INVENTÁRIO
HERANÇA
LEGADO
TESTAMENTO
LEGITIMIDADE
LEGATÁRIO
Sumário

I – A deixa testamentária do uso e habitação de todos os bens de que o de cujus pudesse dispor configura um legado e não uma quota da herança, pois, ainda que os bens não estejam especificados, são identificáveis e o direito sobre eles constituído encontra-se determinado na sua essência no seu conteúdo económico.
II – Tendo este direito sido testado a favor do cônjuge sobrevivo, separado judicialmente de pessoas e bens, a sua qualidade é de legatário e não de herdeiro.
III – O legatário é parte ilegítima para requerer o inventário e só aí é admitido a intervir para defender os seus direitos, não sendo para tal indispensável a instauração de tal processo, pois pode sempre recorrer aos meios comuns.
(sumário do Relator)

Texto Integral

Nos autos de inventário que requereu, por óbito de seu marido “A”, “B” recorre da decisão de fls. 156-163, que julgou procedente a excepção dilatória da sua ilegitimidade e absolveu as interessadas “C” e “D” da instância.
A recorrente concluiu assim as suas alegações:
a) A ora recorrente tem efectivo e directo interesse na partilha por óbito de “A” e de seu filho, tendo em atenção o conceito geral de legitimidade vertido no art.º 26° do Cód. Proc. Civil e concreto quanto á partilha decorrente do art.º 1327° do mesmo Cód. Proc. Civil;
b) Estabelecendo o n.º 2 daquele art.º 1327° do Cód. Proc. Civil a legitimidade de intervenção de qualquer legatório ou donatário, não poderá restringir-se a sua capacidade de intervenção a uma mera adesão a iniciativa alheia de desencadear o inventário para partilha;
c) Até porque não é susceptível de aferir-se até que ponto a disposição testamentária efectuada em benefício da ora recorrente interfere ou não na partilha;
d) Na sua qualidade de herdeira testamentária, tem a recorrente legitimidade para desencadear a partilha por via de inventário;
e) Violados se revelam, salvo melhor opinião, os comandos contidos nos art.ºs. 1327° do Cód. Proc. Civil, e nos artes. 1795°A e 2133°, n° 3, do Cód. Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências, por ser de JUSTIÇA!
Em contra-alegações, as interessadas e recorridas “C” e “D” concluem assim:
1 — A Recorrente não tem legitimidade para requerer a abertura de inventário por óbito de seu marido “A”, pois à data do óbito encontrava-se separada judicialmente de pessoas e bens do inventariado, por decisão transitada em julgado.
2 — A separação judicial de pessoas e bens, relativamente aos bens produz os efeitos que produziria a dissolução do casamento — art.º 1795.° A do C.C.
3 — O art.º 1327.° do C.P.C. é bem claro ao conferir legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervir como parte principal em todos os actos e termos do processo, apenas aos interessados directos na partilha e ao Ministério Público nos casos prevenidos na alínea b) do n.º 2 do art.° 1327.°
4 — Distintas são as posições dos legatários, donatários e credores da herança, cuja intervenção está circunscrita aos termos dos n.º 2 e 3 do art.º 1327.° do C.P.C., sendo a posição da ora Recorrente subsumível ao disposto no n.º 3 do art.º 1327.° do C.P.C.
5 — Quisesse o legislador ter conferido legitimidade ao legatário para requerer a abertura de inventário, não teria procedido à distinção entre quem tem legitimidade para requerer a abertura de inventário (art.º 1327. ° n.º 1 do C.P.C.) e quem tem diferente tipo de intervenção, os legatários, donatários e credores da herança (art.º 1327. ° n.º 2 e 3 do C.P.C.).
6 – A deixa testamentária conferida à Recorrente confere-lhe a posição de legatária – pois o inventariado dispôs de parte especificada do seu património – direito ao uso e habitação dos bens de que pudesse dispor, a favor da sua cônjuge, e não de herdeira testamentária.
7 – Não sendo herdeira, nem interessada directa na partilha não tem a ora Recorrente legitimidade para requerer a abertura de inventário, tal como decidiu a Mma Juiz a quo, não se mostrando violadas qualquer das disposições legais indicadas pela Recorrente nas conclusões das suas alegações.
Termos em que deverá improceder o recurso interposto mantendo-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos como é de inteira, JUSTIÇA
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
O objecto do presente recursos é delimitado pelas conclusões da Recorrente, resultando destas as questões de saber se a recorrente é herdeira ou legatária e se é nteressada directa para poder requerer o inventário.
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II – Fundamentação
A - Com interesse para a decisão da causa, resulta dos autos assente o seguinte:
1. A ora recorrente requereu que se procedesse a inventário judicial, para partilha da herança aberta por óbito do seu marido, “A”.
2. Este último faleceu no dia 7 de Julho de 2006 (doc. de fls. 7).
3. A recorrente e o falecido casaram a 28 de Maio de 1958 – conforme assento de casamento de fls. 9-10.
4. Neste mesmo assento, encontra-se averbada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges «Declarada (…) por decisão de 12 de Julho de 2001, transitada em 23 de julho de 2001».
5. No dia 26 de Junho de 2006, “A” compareceu perante “E”, Notária com catório na Rua , n.º , letra .., em Lisboa e disse que por este seu testamento, o primeiro que fazia, legava o uso e habitação de todos os bens que pudesse dispor a “B”, natural da freguesia de A..., casada mas separada judicialmente de pessoas e bens, residente na Rua …, n.º .., M..., C...– doc. de fls. 12-13).

B – Apreciação Jurídica
1) Se a Recorrente é herdeira ou legatária
Herdeira é a pessoa que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatária a que sucede em bens ou valores determinados, nos termos do art.º 2030.º, n.º 2, do código civil. Não é herdeiro o cônjuge sobrevivo que, à data da morte do autor da sucessão, se encontrar separado judicialmente de pessoas e bens, sendo esta a situação da Recorrente (2133.º, n.º 3, do código civil). Esta separação judicial, e não a mera separação de bens, produz, em relação a estes, os mesmos efeitos que a dissolução do casamento (art.º 1795.º-A, do CPC).
No caso em apreço, foi por testamento deixado à ora recorrente o uso e habitação de todos os bens de que o de cujus pudesse dispor, ou seja, dos que coubessem na quota disponível.
Não se trata, pois, de uma quota da herança, sem especificação de bens, mas de um direito bem determinado na sua essência e no seu conteúdo económico – o de usar e habitar. Os bens sobre os quais a Requerente exercerá tal direito também são determináveis, no cômputo do acervo da herança. Efectivamente, a caracterização de uma deixa testamentária como legado pode verificar-se no caso de sucessão de coisas ou direitos determinados, especificados ou não especificados, uma vez que o critério qualificador do legado, acolhido no referido preceito, satisfaz-se com a determinabilidade dos bens ou direitos em que se sucede (cf. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. 1.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp. 60-61).
Deste modo, resulta evidente que o que foi deixado à Requerente foi um legado, pelo que a sua posição face à herança não é de herdeira, mas sim de legatária. Esta qualificação não resulta do simples facto de o autor do testamento ter declarado legar o aludido direito à Requerente, antes decorre de um critério legal objectivo, estranho e indiferente à vontade do testador, como se viu.

2) Se a Recorrente tem legitimidade para requerer o inventário
No tocante à legitimidade para requerer que se proceda a inventário, para nele intervirem como partes principais, em todos os termos e actos do processo, a lei prevê que, em primeiro lugar, a têm os interessados directos na partilha (art.º 1327.º, n.º 1, al. a), do CPC.
Ora, estes interessados só podem ser os herdeiros, não os legatários, os donatários ou os credores. Todos estes apenas podem intervir no processo, nos termos consentidos pelos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito, mas não têm um interesse directo (art.º 26.º do CPC) para requererem eles próprios ao tribunal que dê início ao processo de inventário. O legatário só é admitido a intervir no inventário para defender os seus direitos, não sendo para tal indispensável que haja inventário, pois pode exercê-los através dos meios comuns (cf. João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. 1.º, Almedina, Coimbra, 1979, p. 165).
Nesta conformidade, conclui-se que a Recorrente é parte ilegítima como requerente do presente inventário, pelo que bem absolvidas da instância foram as requeridas.
Improcedendo assim todas as conclusões da Recorrente, a decisão recorrida não merece censura e deve manter-se.
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III – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
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Lisboa, 2 de Março de 2010

João Aveiro Pereira
Manuel Marques
Pedro Brighton