PRESTAÇÃO DE CONTAS
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
TRIBUNAL DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
DECISÃO SURPRESA
Sumário

I – Analisando objectivamente a contestação do Réu, está claramente referido e analisado o uso indevido por parte do Autor do processo especial de prestação de contas previsto nos artigos 1014.º e seguintes do Código de Processo Civil, ou seja, está manifestamente arguida a nulidade principal de erro na forma do processo, da qual a parte não retira as suas naturais e inevitáveis consequências jurídicas, preferindo antes, num salto compreensível mas ilógico, que não podemos acompanhar, suportar-se nela para defender a incompetência absoluta do Tribunal de Comércio.
II – Muito embora o julgador esteja, em traços gerais, subordinado aos factos alegados pelas partes (cf. artigos 664.º e 264.º, número 1 e 467.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das excepções de monta que se acham contidas nos números 2 e 3 do primeiro dispositivo legal mencionado), já não o está relativamente à qualificação ou enquadramento jurídico dos mesmos feita por Autor ou Réu (cf. o já aludido artigo 664.º do Código de Processo Civil).
III – Face ao que se deixou exposto – sendo certo que o Autor veio responder na sua Réplica à excepção de incompetência em razão da matéria do Tribunal do Comércio –, nem sequer se poderá falar numa decisão surpresa, em violação do disposto no artigo 3.º, número 3, do Código de Processo Civil, relativamente ao despacho impugnado e aqui em análise (tendo sido a parte recorrente a trazer ao palco dos autos a questão do erro na forma do processo, muito embora sem retirar da mesma os efeitos legalmente previstos, não pode vir agora dizer que foi apanhada de surpresa pela aplicação do respectivo regime e pela inerente convolação da forma processual incorrecta para outra que é a própria, sendo que a ignorância ou má interpretação da lei não aproveita a ninguém, conforme dispõe o artigo 6.º do Código Civil).
IV – A determinação da forma processual adequada deve ser, em regra, prévia à apreciação das demais nulidades principais legalmente elencadas, como a ineptidão da petição inicial (artigo 193.º do Código de Processo Civil), a falta ou nulidade de citação (artigos 194.º a 198.º-A do aludido diploma legal) ou falta de vista ao Ministério Público (artigo 200.º do mesmo texto legal), pois só a partir de tal definição do meio adjectivo correcto é que se pode confrontar a acção em concreto com o regime legal aplicável, quer seja de natureza formal como substantiva, e, com base na conjugação estabelecida entre essas realidades, apreciar a dita nulidade total do processo (ineptidão da petição inicial arguida pelo Réu), a competência relativa do tribunal e outras excepções dilatórias como a legitimidade, o patrocínio judiciário, etc.
V – A nulidade principal do erro na forma do processo implica, habitualmente, a invalidação dos actos processuais que não possam ser aproveitados, por se desviarem radicalmente da tramitação adjectiva que deveria ter sido seguida e/ou por redundarem numa diminuição das garantias de defesa do réu, mas, em algumas situações, pode ser de tal ordem que afecte a própria petição inicial, acontecendo tal quando esta última revela uma inadequação total ao pedido formulado e à forma processual correcta, sendo mais do que uma nulidade processual uma verdadeira excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que acarreta, consoante a fase processual em que os autos se encontrem, o seu indeferimento liminar ou a absolvição da instância – artigos 288.º, número 1, alínea e), 493.º, números 1 e 2, 494.º e 495.º do Código de Processo Civil.
VI – Olhando para a causa de pedir alegada e pedido formulado, bem como para a contestação do Réu, sendo certo que os artigos 303.º, 1479.º do Código de Processo Civil e 67.º, número 2 do Código das Sociedades Comerciais sempre impunham o necessário e prévio contraditório (já para não falar do princípio geral contido no artigo 3.º, número 3 do Código de Processo Civil), não vislumbramos motivo para não poderem ser aproveitados aqueles dois articulados (a réplica apresentada não se acha expressamente prevista no regime legal aplicável mas atendendo à finalidade de tal resposta - visou pronunciar-se sobre diversas nulidades e excepções invocadas na oposição – e à margem larga de manobra que os já aludidos artigos 1409.º a 1411.º do Código de Processo Civil conferem ao julgador, não nos choca a sua manutenção na acção).
O Réu entende existir uma “inadequação total ao pedido formulado e à forma processual correcta”, mas quer-nos parecer que não tem razão, pois o pedido de apresentação das contas é claro e mostra-se suficiente fundamentado, tendo sido adequada e plenamente compreendido pelo Agravante.
(JES)

Texto Parcial

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

CARLOS, residente na Amadora, intentou, em 30/12/2003, no Tribunal de Comércio de Lisboa, um denominada acção declarativa de apresentação de contas, sob a forma de processo ordinário, contra JOSÉ, residente em Lisboa, pedindo, em síntese, que o Réu JOSÉ fosse notificado no sentido de proceder à apresentação das contas da Sociedade referentes aos anos de 1998, 1999, 2000, 2001 e 2002.
*
O Autor, para fundar tal pedido, alegou, em síntese, os seguintes factos:
“1.º - O Autor e o Réu, são os únicos sócios e gerentes, da Sociedade Comercial por Quotas denominada "C & E Lda.", com sede em Lisboa (Doc. 1).
2.º - Sociedade esta constituída por Escritura Pública levada a efeito no dia 06 de Agosto de 1997, no ... Cartório Notarial de Lisboa (Doc. 1).
3.º - Sucede que por Contrato de Exploração de Quota celebrado no dia 20 de Maio de 1998, o Autor cedeu ao Réu a exploração do estabelecimento por um período de tempo de 40 meses, ou seja, entre Junho de 1998 e Outubro de 2001, nos temos do previsto no Contrato (Doc. 2).
4.º - Contrato este que não chegou a ser assinado, dado tal ter ficado acordado entre as partes, visto existir plena confiança entre ambos, resultante do facto de serem amigos e cunhados (Doc. 2).
5.º - Pela cedência da quota do Autor, o Réu pagaria a este, mensalmente, a quantia de ESC. 50.000$00 (Cinquenta Mil Escudos), nos termos do previsto na clausula 3.ª do Contrato (Doc. 2).
6.º - Ora, como atrás já foi referido e se constata do Contrato de Sociedade, o Autor e o Réu, são os únicos sócios e gerentes, da Sociedade Comercial "C & E Lda." (Doc. 1).
7.º - Sucede, que após a celebração do Contrato de Exploração da Quota, o Autor não mais voltou ao Estabelecimento Comercial.
8.º - É certo que tal não se justificava até Setembro de 1998, dado o Contrato estar a ser cumprido por parte do Réu.
9.º - Porém, após o incumprimento do Contrato, tal deixou de se justificar.
10.º - Contudo, este apesar de ser sócio de pleno direito da Sociedade, viu-se impedido de entrar no Estabelecimento.
11.º - Sendo que igualmente após Setembro de 1998, o Réu não mais prestou contas da firma ao Autor.
12.º - Daí não saber o Autor se a firma tem lucros ou prejuízos, nem tão pouco como esta funciona.
13.º - Isto porque, a Sociedade nos termos do art.º 5.º do Contrato de Sociedade, se vincula nos seus actos e contratos, pela assinatura de ambos os sócios, ou seja, pelo Autor e pelo Réu.
14.º - Daí que se requeira a apresentação dos balanços e dos Relatórios e pontas da Sociedade, referentes aos anos de 1998, 1999, 2000, 2001 e 2002.
15.º - Apesar dos inúmeros contactos telefónicos e das diversas cartas enviadas pelo Autor ao Réu, no sentido de efectuar a apresentação das contas da Sociedade após Setembro de 1998, o certo é que até há presente data tal não sucedeu (Doc. 3, 4 e 5).”
*
Citado o Réu JOSÉ, veio o mesmo apresentar a contestação de fls. 31 e seguintes, onde alegou o seguinte:
I – POR EXCEPÇÃO
A – DA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL
1) Na presente acção o Autor peticiona a condenação do Réu na apresentação das contas de sociedade comercial por quotas, referentes aos anos de 1998, 1999, 2000, 2001 e 2002.
2) E fá-lo por meio de "acção declarativa de apresentação de contas” sob a forma de “Processo ordinário" (sublinhados nossos).
3) Nos termos do disposto no artigo 1014.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC).
4) Sucede que, a prestação de contas, como corolário do exercício de direitos sociais, é regulado por acção de processo especial. Vejamos:
5) Nos termos do artigo 67.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o meio processual idóneo para o suprimento da alegada falta de apresentação de contas é o de Inquérito, e não a acção ordinária de apresentação de contas, constante do artigo 1014.º do Código de Processo Civil.
6) Acção esta que, em termos processuais, é completada pelo disposto nos artigos 1479.º e seguintes do Código de Processo Civil.
7) Assim tem decidido constantemente a nossa jurisprudência, ao afirmar que: "A partir da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, não pode um sócio, para exigir prestação de contas, recorrer ao processo de prestação de contas previsto nos artigos 1014.º e seguintes do Código de Processo Civil. II – Para exigir a prestação de contas o meio idóneo é o inquérito, previsto no art.º 67.º do Código das Sociedades Comerciais" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.11.1991, in CJ/STJ, 1995, 3.º, pág. 113).
8) Vejam-se, ainda, inter alia, os Acórdãos do STJ, de 04.04.1995 e de 28.03.1995, in www.dgsi.pt.
9) Como ainda o Acórdão da Relação de Lisboa, de 04.11.1997, publicado em www.dgsi.pt.
10) A consequência jurídica da inadequada utilização dos meios processuais pelo Autor redunda na incompetência do douto Tribunal, de carácter absoluto, na medida em que o impossibilita de conhecer e apreciar a acção de apresentação de contas sob a forma de processo ordinário, proposta pelo Autor.
11) Termos em que se requer o conhecimento da excepção de incompetência absoluta do douto Tribunal de Comércio de Lisboa e a consequente absolvição do Réu da instância.
B – DA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
12) Não pode o reconhecimento da alegada excepção conduzir à remessa do processo para os Tribunais Judicias de competência genérica, porquanto conduziria à apreciação de tipo de acção para a qual esses Tribunais já seriam competentes, mas agora sobre factos da competência dos Tribunais de Comércio.
13) Dito de outro modo, o meio processual já seria o adequado, mas o tribunal cível continuaria sem poder apreciar a questão dado a mesma versar sobre matéria da competência dos tribunais de comércio, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 89.º da LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.
14) É, pois, flagrante a ineptidão da petição inicial.
15) Neste sentido vem igualmente decidindo o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, designadamente em Acórdão de 15.12.1992:
"Há ineptidão da petição inicial quando um sócio da sociedade comercial, com direito a prestação de contas pela gerência, pede tal prestação nos termos do artigo 1014.º do CPC, pois essa causa de pedir amolda-se inteiramente e só ao figurino do artigo 67° do CSC".
Por outro lado,
C – DA ILEGITIMIDADE DO RÉU
16) O Autor intentou a presente acção contra o Réu JOSÉ, quando deveria tê-la intentado contra a sociedade, que seria representada por quem exercesse as funções de sócio gerente.
17) Pelo que, ocorre excepção dilatória, nos termos do artigo 494.º, alínea e) do Código de Processo Civil, que culmina na absolvição do Réu da instância, em conformidade com os artigos 493.º, n.º 2 e 288.º, n.º 1, alínea d), ambos do Código de Processo Civil.
D – DA INEXISTÊNCIA DE DEVER DE APRESENTAÇÃO DE CONTAS
(…)
II – POR IMPUGNAÇÃO
(…)
*
Notificado o Autor da contestação do Réu, veio o mesmo responder às excepções ali invocadas nos moldes constantes do articulado de fls.17 e seguintes, do teor seguinte:
“1) (…)
A — Da Incompetência Absoluta do Tribunal e da Ineptidão da Petição Inicial:
2) Refere a Lei 3/99 de 13 de Janeiro L. O. F. T. J., na alínea c) do artigo 89.º, que compete aos Tribunais de Comércio, preparar e julgar de entre outras: " as acções relativas ao exercício de direitos sociais”;
3) Ora, como é sabido, Autor e Réu são os únicos sócios e gerentes da Sociedade Carlos & Esteves Lda.
4) Circunstância esta que lhes confere determinados direitos, mas também deveres, emergentes não só do Código das Sociedades Comerciais mas, também, do próprio Pacto Social.
5) Sendo que a este respeito o numero 1 do art.º 214.º do C. S. C. refere:
"Os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira, informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade e bem assim, facultar-lhe na sede social, a consulta da respectiva facturação, livros e documentos. A informação será dada por escrito se assim for solicitado"
6) Da conjugação destes dois diplomas legais, facilmente se retira ser o Tribunal de Comércio o competente para apreciar e julgar a presente acção, contrariamente ao referido pelo Réu na sua Contestação.
7) Pelo que é obrigação do sócio gerente Sr. JOSÉ , ora Réu, de prestar ao Autor, igualmente sócio gerente da sociedade Carlos & Esteves Lda. todas as informações sobre a vida e gestão da Sociedade após Outubro de 1998, o que lamentavelmente não sucedeu até à presente data.
8) Tanto mais que, obrigando-se a Sociedade em todos os seus actos e Contratos pela assinatura do Autor e do Réu, nos termos do previsto no artigo 5.º do Pacto Social, e não tendo o Autor assinado qualquer cheque ou documento a favor do Réu que lhe permita suprir esta obrigatoriedade, não sabe o Autor como tem funcionado a Sociedade, em termos financeiros, após Outubro de 1998!
9) E quando o Autor questionava o Réu sobre esta matéria, este recusava-se a prestar qualquer informação ou esclarecimento, sobre a vida da Sociedade, a pretexto de que a tal não estava obrigado atento o Contrato que havia sido celebrado.
10) Contudo, como é pelo próprio Réu confessado, teve que passar a ser o filho do Autor a deslocar-se ao estabelecimento, após o pagamento da primeira prestação pelo Réu ao Autor, para receber as prestações seguintes (que, recorde-se. foram apenas duas, das trinta e nove em falta), pois se assim não fosse nem essas provavelmente seriam pagas.
11) Isto porque, apesar de se tratar de um estabelecimento de porta aberta conforme refere o R. " o ambiente por este criado sempre que o A. se deslocava ao mesmo, era de tal forma pesado e provocatório, que a este não restou outra alternativa que não fosse a de deixar de se deslocar ao estabelecimento, delegando essa tarefa no seu filho reais velho, o Pedro.
B – Da Ilegitimidade do Réu.
12) Mais uma vez não assiste ao Réu, qualquer razão sobre a sua falta de legitimidade na presente acção.
13) Efectivamente, sobre esta matéria refere o número 5 do artigo 264.º do C. S.C.: "As notificações ou declarações de um gerente cujo destinatário seja a Sociedade, devem ser dirigidas ao outro gerente"
14) Sucede que, conforme se constata do Pacto Social, Autor e Réu, são os únicos sócios e gerentes, da Sociedade Carlos & Esteves Lda.
15) Daqui resultando ser o Réu e o Autor partes legítimas na presente acção.
16) Tanto mais que, tendo o Autor sido unilateralmente afastado da Sociedade pelo Réu após Outubro de 1998, porque contra a sua vontade, este desconhece em absoluto, a situação económica da Sociedade pelos motivos atrás referidos.
C — Da Inexistência do Dever de Apresentação de Contas.
(…)
Nestes termos e nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., devem as Excepções deduzidas pelo Réu serem julgadas improcedentes por não provadas, com as legais consequências, concluindo-se conforme o peticionado.(…)”
*
Foi proferido despacho, a fls. 22, com data de 06/12/2005, que, em síntese decidiu o seguinte:
“Compulsados os autos, a fim de designar a data para a realização de uma Audiência Preliminar, verifica-se agora que a presente acção foi tramitada como acção declarativa sob a forma ordinária (fls. 2 e seguintes).
Trata-se, contudo, de uma acção especial de inquérito judicial, nos termos do artigo 1479.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, provado (?) erro na forma do processo, nos termos do artigo 199.º do Código de Processo Civil, determino que seja efectuada nova distribuição e autuação, carregando-se e descarregando-se as espécies respectivas (4.ª e 1.ª – artigo 222.º do Código de Processo Civil). Notifique-se.”
*
O Réu JOSÉ interpôs desse despacho recurso (fls. 24 e 25), que foi correctamente admitido como de agravo, a subir de imediato, em separado e com efeito suspensivo (fls. 179).
O Apelante apresentou alegações de recurso (fls. 2 e seguintes) e formulou as seguintes conclusões:
“a) A acção judicial, da qual deriva o presente recurso, foi intentada pelo Autor, ora recorrido, como sendo uma acção declarativa de apresentação de contas, sob a forma de processo ordinário, nos termos do artigo 1014.º do C.P.C., conforme P.I. que acompanha o presente recurso.
b) O Tribunal, ao invés de conhecer das excepções alegadas e suscitadas pelo ora recorrente, na sua Contestação, decidiu convolar a acção ordinária em processo de Jurisdição Voluntária de Inquérito Judicial, conforme despacho a folhas 76 dos autos, que acompanha o presente recurso.
c) O meio processual adequado para pedir contas aos gerentes de sociedades não é o da acção especial de prestação de contas previsto nos artigos 1014.º e seguintes do C.P.C., mas sim o inquérito previsto na parte final do n.º 1 do artigo 67.º do Código das Sociedades Comerciais.
d) Ao invés de reconhecer o erro na forma de processo e a impropriedade do meio processual "acção de prestação de contas" para o fim visado pelo Autor, assim anulando o processado e absolvendo o Réu da instância, nos termos do n.º 2 do artigo 199.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 288.º, ambos do C.P.C., o Tribunal a quo decidiu superar, ex oficio, a suscitada excepção.
e) O Tribunal recorrido violou os princípios elementares do pedido e do impulso processual das partes.
f) O douto Tribunal recorrido convolou a acção de prestação de contas em inquérito judicial, violando as garantias do Réu, que se defendeu em contestação de uma acção de prestação de contas e não de um inquérito judicial.
g) O Tribunal a quo violou o disposto no n.º 2 do artigo 199.º do C.P.C., como vem sendo decidido pela Jurisprudência desse Venerando Tribunal ad quem.
Acresce que,
h) O Tribunal recorrido operou tal convolação da acção sem cuidar de verificar, previamente, se o pedido e a causa de pedir em que se consubstancia a causa já contêm, em si mesma, os requisitos processuais específicos do novo meio processual.
i) Ou seja, o douto Tribunal recorrido convolou a acção, que não teria sucesso enquanto prestação de contas, numa acção de inquérito a que falecem requisitos legais, regulados no artigo 67.º do C.S.C.
j) Ou seja, salvo o devido respeito, operou uma tramitação inútil.
k) A menos que, de seguida, o douto Tribunal a quo fosse igualmente convidar o Autor a aperfeiçoar a sua petição...
1) Por tudo, forçoso é concluir pela ilegalidade formal e substancial do douto despacho em crise.
m) O douto Tribunal convolou uma acção de prestação de contas num inquérito que, além de falecer no mérito, continua a possuir graves vícios formais. E
n) Não cuidou, sequer, de ouvir previamente o Agravante sobre a eventual ofensa das suas garantias.
o) É, assim, de revogar o despacho recorrido e de proferir douto Acórdão que anule todo o processado e absolva o Réu Agravante da instância, nos termos do artigo 288.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C.
V. Pedido.
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado provado e procedente, com a consequente revogação do despacho proferido nos autos a fls. 76 e substituição por douto acórdão que julgue verificada a utilização de meio processual impróprio, anulando todo o processado e absolvendo o Réu ora Agravante da instância.”
*
O Agravado não apresentou contra-alegações de recurso, apesar de notificada para o efeito.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS

Os factos a considerar para efeitos de apreciação do objecto do presente recurso são aqueles que constam do relatório do presente Aresto e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 690.º e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).

A – QUESTÃO PRÉVIA
(…)
B – OBJECTO DO RECURSO
(…)
B1 – APRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL DE QUESTÃO NÃO SUSCITADA PELAS PARTES

O Agravante insurge-se contra o despacho recorrido por o mesmo ter abordado e decidido matéria ou excepção não invocada pelas partes nos autos.
Ora, salvo o devido respeito por tal posição e independentemente da possibilidade do tribunal conhecer oficiosamente dessa nulidade processual (artigos 199.º, 202.º e 206.º do Código de Processo Civil), a mesma não é exacta, dado o Réu, na sua contestação, ainda que de uma forma não declarada ou nominada, ter suscitado essa precisa problemática.
O Réu, com efeito, na sua contestação e no quadro da excepção de incompetência absoluta do Tribunal de Comércio, afirma o seguinte:
“1) Na presente acção o Autor peticiona a condenação do Réu na apresentação das contas de sociedade comercial por quotas, referentes aos anos de 1998, 1999, 2000, 2001 e 2002.
2) E fá-lo por meio de "acção declarativa de apresentação de contas” sob a forma de “Processo ordinário" (sublinhados nossos).
3) Nos termos do disposto no artigo 1014.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC).
4) Sucede que, a prestação de contas, como corolário do exercício de direitos sociais, é regulado por acção de processo especial. Vejamos:
5) Nos termos do artigo 67.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o meio processual idóneo para o suprimento da alegada falta de apresentação de contas é o de Inquérito, e não a acção ordinária de apresentação de contas, constante do artigo 1014.º do Código de Processo Civil.
6) Acção esta que, em termos processuais, é completada pelo disposto nos artigos 1479.º e seguintes do Código de Processo Civil.
7) Assim tem decidido constantemente a nossa jurisprudência, ao afirmar que: "A partir da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, não pode um sócio, para exigir prestação de contas, recorrer ao processo de prestação de contas previsto nos artigos 1014.º e seguintes do Código de Processo Civil. II – Para exigir a prestação de contas o meio idóneo é o inquérito, previsto no art.º 67.º do Código das Sociedades Comerciais" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.11.1991, in CJ/STJ, 1995, 3.º, pág. 113).
8) Vejam-se, ainda, inter alia, os Acórdãos do STJ, de 04.04.1995 e de 28.03.1995, in www.dgsi.pt.
9) Como ainda o Acórdão da Relação de Lisboa, de 04.11.1997, publicado em www.dgsi.pt.
10) A consequência jurídica da inadequada utilização dos meios processuais pelo Autor redunda na incompetência do douto Tribunal, de carácter absoluto, na medida em que o impossibilita de conhecer e apreciar a acção de apresentação de contas sob a forma de processo ordinário, proposta pelo Autor.
11) Termos em que se requer o conhecimento da excepção de incompetência absoluta do douto Tribunal de Comércio de Lisboa e a consequente absolvição do Réu da instância.”
Analisando objectivamente este excerto da contestação do Réu, afigura-se-nos que está claramente referido e analisado o uso indevido por parte do Autor do processo especial de prestação de contas previsto nos artigos 1014.º e seguintes do Código de Processo Civil, ou seja, está manifestamente arguida a nulidade principal de erro na forma do processo, da qual a parte não retira as suas naturais e inevitáveis consequências jurídicas, preferindo antes, num salto compreensível mas ilógico, que não podemos acompanhar, suportar-se nela para defender a incompetência absoluta do Tribunal de Comércio.
Importa talvez recordar que, muito embora o julgador esteja, em traços gerais, subordinado aos factos alegados pelas partes (cf. artigos 664.º e 264.º, número 1 e 467.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das excepções de monta que se acham contidas nos números 2 e 3 do primeiro dispositivo legal mencionado), já não o está relativamente à qualificação ou enquadramento jurídico dos mesmos feita por Autor ou Réu (cf. o já aludido artigo 664.º do Código de Processo Civil).
Logo, face ao que se deixou exposto – sendo certo que o Autor veio responder na sua Réplica à excepção de incompetência em razão da matéria do Tribunal do Comércio –, nem sequer se poderá falar numa decisão surpresa, em violação do disposto no artigo 3.º, número 3, do Código de Processo Civil, relativamente ao despacho impugnado e aqui em análise (tendo sido a parte recorrente a trazer ao palco dos autos a questão do erro na forma do processo, muito embora sem retirar da mesma os efeitos legalmente previstos, não pode vir agora dizer que foi apanhada de surpresa pela aplicação do respectivo regime e pela inerente convolação da forma processual incorrecta para outra que é a própria, sendo que a ignorância ou má interpretação da lei não aproveita a ninguém, conforme dispõe o artigo 6.º do Código Civil).

B2 – NÃO APRECIAÇÃO DAS EXCEPÇÕES EXPRESSAMENTE ARGUIDAS NA CONTESTAÇÃO

Questiona igualmente o Réu que o tribunal da 1.ª instância não tenha apreciado, desde logo, as excepções dilatórias por ele arguidas na sua contestação – incompetência em razão da matéria e nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial –, tendo, ao invés, optado por reconhecer e declarar o erro na forma do processo nos moldes já acima descritos.
Salvo melhor opinião, também a tese defendida pelo Agravante não merece a nossa concordância, dado nos parecer que a determinação da forma processual adequada dever ser, em regra, prévia à apreciação das demais nulidades principais legalmente elencadas, como a ineptidão da petição inicial (artigo 193.º do Código de Processo Civil), a falta ou nulidade de citação (artigos 194.º a 198.º-A do aludido diploma legal) ou falta de vista ao Ministério Público (artigo 200.º do mesmo texto legal), pois só a partir de tal definição do meio adjectivo correcto é que se pode confrontar a acção em concreto com o regime legal aplicável, quer seja de natureza formal como substantiva, e, com base na conjugação estabelecida entre essas realidades, apreciar a dita nulidade total do processo (ineptidão da petição inicial arguida pelo Réu), a competência relativa do tribunal e outras excepções dilatórias como a legitimidade, o patrocínio judiciário, etc.
Bastará imaginar o recurso impróprio ao procedimento cautelar comum quando a providência cautelar pretendida reclama o procedimento nominado de arresto, onde nunca existe a audição prévia do Requerido (artigo 408.º, número 1 do Código de Processo Civil), ao contrário do que acontece naquele outro, em que tal audição pode ou não acontecer (artigo 385.º do Código de Processo Civil), para compreender a importância que terá a aferição, à cabeça, do instrumento processual correcto em função do efeito jurídico perseguido pelo demandante.
Também a circunstância de estarmos face a um processo de índole contenciosa/litigiosa ou face a um processo de jurisdição voluntária faz muita diferença, em termos de princípios e regras aplicáveis, bastando pensar que, de acordo com o artigo 1409.º, número 2, do Código de Processo Civil, o juiz tem amplos poderes de investigação dos factos, recolha de provas e tramitação dos autos, que face ao artigo 1410.º do mesmo diploma legal, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita e nos termos do artigo1441.º desse texto legal, é admitida a alteração superveniente das resoluções do tribunal.
Finalmente, tendo em atenção as regras constantes dos artigos 73.º e seguintes do Código de Processo Civil, bem como outras de natureza especial que podem ser encontradas em legislação avulsa, que definem a competência territorial, pode ser relevante a qualificação jurídica correcta da forma processual usada para aquele pedido ou pedidos, pois o foro competente pode ser diverso (pensem-se nos procedimentos cautelares ou nas execuções para pagamento de quantia certa ou para entrega de coisa certa – artigos 83.º e 94.º do Código de Processo Civil, respectivamente).
É certo que a incompetência em razão da matéria foi também invocada pelo Agravante (podendo, quanto a ela, questionar-se a licitude da atitude do tribunal recorrido, que preteriu a sua apreciação em favor da nulidade do artigo 199.º do Código de Processo Civil), mas, como já acima deixámos aflorado, tal excepção dilatória só no nome, aparência e efeito (juridicamente inconsequente) perseguido se reconduz a uma situação de incompetência absoluta, pois, constituindo o erro na forma do processo a base e o pressuposto essencial e único dessa pretensa incompetência, tal excepção acaba antes por se traduzir, em moldes substanciais, na arguição dessa precisa nulidade principal (esta ideia é, de alguma maneira, confirmada e reforçada pela arguição da ineptidão da petição inicial e respectiva motivação).
Importa ainda ter em atenção o que estatui o artigo 199.º do Código de Processo Civil acerca dessa nulidade processual principal e que é o seguinte:
(…)
Logo, tal nulidade adjectiva implica, habitualmente, a invalidação dos actos processuais que não possam ser aproveitados, por se desviarem radicalmente da tramitação adjectiva que deveria ter sido seguida e/ou por redundarem numa diminuição das garantias de defesa do réu, mas, em algumas situações, como nos informa António Santos Abrantes Geraldes, em “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, 2.ª Edição, Janeiro de 2003, páginas 280 e 281 e em “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, 4.ª Edição, Março de 2004, página 124 (nota 204), o erro na forma do processo pode ser de tal ordem que afecte a própria petição inicial, acontecendo tal quando esta última revela uma inadequação total ao pedido formulado e à forma processual correcta, sendo mais do que uma nulidade processual uma verdadeira excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que acarreta, consoante a fase processual em que os autos se encontrem, o seu indeferimento liminar ou a absolvição da instância – artigos 288.º, número 1, alínea e), 493.º, números 1 e 2, 494.º e 495.º do Código de Processo Civil (cf., também o Aresto indicado pelo Réu nas suas alegações: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/07/2004, processo n.º 3625/2004).
Extrai-se, em nossa opinião, quer da letra da lei, como do que a doutrina e jurisprudência referem a esse respeito, a necessidade de previamente afeiçoar o meio processual legalmente previsto ao pedido e causa de pedir formulados nos autos em presença, como acima deixámos defendido.
Logo, pelos motivos expostos, também este recurso de agravo não merece provimento nesta parte.

B3 – ERRO NA FORMA DO PROCESSO

Entrando agora na análise da questão central que é levantada no quadro deste recurso, importa dizer que não existe discordância – em rigor, não poderia existir, sob pena de litigância de má fé, dado o Réu, na sua contestação, como resulta do excerto da mesma já acima reproduzido, indicava o inquérito judicial como o meio processual próprio para discutir e julgar a pretensão do Autor – do Agravante relativamente ao tipo de processo adequado à pretensão do Agravado e que foi corrigido pelo despacho impugnado (inquérito judicial em vez de prestação de contas).
Verifica-se, efectivamente, que face ao pedido do Autor, ao disposto no artigo 67.º, número 1 do Código das Sociedades Comerciais (“Se o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas não forem apresentados nos dois meses seguintes ao termo do prazo fixado no artigo 65.º, n.º 5, pode qualquer sócio requerer ao tribunal que se proceda a inquérito.”) e à jurisprudência indicada pelo próprio Agravante (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22/11/1995, em CJ/STJ, 1995, 3.º Tomo, páginas 113 e seguintes, de 4/04/1995 e de 28/03/1995, em www.dgsi.pt e do Tribunal da Relação de Lisboa de 4/11/1997, também em www.dgsi.pt), é esse processo de inquérito judicial, com natureza de jurisdição voluntária e regulado pelos artigos 1409.º a 1411.º, 302.º a 304.º, 1479.º, 1481.º e 1483.º do Código de Processo Civil e 67.º, números 2 e seguintes do Código das Sociedades Comerciais.
Também o reconhecimento e declaração de tal nulidade principal, face aos artigos 199.º, 202.º e 206.º do Código de Processo Civil, já antes citados, não merecem censura, tanto mais que, como igualmente já vimos e sem prejuízo dos seus legítimos poderes oficiosos, o juiz do processo se limitou a dar expressão e corpo a uma “excepção dilatória” suscitada pelo Réu.
Chegados aqui, resta saber se, conforme pretende o recorrente, os autos, na tramitação que lhe foi dada pelo tribunal da 1.ª instância e na sua configuração actual, não podem ser aproveitados, ainda que somente em parte, como processo de inquérito judicial, tendo antes de se chamar à colação o número 2 do artigo 199.º do Código de Processo Civil, com a anulação de todo o processado (aí se incluindo a petição inicial), nos moldes defendidos por Abrantes Geraldes e já antes referenciados.
Olhando para a causa de pedir alegada e pedido formulado, bem como para a contestação do Réu, sendo certo que os artigos 303.º, 1479.º do Código de Processo Civil e 67.º, número 2 do Código das Sociedades Comerciais sempre impunham o necessário e prévio contraditório (já para não falar do princípio geral contido no artigo 3.º, número 3 do Código de Processo Civil), não vislumbramos motivo para não poderem ser aproveitados aqueles dois articulados (a réplica apresentada não se acha expressamente prevista no regime legal aplicável mas atendendo à finalidade de tal resposta - visou pronunciar-se sobre diversas nulidades e excepções invocadas na oposição – e à margem larga de manobra que os já aludidos artigos 1409.º a 1411.º do Código de Processo Civil conferem ao julgador, não nos choca a sua manutenção na acção).
O Réu entende existir uma “inadequação total ao pedido formulado e à forma processual correcta”, mas quer-nos parecer que não tem razão, pois o pedido de apresentação das contas é claro e mostra-se suficiente fundamentado, tendo sido adequada e plenamente compreendido pelo Agravante.
Logo, não encontramos razões para conceder provimento ao presente agravo, pelo que o despacho recorrido deverá ser mantido nos seus precisos moldes.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto e tendo em conta os artigos 749.º e 713.º do Código do Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em não conceder provimento ao recurso de agravo interposto por JOSÉ, confirmando-se nessa medida e integralmente o despacho recorrido.
Custas do recurso pelo Agravante – artigo 446.º do Código de Processo Civil.
Notifique e Registe.
Lisboa, 4 de Março de 2010
(José Eduardo Sapateiro)
(Teresa Soares)
(Rosa Barroso)