúncio para arrendar o quarto do andar doado pelos autores á 1a ré e também jamais levou a sua mãe e a 1a ré a celebrarem o contrato de compra e venda do imóvel com o intuito de vir a ficar com o mesmo.
Os autores ampliaram o pedido, concretizando que pretendem que seja ordenado o cancelamento dos registos relativos aos actos de doação e compra e venda cuja anulação peticionam, o que foi admitido (fls. 156 e 177).
Dispensada a audiência preliminar, foi elaborado despacho saneador, fixou a matéria de facto assente e organizou a BI.
Procedeu-se a julgamento e no final a acção foi julgada improcedente.
Os autores e a 2a e 3a ré apresentaram alegações de direito (fls. 323 e 334). A instância permanece válida e regular.
Os AA não se conformando com a decisão interpuseram recurso e, nas suas alegações concluíram:
- entendem que a decisão recorrida omitiu a apreciação da nulidade dos negócios jurídicos de doação e compra e venda celebrados, por o seu objecto negocial (casa de morada de família e única habitação dos AA), no caso concreto, ser contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes, tal como definido no artigo 280° nº 2 do Código Civil;
- entendeu erradamente não considerar que, neste caso concreto, o negócio de alienação feito pela filha, sobre a única casa de habitação dos seus pais, que por eles lhe fora doada menos de quatro meses antes, por nela confiarem, constituía uma clara situação de abuso de direito. tal como esse instituto vem consagrado no artigo 334° do Código Civil;
- apesar de não ter sido possível provar uma parte mais subjectiva da matéria alegada na petição inicial, possibilita e obriga, ainda assim, um outro enquadramento jurídico da complexa situação objecto dos autos, no sentido da invalidade nos negócios jurídicos celebrados;
- entendem que para apreciação da sua validade, os dois negócios jurídicos praticados no espaço temporal de menos de quatro meses, neste caso concreto, não podem deixar de ser vistos como um todo, apesar de terem intervenientes distintos;
- para a percepção da invalidade destes negócios, é fundamental analisar também o resultado que objectivamente decorre dos mesmos, isto é, valorar a diferença injustificável e excessiva nas posição jurídicas de cada uma das partes, antes e depois da celebração dos mesmos;
- a aceitação da doação e a posterior compra e venda foram negócios jurídicos que traduziram, com o conhecimento e percepção de todas as RR. uma apropriação ilegítima, por parte das 2ª e 3ª RR., aproveitando exercício ilegítimo do direito por parte da 1ª R., da casa de morada de família e única habitação dos AA;
- a relevância e protecção jurídica do bem "casa de morada de família" e "única habitação" dos AA. como objecto negocial desta doação e posterior compra e venda, sendo a compra e venda inesperada face à anterior aceitação e contrária à vontade dos AA. configuram no seu todo, quer objectiva quer subjectivamente, um negócio contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes definido no artigo 280° nº 2 do Código Civil;
- a conduta da 1ª R., nos negócios aceitação de doação e de alienação feitos sobre a única casa de habitação dos seus pais, que por eles lhe fora doada menos de quatro meses antes, por nela terem motivos óbvios de confiança, constitui uma clara situação de abuso de direito, tal como esse instituto vem consagrado no artigo 334° do Código Civil, devendo o julgador considerar nulos e abusivos tais negócios;
- contendo os autos a matéria de facto provada, para se concluir que a filha, com o seu comportamento anterior à doação, criou nos AA a convicção de que nunca os privaria da sua casa de habitação;
- o abuso de direito na sua vertente de "venire contra factum proprium". pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aqueles que se sentem lesados assentaram a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio;
-a proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo, impondo-se, pois, que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha normal e legitimamente confiado;
- para que haja abuso de direito, na concepção objectiva, nem se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, ou que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, bastando que objectivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente;
- o excesso do prejuízo causado inesperadamente pela 1" R. aos AA. é manifesto, também luz do valor económico da perda de uma casa de habitação, em contraponto com a natureza gratuita da doação do imóvel aceite pela filha do casal e com a vantagem patrimonial que as outras RR obtiveram;
- nenhum pai ou mãe normais, no objectivo e comprovado enquadramento familiar anterior à data da doação, poderia esperar ou desconfiar que após transmitirem gratuitamente a sua casa de habitação à sua filha única, menos de quatro meses depois esta a pudesse transmitir a terceiros, contra a vontade dos pais, fazendo com que pudessem ficar privados do único local de que dispunham para viver;
- os negócios aceitação de doação e de alienação feito pela filha, sobre a única casa de habitação dos seus pais. que por eles lhe fora doada menos de quatro meses antes. por nela terem motivos óbvios de confiança, constitui uma clara situação de abuso de direito, tal como esse instituto vem consagrado no artigo 334° do Código Civil. devendo o Julgador considerar nulos e abusivos negócios;
- substituindo a decisão proferida por outra que enquadre os factos provados nesses invocados institutos, declarando a invalidade dos dois negócios que representam unia só alienação ilegítima da casa dos pais. feita pela filha a quem a tinham doado menos de quatro meses antes, assim cominando com a nulidade os actos de doação e compra e venda constantes. respectivamente. das escrituras de 15 de Fevereiro de 2005. do Cartório Notarial e de 3 de Junho de 2005, do Cartório do Notário J com todas as legais consequências, nomeadamente o cancelamento dos registos relativos a tais actos de doação e compra e venda, respectivamente, inscrição G-2. Ap. …. aquisição a favor de D inscrição G-3. Ap. …… de aquisição a favor de E da fracção autónoma, destinada a habitação, individualizada pela letra "A", que constitui o rés-do-chão direito. com logradouro, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na…., descrito na Conservatória do Registo Predial
Factos
1.Na freguesia…., existe uma fracção autónoma, destinada a habitação, individualizada pela letra "A", que constitui o rés do chão direito, com logradouro, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na ….(A).
2.Tal fracção autónoma encontra-se inscrita na respectiva matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo 1521 – "A" (B).
3.A propriedade da referida fracção esteve registada a favor dos autores no período de 23.9.1981 a 15.3.2005, data em que passou a estar registada a favor de D, por a ter adquirido por doação (C).
4.Os contratos de fornecimento de água, luz, telefones e TV Cabo referentes ao imóvel estão em nome do autor (D).
5.D nasceu em 7.12.1978 e é filha de A e de B (E).
6.Em 15 de Fevereiro de 2005, no Cartório Notarial, foi outorgada escritura pública na qual os autores declararam doar à filha D a fracção autónoma acima identificada, tendo a doação sido aceite por esta, nos termos do documento de fls. 27 e seguintes que, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (F).
7.Em 3 de Junho de 2005, no Cartório do Notário J, sito na, foi outorgada escritura pública na qual D declarou vender a E a fracção autónoma acima identificada, nos termos do documento de fls. 32 e segs. que, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (G).
8.O Banco C, S.A., em 4 de Janeiro de 2005, declarou autorizar o cancelamento das hipotecas registadas pelas inscrições C-2 e C-3 incidentes sobre a fracção autónoma supra identificada (H).
9.A fracção autónoma nunca foi entregue a E Alves (1).
10.G nasceu em 12.8.1959 e é filha de E (J).
11.Os autores habitam ininterruptamente nessa fracção autónoma desde Outubro de 1981, ali fazendo a sua casa de morada de família e residência permanente, única de que dispõem (1°).
12. No início do ano de 2004, o autor começou a ter dificuldades económicas relacionadas com uma sociedade de que era sócio, denominada "A e V, Lda." (2°).
13.Em meados de 2004, a 3a ré tomou conhecimento daquelas dificuldades quando a autora e uma amiga estavam a falar sobre o assunto num café do bairro onde residem (3°).
15.No dia 7 de Dezembro de 2004, a 3a ré abriu uma conta em seu nome no BC, à qual foi atribuída o nº …., com € 500,00 dos autores (11°).
16.E em 10 de Dezembro de 2004, o autor depositou mais € 30.000,00 na referida conta da 3a ré, e a autora transferiu mais € 2.500,00 para essa mesma conta (12°).
17.A 3a ré transferiu o dinheiro a que se alude na resposta dada ao artigo 12° para a conta da sociedade A e V, Lda., de onde foram pagos os empréstimos hipotecários pendentes sobre o imóvel dos autos (13°).
18.D é a única filha dos autores e habitou com ele desde sempre e até Fevereiro de 2005, pessoa muito querida de ambos, que sempre tivera um óptimo relacionamento com eles e com toda a família, avós, tios, primos, etc. (18°).
19.D sempre foi rapariga atinada e trabalhadora, que ajudava e convivia tranquila e diariamente com os pais, empregada no Cemitério da Câmara Municipal de, com uma vida organizada e séria, por todos assim reconhecida junto da família, amigos e vizinhos (19°).
20.D (1ª ré), com recurso a um empréstimo hipotecário e mil contos adiantados pelo avô paterno — que mais tarde lhe entregou, tendo o mesmo apenas ficado com metade daquele valor – adquiriu o andar ao lado dos pais, ou seja, o rés-do-chão esquerdo do prédio da….(20°).
21.Depois da realização da escritura de doação a que se alude em F), a 3a ré e os autores deixaram de relacionar-se (25°).
22.Após a realização da escritura de doação mencionada em F), alterou-se profundamente a relação entre os autores a filha (1a ré), passando esta a evitar os pais e a deixar de frequentar a sua casa, tendo-se instalado entre eles um ambiente conflituoso (25°). 3a R. que até então era uma presença constante na vida de ambos, deixou de falar com os AA., passando ostensivamente a evitá-los e até a tomar atitudes provocadoras e do mais absoluto desprezo (26°).
23.Durante o mês de Março de 2005 a 3a ré passou a acompanhar frequentemente a 1 a ré (29°).
24.A ré E (2a ré) nunca entrou na fracção dos autos.
Houve contra alegações defendendo a manutenção da decisão
Corridos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento
II – Apreciando
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
A doação é definida no artigo 940 do CC como «o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente».
Ao falar na doação de uma coisa, a lei não está a fazer mais do que mencionar, simplificadamente, a disposição gratuita de um determinado direito real – o de propriedade – sobre essa coisa, a par da possibilidade de doação de outros direitos pertencentes ao doador.
Como, em rigor, o conteúdo da doação não é a coisa doada, simples objecto do contrato, mas antes o conjunto dos poderes sobre ela que são em concreto transmitidos ou, logo se constata que a disposição assim feita não tem de referir-se, irrestrita e definitivamente, à totalidade da mesma ou dos poderes nesse direito contidos, antes podendo esse direito de propriedade ser objecto de restrição.
A cisão dos poderes inerentes ao direito de propriedade, encontram-se previstas na lei só duas espécies – a reserva de usufruto, por um lado, a reserva do direito de uso ou de paralelo direito de habitação, por outro –, mas há que curar da possibilidade de outras serem criadas pela vontade das partes.
Os direitos reais, nas diversas modalidades previstas na lei, consistem em diversos conjuntos de poderes que se reconduzem, na sua globalidade, àqueles que compõem o direito de propriedade – poderes de usar, de fruir e de dispor.
Quando não estão todos reunidos na titularidade da mesma pessoa surgem os direitos reais menores. Sempre que ocorre, nestes termos, a cisão ou o desmembramento do direito de propriedade, os poderes dele retirados ficam na titularidade de uma outra pessoa, que não o proprietário, sendo essa pessoa quem os exerce por direito próprio; nesta situação, porém, estes poderes conservam a sua natureza, dando corpo a um outro direito real.
Mas aqui surge a relevância do princípio segundo o qual só têm a natureza de reais os direitos que a lei prevê como tais; a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou das figuras parcelares deste direito só pode ter lugar nos casos previstos na lei, como preceitua o artigo 1306.º – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. anotado, vol. III, pp. 84-87.
Mais ainda: as restrições resultantes de negócio jurídico que não estejam nestas condições têm natureza obrigacional.
Consta da doação em causa que o imóvel se destinava a habitação, fls. 29 escritura de doação. Não diz se da donatária se dos pais que doaram, no entanto, não deixa de constituir uma liberalidade (vide a este propósito Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Volume II, 3ª edição, pág. 289). E está estabelecido no art. 963º nº 2 que “o donatário não é obrigado a cumprir os encargos senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado”. A doação modal não pode transformar-se num acto prejudicial para o donatário.
Vem provado que a donatária habitou com eles desde sempre até Fevereiro de 2005, art. 18
E que, após a realização da escritura de doação mencionada em F), alterou-se profundamente a relação entre os autores a filha (1a ré), passando esta a evitar os pais e
a deixar de frequentar a sua casa, tendo-se instalado entre eles um ambiente conflituoso (25°). 3a R. que até então era uma presença constante na vida de ambos, deixou de falar com os AA., passando ostensivamente a evitá-los e até a tomar atitudes provocadoras e do mais absoluto desprezo (26°).
Durante o mês de Março de 2005 a 3a ré passou a acompanhar frequentemente a 1 a ré (29°).
24.A ré E (2a ré) nunca entrou na fracção dos autos.
Nos termos do art. 965º na doação modal, tanto o doador como os seus herdeiros têm legitimidade para exigir do donatário, ou dos seus herdeiros, o cumprimento dos encargos, se necessário, através de meios coactivos.
Daqui resulta, a nosso ver, que o incumprimento culposo dos encargos da doação modal, gerará a imposição coerciva ao faltoso o cumprimento dos correspondentes deveres, mas pode também, nos termos do art. 966º, fundar a resolução da doação se esse direito for conferido no contrato.
Para o que aqui importa, interessa fazer ressaltar, porque tal foi previsto na doação, que dando a donatária destino diverso ao imóvel em causa, casa morada de família dos pais e dela, que vendeu a terceiros, haverá incumprimento do negócio. A finalidade declarada pelos doadores à donatária e aceite por esta é incluída no negócio e passa a fazer parte do seu conteúdo, enquanto obrigação assumida por esta no âmbito do programa contratual traçado pelas partes. Assim, existindo, do lado da donatária, a obrigação de dar à casa um certo fim haverá incumprimento caso lhe venha a dar destino diverso. Mas, não menos chocante é ver os pais confrontados com a venda da sua própria casa. E o destino da casa em questão a habitação, podemos fazer a leitura de que residindo a ré com os autores se referia a habitação da família, apelantes doadores e da donatária, uma vez que esta até à data da doação com eles residia.
O incumprimento poderá determinar, nos termos legais, que os doadores (herdeiros ou representantes) exijam da donatária o cumprimento do encargo ou, nos termos da doação em análise, a reversão dos bens para os doadores ou seus herdeiros ou representantes. Conforme se escreveu no Ac. STJ, de 15.1.2002, - Se os autores doaram, com reserva de usufruto, a sua casa de habitação à ré, sua filha, com a obrigação de esta «os sustentar e tratar tanto na saúde, como da doença, sob pena de ficar tal doação sem efeito se às mesmas obrigações faltar», assiste-lhes o direito de pedirem a resolução dessa doação com base no incumprimento pela ré da aludida cláusula modal.
Interpretado a vontade dos doadores, uma vez que a ré era a sua única filha, não interessa saber se o destino do imóvel para habitação era deles doadores ou da filha, uma vez que na altura residiam em conjunto e o fim da doação era que a casa se destinava a habitação. Mas, admitindo que era da filha, sempre estava obrigada a dar a seus pais, alojamento uma vez que, a habitação é um dos elementos dos alimentos. E a ré sabia que aquela era a casa morada de família dos pais e nela residiam todos não tendo outra.
O que não há dúvidas é que, em face desta declaração constante na escritura de doação a ré não podia vender a terceiros o referido imóvel, quer fosse destinado a habitação dos doadores ou da donatária, condição que aliás aceitou e consta da escritura de doação.
Se é verdade que os pais fizeram a doação, num contexto de contornar dívidas, o que seguramente não quiseram foi desfazer-se da casa. Ao fazerem a doação deviam ter feito constar que reservavam o usufruto. Mas, a confiança total na filha, explica que a donatária era a única filha dos apelantes, não quiseram restringir a doação com o ónus do usufruto. Não pode é ao fim de quatro meses vender a casa que se destinava a habitação como consta quando aceitou a doação e pôr os pais na rua. Ao proceder a tal venda estávamos perante um comportamento de abuso de direito e má fé. A venda foi efectuada à pessoa que os aconselhou e que apareceu a comprar. Não se fez prova de que a compradora tivesse pago os €25.000 e que estivesse a pagar os restantes €25.000 em prestações de €5.000. Era fácil tal prova, bastava juntar um documento bancário. E, não se entende que tenha havido uma compra sem a casa ser visitada ou entregue, sabendo que era a casa morada de família da 1ª ré e pais. Factos estes do conhecimento da compradora.
Não estamos perante um erro-vício que consiste no desconhecimento ou numa falsa representação da realidade, «tem a ver com a ignorância ou falsa representação da realidade – logo, de circunstâncias ou factos já ocorridos, no passado ou no presente; a pressuposição, por sua vez reporta-se ao futuro, tem a ver com a convicção, determinante da decisão de contratar, de que as circunstâncias se manterão no futuro ou evoluirão em determinado sentido.» -- A. Pinto Monteiro em Anotação publicada na RLJ, ano 131, páginas 221-224 e ano 134, páginas 280-288, que seguimos muito de perto.
E também, não estamos perante um quadro em que os recorrentes tenham sido determinados na outorga da escritura de doação, por engano, ou ignorância, (ou até por dolo da donatária), mas fizeram-no na convicção de que o imóvel doado se destinava a habitação da filha e deles, como constava da aceitação, destinava-se a habitação, mas quiseram fazer a doação.
O que aconteceu foi que os autores/doadores celebraram o contrato de doação por terem confiado que ao bem doado a filha iria dar determinado destino, vindo o donatário, contudo, a dar-lhe, depois da celebração do negócio, destino diferente daquele que, por acordo de ambas as partes, ficou a constar da escritura de doação.
Ora, assim sendo este destino do imóvel doado, porque acordado e declarado expressamente no documento formalizador do contrato, configura uma obrigação do donatário juridicamente vinculante – ou seja, consubstancia um encargo da doação.
Constitui, assim, uma autêntica cláusula modal (artigo 963 do Código Civil), que foi incumprida pelo donatária/recorrida.
O art. 966 estatui a resolução da doação, O doador, ou os seus herdeiros, também podem pedir a resolução da doação, fundada no não cumprimento dos encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato.
A consequência desse incumprimento só pode ser nulidade do contrato de compra e venda. O encargo de uma doação não é uma verdadeira contra-prestação e daí que, apesar dele, a doação continua a ter a natureza de contrato gratuito.
Mas não é igualmente menos certo que, apesar do seu carácter acessório, o modo ou encargo não deixa de constituir um verdadeiro dever jurídico, podendo integrar, como no caso em apreço, uma autêntica obrigação do donatário (cf. Antunes Varela, Obrigações, 35).
E, como se sabe, a violação dos deveres laterais ou deveres acessórios de conduta – integrantes da chamada relação obrigacional complexa ou relação contratual e essenciais ao correcto processamento da obrigação principal, atento o principio geral da boa fé estabelecido no artigo 762 do Código Civil – também acarreta, pela sua gravidade, as mesmas consequências que o incumprimento das obrigações principais.
Havendo assim, lugar à resolução da doação, o que acarreta a nulidade do contanto de compra e venda celebrado pela primeira ré.
Estamos, por isso, perante um incumprimento total (artigo 801/2 do Código Civil).
Acerca dos efeitos da declaração de nulidade e anulação Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto” – 2005 – pág. 625/626 escrevem:
“1) Operam retroactivamente (art. 289°), o que está em perfeita sintonia com a ideia de que a invalidade resulta de um vício intrínseco do negócio e, portanto, contemporâneo da sua formação.
Não se produzem os efeitos jurídicos a que o negócio tendia.
2) Não obstante a retroactividade, há lugar à aplicação das normas sobre a situação do
possuidor de boa fé, em matéria de frutos, benfeitorias encargos, etc. (art. 289°, nº3).
3) Em consonância com a retroactividade, haverá lugar à repristinação das coisas no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art. 289°, nº1).
Tal restituição deve ter lugar, mesmo que se não verifiquem os requisitos do enriquecimento sem causa, isto é, cada uma das partes é obrigada a restituir tudo o que recebeu e não apenas aquilo com que se locupletou.
As obrigações recíprocas de restituição estão sujeitas ao princípio do cumprimento simultâneo, designadamente à aplicação da “exceptio non adimpleti contractus” (art. 290°) …”.
O regime da casa de morada de família que decorre, além do mais, dos artigos 1682, n. 2, 1682-B, alínea b), 1775, ns. 2 e 3, 1778, 1793, 2103-A e 2103-C do Código Civil constitui o desenvolvimento natural do disposto no n.º 1, do artigo 67 da Constituição, segundo o qual, a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros (Ac. do STJ, de 28.1.97, CJ, Ano V,
Tomo 1, pág. 74).
2. Invocaram os apelantes o abuso de direito por parte da filha, excedendo os limites da boa fé e bom costumes.
A situação de abuso do direito, segundo a concepção objectivista aceite no artigo 334°, caracteriza-se quando o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
Como explicam Pires de Lima/ Antunes Varela, os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso.
Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça e às "hipóteses em que a invocação e aplicação se um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição".
Também Vaz Serra se refere à "clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante". Para a determinação dos limites impostos pela boa fé há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes da colectividade.
Para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.
O abuso do direito serve, além do mais, para dar cobertura à reprovação do venire contra factum proprium, bem como às ininvocabilidades de certas nulidades formais.
Trata-se de regulações típicas de comportamentos abusivos, de cujas existência e possibilidade no nosso ordenamento cabe agora cuidar.
A locução «venire contra factum proprium» traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tal exercício é tido como inadmissível. Como expressão da confiança, o venire contra factum proprium situa-se já numa linha de concretização da boa fé. É o que acontece com a recondução do "venire" à doutrina da confiança, que revela um estádio elevado nessa tarefa da concretização da boa fé.
Lapidar e definitiva neste aspecto é a conclusão de que «a exigência de escritura pública nos contratos de trespasse de estabelecimento comercial não visa apenas precaver os contratantes contra a falta de ponderação da gravidade desse acto mas, a principalmente, fins de certeza a segurança do comércio em geral.
O regime das nulidades que decorre dos art. 285. e seguintes do Código Civil obsta à procedência da arguição – por inobservância da forma lega1 – fundada em abuso de direito».
Traduz abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium ", pedir-se a restituição de imóvel o qual se encontra «ocupado» por contrato ainda que viciado por falta de observância de forma legal, ocupação essa na qual se consentiu por mais de 3 anos.
O abuso de direito, uma vez que se coloca quando é posto em causa um princípio de interesse ou ordem pública, é do conhecimento oficioso, mesmo no tribunal de recurso – Ac STJ 7.1.93 CJ STJ, 1/5
O negócio usurário só existe quando se verifiquem, cumulativamente, os respectivos requisitos subjectivos (a exploração de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem) e objectivos (benefícios excessivos ou injustificados) – neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2006, in www.dgsi.pt e Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.a edição actualizada, Coimbra Editora, pág. 532.
A sua conduta foi de abuso de direito, uma vez que, sabia que a casa era destinada a habitação da família e após a doação, onde aceitou tal cláusula, não se inibiu de a vender nas condições que os autos espelham.
Concluindo
1.Os autores/doadores celebraram o contrato de doação por terem confiado que ao bem doado a filha iria dar determinado destino, vindo o donatário, contudo, a dar-lhe, depois da celebração do negócio, destino diferente daquele que, por acordo de ambas as partes, ficou a constar da escritura de doação.
2. Ora, assim sendo este destino do imóvel doado, porque acordado e declarado expressamente no documento formalizador do contrato, configura uma obrigação do donatário juridicamente vinculante – ou seja, consubstancia um encargo da doação.
3.Constitui, assim, uma autêntica cláusula modal (artigo 963 do Código Civil), que foi incumprida pelo donatária/recorrida.
4. E, como se sabe, a violação dos deveres laterais ou deveres acessórios de conduta – integrantes da chamada relação obrigacional complexa ou relação contratual e essenciais ao correcto processamento da obrigação principal, atento o principio geral da boa fé estabelecido no artigo 762 do Código Civil – também acarreta, pela sua gravidade, as mesmas consequências que o incumprimento das obrigações principais.
Decisão:
Julga-se procedente a apelação revoga-se a decisão impugnada e declara-se nula a doação e também a venda subsequente respectivamente, das escrituras de 15 de Fevereiro de 2005, do Cartório Notarial de 3 de Junho de 2005, do Cartório do Notário J com todas as legais consequências, nomeadamente o cancelamento dos registos relativos a tais actos de doação e compra e venda, respectivamente, inscrição G-2, Ap. de aquisição a favor de D e inscrição G-3, Ap. de aquisição a favor de E da, da fracção autónoma, destinada a habitação, individualizada pela letra "A", que constitui o rés do chão direito, com logradouro, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na…..";
Custas pela apelada
Lisboa 17 de Dezembro de 2009
Catarina Arêlo Manso
Ana Luísa Geraldes
António Valente