ROUBO
CRIME COMPLEXO
RESOLUÇÃO CRIMINOSA
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Sumário

I - O crime de roubo apresenta-se como um crime complexo na medida em que comporta, aglutinados no mesmo tipo penal, o vector apropriação como génese, e o vector efectivação dessa mesma apropriação como fim, pressupondo como requisito essencial que sejam violentos ou constrangedores os meios que realizam o desiderato criminoso.
II - Estando provado que o arguido exerceu acção violenta, intimidatória e constrangedora sobre duas pessoas distintas a fim de levar a cabo a apropriação ilícita, visando apropriar-se, dos bens de cada uma dessas duas pessoas concluiu-se que o direccionamento da sua actuação criminal tinha como específico fim a obtenção dos bens de cada um dos ofendidos pelo que as suas acções se desdobram de modo a pré-figurar-se, em cada uma delas, a prática de um crime de roubo.
III - Assim, a tese da unificação por via da existência de uma única resolução criminosa não parece adequada ao caso, atendendo nomeadamente à natureza pessoal dos interesses tutelados pela norma e à consideração de que, em cada uma das acções, existiu uma compressão violenta distinta da outra, destinada a outras tantas intenções apropriativas.
IV - Mesmo tratando-se de um projecto único de cometer tantos os crimes de roubo quanto os que lhe fossem presentes no condicionalismo em que actuou, não é possível esquecer que tal projecto visou duas distintas resoluções apropriativas, visando duas apropriações distintas, com compressão da liberdade de duas pessoas distintas, diferenciados pela natureza pessoal dos interesses em jogo e não unificáveis dada a natureza desses mesmos interesses.

Texto Integral

Acordam na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
            1.
            1.1.
            No 3.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores da Comarca de Cascais foi julgado o arguido H…, pronunciado pela prática de dois crimes de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do C.P.
            Realizado o julgamento, pelo tribunal colectivo, foi o mesmo arguido, por acórdão de 25 de Março de 2009, condenado pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do C.P., na pena de 7 meses de prisão, a qual foi declarada suspensa na sua execução pelo período de um ano.
            1.2.
            Interpôs recurso o MºPº motivando-o em síntese com as conclusões seguintes:
1° Nos presentes autos, o arguido foi condenado pela prática de um crime de de roubo, p. e p. pelo artigo 210°, n.° 1 do CP, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
2° O arguido actuou em comunhão de esforços e intentos com o seu companheiro não identificado, com o propósito deliberado de fazerem seus os bens e valores que J… e B… trouxessem consigo, o que concretizaram, sabendo que lhes não pertenciam e que estavam a agir contra a vontade dos seus legítimos proprietários.
3° A Mm.ª Juiz, na sua decisão, não teve em consideração que o crime de roubo é um crime complexo que ofende quer os bens jurídicos patrimoniais quer bens jurídicos pessoais.
4° No nosso entendimento, o arguido cometeu dois crimes de roubo, quantas foram as vítimas dos mesmos.
5° A sentença proferida pela Mma. Juíza "a quo" violou o disposto no art. 210°, n.° 1, do Código Penal.
6° Pelo que, deverá a sentença proferida pela Mma. Juiz a quo ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de dois crimes de roubo.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser a Douta Decisão recorrida objecto de revogação e determinada a substituição por outra que condene o arguido pela prática de dois crimes de roubo.
1.3.
Respondeu o arguido concluindo pelo pedido de que o recurso seja julgado improcedente, e consequentemente, mantida a decisão recorrida que condenou o arguido pela prática de um crime de roubo, nos termos do disposto no artigo 210º do C.C., por não se mostrarem reunidos os requisitos de aplicação da co-autoria, previstos no artigo 26º do C.P.
Foi admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
1.4.
Neste Tribunal, a Exm.ª Sr.ª Procuradora Geral-Adjunta pronunciou-se, em síntese, no seguinte sentido :
Efectivamente, tendo em conta a matéria dada como provada a condenação do arguido não podia deixar de ser pela prática em co-autoria material de dois crimes de roubo, existindo vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício esse que face à matéria dada como provada permite que seja suprimido por este Venerando Tribunal, o qual condenando o arguido pela prática de dois crimes de roubo, concedendo, como não podia deixar de ser provimento ao recurso interposto pelo M.º P.º, fará como sempre a costumada Justiça.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.

2.
Embora a Exm.ª Sr.ª Procuradora Geral Adjunta invoque a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, entendemos que o objecto do recurso se reporta à apreciação da questão de saber se perante os factos apurados, não poderia o arguido ter deixado de ser condenado pela prática em co-autoria material de dois crimes de roubo, como pretende o MºPº, e não de um crime como se decidiu em 1ª instância, matéria que se entende respeitar unicamente à qualificação jurídica dos factos apurados.
2.1.
É a seguinte a fundamentação da decisão :

1. Fundamentação de facto e de direito
De relevante para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 9 de Setembro de 2006, pelas 06H20, junto à Estação da CP do Estoril, o aqui arguido e outro indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, abordaram J… e B… aqui ofendidos, a quem pediram cigarros, tendo estes respondido negativamente.
2. Em seguida, os ofendidos desceram ambos para o paredão anexo ao Tamariz, iniciando um percurso a pé, em direcção a Cascais.
3. Nessa altura, e com o objectivo de se apoderarem dos bens ou valores que os ofendidos pudessem trazer consigo, o aqui arguido e o seu companheiro seguiram no encalço de J… e B…, acabando por os alcançar já perto da Estação da CP do Monte Estoril.
4. Então, o arguido agarrou por detrás o pescoço de B…, manietando-o e encostando-o à parede, enquanto o seu companheiro agarrava, por sua vez, o J…s, projectando-o no solo e pisando-lhe a face.
5. Em seguida, o arguido exigiu que o B… lhe entregasse o telemóvel e o dinheiro que trazia consigo, ao que este lhe entregou um telemóvel de marca Nokia, de valor não concretamente apurado, mas superior a € 96,00, que trazia consigo.
6. Em simultâneo, o companheiro não identificado do arguido retirou o telemóvel e a carteira de J…, que permanecia caído no chão.
7. Em seguida, o arguido e o seu companheiro encetaram fuga na direcção da Estação da CP do Monte Estoril, sendo então perseguidos por J… e B..., os quais acabaram por interceptar o arguido, conseguindo imobilizá-lo até à chegada de elementos da PSP, entretanto chamados ao local.
8. Nessa sequência, o agente da PSP, R…, revistou o arguido, acabando por encontrar o telemóvel de B… num dos bolsos do arguido, aparelho esse que foi devolvido ao seu proprietário.
9. O arguido actuou em comunhão de esforços e intentos com o seu companheiro não identificado, com o propósito deliberado de fazer seus os bens e valores que J… e B… trouxessem consigo, o que concretizaram, sabendo que lhes não pertenciam e que estavam a agir contra a vontade dos seus legítimos proprietários.
10. Para conseguir esse objectivo, o arguido e o seu companheiro não hesitaram em intimidar J… e B… através da agressão física, visando assim anular qualquer resistência por parte destes às suas ilegítimas pretensões.
11. O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária, com plena consciência de que essa sua conduta lhe estava vedada por lei e era criminalmente punível.
Mais se provou que:
12. O arguido é filho único e reside com a avó desde há vários anos.
13. O pai do arguido faleceu há cerca de 3 anos.
14. O arguido estuda e trabalha (executa trabalho de tarefa).
15. O arguido encontra-se social e familiarmente bem inserido.
16. Do Certificado de Registo Criminal do arguido, emitido em 26/02/2009, nada consta.
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Matéria de facto não provada
Não se provou que:
a) O arguido e o seu companheiro acordaram entre si interceptar J… e B…, para se apoderarem dos bens/valores que aqueles pudessem trazer consigo.
Quanto à contestação, não se provaram os factos descritos nos pontos 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20, que aqui se dão, por economia processual, de reproduzidos.
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Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção com base em toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, valorada na sua globalidade, tendo sido preponderantes os testemunhos dos ofendidos J… e B…, os quais depuseram de forma segura e objectiva, bem como o testemunho do agente R…
O arguido admitiu apenas ter ficado com o telemóvel pertença de B…, que fez seu, explicando que o apanhou do chão depois de este ter caído ao chão. Referiu ter sido, ele próprio, roubado, em duas ocasiões, no dia dos factos, razão porque estava com “raiva”. Negou, contudo, ter agredido qualquer dos ofendidos – disse apenas ter agarrado um deles para auxiliar o colega (que não quis identificar), que estava “envolvido” com os ofendidos. Negou ter também que tivesse havido uma prévia combinação.
Não convenceu este tribunal a versão apresentada pelo arguido.
Já os testemunhos dos ofendidos, e que, no geral, confirmaram todos os factos em apreciação, relevaram-se coerentes e sinceros – ambos relataram pormenorizadamente o sucedido, admitindo terem, no momento, sentido medo, o que, todavia, não os impediu de irem atrás do arguido e do indivíduo que o acompanharia. De salientar que nenhum dos ofendidos demonstrou qualquer tipo de ressentimento para com o arguido, assim reforçando, no entender deste tribunal, a credibilidade dos mesmos.
A testemunha R…, agente da PSP, confirmou, de forma isenta, ter-se deslocado ao local e que, após efectuar revista ao arguido, encontrou na sua posse o telemóvel que o ofendido B… reconheceu como sendo o seu.
Do cômputo da prova produzida, ficou este tribunal convicto de que os factos descritos na acusação, e que foram objecto de pronúncia, se verificaram efectivamente.
As testemunhas D… e L…, respectivamente tio-avô e tia-avó do arguido, depuseram acerca do carácter e personalidade do arguido.
O arguido depôs sobre as suas condições pessoais.
Foram também analisados os documentos juntos aos autos, designadamente o de fls. 153.
A ausência de antecedentes criminais mostra-se certificada nos autos.
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Do Direito
Do Crime de Roubo
Pratica o crime de roubo, nos termos do disposto no artigo 210º do Código Penal, aquele que, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física ou pondo-a na impossibilidade de resistir.
É entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência que o bem jurídico tutelado pelo crime de roubo assume uma dupla vertente: por um lado, os bens jurídicos patrimoniais (direito de propriedade e de detenção de coisas móveis); por outro, os bens jurídicos pessoais (a liberdade individual de decisão e acção e a integridade física ou, ainda, a vida), sendo certo que «a ofensa aos bens pessoais surge como meio de lesão dos bens patrimoniais» (Conceição Ferreira da Cunha, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, 1999, p. 160).
Face à previsão normativa do referido art. 210º do Código Penal são elementos objectivos do tipo de crime a subtracção de coisa móvel alheia ou o constrangimento à sua entrega, no sentido de o agente conseguir a transferência das coisas para a sua esfera patrimonial e a violência ou ameaça para com as pessoas, determinante dessa entrega. (Neste sentido, cfr. Sousa Brito, in “Crimes Contra o Património”, pág. 100 e segs.).
«Constranger é, coagir, obrigar, pressionar, afectando a liberdade pessoal do coagido; para fins de preenchimento do tipo legal, o constrangimento reveste a natureza de uma obrigação de "facere" no caso de entrega coisa móvel ou "non facere ", no caso de subtracção da mesma, sujeitando-se o coagido, neste caso, a consentir na apropriação ilegítima da coisa móvel, que passa da sua esfera dominial para a de terceiro, por qualquer dos modos previstos no art.º 210.º, do CP.: violência contra a pessoa, ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física do visado ou colocação na impossibilidade de resistir» (Acórdão do STJ de 05/11/2003, em que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Santos Monteiro, disponível in www.dgsi.pt).
Quanto à violência, diz-se no citado arresto [Acórdão do STJ de 05/11/2003] que «a violência que o conceito agrega não tem que ser muito significativa, bastando o emprego de força física contra a pessoa do ofendido para fazer funcionar o tipo incriminatório».
O crime de roubo é um crime de dano e de resultado, sendo necessário que tenha havido de facto subtracção ou entrega ao agente de coisa móvel alheia. Tem, também, de ter havido efectivo constrangimento.
Entre o conseguir coisa móvel alheia e os meios empregues tem, pois, de se verificar um nexo de imputação.
«No crime de roubo a “violência” não pressupõe que ao ofendido sejam provocadas lesões, podendo nem sequer haver contacto físico, já que o arguido por vezes não chega a ameaçar de uma forma expressa, puxando de pistola ou faca, antes se limita a “mostrar” alguma dessas armas num “aviso” claro de que podem fazer uso delas em qualquer momento, ao mesmo tempo que pede, dinheiro ou o telemóvel para fazer uma chamada» (Acórdão da Relação de Lisboa de 12/07/2006, em que foi relator o Sr. Juiz-Desembargador Varges Gomes, disponível in www.dgsi.pt).
Quanto ao tipo subjectivo do tipo de ilícito em análise, trata-se de um crime doloso.
Caso Sub Judice
Ante a matéria de facto provada, dúvidas não restam de se mostrarem preenchidos, na sua totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime “roubo”.
Com efeito, decorre dos factos provados que o arguido, mediante o uso da força física e da intimidação, retirou e fez seu o telemóvel que o ofendido B… trazia consigo, contra a vontade deste. Provou-se igualmente que o arguido actuou de forma livre e consciente, sabedor da ilicitude do acto que praticava, tendo, por isso, agido com dolo, na modalidade de directo.
Encontra-se o arguido pronunciado pela prática de dois crimes de roubo, em co-autoria.
Quanto à questão da co-autoria, resulta da prova dada como provada que o arguido agiu em comunhão de esforços e intentos com outro indivíduo cuja identidade não se logrou apurar.
Quanto à questão da pluralidade de infracções, não resulta da matéria de facto que a resolução criminosa tenha sido plúrima – a circunstância de serem duas as vítimas, e porque não está em causa um crime cujo bem tutelado seja um bem de natureza pessoal, antes um crime contra o património, não implica, automaticamente que tenham sido duas resoluções criminosas. Entende-se ser de imputar, por isso, ao arguido a prática de apenas um crime de roubo.
Não opera, in casu, qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude.

3.
A decisão recorrida e o arguido, ao contrário do recorrente, reconduzem à configuração de um só crime de roubo, e não de dois, pela afirmação de uma única resolução criminosa.
A decisão recorrida para qualificar e enquadrar juridicamente os factos ponderou que :
Quanto à questão da pluralidade de infracções, não resulta da matéria de facto que a resolução criminosa tenha sido plúrima – a circunstância de serem duas as vítimas, e porque não está em causa um crime cujo bem tutelado seja um bem de natureza pessoal, antes um crime contra o património, não implica, automaticamente que tenham sido duas resoluções criminosas. Entende-se ser de imputar, por isso, ao arguido a prática de apenas um crime de roubo.

Como se tem entendido generalizadamente, quer a nível doutrinário quer jurisprudencial, o crime de roubo é um crime complexo que ofende, quer bens jurídicos patrimoniais - como é o direito de propriedade -, quer bens jurídicos pessoais - a liberdade individual de decisão e acção (em certos casos a própria liberdade de movimentos) e a integridade física, sendo em certas hipóteses de roubo agravado, posto ainda em causa, o bem jurídico vida.
Ora, como é também entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência, sempre que esteja em causa a lesão de bens jurídicos eminentemente pessoais, afastada fica, desde logo, a hipótese de estarmos perante a prática de um crime continuado, pois que a lesão incidirá sempre sobre bens jurídicos distintos. - vd. Ac. S.T.J. 24-1-2007, de 26-10-2006, in www.dgsi.pt.
No roubo, enquanto crime complexo, obtido por fusão, em resultado de uma síntese normativa, correspondente a uma norma em concurso aparente com a norma do tipo matriz sobre que prevalece ( cfr. Da Unidade à Pluralidade de Crimes no Direito Penal Português, Prof. Lobo Moutinho, ed. Da Faculdade de Direito da UC, 2005, 972), pluriofensivo de bens patrimoniais e, essencialmente, bens pessoais, à integridade física e até à pessoa do visado, que faz dele um crime comunitariamente altamente reprovável, pelo alvoroço e alarme social que causam, por atingir segmentos indefesos socialmente, jovens em idade escolar, idosos e mulheres, indefesa ainda mais vincada porque os seus agentes, em regra, agem em grupo, com grande poder de mobilidade, obedecendo a uma plano prévio, a actuação do arguido é diferenciada dos demais.
E é essa nota de ataque pessoal à vítima que, contradistinguindo o roubo do simples furto, ganhando relevo, reclama tutela penal agravada, reflectida no segmento punitivo do descritivo típico -1 a 8, 3 a 15 ou 8 a 16 anos de prisão.
E é a partir do relevo que ganha na previsão e punição do crime de roubo o elemento pessoal, quando comparativamente com o aspecto patrimonial, aspecto que tem sido repetidamente afirmado para, sendo diversas as vítimas se excluir a figuração do crime continuado, sendo peremptório este STJ em afirmar o concurso real, ou seja tantos crimes quantas as pessoas das vítimas.
Desde logo porque está em causa uma pluralidade de bens jurídicos lesados.

“ Trata-se de bens que se não podem desligar da personalidade, que apenas podem ser violados na pessoa que os cria com o só existir. Por isso, salvo fazendo violência às coisas, não pode o legislador protegê-los senão individualmente na pessoa dos seus portadores “, teoriza a propósito o Prof. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pág. 122.
Na jurisprudência, cfr., entre outros, os Acs. deste STJ, de 14.4.83, BMJ 326, 422, 30.11.83, BMJ 331, 345, 15.11.89, BMJ 391, 239, 30.7.86, BMJ 359, 411, 2.5.91, AJ, n.º 19, P.º n.º 41281, 2.10.94, Pº n.º 45265 e de 21.4.93, P.º n.º 4396.

O crime de roubo apresenta-se como um crime complexo na medida em que comporta, aglutinados no mesmo tipo penal, o vector apropriação como génese, e o vector efectivação dessa mesma apropriação como fim, pressupondo como requisito essencial que sejam violentos ou constrangedores os meios que realizam o desiderato criminoso.

No caso vertente e, como emerge do factualismo acima descrito e dado como provado no acórdão recorrido, o arguido exerceu, sem dúvida, acção violenta, intimidatória e constrangedora sobre duas pessoas distintas a fim de levar a cabo a apropriação ilícita, visando apropriar-se, dos bens de cada uma dessas duas pessoas .
O direccionamento da sua actuação criminal tinha como específico fim a obtenção dos bens de cada um dos ofendidos pelo que as suas acções se desdobram de modo a pré-figurar-se, em cada uma delas, a prática de um crime de roubo.

Assim, a tese da unificação por via da existência de uma única resolução criminosa não parece adequada ao caso, atendendo nomeadamente à natureza pessoal dos interesses tutelados pela norma e à consideração de que, em cada uma das acções, existiu uma compressão violenta distinta da outra, destinada a outras tantas intenções apropriativas.
A decisão recorrida considerou tratar-se de uma unidade de resolução criminosa com os mesmos efeitos que teria retirado se se tratasse de um crime exclusivamente contra o património, esquecendo a tutela dos bens jurídicos pessoais envolvidos no crime de roubo.   
Não se trata de projectar e decidir cometer o desapossamento de um bem, protegido ou detido por mais de uma pessoa, conforme aconteceu na situação tratada pelo Ac. R. Lisboa, relatado pelo Desembargador Pulido Garcia, de 28.06.2005, p. 3118/2005-5.[1]

Nem se ignora que “Se a índole complexa do tipo legal de roubo não exclui a tutela dos interesses pessoais que sejam lesados, a verdade é que essa mesma complexidade não legitima, por si, que se estruturem crimes de roubo por crimes radicados em tal lesão e à revelia do preenchimento típico da sua vertente patrimonial própria, afinal a que identifica a tonalidade típica do ilícito e o individualiza na sua textura e sendo que os ditos interesses pessoais, ainda que ofendidos no percurso conducente à lesão patrimonial e mesmo que afectando diversas pessoas, podem não ocasionar outras lesões patrimoniais para além daquela que o agente buscou.
Por outras palavras:

O mesmo tipo penal (in casu, o de roubo) não poder servir para gerar, a partir de si próprio outros crimes absolutamente idênticos, quando, na envolvência de um mesmo condicionalismo, esteja definido o seu desígnio impulsionador, identificado o seu objecto, delimitada a sua específica finalidade e preenchidos, em função desse desígnio, desse objecto e dessa finalidade, os seus requisitos típicos” (Acórdão do STJ de 11/4/2002, disponível em www.dgsi.pt).

Porém, mesmo tratando-se de um projecto único de cometer tantos os crimes de roubo quanto os que lhe fossem presentes no condicionalismo em que actuou, não é possível esquecer que tal projecto visou duas distintas resoluções apropriativas, visando duas apropriações distintas, com compressão da liberdade de duas pessoas distintas, diferenciados pela natureza pessoal dos interesses em jogo e não unificáveis dada a natureza desses mesmos interesses. 
A compressão da liberdade ou a violência cometida no segundo ofendido não teve apenas uma função instrumental do itinerário criminoso do arguido, porquanto não se destinou somente a conseguir o desapossamento dos bens de uma pessoa, mas antes está em causa o desapossamento de bens pertencentes a duas pessoas distintas, através da violência exercida sobre duas pessoas distintas, o que pressupôs, não uma, mas duas resoluções criminosas não unificáveis.


No caso em apreço, não se verificou uma única intenção apropriativa dirigida aos bens de uma única pessoa, mas a intenção apropriativa relativa a coisas móveis alheias pertencentes a duas pessoas, tendo sido a violência levada a cabo pelo arguido exercida sobre duas pessoas pelo que há dois crimes de roubo e não apenas um.

Procede pois o recurso, devendo ser o arguido condenado como autor de dois crimes de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do C.P, pelos quais vinha pronunciado.

4. Pelo exposto, acordam as juízas em dar provimento ao recurso determinando que se revogue a decisão nessa parte e que o tribunal recorrido condene pela prática de dois crimes conforme referido em 3., nas penas que entender adequadas ao caso.
Sem custas.

Lisboa, 23 de Março de 2010

Filomena Lima
Ana Sebastião

Elaborado, revisto e assinado pela relatora Filomena Lima e assinado pela Exm.ª Desembargadora Adjunta Ana Sebastião. 
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[1] Decorre do acórdão citado :
 A propósito deste tipo penal escreve Conceição Ferreira da Cunha (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, pág. 164): “No entanto, se o detentor do bem está a ser vítima de violência e o terceiro que o vem defender é também vítima da violência, pode colocar-se a questão de saber se o crime de roubo abarcará quer a violência que é exercida contra o detentor do bem, quer a que é exercida em relação a terceiro. A questão parece pertinente, uma vez que estamos perante um tipo legal que protege não só bens patrimoniais, como também bens jurídicos pessoais (...); sendo assim, cremos que não deverá ser punido de acordo com a mesma moldura legal, quer o agente que exerce violência apenas em relação a uma pessoa, quer em relação a várias, ainda que o bem que se pretende subtrair seja o mesmo, sendo preferível punir por roubo em concurso com o(s) crime(s) de ofensas corporais”.
No caso em apreço, verificando-se uma única intenção apropriativa dirigida a uma única coisa móvel alheia, há um só crime de roubo em cada uma das situações supra referidas, e ainda que a violência levada a cabo pelo arguido tenha sido exercida sobre várias pessoas.
Neste sentido, o Acórdão do STJ de 11/4/2002, disponível em
www.dsi.pt.