Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
POSSE
USUCAPIÃO
TRANSMISSÃO DA POSSE
ABANDONO
Sumário
1 - A noção de posse acolhida no art 1251º do CC integra no seu conceito jurídico, quer o corpus - domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício - quer o animus possidendi - consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio. 2 - O herdeiro sucede na titularidade das relações jurídicas patrimoniais que o autor da herança já detinha, ou seja, a posse aqui não surge ex novo, mas continua a ser a posse antiga, com as mesmas características. 3 - Demonstrado que, por si e antecessor, a posse se exerce há mais de 23 anos (posse pública, pacífica e contínua), temos que concluir, forçosamente, que a manutenção dessa posse faculta ao possuidor a aquisição do direito de propriedade a cujo exercício corresponde a sua actuação. 4 - Para efeitos da perda da posse, o abandono pressupõe um acto material praticado intencionalmente de rejeição da coisa ou do direito, mas o direito de propriedade sobre imóveis não pode ser abandonado. 5 - E também a invocação da alínea d) do art 1267º do CC é descabida, porque o autor já era proprietário. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
1 – “A” intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma ordinária (Proc nº 28/05.4TBVLS do Tribunal Judicial de V...) contra “B” e “C”, pedindo que:
a) se declare ser o A., por o haver adquirido por usucapião, possuidor e legítimo proprietário do artigo ... rústico da freguesia de S.../V..., descrito na Conservatória sob o n° .../...;
b) seja ordenado o cancelamento dos registos efectuados sobre o citado artigo matricial ...;
c) sejam os RR condenados a reconhecerem o A. como dono, legitimo possuidor e proprietário do referido artigo matricial.
2 - Contestaram os RR. e deduziram reconvenção, pedindo que:
a) sejam declarados donos e legítimos proprietários do prédio rústico referido pelo A., com inscrição a favor dos RR., G-3 Ap. 02/..., por aquisição derivada e por aquisição originária por usucapião;
b) seja o A. condenado a reconhecer esse direito e a cumpri-lo nos seus precisos termos.
3 - Houve réplica do A. e, realizado o julgamento, respondeu-se à matéria de facto oportunamente levada à base instrutória; subsequentemente, foi proferida sentença (cfr fls 339 a 353), pela qual se decidiu:
“... o tribunal julga a presente acção parcialmente procedente, e a reconvenção improcedente e, em consequência
1. Declara o A., “A”, possuidor e proprietário, com exclusão de outrem, do prédio rústico, inscrito na matriz sob o art. ... da freguesia de S.../V... e descrito na CRP de V... sob o nº .../....
2. Condena os RR., “B” e mulher, “C”, a reconhecerem o A. como dono e legitimo possuidor e proprietário do mesmo prédio.
3. Determina o cancelamento das inscrições Ap.06/..., Ap.01/... e AP.02/..., que incidem sobre o prédio descrito no ponto 2. da matéria de facto provada.
4. Absolve o A., “A” do pedido reconvencional formulado pelos RR., “B” e mulher, “C”.
...”.
4 – Inconformados com esta decisão, dela interpuseram os RR. o presente recurso de apelação, tendo, nas suas alegações oportunamente apresentadas, formulado as seguintes conclusões:
“1. Na decisão que ora se impugna, declara o Tribunal o A. Ora recorrido, “A” possuidor e proprietário, com exclusão de outrem, do prédio rústico, inscrito na matriz sob o artº ... da freguesia de S.../V... e descrito na CRP de V... sob o n° .../....
1. 2. Nessa sequência, condena os RR., “B” e mulher, “C”, a reconhecerem o A. como dono e legítimo possuidor e proprietário do mesmo prédio.
2. 3. Determina ainda o cancelamento das inscrições Ap. 06/..., Ap, 01/... e Ap. 02/..., que incidem sobre o prédio descrito no ponto 2. da matéria de facto provada.
3. 4. Conclui absolvendo o A., “A” do pedido reconvencional formulado pelos RR., “B” e mulher, “C”.
5. Porém, dos factos dados como assentes outra decisão se impunha ao Tribunal.
6. Na verdade, no ponto 17. da douta decisão, ali se refere taxativamente que “Desde 1986 – após o falecimento de seu pai – e até, pelo menos à data da morte de sua tia “D”, em Novembro de 2000, o A., através de procurador, cultivou o prédio identificado no ponto 2. com couves e batatas, colheu frutas, retirou madeira e vendeu os produtos que cultivou”
7. Tendo por base o que supra se diz é de realçar que até pelo menos à data da morte da tia do A., “D”, em Novembro de 2000, o A (…) cultivou o prédio identificado no ponto 2. dos factos provados, precisamente o prédio rústico correspondente ao artigo ..., da freguesia de S....
8. Tal situação deverá ser caracterizada face ao disposto na alínea a) do artigo 1267 do Código Civil, como verdadeiro abandono, o que fará com que o autor tenha então, perdido a posse sobre o referido prédio a partir daquela data, Novembro de 2000.
9. Por outra banda, dá a douta sentença por provado que, desde Julho de 2003, os RR. podaram os bardos no terreno, correspondente ao prédio em discussão (ponto 26. da matéria de facto assente e dada como provada pela douta sentença).
10. Daqui se conclui que a perda da posse do autor também se verifica à luz da alínea d) do mesmo artigo 1267 do código civil.
11. Isto porque a presente acção apenas deu entrada em Tribunal no dia 10 de Fevereiro de 2005,
muito para além do prazo de um ano em que durou e continua a perdurar a posse dos réus.
12. A corroborar esta posição basta apurar a factualidade que se dá como não provada à resposta dada aos quesitos 19 a 22 da base instrutória, dado nenhuma prova o autor ter feito relativamente a sua posse sobre o prédio em discussão, após o ano 2001 inclusive, posto o dado como assente e supra referido no ponto 7.
13. De resto, mesmo na hipótese não provada nesta causa (veja-se a resposta dada ao quesito 13.), de que o prédio rústico correspondente ao artigo ..., da freguesia de S... formar uma unidade incindível com o artigo ... urbano, mesmo assim, aquando da instauração da acção destinada à reivindicação deste urbano, em finais de 2002, o autor já havia perdido a posse relativa ao artigo ..., pois esta apenas durou até Novembro de 2000.
14. Face a estes factos, a douta sentença na subsunção que faz destes ao direito, deveria ter considerado a posse do autor perdida, perante as alíneas a) e d) do artigo 1267° do Código Civil, e, por consequência, deveria ter declarado improcedente a acção e, por procedente a reconvenção deduzida pelos RR.”
5 – O A. apresentou contra-alegações, concluindo pela confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, e tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
*
II – AS QUESTÕES DO RECURSO
Ao presente recurso é ainda aplicável o regime processual anterior ao Dec-Lei n.º 303/2007, de 24-08, por respeitar a acção instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus arts 11º nº1 e 12º).
Como é sabido e resulta das disposições contidas nos arts 684º nºs 2 e 3 e 690º nº1 do CPC, na redacção aplicável, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que o apelante extrai das suas alegações, estando vedado ao Tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, já que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova e o seu âmbito está delimitado pelo conteúdo do acto recorrido (art 660º nº 2, in fine, do CPC). Dentro desse âmbito, deve o Tribunal resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, exceptuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outras (art 660º nº 2 do CPC).
Atento o exposto, e o que flui das conclusões das alegações dos apelantes, a única questão decidenda é a de saber se a sentença viola o art 1267º a) e d) do CC.
*
III – FUNDAMENTOS DE FACTO
A matéria de facto delineada na 1ª Instância foi a seguinte:
“1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../... o prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e 1.° andar, com a superfície coberta de 120 m2, quintal de 1450 m2 e dependência de 60 m2, sito na Q..., inscrito na matriz sob o artigo n.º ..., a confrontar a norte com “F”, a sul e nascente com a estrada e a poente com a C... do ..., sendo o titular inscrito “A”, aqui Autor, pela Ap. 06/....
2. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../... o prédio rústico composto por terra, sito nos M... da C... do ..., com a área de 14,52 ares, inscrito na matriz sob o artigo ..., a confrontar a norte com caminho, a sul com servidão, a nascente e a poente com M...J..., sendo o titular inscrito “B”, pela Ap. 02/....
3. O primeiro titular alguma vez inscrito do imóvel identificado em 2. foi “D”, pela Ap. 06/..., tendo a Casa de Repouso “G” sido o segundo titular alguma vez inscrito, pela Ap. 01/....
4. Por sentença proferida em 27 de Junho de 2003 nos autos de acção ordinária (não contestada) n.º 148/2002, já transitada em julgado, em que “A” assumiu a posição processual de Autor e a Casa de Repouso “G” a de Ré, foi decidido declarar que o Autor adquiriu por usucapião o prédio inscrito na Repartição de Finanças de V... com a matriz n.º ..., ou seja, casa de rés-do-chão e primeiro andar, confrontando a norte com “F”, a sul e nascente com estrada e poente com C... do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n. ° .../... (prédio identificado em 1).
5. O pai do Autor, “A”, faleceu no dia 9 de Agosto de 1986 no Estado da C....
6. No dia 11 de Outubro de 1983, “A” havia feito um testamento (primeiro codicilo da última vontade), em língua inglesa, cujo teor traduzido para português é o seguinte: "artigo 1: eu declaro que eu tenho propriedade na freguesia de Q..., Ilha de S. ..., Açores, em que eu deixo as minhas duas crianças o seguinte:
1) Para o meu filho, “A”., eu deixo a minha casa maior conhecida por n.º ..., V..., freguesia de Q..., com os aproximadamente 6 ou 7 acres sobre os quais está implantada. Esta casa pertencia a meu pai e eu nasci lá;
2) Para a minha filha, “H”, eu deixo a casa pequena implantada em aproximadamente 8 ou 9 acres, esta casa era do meu avô. (...)".
7. “D” faleceu no dia 22 de Novembro de 2000 no estado de viúva de “F”, com quem foi casada em primeiras núpcias no regime da comunhão geral de bens, e sem descendentes, ou ascendentes vivos.
8. Em testamento efectuado no dia 13 de Maio de 1998 na Casa de Repouso “G”, perante o Notário do concelho, “D” instituiu a mencionada Casa de Repouso, instituição que a acolheu, sua única herdeira.
9. Em 1977, o pai do A. e “D” celebraram um acordo nos termos do qual ele ficava com o imóvel identificado no ponto 1. da matéria de facto, a troco de lhe enviar dinheiro, enquanto ela vivesse, para as suas despesas.
10. Em 1977, o pai do A. e “D” celebraram um acordo nos termos do qual ele ficava com o imóvel identificado no ponto 2. da matéria de facto, a troco de lhe enviar dinheiro, enquanto ela vivesse, para as suas despesas.
11. O pai do Autor vivia nos Estados Unidos da América.
12. Desde 1977, deu instruções aos seus procuradores para o cultivo das terras do imóvel identificado no ponto 2. com batatas, couves, outros legumes, com plantação de árvores de fruto e para venda dos produtos cultivados.
13. O pai do A, através dos seus procuradores, semeou as terras, regou, e colheu os seus frutos.
14. Fê-lo com o conhecimento de todos na ilha e sem oposição de ninguém, com a consciência de exercer um direito próprio.
15. Ambos os imóveis, identificados em 1. e 2., sempre foram cultivados ao mesmo tempo, sem distinção entre eles por parte de quem cultivava.
16. A "casa maior” descrita no ponto 6.1. é a casa de rés-do-chão e primeiro andar identificada no ponto 1.
17. Desde 1986 – após o falecimento de seu pai – e até, pelo menos à data da morte de sua tia “D”, em Novembro de 2000, o A., através de procurador, cultivou o prédio identificado no ponto 2. com couves e batatas, colheu frutas, retirou madeira e vendeu os produtos que cultivou.
18. O A. está convencido de ter o direito de propriedade sobre o imóvel descrito no ponto 2. da matéria de facto.
19. Os procuradores prestaram anualmente contas ao A. do dinheiro investido em obras, até data que não foi possível apurar concretamente, mas, pelo menos, até 1997, prestando também contas das rendas vencidas.
20. “I” foi procurador do pai do Autor e sempre soube que o terreno pertencia ao Autor.
21. “I” sabia que o pai do A. e o A. exerciam sobre o prédio referido no ponto 2. os actos descritos supra.
22. “D” ingressou na Casa de Repouso “G” em 1977 e aí permaneceu até à sua morte.
23. Após o falecimento do pai do A., os trabalhadores da Casa de Repouso passaram a adubar o terreno identificado no ponto 2., a roçá-lo, a semeá-lo de batatas, couves e outros produtos hortícolas, a podar as laranjeiras, a arrancar as ervas daninhas, a colher os frutos e a consumi-los.
24. Os factos referidos no ponto 22. (pensamos que o Mmº Juiz queria dizer “Os factos referidos no ponto 23.”) foram praticados à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta, na convicção de proceder legitimamente e de não prejudicar ninguém.
25. Tais factos foram praticados com conhecimento e autorização de “D” e com autorização do pai do A. e deste.
26. Desde 08-07-2003, os RR. podaram os bardos no terreno identificado no ponto 2.
27. Os RR. estão convencidos de que o prédio descrito no ponto 2 da matéria de facto provada é seu.”
*
IV – APRECIAÇÃO
Alegam os apelantes que o A., mesmo que alguma vez tivesse tido posse do citado prédio, teria perdido tal posse, dado que só cultivou o prédio em causa até Novembro de 2000 e a posse dos RR. durou mais do que um ano (art 1267º nº 1 a) e d) do CC).
A este respeito, e como prescreve o art 1316º do CC, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.
A usucapião, regulada nos arts 1287º e ss do CC, é definida como a constituição facultada ao possuidor do direito correspondente à sua posse, desde que esta assuma certas características e se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei (variável, no que diz respeito às coisas imóveis, entre quinze e vinte anos, conforme haja ou não registo da posse, esta seja ou não titulada, ou seja de boa ou má fé – cfr. arts 1294º a 1297º).
Para que possa julgar-se verificada a aquisição da propriedade (ou de outro direito real) por usucapião, é, pois, preciso demonstrar-se a posse, o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art 1251º do CC). Nesse conceito de posse diferenciam-se dois elementos, o corpus ou domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício, e o animus, consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.
Ora, no caso vertente, está provado que o pai do A., desde 1977, na sequência do acordo celebrado com a sua irmã “D” (assentos de fls 162 a 164), e até à data da sua morte (09-08-1986), cultivou o prédio rústico em causa, através dos procuradores, pois ele vivia nos EUA, o que foi feito à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ao longo de cerca de nove anos e com a convicção de ser dono do prédio em discussão.
Com o falecimento do pai do A., este, como herdeiro, sucede na titularidade das relações jurídicas patrimoniais que o autor da herança já detinha, ou seja, com a morte do pai, o A. manteve a posição que já tinha.
A posse aqui não surge ex novo, mas continua como sendo a mesma, continua a ser a posse antiga, com as mesmas características, ocorrendo apenas uma sucessão na posse pelo herdeiro. Desde logo, por efeito do art 1255º do CC ao dispor que “por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa”.
Nas palavras de Antunes Varela e Pires de Lima “continuando a posse do de cujus no sucessor, há que admitir como consequência necessária, que o sucessor não precisa de praticar qualquer acto material de apreensão ou de utilização da coisa, como expressamente se declara neste artigo e se repete na parte final do nº1 do artº 2050º, para ser havido, para todos os efeitos legais, como possuidor; ele pode inclusivamente ignorar a existência da nova posse. Em segundo lugar, há que concluir que a posse não é nova. A posse continua a ser a antiga com todos os seus caracteres” (Código Civil anotado, I, anotação ao art 1255º, pag. 13).
E, desde a morte do pai até, pelo menos, Novembro de 2000, o A. passou a amanhar o mesmo prédio, a cultivar couves e batatas, colher frutas, retirar madeira e a vender os produtos que cultivou, através de procurador, convencido de ter o direito de propriedade sobre este prédio.
Assim, quanto ao lapso temporal que a lei exige para a usucapião, aplica-se ao caso o previsto no art 1296° do CC, ou seja, a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio só poderá dar-se ao fim de quinze anos.
Tendo a posse do pai do A. se iniciado em 1977 até 1986 (durante nove anos) e seguindo na sua posse o A. que a manteve desde 1986 até, pelo menos, 2000, ou seja, durante catorze anos, estão reunidos todos os pressupostos que conduzem à aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa por usucapião (art 1251°, 1263° a), 1287°, 1296° e 1316° todos do CC).
Deste modo, por força do art 1317° c) do CC, a aquisição do direito de propriedade deu-se em 1977 (reportando-se ao início da posse).
É certo que o possuidor perde a posse, além do mais que no caso espécie não releva, pelo abandono ou pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado um ano e um dia (art 1267º nº1a) e d) do CC).
O referido abandono implica necessariamente a extinção do corpus e do animus da posse por virtude de acto material intencionalmente dirigido à rejeição da posse ou da coisa possuída, não se confundindo com a simples inacção do titular que não cuida da coisa.
Pois bem, a autorização do A. para que os trabalhadores da Casa de Repouso cultivassem o prédio torna, com evidência, despropositada a invocação de abandono e consequente perda da posse nos termos do art 1267º nº1º a). A existência daquela autorização, a todas as luzes, contraria, posto que precisamente traduz o exercício do direito de quem a concedeu.
Revertendo à situação dos autos, é patente não estar minimamente demonstrado ter o A. praticado qualquer acto material com a intenção de rejeitar o seu direito. Mas, para além de inexistência de actos configuradores da figura do "abandono", o direito de propriedade sobre imóveis não pode ser abandonado. E que é preciso não esquecer que, em 2000, o A. já era proprietário.
E também a invocação da alínea d) daquele normativo é descabida, porque os RR. não lograram provar que tenham a posse sobre o terreno pelo período de tempo necessário à sua aquisição por usucapião. É que aqui é despiciendo saber quem, em 08-07-2003, podou os bardos no terreno em causa, pois, os factos apurados vão todos no sentido de que, pelo menos, em 2000 se verificou a usucapião, pelo que o A. já era proprietário. Pode-se até dizer que o prédio já se encontrava na esfera patrimonial do A. aquando da escritura de compra e venda (que não se encontra junta aos autos), sendo a mesma inócua juridicamente para poder alterar tal situação.
E, além do mais, o efeito retroactivo do reconhecimento da usucapião nos termos do art 1288º do CC determinou a ineficácia dos efeitos translativos da venda efectuada aos RR. relativamente à parcela em causa. Tendo o A. provado nos autos que adquiriu o direito de propriedade por usucapião, tal aquisição faz ilidir a presunção que decorria do registo a favor dos RR..
Com efeito, a base de toda a nossa ordem imobiliária assenta, não no registo, mas na usucapião, que em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais, valendo inteiramente por si, de modo que havendo um conflito entre direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio, valerão as regras substantivas. O que significa que o registo favorece quem o possui a seu favor, embora funcione limitadamente, porque afinal apenas vale contra quem não tiver registo nem beneficie de usucapião.
Consequentemente, teria de ser declarada procedente e provada a acção, que não é uma típica acção de reivindicação da propriedade (art 1311º do CC), como qualificam os Apelantes na conclusão 13ª, porque não vem pedida pelo A. a restituição do prédio, embora lhes caiba alegar e provar o direito de propriedade.
Assim sendo, demonstrado que, por si e antecessor, a posse se exerce há mais de 23 anos (posse pública, pacífica e contínua), temos que concluir, forçosamente, que a manutenção dessa posse faculta ao A. a aquisição do direito de propriedade a cujo exercício corresponde a sua actuação.
Destarte, nenhum reparo nos merece a sentença proferida, naufragando a argumentação dos recorrentes.
*
V – DECISÃO
Nesta conformidade, e na improcedência da apelação, confirma-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora)
Lisboa, 09 de Março de 2010