ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ACTIVIDADE ACESSÓRIA
Sumário

1. O arrendatário comercial pode desenvolver no locado as actividades que normal e logicamente se prendem com a actividade principal pela qual contratou, desde que elas não venham a implicar um verdadeiro desvio do objecto contratual.
2. Assim, tem-se entendido que não há fundamento para a resolução desde que as circunstâncias permitam inferir, à luz da razoabilidade e da boa fé, que o locador, autorizando expressamente a exploração no prédio arrendado de um determinado ramo de negócio, podia e devia contar com o exercício adicional de uma outra actividade, devendo, por isso, entender-se que a autorizou também, embora de modo implícito.
3. A conclusão anterior é ainda mais reforçada se a causa da adopção de novas actividades ou actividades acessórias no locado for a própria evolução tecnológica.
4. O arrendamento para determinado ramo compreende as actividades acessórias, porventura complementares, desse ramo, não havendo, neste caso, aplicação do prédio "a ramo de comércio ou indústria diverso do convencionado" - nesse caso estarão incluídas quer as actividades ligadas por uma relação de instrumentalidade necessária (ou quase necessária) – pelo que será lícita a prática de uma actividade que se mostre indispensável ou de todo o ponto conveniente" ao exercício de negócio literalmente permitido – quer as actividades que, segundo os usos comuns, acompanham a exploração de dada modalidade de comércio ou de indústria.
5. Para que as novas actividades ou actividades acessórias não constituam fundamentos da resolução do contrato, é necessário que não produzam quaisquer desgastes, riscos ou inconvenientes acrescidos para o senhorio.
6. Porém, quando o novo negócio aberto no locado extravasar os limites do primeiro, não sendo acessório, conexo ou subsidiário deste, há lugar ao fundamento do despejo.
7. Quando ao fim ou ramo de negócio estipulado o arrendatário aditar outro, embora sem abandonar aquele, e não sendo o acrescido, sequer, acessório ou subsidiário do especificamente previsto no contrato, maxime por conexão ou complementaridade, ocorre o fundamento para resolução do contrato.
(sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.

Na comarca de Lisboa
G, Ltda.
Intentou acção de despejo com processo sumário contra
J Ltda.
Alegando que é proprietária do prédio identificado no artº 1º da douta petição, cuja Loja nº … foi dada de arrendamento à Ré em contrato de 1960, para fins comerciais; a Ré passou a exercer outras actividades no locado.
Conclui pedindo o despejo e a condenação da Ré a entregar-lhe livres e devolutas as preditas instalações.
Citada, a Ré contestou alegando que a sua actividade sempre residiu no comércio de máquinas, só que elas evoluíram e em vez de máquinas de escrever vende agora computadoras e outras máquinas sofisticadas.
Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida douta sentença julgando procedente a acção.
Da douta sentença vem interposto o presente recurso de apelação.
Nas suas alegações a apelante formula as seguintes conclusões:
a) 0 locado foi arrendado, em 6 de Dezembro de 1960, para "(...) comércio de máquinas e artigos de electricidade, não podendo ser dado outro uso sem autorização escrita do senhorio".

b) Como ficou provado nos autos, na loja da Ré, ora Recorrente, houve uma evolução, desde a actividade de compra e venda de máquinas de escrever no início dos anos 80, para a utilização, desde 1984, de máquinas fotocopiadoras e de impressão, encadernação e plastificação, utilização de PC's e Internet, além de compra e venda de pequenas máquinas de escritório, como calculadoras.

c) Ora, ao contrário do decidido, o comércio de máquinas não pode ser entendido, apenas, como compra e venda de máquinas podendo incluir a actividade mercantil, também exercida pela Recorrente, com máquinas fotocopiadoras, encadernadoras e plastificadoras.

d) Como a Recorrente demonstrou, ao longo dos últimos 20 anos, a actividade de comércio de maquinas alterou-se substancialmente, onde antes havia venda e/ou aluguer de máquinas de escrever e outras máquinas de escritório, tornadas obsoletas, passou a haver máquinas fotocopiadoras, PC's e Internet.

e) Segundo a sentença recorrida, com a expressão "comércio de máquinas e artigos de electricidade" as partes têm por objecto o comércio como actividade económica — não em sentido jurídico — mas como intermediação no circuito económico sem transformação do produto disponibilizado aos clientes, concretizada na compra de coisa para a sua revenda, no caso máquinas e artigos de electricidade.

f) Além de que, segundo ainda, a sentença recorrida, e ainda que não alegado, "(...) em 1960 não existia o comércio de serviços com utilização de fotocopiadoras ou computadores, que por isso não estavam no espírito dos então contraentes L.)"

g) Ora, não se vislumbra em toda a matéria de facto alegada e provada, como possa ser-se tão assertivo na determinação da vontade das partes, ante a abstracta, genérica e mesmo ambígua expressão utilizada no contrato como tendo por objecto o "comércio de máquinas".

h) Sendo, no mínimo, ambígua a expressão utilizada, tem de entender-se como nela abrangida o sentido jurídico-mercantil do termo e não apenas o económico.

i) Tanto assim, que como ficou provado, a Recorrente, desde 1984, utilizou o locado à vista de todos, incluindo o senhorio, para o comércio com máquinas fotocopiadoras e outras e ninguém, incluindo o senhorio, pôs em causa essa sua actividade, até à propositura desta acção.

j) Donde, a expressão "comércio de máquinas" como resulta da vigência do contrato ao longo dos últimos mais de 20 anos inculca que as partes contraentes admitiram que o respectivo teor integrasse o comércio de serviços com máquinas.

l) A própria sentença "a quo" se bem que comece por dizer, sem qualquer indício que o ateste, que o âmbito do comércio de máquinas deve ater-se ao comércio como actividade económica, logo de seguida acrescenta que, em 1960 não existia o comércio de serviços com utilização de fotocopiadoras ou computadores que por isso não estavam no espírito dos então contraentes.

m) Com o devido respeito, não parece razoável nem legal uma tal interpretação rígida e restrita de comércio de máquinas, expressão que suporta, perfeitamente, o comércio de utilização de máquinas.

n) Enferma assim, a sentença recorrida de erro de julgamento ao considerar demonstrada a alteração inequívoca entre a finalidade acordada e a exercida no locado, com violação do art. 1083 n° 2 d) do Código Civil.

o) Mesmo que assim não se entenda, dada a ambiguidade da expressão utilizada, deveria a sentença "a quo" ter feito apelo, na sua interpretação, aos ditames da boa fé, atento o comprovado longo período de tempo decorrido entre a actual actividade exercida à vista de todos, incluindo o Senhorio, tudo nos termos do art. 239 "in fine" do Código Civil, o que não sucedeu.

p) Por último, ainda que tivesse havido alteração do fim do contrato com a actividade iniciada pela Ré no locado, no ano de 1984 — o que se admite por mera hipótese de raciocínio sem de todo conceder — verifica-se uma situação de abuso de direito (cfr. art. 334 do C. Civil) por aquela longínqua alteração de actividade feita à vista de todos incluindo o (anterior) senhorio e conhecida do actual senhorio antes mesmo de ser remetida à Recorrente a carta de 1-9-2006 em que se assegurava que a transmissão da propriedade não determinava qualquer alteração da situação contratual — ser incompatível com a resolução do contrato com fundamento na aludida alteração de actividade.

Nestes termos deve esse Meritíssimo Tribunal revogar a douta sentença recorrida absolvendo a Ré de todos os pedidos como é de inteira justiça.

A Autora apelada contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão, tendo formulado as seguintes conclusões:
A. A Apelante interpôs o presente recurso por entender que a sentença deve ser revogada, porque fez errónea aplicação da lei aos factos dados como provados.

B. A Apelante entende que o "comércio de máquinas e artigos de electricidade" a que alude o objecto do contrato de arrendamento em análise não pode ser entendido, apenas, como compra e venda de máquinas podendo incluir a actividade mercantil, também exercida pela Recorrente, com máquinas fotocopiadoras, encadernadoras e plastificadoras.

C. A Apelante afirma que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao considerar demonstrada a alteração inequívoca entre a finalidade acordada e a exercida no locado, com violação do artigo 1083°, no 2, d) do CC.

D. A Apelante entende que se verifica uma situação de abuso de direito (cfr. artigo 3340 do cc) pela longínqua alteração de actividade feita à vista de todos incluindo o (anterior) senhorio e conhecida do actual senhorio antes mesmo de ser remetida à Recorrente a carta de 01/9/2006 em que se assegurava que a transmissão da propriedade não determinava qualquer alteração da situação contratual.

E. Ora, a Apelada não concorda com este entendimento da Apelante e pugna pela manutenção, na íntegra, da sentença proferida pelo Tribunal a quo.

F. Isto, porque no caso em apreço está em discussão a alteração do fim para o qual o contrato de arrendamento foi firmado em 1960.

G. Ou seja, tal contrato foi celebrado, unicamente, para o "comércio de máquinas e artigos de e/ectricidade", salvo autorização escrita do Senhorio (cfr. contrato de arrendamento junto aos autos).

H. A Apelante tinha como objecto social inicial o "comércio de máquinas de escrever, oficina de reparação de máquinas" e, em Agosto de 2003 sentiu necessidade de alterar o seu objecto social para "cópia, impressão e imagem" dado que a sua actividade actual em nada tinha que ver com o comércio e reparação de máquinas.

I. Actualmente no locado, existe, na esmagadora maioria, a prestação de serviços de fotocópias, conforme se pode constatar pela verificação dos documentos contabilísticos da Apelante juntos aos autos e pelos depoimentos prestados pelas Testemunhas.

J. No locado não existe qualquer comércio de máquinas e artigos de electricidade, conforme acordado no contrato de arrendamento, como fim do locado.

K. Ou seja, a Apelante ao arrepio do conhecimento e vontade do Senhorio e, de uma forma unilateral, entendeu alterar o fim a que se destinava o locado.

L. E fê-lo sem qualquer consentimento do Senhorio, nem verbal, nem escrito.

M. Em momento algum dos articulados a Apelante se refere ao conhecimento e/ou aprovação do Senhorio pela alteração do fim do locado, para depois se vir a levantar a questão em sede de julgamento em inquirição de testemunhas, não tendo, todavia resultado o conhecimento do Senhorio.

N. Na acção em apreço, salvo melhor opinião, temos que dar resposta a três perguntas em concreto:
a) a Ré alterou o fim do contrato de arrendamento para comércio acordado?
b) a Autora (ou anterior senhorio) deu autorização escrita para tanto?
c) a Autora (ou anterior senhorio) tinha conhecimento da alteração do fim a que o locado se destinava inicialmente?

O. Ora, relativamente à primeira questão enunciada na alínea N. supra, a resposta é: sim, a Ré alterou o fim do contrato de arrendamento para comércio acordado.

P. Pelo que, bem decidiu o Tribunal a quo ao afirmar que "a actividade (diremos esmagadora (...)) principal em função do critério (objectivo) dos proveitos, é o de prestação de serviços com utilização de máquinas, em cujo funcionamento se consome, também mas não só, energia eléctrica (fotocopiadoras, computadores), de forma que o bem fornecido ao cliente (fotocópias, encadernações, trabalhos feitos em impressos em computador) não é uma coisa que se haja comprado para revender sem incorporação de qualquer outro factor produtivo, antes aquele é o resultado do trabalho aplicado nas matérias primas adquiridas, e desta forma transformadas, com a mais valia acrescentada e inerente ao processo produtivo. Desta forma, a actividade da Ré só muito minoritariamente (em termos de proveitos e presuntivamente do tempo ocupado) se reconduz ao conceito técnico-económico de comércio que as partes acolheram nas suas declarações, não se trata da compra de papel e de artigos genericamente de papelaria para revenda - que ainda que não coincidente com o objecto acordado quanto aos bens, se reconduziria ao comércio como os contraentes o entenderam - mas a mesma vai para lá, sem equívocos, do modo produtivo convencionado, a Ré alterou este de forma a assentar os seus proveitos numa "oficina" de fotocópias, encadernações, trabalhos feitos e impressos em computador, que naturalmente lhe proporcionará um acréscimo de rendimentos, sejam quais forem as razões, designadamente a evolução tecnológica verificada."

Q. Relativamente à segunda questão enunciada na alínea N. supra, a resposta é: não o Senhorio não deu autorização para a alteração do fim do contrato de arrendamento para comércio.

R. Isso mesmo ficou plenamente demonstrado nestes autos - inclusivamente, por acordo da Ré (provado na alínea R)) - que o senhorio não deu qualquer autorização para a alteração do fim a que se destinava o locado, sendo dever do locatário o de "não aplicar a coisa a fim diverso daqueles a que ela se destina":

S. O que levou a que o Tribunal a quo entendesse que "(...) provada que está a violação deste dever pela Ré, (...) é considerado de relevância suficiente para o seu incumprimento pelo arrendatário do prédio urbano afecto ao comércio (artigo 1083° ex-vi artigo 1108° do C. Civil), ser de tal gravidade que torna inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento (no 2 c)), portanto em que no caso a verificação desta concreta situação, reúne os requisitos que sem mais lhe facultam o direito à resolução peticionada (...)".

T. Por fim, relativamente à terceira questão enunciada na alínea N. supra, a resposta é: não, a Autora (ou anterior senhorio) não tinha conhecimento da alteração do fim a que o locado se destinava inicialmente.

U. E, relativamente a esta questão em concreto bem andou o Tribunal a quo ao entender que "(...) a complacência do anterior senhorio (e primitivo contraente), quando teve conhecimento da actividade que a R. vem a título principal fazendo no locado, desde há anos, e não se opôs, a ver-se tal como significando aquiescência (...) de que tal modo de utilização se integra naquele, não vislumbramos na "passividade" indiciada uma declaração tácita nesse sentido, desde logo porque é requisito para tanto (art. 2170, 1 in fine C. Civil), a sua inequivocidade, isto é que a conduta em causa não possa comportar outro significado interpretativo, e para tal desiderato, necessário se tornava a demonstração (ónus da Ré) da exclusividade da interpretação sustentada por esta, o que a mesma não logrou".

V. Em suma, a Apelante alterou, unilateralmente, o fim a que se destinava o contrato de arrendamento para comércio, sem o conhecimento e sem o consentimento do senhorio,

X. sendo que ao abrigo do disposto no artigo 10830, nos 1 e 2, c) do CC deverá ser declarado resolvido o contrato de arrendamento com base no incumprimento do arrendatário.

Z.         Termos em que deve o Recurso interposto ser julgado improcedente porque não provado, mantendo-se a decisão recorrida.


Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores junto do Tribunal da Relação de Lisboa, mui doutamente suprirão, deve julgar-se improcedente o recurso de apelação apresentado pela Apelante, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
A questão a resolver consiste em apurar se houve ou não alteração relevante e substancial da actividade da Ré no locado susceptível de fundamentar um despejo.

II - Fundamentos.

Vem provado que:
A) Em 06.12.1960, e por referência ao prédio …..descrito ….o então proprietário N, com o teor do documento 4 junto à petição inicial, fls 29/34, acordou com a Ré (na altura com a firma "J.Lda") o arrendamento para comércio, da Loja sita no n° … do dito prédio;

B) pelo prazo de 1 ano, com início em 01.01.1961, sendo a renda mensal fixada naquela data em PTE 4.200$00 (equivalente a € 20,95), a pagar adiantadamente em casa do senhorio ou a quem legalmente o representar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.

C) Nos termos da Cláusula 2ª do acordado, o locado foi arrendado à Ré para "comércio de máquinas e artigos de electricidade, não podendo ser dado outro uso sem autorização escrita do senhorio".

D) O contrato foi sucessivamente renovado até à presente data, e por força das sucessivas actualizações, a renda mensal actual é de € 232,43.

E) Na loja da Ré, houve uma evolução, desde a actividade de compra e venda de máquinas de escrever no início dos anos 80, para a utilização desde 1984 de máquinas fotocopiadoras e de impressão, encadernação e plastificação, utilização de PC's e Internet, além da compra e venda de pequenas máquinas de escritório, como calculadoras.

F) Em Agosto de 2003 A R. mudou a sua firma de "J. Lda", para "I,Lda".

G) Bem como a R. alterou o seu objecto social inicial de "comércio de máquinas de escrever, oficina de reparação de máquinas", para "cópia, impressão e imagem".

H) A R. tratou de remover da fachada do estabelecimento comercial instalado no locado, a designação que ali constava, identificando o anterior estabelecimento comercial designado "J. Limitada".

I) Tendo colocado na parte superior da vitrine / montra do locado a designação "Imaginação Impressa".

J) A A. tomou conhecimento da mudança de firma da R..

L) Desde 01.09.2006 a A. é proprietária do imóvel provado em A), por compra naquela data, em escritura pública com o teor do documento 3 junto à petição inicial, fls 19/28.

M) Por carta registada remetida em 01.09.06 a A. informou a R. que passava a ser o Senhorio do locado.

N) Em 19.06.07 (data da p.i.) a Ré no locado,

a) realiza serviços de
- cópias A4, A3 e cópias de grandes formatos;
- impressão, digitalização;
- off set;
- encadernações e plastificações;
- tratamento de texto e de imagem;
- FieRy (imp. Digitalização N4 - A/3);
- serviço de fax;
- cartões de visita;
- consumíveis Papelaria;
- estampagem (T-shirt, puzzle, etc);
- serviço Internet (também sendo operador o próprio cliente); - design gráfico, que corresponderam a valores brutos em 2005 de € 142.190,23, e em 2006 de 159.322,00 ;

b) e no período de 11.12.06 a 30.08.07, a R. vendeu ali 1 calculadora no valor de € 10,45, 1 calculadora no valor de € 8,00, 1 calculadora no valor de € 14,00, 1 calculadora no valor de € 9,35, uma calculadora no valor de € 9,35, 1 calculadora no valor de € 17,70, 1 calculadora no valor de € 14,00, 1 calculadora no valor de € 14,00, 1 calculadora no valor de € 35,40, 1 máquina de corte no valor de € 31,75, 1 calculadora no valor de € 9,95, e 1 calculadora no valor de € 9,95.

O) O locado encontra-se apetrechado com todos os utensílios necessários para o desenvolvimento desta nova actividade da Ré, contendo várias máquinas fotocopiadoras, vários aparelhos de fax, material de papelaria, v.g. canetas, lápis, cartolinas, resmas de papel de tamanhos diversos. papel e fitas de embrulho, fita-cola, t-shirts, sacos de papel com fantasia, autocolantes, material para festas, etc.

P) A Ré utiliza a cave do locado como armazém dos produtos acima mencionados e para colocação de alguns aparelhos próprios para o desenvolvimento desta sua actividade.

Q) As alterações provadas na alínea E), até à situação provada na alínea N), foram feitas à vista de todos, incluindo o senhorio (antes e depois de 01.09.2006).

R) Nem o anterior senhorio nem a A., autorizaram a alteração do fim a que se destinava o contrato de arrendamento em vigor.

Relativamente ao uso do locado para fim diverso do contratado:
Costuma considerar-se que o arrendatário comercial pode desenvolver no locado as actividades que normal e logicamente se prendem com a actividade principal pela qual contratou, desde que elas não venham a implicar um verdadeiro desvio do objecto contratual (neste sentido, v. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora  de 05/02/98, in www.dgsi.pt ).
Assim, tem vindo a ser entendido que não há fundamento para a resolução desde que as circunstâncias permitam inferir, à luz da razoabilidade e da boa fé, que o locador, autorizando expressamente a exploração no prédio arrendado de um determinado ramo de negócio, podia e devia contar com o exercício adicional de uma outra actividade, devendo, por isso, entender-se que a autorizou também, embora de modo implícito (Vasco Lobo Xavier, in RLJ, 116°- 157 e ss..; Acórdãos  do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.7.92 e de 17.5.95, in C.J. 1992, tomo IV, pp. 144 e 1995, tomo I, pág. 87).
O arrendamento para determinado ramo compreende "as actividades acessórias, porventura complementares", desse ramo, não havendo, neste caso, aplicação do prédio "a ramo de comércio ou indústria diverso do convencionado" (Revista dos Tribunais, Ano 50°, pág. 130 e ss). Neste caso estarão incluídas quer as "actividades ligadas por uma relação de instrumentalidade necessária (ou quase necessária)" – pelo que será "lícita a prática de uma actividade que se mostre indispensável ou de todo o ponto conveniente" ao exercício de negócio literalmente permitido – quer as "actividades que, segundo os usos comuns, acompanham a exploração de dada modalidade de comércio ou de indústria" (cfr. Vasco Lobo Xavier, ob. cit, p. 160; Ac. do STJ, de 16.12.99, in www.dgsi.pt  e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.12.92, in BMJ, 422-425).
Vejam-se os seguintes arestos:
O arrendatário pode exercer no arrendado, ao abrigo do respectivo contrato de arrendamento, todas as actividades que não constituam uso do locado para fim ou ramo de negócio diverso do acordado entre ele e o senhorio, compreendendo-se nesta fórmula muitas actividades ligadas ao fim ou ramo de negócio expressamente autorizado no contrato, quer por acessoriedade (ou conexão), quer por instrumentalidade (necessária ou quase necessária), quer por habitualidade notória, do conhecimento geral, desde que o exercício destas não possa classificar-se como fim ou negócio diverso do contratado.
Acórdão da Relação de Lisboa de 28-5-96 (Relator: Folque Magalhães), alcançável via Internet na base de dados do Tribunal alojada no endereço www.dgsi.pt/ .

I - Não se verifica o fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto no art. 64º/1, alínea b) do RAU – usar o arrendatário o prédio arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daquele ou daqueles a que se destina – quando o arrendatário ali exerce uma actividade que embora diversa da prevista no contrato, é com ela conexa, e aquela continua a ser exercida no local;
II...III...
Acórdão da Relação de Lisboa de 7.1.2007 (Relator: Ferreira Lopes), alcançável via Internet na base de dados do Tribunal alojada no endereço www.dgsi.pt/ .

Porém, quando o novo negócio aberto no locado extravasar os limites do primeiro, não sendo acessório, conexo ou subsidiário deste, há lugar ao fundamento do despejo nos termos do artº 64º do RAU:
Quando ao fim ou ramo de negócio estipulado o arrendatário aditar outro, embora sem abandonar aquele, e não sendo o acrescido, sequer, acessório ou subsidiário do especificamente previsto no contrato, maxime por conexão ou complementaridade, ocorre o fundamento para resolução do contrato a que alude o art. 64, n. 1, al. b), do RAU.
Acórdão da Relação de Lisboa de 26.2.98 (Relator: Silva Santos), alcançável via Internet na base de dados do Tribunal alojada no endereço www.dgsi.pt/ .

No caso sub judice confrontamo-nos com um contrato de arrendamento para comércio e indústria, que define o objecto do contrato como "comércio de máquinas e artigos de electricidade".
O contrato é de 1960, pelo que deve ser interpretado à luz que seria o comércio de máquinas e artigos de electricidade nessa época.
Prova-se que na loja da Ré aqui em causa houve uma evolução, desde a actividade de compra e venda de máquinas de escrever no início dos anos 80, para a utilização desde 1984 de máquinas fotocopiadoras e de impressão, encadernação e plastificação, utilização de PC's e Internet, além da compra e venda de pequenas máquinas de escritório, como calculadoras.
Qualquer pessoa sabe que nos últimos 50 anos o comércio de máquinas eléctricas e afins foi profundamente alterado em virtude da evolução tecnológica – tudo aquilo que as máquinas de escrever podiam fazer passou a ser feito com recurso a computadores e impressoras.
Trata-se de uma evolução que nos últimos 15 a 20 anos adquiriu maior velocidade, com os computadores a descerem de preço quatro vezes por ano, em média, aparecendo constantemente novos modelos cada vez mais potentes e sofisticados, capazes de efectuarem trabalhos cada vez mais complicados e completos.
Em 1960 dificilmente o anterior senhorio ou a Ré podiam prever que nos anos subsequentes o comércio de máquinas ia ser alterado de forma tão radical.
Nem o senhorio nem o inquilino devem ser prejudicados ou favorecidos por essa evolução, que é mundial e está muito para além da capacidade de influência de um ou de outra.
Entendemos, portanto, que deve ser aceite a nova actividade no locado, desde que, cumulativamente, preencha dois requisitos básicos:
Ser o corolário lógico da actividade central para a qual foi estabelecido o contrato;
Não deve essa actividade aumentar os riscos, perturbações ou desgaste a que normalmente a actividade principal daria lugar.
Ou seja, no nosso entendimento, não haverá utilização do prédio para fim ou ramo de negócio diverso quando o arrendatário lhe adita uma actividade acessória, e isto justamente por ser acessória, complementar ou instrumental da actividade formal ou literalmente consentida.
Tem-se admitido, contudo, e em complemento a tal entendimento, que se deverão ressalvar situações em que a actividade acessória envolva um particular risco ou uma significativa perturbação para o locador, ou um acentuado desgaste ao prédio arrendado, casos em que, em princípio, o despejo não poderá ser evitado, a não ser que, na situação em causa, se deva concluir que o senhorio podia e devia contar com esses maiores riscos, perturbações ou desgaste (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-01-2007, in www.dgsi.pt )[1].
Ora não parece que a alteração da actividade principal (comércio de máquinas e artigos de electricidade) para a actividade actual ( utilização de máquinas fotocopiadoras e de impressão, encadernação e plastificação, utilização de PC's e Internet, além da compra e venda de pequenas máquinas de escritório, como calculadoras) produza desgaste, risco ou qualquer outra situação adversa que de alguma forma possa prejudicar o senhorio.
Sendo embora evidente que esta nova actividade é corolário lógico da actividade para que foi formalmente celebrado o contrato.
Por conseguinte, entendemos que a Ré não utilizou o arrendado para fim diverso do contrato – no sentido acima expresso – não havendo pois lugar ao despejo por uso diverso arrendado a que se reporta o artº 1083º, nº 1, al. c), do Código Civil, na sua redacção de 2006[2].
Assim, a apelação merece procedência.

III - Decisão.

De harmonia com o exposto, nos termos das citadas disposições, acordam os Juízes desta Relação em declarar procedente a apelação, revogando-se a douta sentença do Tribunal a quo e fixando-se o seguinte dispositivo:
Acordam em julgar a acção improcedente.
Custas pelo apelado.
 
Lisboa e Tribunal da Relação, 4 de Fevereiro de 2010

Os Juízes Desembargadores,

Francisco Bruto da Costa
Catarina Arêlo Manso
Ana Luísa Geraldes
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[1] Nesse sentido estamos em completa discordância com o que se afirma o Prof. Pinto Furtado, citado na douta sentença  ("...integrando-se a destinação do prédio, fixada no contrato, na regulamentação de interesses estipulados pelas partes, a simples mudança do fim, sem mais, infringe a vinculação negocial a que ficou adstrito o arrendatário, não relevando, portanto, nem que o novo fim seja mais adequado às qualidades concretas do prédio, nem que não tenha resultado daí qualquer prejuízo, antes vantagens para o senhorio...".
[2]  Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, conhecida por “Novo Regime do arrendamento urbano”, ou “Novo Rau”.