SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
PAGAMENTO
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
Sumário

O direito de exigir o pagamento do preço dos serviços públicos essenciais previstos na Lei nº. 23/96, de 26 de Julho prescreve no prazo de seis meses após essa prestação - artº.10º, nº. 1 da Lei;
A prescrição prevista nesta disposição legal tem natureza extintiva e não simplesmente presuntiva;
O disposto na al. g) do art. 310 do CCivil não tem aplicação às dívidas provenientes da prestação deste tipo de serviços.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

E.– S.A., Intentou a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de transacção comercial, contra S. Lda., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia € 20 439.48. acrescida de juros de mora à taxa de 4,00%.
Fundamenta a sua pretensão no facto de ter celebrado com a Ré um contrato de fornecimento de serviços de bens ou serviços a 17.04.2005. no âmbito do qual lhe prestou os serviços contratados e constantes das facturas emitidas e enviadas à Ré, que as não liquidou nas datas do seu vencimento. nem posteriormente.
A Ré deduziu oposição na qual excepcionou a prescrição e alegou que sempre cumpriu atempadamente o contrato.
Observado o legal formalismo, procedeu-se a julgamento.
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A. Os Factos
1. Factos provados
1. Autora e Ré celebraram um acordo denominado 'Contrato de Fornecimento de Energia Eléctrica", de baixa tensão, para o local de consumo sito na Urb…..,a 17.04.2005,obrigando-se a Autora a fornecer energia eléctrica à Ré e esta ao pagamento das facturas.
2. A Autora emitiu em nome da Ré e enviou para a morada constante do contrato:
      _ a factura nº1…., datada de 03.10.2007,relativa ao período de 04.08.2007 a 03.10.2007, no valor total de € 3 573,66, com data limite de pagamento a 23.10.2007 - cf. fls. 52.
_ a factura nº 10…., datada de 18.10.2007. relativa ao período de 04.10.2007 a 18.10. no valor total de € 16 869.24, com data limite de pagamento a 12.11.2007 - cf. fls. 53.
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A final foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, Julgo a presente acção procedente e, em consequência, condeno a Ré a pagar à Autora
- a quantia de € 20 439,48, acrescida de € 440,14 correspondente a juros de mora vencidos até 04.06.2008 e de juros de mora vincendos, à taxa legal. desde aquela data e até integral pagamento, sobre o montante de € 20 439,48.
Custas pela Ré - artigo 446.°, nº11 do Código de Processo Civil.
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É esta decisão que a R impugna formulando as seguintes conclusões, em síntese:
1— Entre a data em que a A forneceu os seus serviços e a data em que a mesma veio exigir o correspondente pagamento já haviam decorrido mais de seis meses, motivo pela qual a obrigação já se encontrava extinta
2-Há uma correcta interpretação do preceituado no art. 10 nº1 da Lei nº 23/96 de 26-07
3-Esta lei visa, essencialmente, a defesa e protecção dos direitos dos utentes dos serviços públicos essenciais nela incluídos, motivo pelo qual foi fixado um prazo de prescrição mais curto do que a Lei civil
4-E esse prazo tem natureza extintiva
5-A contar desde a data da efectivação do serviço, sem que a apresentação da factura correspondente ao mesmo tenha qualquer facto interruptivo.
6-A apresentação da factura vale como interpelação para o cumprimento, segundo o preceituado no art. 306 nº1 do CC
7)-O preceituado no art. 310 al. g) do CC não tem aplicação às dívidas provenientes da prestação de serviços públicos essências reguladas pela Lei nº 23/96 de 26-07
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Os Factos provados

1. Autora e Ré celebraram um acordo denominado 'Contrato de Fornecimento de Energia Eléctrica", de baixa tensão, para o local de consumo sito na Urb…. a 17.04.2005. obrigando-se a Autora a fornecer energia eléctrica à Ré e esta ao pagamento das facturas.
2. A Autora emitiu em nome da Ré e enviou para a morada constante do contrato:
- a factura nº1…., datada de 03.10.2007, relativa ao período de 04.08.2007 a 03.10.2007. no valor total de € 3 573,66,com data limite de pagamento a 23.10.2007 - cf. fls. 52.
 _ a factura nº 10…., datada de 18.10.2007. relativa ao período de 04.10.2007 a 18.10. no valor total de € 16 869.24, com data limite de pagamento a 12.11.2007 - cf. fls. 53.
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Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.º 684 n.º3 e 690 n.º1 e 3 do CPC),importando ainda decidir as questões nela colocadas e  bem assim ,as que forem de conhecimento oficioso ,exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras –art.º 660 n.º2 ,também do CPC

A única questão reside em apurar se há lugar, ou não, à exclusão do regime prescritivo da Lei nº 23/96 de 26/07 ( na redacção anterior à Lei nº 12/2008 de 26-02 )
Vejamos …

A Jurisprudência não é uniforme[1]
Na verdade, na linha que veio a originar a transposição para o ordenamento nacional da Legislação Europeia sobre a protecção do consumidor, entendeu o legislador dever proteger de modo especial o consumidor de serviços públicos essenciais (neste caso, pessoas singulares e colectivas), através da Lei 23/96, de 26 de Julho.
             Por consumidor, aqui, parece dever entender-se o utente desses mesmos serviços (independentemente do carácter profissional ou não da actividade a que se destine o fornecimento) –art.º1/1 e 3.
               A especialidade do regime neste domínio procura sanar as especiais dificuldades [para os consumidores] em fazer valer os seus direitos, num determinado sector onde os bens e os serviços prestados são bens essenciais à vida .[2]
               Foi por isso que se instituíram medidas como: o direito à participação (art.º 2º); pré-aviso adequado, aquando da suspensão do fornecimento (art.º 5º); a proibição de imposição de cobrança de consumos mínimos (art.º 8º); a obrigatoriedade e gratuitidade da facturação detalhada (art.º 9º) e o fomento da arbitragem para a resolução de conflitos de consumo.
           O regime prescritivo constante deste diploma é um regime especialíssimo que exclui expressamente do seu âmbito o fornecimento de energia eléctrica em alta tensão, pelo que é abrangido o regime de baixa tensão e como tal aplicar-se-lhe á o regime da citada Lei .
Cumpre agora apreciar a questão de saber se a prescrição em causa tem natureza presuntiva ou extintiva.
             O n.º 1 da lei em apreço dispõe que a dívida prescreve num prazo de seis meses; por seu turno, o n.º 3 diz que prescreve no prazo de cinco anos (regra do Cód. Civil).
             Por conseguinte, o direito de exigir o pagamento do fornecimento de energia de Média Tensão, prescreve no prazo de seis meses. Resta, no entanto saber, se a prescrição prevista no n.º 1 do art.º. 10º da Lei 23/96, de 26 de Julho é ou não uma prescrição presuntiva.
            Dispõe o art.º 312º do Cód. Civil, sob a epígrafe Fundamento das prescrições presuntivas que: As prescrições de que trata a presente subsecção fundam-se na presunção de cumprimento.
              E, como bem diz, Almeida Costa, este tipo de prescrições explicam-se pelo facto de as obrigações a que respeitam costumarem ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir via de regra quitação. Decorrido o prazo legal, presume-se que o pagamento foi efectuado; e, daí que o devedor fique dispensado da sua prova, dado que, em virtude das razões expostas, isso poderia tornar-se-lhe difícil . Assim, distinguem-se tais prescrições presuntivas das chamadas prescrições verdadeiras, pois que enquanto nestas, mesmo que o devedor confesse que não pagou, não deixa por isso de funcionar a prescrição, naquelas se o devedor confessa que deve, mas não paga, é condenado na mesma maneira, não funcionado pois a prescrição mesmo que invocada [3].
Ou seja, podemos concluir que apenas são consideradas prescrições presuntivas as aplicáveis às situações mencionadas na Subsecção III, da Secção II, do Titulo I, do Livro I do Código Civil, nomeadamente, as mencionadas no art.º 316º e 317º do referido Código.
              Ora, a prestação de serviços essenciais, nos quais se incluiu o fornecimento de energia eléctrica, não se enquadra em nenhum dos créditos referidos naqueles artigos, mas no nº1 do art.º 10º da Lei 23/96 onde não se concede que a prescrição tenha natureza outra que não a extintiva [4]
              Aliás, se a prescrição prevista não fosse extintiva, não acautelaria os interesses que a própria Lei visa defender: pode defender-se, com efeito, que tal ocorreria nos casos em que os consumidores fiquem privados dos serviços considerados essenciais, quer por impossibilidade de pagamento, quer para os salvaguardar das entidades com quem contratam, tendo em consideração que nos bens essenciais, por regra, a hipótese de escolha é pouca ou nenhuma.
            Quanto ao disposto na al. g) do art.º. 310º do Civil não tem aplicação às dívidas provenientes da prestação deste tipo de serviços [5], porque como sabemos, a Lei especial derroga a Lei geral. Apesar de o fornecimento de energia eléctrica ser uma prestação periódica (existe fruição da energia durante um período, por parte do consumidor que, mediante factura apresentada à Companhia de Electricidade, paga essa fruição, por sucessivos períodos), existe uma lei especial: a Lei 23/96, como vimos.
           A emissão da factura (e a sua comunicação ao devedor) não pode ser causa interruptora do prazo de prescrição, a mesma inaugura a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagar o preço (a qual só nasce com a recepção dessa mesma factura); até lá, o consumidor não sabe qual é a sua dívida, quanto consumiu de electricidade – trata-se de uma interpelação para pagar. Ora, o acto fundador não pode conceptualmente ser confundido com a causa de interrupção, nem de resto para tanto lhe daria cobertura o art.º 323/2 Cód. Civil, o qual exige um ambiente judicial que aqui não se visitou.
Sendo assim, no caso em apreço tendo em conta a data da entrada do documento de injunção e as datas de prestação dos serviços há lugar à prescrição prevista no artº 10 nº1 da Lei 23/96 de 26-07
Termos em que procedem as conclusões
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Concluindo:
O direito de exigir o pagamento do preço dos serviços públicos essenciais previstos na Lei nº. 23/96, de 26 de Julho prescreve no prazo de seis meses após essa prestação - artº.10º, nº. 1 da Lei;
A prescrição prevista nesta disposição legal tem natureza extintiva e não simplesmente presuntiva;
             O disposto na al. g) do art. 310 do CCivil não tem aplicação às dívidas provenientes da prestação deste tipo de serviços.
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Termos em que acordam revogar a sentença impugnada, dando provimento à apelação e assim se absolvendo a R do pedido
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Custas pela A .

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010

Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes
Octávia Viegas
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[1] -Cf a jurisprudência citada na decisão impugnada
[2] Não podemos esquecer que estas empresas fornecedoras  actuam, em geral, em regime de monopólio, desequilibrando assim as relações em desfavor do consumidor.
[3] 5.-Vd. Almeida Costa, Mário Julio de, Direito das Obrigações, 9.ª Ed. Rev. e Aum., Almedina, 2001, p. 1052 e ac . STJ 03B3894, de 18.12.2003, in www.dgsi.pt
[4] Vd. Ac. STJ 03B1032, de 05.06.2003, in www.dgsi.pt.
[5] O acórdão citado anteriormente