CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
FURTO DE VEÍCULO
DEVER DE ZELO E APLICAÇÃO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ÓNUS DA PROVA
Sumário

1. No âmbito de um contrato de prestação de serviços, no qual os réus foram encarregados de promover a venda de um veículo automóvel, incumbia a estes a observância de uma plena eficácia na vigilância desse veículo que se encontra à guarda daqueles.
2. A culpa, na responsabilidade contratual, presume-se do devedor. E, para afastar a presunção legal de culpa, teriam os réus de demonstrar que o incumprimento do acordado contrato de prestação de serviços não se ficou a dever a culpa sua, através da demonstração de que não foram negligentes, que não se abstiveram da observância das cautelas e do zelo devido, que não omitiram os esforços exigíveis, esforços que tão pouco omitiria uma pessoa normalmente diligente.
3. Ao entregarem as chaves do veículo a pessoa totalmente desconhecida e, sem que os réus hajam procedido ao apuramento prévio da identificação do potencial cliente, actuaram de forma negligente, por falta de observância do cuidado e atenção que seriam exigíveis a um profissional que, dedicando-se à mesma actividade de venda de veículos, tivesse sido colocado em circunstâncias idênticas às que resultaram provadas, pelo que deverão os réus ser responsabilizados pelo valor do prejuízo que daí adveio para o autor.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I. RELATÓRIO

B..., com domicílio profissional na ... Amora, Seixal, intentou acção declarativa, com processo sumário, contra C..., residente na ..., Costa da Caparica e D..., residente na ..., Pragal, Almada, pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia de € 11.658,09, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde 23.01.2004 até efectivo e integral pagamento, liquidando os vencidos, até 15 de Setembro de 2005, em € 1.291,12.
Fundamentou o autor, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de ser proprietário do veículo de matrícula KK e que, com o objectivo de vender o identificado veículo e outros de sua propriedade, celebrou com os réus um contrato de agência.
E, no dia 23 de Janeiro de 2004, o identificado veículo desapareceu, tendo o primeiro réu afirmado que o mesmo havia sido furtado, durante a sua experimentação, por um terceiro, que os réus não souberam identificar, o qual havia manifestado interesse na aquisição da viatura e nunca mais a aludida viatura apareceu.
Afirmou o autor que os réus não observaram os deveres de zelo e diligência que sobre eles impendiam, no âmbito do contrato celebrado com o autor, pretendendo a condenação dos réus no pagamento do valor do veículo, a título de indemnização pelo incumprimento das obrigações daqueles.
O 2º réu, D..., impugnou parte da factualidade alegada, sustentando que não violou, por qualquer forma, o dever de zelo e vigilância e que o ocorrido se deveu a um acontecimento inesperado e fortuito.
O 1º réu, C..., também contestou, negando ter celebrado qualquer contrato de agência com o autor, afirmando trabalhar para uma firma terceira e que apenas acompanhou o alegado cliente no "test drive", a pedido do co-réu, razão pela qual defende não ter qualquer responsabilidade no ocorrido.
Proferido que foi o despacho saneador, abstendo-se o Exmo. Juiz a quo de fixar, quer a matéria assente, quer a base instrutória, foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão. E, por entender que não poderia ser assacada qualquer responsabilidade aos réus, julgou totalmente improcedente por não provada a acção, absolvendo os réus do pedido formulado pelo autor.

Inconformado com o assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES do recorrente:
i) Das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento apenas as testemunhas E... e F... tinham conhecimento directo e profundo dos factos em discussão, sendo que as testemunhas arroladas pelos Apelados ou não tinham conhecimento da situação, ou tinham um conhecimento muito débil dos factos, quase sempre de forma indirecta;
ii) Sendo que o depoimento de parte prestado pelos apelados apenas visa a confissão de factos desfavoráveis aos apelados e não pode servir como prova testemunhal;
iii) As testemunhas E... e F... para além do conhecimento directo dos factos depuseram com credibilidade e isenção;
iv) Face ao depoimento dos mesmos deverá ser alterada a resposta dada em 1ª Instância à matéria de facto alegada nos artigos 18°, parte final, e 19.° da Petição Inicial, artigos 7°, 13° e 24° da contestação apresentada pelo réu D... e artigo 11° da contestação apresentada pelo réu C...;
v) Assim sendo, e no que concerne à matéria de facto, entende o apelante que devem ser alteradas as seguintes respostas à matéria de facto:
i. Artigo 18°, parte final, e artigo 19° da Petição Inicial: A resposta à matéria de facto deve ser alterada para Provados:
ii. Artigo 7° da contestação apresentada pelo apelado D...: “Provado apenas que o Entreposto de Setúbal possui um parque/Stand de viaturas usadas”.
iii. Artigo 11 ° da contestação apresentada pelo apelado C...: "Provado apenas que o parque onde o réu C... desenvolvia a sua actividade e onde se encontravam os veículos do entreposto de Setúbal se situa em Santa Marta de Corroios."
iv. Artigos 13° e 24° da contestação apresentada pelo réu D...: deverá ser considerado como provado apenas que "a viatura em causa tinha um problema de bateria e que o apelado C... solicitou aos funcionários do autor que montassem uma bateria nova, a qual foi montada e o apelado C... levou novamente a viatura”
vi) Está provado que o apelante acordo com os apelados que estes iam proceder à venda de veículos propriedade do apelante, auferindo os apelados uma comissão por cada venda efectuada, tendo os apelados total autonomia para efectuarem a venda das viaturas, sendo que o apelante apenas fixava o preço da venda das viaturas usadas, as viaturas eram entregues aos apelados, juntamente com as respectivas chaves;
vii) Mais deverá ser provado que os apelados ficavam responsáveis por tais viaturas, as quais ficavam estacionadas num parque vedado, do qual apenas os apelados tinham chaves.
viii) No âmbito desse contrato o apelante entregou aos apelados a viatura dos autos, a qual quando estava sob responsabilidade dos apelados foi furtada, não tendo nunca sido recuperada. Em consequência do furto o apelante sofreu um prejuízo de € 11.658,09.
ix) Os apelados, antes de irem experimentar a viatura com o alegado cliente não cuidaram de indagar sobre a identificação do cliente, mormente se o mesmo tinha ou não carta de condução.
x) Importa ainda ter em consideração que resulta do depoimento da testemunha E... que a viatura em causa não tinha seguro e que por isso a mesma só podia circular na via pública conduzida por alguém que tivesse "seguro de carta".
xi) Ora no caso dos autos, os apelados deixaram que a viatura que veio a ser furtada circulasse na via pública sem que tivesse seguro de responsabilidade civil automóvel.
xii) Acresce que os apelados deixaram um estranho conduzir tal viatura sem primeiro se terem certificado da identificação desse estranho e principalmente se o mesmo tinha carta de condução.
xiii) É assim evidente que os apelados negligenciaram de forma grosseira as suas responsabilidades ao deixarem que a viatura saísse do parque de vendas onde se encontrava para ser conduzida por alguém que não sabiam quem era e que nem verificaram sequer se tinha carta de condução ou se sabia conduzir... Como se isso não bastasse, bem sabiam os apelados que a viatura dos não tinha seguro e que por isso não podia circular na via pública.
xiv) Houve assim uma negligência grosseira dos apelados e a sua conduta não pode ser subsumível ao comportamento de um homem médio, do "bónus pater família", pois este nunca deixaria uma viatura sem seguro circular na via publica por alguém que nem sequer se sabia se tinha carta de condução!!!
xv) Esta negligência grosseira dos apelados foi a causa primeira da viatura ter sido furtada, pois se os apelados não tivessem deixado a viatura sair do parque sem seguro nunca a mesma teria sido furtada. Acresce que se tivessem identificado correctamente o alegado cliente e verificado se o mesmo tinha carta de condução que lhe permitisse conduzir viaturas automóveis, saberiam a identificação do autor do furto, o que possibilitava a identificação do alegado cliente e sabendo-se a identificação deste, o mesmo ou não teria ousado furtar a viatura pois saberia que estava identificado, ou então mesmo que tivesse furtado a viatura, facilmente teria sido localizado pela autoridade policial e consequentemente a viatura recuperada.
xvi) Acresce que a forma displicente como o apelante C... entregou as chaves da viatura ao alegado cliente, caindo no "conto do vigário" que o mesmo tinha que ir buscar o telemóvel. Como é que alguém entrega as chaves de uma viatura a um estranho que não se sabe sequer o primeiro nome???
xvii) Esta displicência total foi igualmente causa para o furto da viatura.
xviii) Deste modo dúvidas não podem restar de que foi a conduta negligente e grosseira dos apelados que permitiu o furto do veiculo e consequentemente um prejuízo para o apelante de € 11.658,09, devendo por isso os apelados serem condenados a ressarcir o apelante nesse montante, devidamente acrescida de juros moratórios à taxa legal desde a data do furto até integral pagamento.
xix) A sentença sob recurso viola, entre outras, as seguintes disposições legais: artigos 798° e 799° do Código Civil.
Pede, por isso, o apelante a procedência do recurso.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões controvertidas
i) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA;
ii) DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL DOS RÉUS.
***
III . FUNDAMENTAÇÃO
A - OS FACTOS
Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:
1. Em Abril de 2003 o autor negociou com G... a viatura automóvel marca Renault, modelo Clio, matricula KK.
2. Nessa altura a identificada viatura estava registada na respectiva Conservatória de Registo Automóvel a favor do referido G... e estava onerada com uma reserva de propriedade a favor da "R..., S.A".
3. O valor a pagar à R... para o cancelamento da reserva de propriedade era de € 11.658,09.
4. No âmbito das negociações referidas em 1., o autor acabou por adquirir a G... a identificada viatura pelo preço de € 11.658,09, ou seja, o valor necessário ao cancelamento da reserva de propriedade.
5. Para o efeito o autor enviou à R... um cheque no montante de € 11.658,09.
6. Tendo a R... enviado ao autor o requerimento para extinção de registo de propriedade.
7. Por sua vez, G... outorgou, e entregou ao autor, a declaração para registo de propriedade.
8. Como o objectivo do autor ao adquirir a identificada viatura era revender a mesma a terceiros nunca registou na respectiva Conservatória a aquisição da mesma a seu favor.
9. Guardando a declaração em branco para depois ser acabada de preencher com o nome da pessoa a quem o autor viesse a vender tal viatura.
10. O número de proprietários desvaloriza uma viatura no mercado de usados.
11. Com o objectivo de diligenciar a venda da viatura de matrícula KK e de outras que tinha para venda, o autor e os réus acordaram que estes procederiam à venda de veículos propriedade daquele.
12. Como retribuição os réus aufeririam uma comissão em cada venda efectuada.
13. A venda seria feita com plena autonomia dos réus.
14. O autor apenas fixaria instruções quanto ao preço de venda ao público de cada veículo, na medida em que os comprara antes, e por forma a assegurar que haveria sempre uma margem de viabilidade na revenda.
15. Os veículos e as respectivas chaves eram entregues aos réus.
16. No que concerne à viatura identificada em 1), o autor havia informado os réus que pretendia que a mesma fosse vendida por um valor que lhe permitisse recuperar a quantia que havia pago pela mesma, ou seja, os referidos € 11.658,09.
17. No dia 23 de Janeiro de 2004, a viatura desapareceu.
18. O primeiro réu afirmou que a mesma havia sido furtada.
19. Tendo inclusive denunciado o furto às autoridades policiais.
20. O que originou que o Ministério Público tivesse iniciado o inquérito que correu os seus termos na ... secção dos serviços do Ministério Público do Seixal sob o n°. ....
21. Tendo esse processo acabado por ser arquivado por falta de indícios suficientes de prova da autoria dos factos.
22. Até ao presente nunca apareceu a identificada viatura, pelo que a mesma saiu da esfera patrimonial do autor sem que na mesma tenha entrado o valor que o mesmo despendeu com a sua aquisição.
23. Os réus antes do “test drive” não cuidaram de indagar sobre a identificação do cliente.
24. O réu D... trabalhou durante toda a sua vida no sector de compra e venda de veículos automóveis em várias e diferentes empresas, nomeadamente, no Entreposto de Setúbal, onde ocupou o lugar de chefe de vendas.
25. Na altura em que se reformou continuou a colaborar com a Entreposto de Setúbal na venda de viaturas usadas.


26. O Entreposto de Setúbal possui um parque/stand de viaturas usadas, que é também utilizado pelo autor para a exposição e venda das viaturas que comercializa.
27. O réu C..., à altura dos factos, colaborava também na venda das viaturas usadas que existiam no parque/stand.
28. No dia 21 de Janeiro de 2004, uma mulher entrou no acima citado parque/stand, e mostrou-se interessada na viatura Renault-Clio 16 com a matrícula KK, em causa nos presentes autos.
29. Foi o réu D... que atendeu a suposta cliente que lhe disse ter gostado e estar interessada na viatura em causa.
30. Referiu também que no dia seguinte, o marido se deslocaria ao parque/stand a fim de experimentar a viatura.
31. No dia seguinte, ou seja, a 22 de Janeiro de 2005, apareceu realmente um homem no parque/stand, afirmando ser o marido da senhora que se tinha interessado pela viatura em causa, e que pretendia experimentá-la.
32. No entanto a viatura em causa não arrancava, pois tinha um problema de bateria, pelo que o réu D... telefonou ao Sr. E..., chefe de vendas da empresa do autor, A.MG..., referindo que a viatura tinha um problema com a bateria que era necessário resolver, já que existia um cliente interessado na viatura.
33. O Sr. E...providenciou a mudança da bateria, e no dia seguinte (23 de Janeiro de 2004), o alegado cliente voltou ao parque/stand com o intuito de experimentar o carro.
34. O réu C... acompanhou o alegado cliente no "test drive".
35. Durante o percurso pararam para tomar um café, tendo o alegado cliente referido que se esquecera do telemóvel no carro e pedido as chaves para o ir buscar.
36. O réu C..., a seu pedido, entregou-lhe as chaves para ir buscar o telemóvel.
37. O alegado cliente dirige-se ao carro e, inesperada e subitamente, põe a viatura em marcha e foge com ela.
38. Perante tal situação, o réu C..., telefonou ao réu D... contando-lhe o sucedido e este aconselhou-o a dirigir-se de imediato à polícia a fim de participar o ocorrido, o que aquele realmente fez.
39. Telefonaram igualmente ao Sr. E... dando-lhe conhecimento do sucedido.
40. O autor tinha conhecimento da existência do alegado cliente, já que foi o chefe de vendas da empresa do autor que providenciou a mudança da bateria.
41. O réu C.. vendia para a Entreposto de Setúbal veículos automóveis usados recebendo uma comissão.
42. O parque onde o réu C... desenvolvia a sua actividade e onde se encontravam os veículos do Entreposto de Setúbal e do autor situa-se em Santa Marta de Corroios.
43. O réu C... é uma pessoa íntegra que sempre se pautou por condutas honestas e querida para todos com um vasto leque de amigos.
***
B - O DIREITO
i) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto
1. MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO

Á regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1ª instância, contrapõe-se a excepção decorrente do artigo 712º do CPC que permite a alteração da matéria de facto nos seguintes casos:
1. Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravações dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
2. Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
3. Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Considerando que foi gravada a prova produzida em audiência, dispõe este tribunal dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.
Mas, não se olvida que não podem agora ser apreendidos alguns elementos probatórios que emergem, designadamente, do princípio da imediação, sendo certo que os factores decorrentes de tal princípio são decisivos para o juízo de convicção de que o juiz tem de fazer acerca da credibilidade dos depoimentos.
Como esclarece ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., págs. 657, a propósito do princípio da mediação “Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.
Alerta, por outro lado, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil, 374, a propósito da distinção entre os recursos de reexame e os de reponderação, que a reponderação das provas em 2ª instância satisfaz-se com a averiguação de saber se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a "justiça relativa" dessa decisão.
Tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência, que a garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas constante do artigo 655º do CPC, decorrendo de tal normativo que o juiz, fora dos casos de prova legalmente tarifada, goza de liberdade na apreciação das provas e decide segundo a convicção prudente sobre cada facto. De resto, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 de 15/12 - diploma que veio regular a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida – refere-se que: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, ela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o recorrente terá sempre o ónus de apontar claramente na sua minuta de recurso”.
E, nos casos de provas contraditórias, deve reger a convicção criada no espírito do juiz, desde que a prova haja sido valorada de acordo com critérios de razoabilidade.
Por isso se tem vindo a entender que a modificabilidade da matéria de facto pela 2ª instância só deve ter lugar nos casos de manifesta desconformidade entre as provas produzidas e a decisão proferida, pressupondo um erro evidente que imponha claramente uma decisão diferente – v. a título meramente exemplificativo, neste sentido e entre muitos, Ac. da RP de 19/02/2000 in CJ , Ano XXV, T. 4º, 180 e Ac. R.E. de 11-01-2007 (Pº 2336/06-3), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt.
No caso em apreço, o autor/apelante, insurge-se contra a decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, retirando da produção de prova convicção diversa da do tribunal, o que não conduz necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.
Vejamos, então, se razão assiste ao apelante e se, in casu, se verifica a ausência da razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas.
**
2. A AVALIAÇÃO DA CORRECÇÃO OU INCORRECÇÃO DO EXAME DA PROVA
Invoca o autor/apelante erro na apreciação da prova produzida, no que concerne à decisão da matéria de facto incidente sobre a materia alegada nos artigos 18º e 19º da petição inicial, artigo 11º da contestação do 1º réu e artigos 7º, 13º e 24º da contestação do 2º réu.
Consta do artigo 18º da petição inicial:
Os veículos e as respectivas chaves eram entregues aos réus e estes ficavam responsáveis pelos mesmos.
O Tribunal a quo deu como provado apenas que:
Os veículos e as respectivas chaves eram entregues aos réus.
Consta do artigo 19º da petição inicial:
Existindo um dever de custódia sobre os veículos
O Tribunal a quo deu como não provada tal matéria.
Aos artigos 18º e 19º da p.i. foram ouvidas as testemunhas E... e F..., bem como os depoentes.
O apelante defende que tais artigos deveriam ter sido dados como integralmente provados, face aos depoimentos prestado pelas identificadas testemunhas.
*
Consta do artigo 11º da contestação do 1º réu:
Sucede que o espaço geográfico onde o réu desenvolvia a sua actividade era em Santa Marta de Corroios, espaço este, ao que parece pelo pouco que o réu conhece,
O Tribunal a quo deu como provado - Nº 42 da Fundamentação de Facto - que:
O parque onde o réu C... desenvolvia a sua actividade e onde se encontravam os veículos do Entreposto de Setúbal e do autor situa-se em Santa Marta de Corroios.
O apelante defende que tal artigo deveria ter sido dado como provado tal qual como foi alegado.
*
Consta do artigo 7º da contestação do 2º réu:
O Entreposto de Setúbal possui um parque/stand de viaturas usadas, que é também utilizado pela autora para a exposição e venda das viaturas que comercializa.
O Tribunal a quo deu como provada tal matéria - Nº 26 da Fundamentação de Facto.
O apelante defende que se deveria considerar provado apenas que o Entreposto de Setúbal possui um parque/Stand de viaturas usadas.
*
Consta do artigo 13º da contestação do 2º réu:
A viatura em causa não arrancava, pois tinha um problema de bateria, pelo que o réu D... telefonou ao Sr. E..., chefe de vendas da empresa do autor, A.M.G..., referindo que a viatura tinha um problema com a bateria que era necessário resolver, já que existia um cliente interessado na viatura.
O Tribunal a quo deu como provada tal matéria - Nº 31 da Fundamentação de Facto.
*
Consta do artigo 24º da contestação do 2º réu:
A autora tinha perfeito conhecimento da existência do alegado cliente, já que foi o chefe de vendas da autora que providenciou a mudança da bateria para efectuarem o test-drive.
O Tribunal a quo deu como provada tal matéria - Nº 40 da Fundamentação de Facto.
O apelante defende que os factos contidos nos mencionados artigos deveriam ter sido considerados como não provados ou apenas parcialmente provados.
A convicção do Exmo. Juiz a quo para proceder à decisão da matéria de facto em causa alicerçou-se nos depoimentos prestados pelas testemunhas E..., F..., bem como H..., I... e J....
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito do juiz do Tribunal a quo, a qual, como antes se aduziu, tem a seu favor o importantíssimo princípio da imediação da prova, sendo esse contacto directo com a prova testemunhal, que melhor possibilita ao julgador a percepção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
E, da audição da prova gravada e da supra referida ponderação, conclui-se que, globalmente, a convicção criada no espírito do julgador de 1ª instância, não é merecedora de grandes reparos.
Þ Atentemos detalhadamente:
Quanto aos artigos 18º e 19º da petição inicial
A testemunha E... esclareceu que o veículo em causa nos autos, assim como as chaves do mesmo foram entregues pela própria testemunha aos réus para estes promoverem a venda do mesmo, mais referindo que nem o autor nem os empregados deste tinham acesso ao veículo.
A decisão sobre a matéria de facto atinente aos mencionados artigos da petição inicial proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se adequada perante os relatos prestados pelas testemunhas ouvidas, designadamente a supra mencionada testemunha, encontrando-se a mesma suficientemente fundamentada e sendo certo que a restante matéria alegada, que é conclusiva, foi excluída, pelo que nunca poderia ter sido considerada.
*
Quanto ao artigo 11º da contestação do 1º réu e ao artigo 7º, 13º da contestação do 2º réu
A decisão sobre a matéria de facto apurada, proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se adequada, atentos os depoimentos de parte dos réus, e perante os relatos prestados pelas testemunhas ouvidas, nomeadamente, o da testemunha E..., que confirmou que o autor também tinha em tal local veículo usados para venda, relatando a forma como tomou conhecimento da existência de um potencial cliente para o veículo e da necessidade de nele vir a ser colocada uma bateria.
De resto, a decisão dada à matéria invocado no mencionado artigo 11º da contestação do 1º réu é explicativa e decorre também do que consta no Nº 26 da Fundamentação de Facto (artigo 7º da contestação do 2º réu).
É, pois, de manter a decisão da matéria de facto no que concerne aos Nºs 26, 31 e 42 da Fundamentação de Facto.
*
Quanto ao artigo 24º da contestação do 2º réu
Face aos relatos das testemunhas, mormente da testemunha E..., ficou apurado que o autor tinha conhecimento da existência de um cliente interessado no veículo, já que foi o chefe de vendas do autor que providenciou a mudança da bateria para efectuarem o “test-drive”.
Nada ficou demonstrado quanto à circunstância do autor conhecer a identificação do potencial cliente.
Assim, apenas haverá que dar ao nº 40 dos Factos Provados (artigo 24º da contestação) uma formulação mais consentânea com a prova produzida e com o que consta do Nº 32 dos Factos Provado (artigo 13º da contestação do 2º réu), embora sem particular relevo, apenas expurgando do mesmo a expressão “perfeito” e “alegado”, e passando a constar do aludido Nº 40 da Fundamentação de Facto, o seguinte:
O autor tinha conhecimento da existência de um cliente interessado no veículo, já que foi o chefe de vendas do autor que providenciou a mudança da bateria para ser efectuado o “test drive”.
Mantêm-se, consequentemente, os termos da decisão sobre a matéria de facto apurada, proferida pelo Tribunal a quo, mostrando-se a mesma adequada perante os relatos prestados pelas testemunhas ouvidas, salvo quanto à supra referida correcção da redacção dada ao nº 40 da Fundamentação de Facto
Importa, então, apurar, face a factualidade demonstrada, se ocorreu erro de julgamento.
***
ii) DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL DOS RÉUS
O contrato em causa foi qualificado pelo autor como um contrato de agência, tendo o Tribunal a quo afastado – e bem - tal qualificação, reconduzindo o acordo estabelecido entre as partes a um contrato de prestação de serviços, qualificação com a qual se concorda.
Com efeito, ficou provado nos autos que, com o objectivo de diligenciar a venda da viatura de matrícula KK e de outras que tinha para venda, o autor e os réus acordaram que estes procederiam à venda de veículos propriedade daquele, auferindo estes uma comissão em cada venda efectuada – v. Nºs 11 e 12 dos Fundamentos de Facto.
Mais se provou que o autor apenas fixaria instruções quanto ao preço de venda ao público de cada veículo, sendo que a venda dos veículos, pelos réus, era efectuada com plena autonomia, sendo os veículos e as respectivas chaves entregues aos réus - v. Nºs 14 e 15 dos Fundamentos de Facto.
No caso do veículo em causa nos autos, o autor havia informado os réus que pretendia que o mesmo fosse vendido por um valor que lhe permitisse recuperar a quantia de € 11.658,09 que havia pago pela mesma - v. Nºs 14 e 16 dos Fundamentos de Facto.
Estamos, portanto, perante um contrato atípico ou inominado, ao qual se aplicam, na falta de regulamentação específica, o regime do mandato, como decorre do artigo 1156º do Cód. Civil.
Mas, a existência da obrigação de indemnizar a cargo dos réus, conforme peticionado pelo autor, depende da verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil. Tem, assim, de existir o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em caso de responsabilidade civil contratual, como é a situação configurada nos autos, a obrigação de indemnização depende, em primeiro lugar, do cometimento de um ilícito contratual, envolvendo a desconformidade entre o comportamento devido, esperado e necessário e o comportamento efectivamente observado – v. a este propósito, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 3ª ed., 91.
Ficou apurado nos autos que, no dia 22 de Janeiro de 2005, apareceu no parque/stand de viaturas usadas, local onde os réus exercem a actividade profissional e que o autor também utiliza, um cliente interessado no veículo em causa, intitulando-se marido de uma senhora que no dia anterior já ali havia comparecido, e que foi atendido pelo 1º réu. Como o potencial cliente pretendia experimentar o veículo e, após ter sido providenciada a colocação de uma bateria no veículo, o 2º réu acompanhou o potencial cliente, no dia 23.01.2004, num “test drive” - Nºs 26 a 34 dos Fundamentos de Facto.
Resultou também provado nos autos que durante o percurso em que foi efectuado o “test drive”, pararam para tomar um café, e o 2º réu entregou ao potencial cliente, a pedido deste, as chaves da viatura para que o dito cliente pudesse, alegadamente, ir buscar o telemóvel, acabando por colocar a viatura em marcha, fugindo com ela, e nunca mais a mesma foi encontrada - Nºs 17 a 22, 35 a 37 dos Fundamentos de Facto.
Imputa o autor aos réus para os responsabilizar do furto do veículo, a violação dos deveres contratuais de zelo.
O veículo em causa e as respectivas chaves foram, com efeito, entregues, pelo autor aos réus, no âmbito do acordo entre eles celebrado, para que estes promovessem a venda do aludido veículo, a qual seria realizada com plena autonomia.
O ilícito contratual que pode consistir numa acção, bem como numa omissão, reside, no caso vertente, na desconformidade entre o comportamento devido esperado e necessário para a realização da prestação - preservação do veículo do autor e das respectivas chaves enquanto este estivesse em poder dos réus para promoção da venda - e o comportamento efectivamente observado – entrega da chaves a um potencial cliente, cuja identificação os réus desconheciam, sem que tivesse sido realizada a venda.
Mas, a obrigação de indemnização depende também da culpa, sob a forma de dolo ou negligência.
A culpa lato sensu abrange as vertentes do dolo e da culpa stricto sensu, i.e., a intenção de realizar o comportamento ilícito que o respectivo agente configurou ou a mera intenção de querer a causa do facto ilícito. Há, pois, de apurar se o agente, na situação concreta, podia e devia ter agido de modo a não cometer o ilícito e não o fez.
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito, sendo que a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo – v. A. VARELA, ob. cit., 463 e ss.
Quanto ao padrão por que se deverá medir o grau de diligência exigível do agente, mostra-se consagrado na lei o critério da apreciação da culpa em abstracto.
Segundo o artigo 487º, nº 2, do Código Civil, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um “bonus pater familiae”, em face das circunstâncias do caso concreto, por referência a alguém medianamente diligente, representando um juízo de reprovação e de censura ético-jurídica, por poder agir de modo diverso.
Serve, pois, de paradigma a conduta que teria uma pessoa medianamente cuidadosa, atendendo à especificidade das diversas situações, sendo que “por homem médio”, se entende o modelo de homem que resulta no meio social, cultural e profissional daquele indivíduo concreto.
Actua com culpa, por acto praticado por acção ou omissão, quem omite o dever de diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, as vertentes consciente e inconsciente. No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; na segunda vertente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não previu a realização do facto ilícito como possível, podendo prevê-la se, como se refere no Ac. STJ de 08.03.2007 (Pº 07B566), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt, nisso concentrasse a sua inteligência e vontade.
Há que apurar se os réus, na situação concreta, podiam e deviam ter agido de modo a não cometer o ilícito contratual, e não o fizeram.
Mas, decorre do artigo 799º do Código Civil que a culpa, na responsabilidade contratual, se presume do devedor.
Para afastar a presunção legal de culpa, por forma a eximir-se à responsabilidade pelos prejuízos sofridos pelo autor, teriam os réus de demonstrar que o incumprimento contratual não se ficou a dever a culpa sua.
E, será que os réus elidiram a presunção de culpa estabelecida no citado artigo 799º, nº 1 do Código Civil, provando a falta de culpa, através da demonstração da existência, no caso concreto, de circunstâncias, especiais ou excepcionais, susceptíveis de eliminarem a censurabilidade das respectivas conduta, ou seja, que foram diligentes, que usaram das cautelas e zelo que, em face das circunstâncias do caso, empregaria um bom pai de família. Ou, pelo menos, que não foram negligentes, que não se abstiveram da observância das cautelas e do zelo devido, que não omitiram os esforços exigíveis, esforços que também não omitiria uma pessoa normalmente diligente.
Defendeu-se na sentença recorrida que “os réus lograram afastar a sua culpa na não restituição do veículo, uma vez que se provou que o mesmo foi furtado, sem que seja possível, ante a factualidade apurada, afirmar que os mesmos contribuíram por qualquer forma para o sucedido, aí se afirmando, por outro lado, que se provou que o autor tinha conhecimento que o veículo iria ser experimentado por um terceiro, tendo diligenciado, através do chefe de vendas da sua empresa, pela substituição da bateria”.
Não se pode concordar com tal argumentação aduzida na sentença recorrida.
Em primeiro lugar, e como já antes se salientou, provado ficou que eram os réus que procediam à venda do veículo com total autonomia, sendo detentores da chave do carro.
E, se é verdade que o dito veículo foi furtado, o certo é que incumbia aos réus a observância de uma plena eficácia na vigilância do veículo, já que este se encontrava à guarda dos réus.
Ao serem entregues as chaves do dito veículo a pessoa totalmente desconhecida e, sem que tenham os réus procedido ao apuramento prévio da identificação do potencial cliente, pese embora o logro em que caíram, não pode deixar de se considerar que a actuação dos réus foi negligente, por falta de observância do cuidado e atenção que seriam exigíveis a um profissional que, dedicando-se à mesma actividade de venda de veículos, tivesse sido colocado em circunstâncias idênticas às que resultaram provadas, concluindo-se, assim, terem estes, ao cabo e ao resto, facilitado a prática do furto.
Em segundo lugar, a circunstância do autor ter tido conhecimento, através do chefe de vendas da empresa do autor, do interesse manifestado por um potencial cliente, e que o mesmo iria experimentar o veículo, não releva para afastar a responsabilidade dos réus, tanto mais que tão pouco se provou que o autor, ainda que por intermédio do chefe da venda, haja mantido qualquer contacto com o dito cliente, ou que conhecesse a sua identificação.
As supra enumeradas circunstâncias especiais ou excepcionais susceptíveis de eliminar a censurabilidade da conduta dos réus não se encontram na prova produzida. Daí que nunca se poderá extrair outra solução que não a manutenção da aludida presunção de culpa, porque não elidida pelos réus, através da demonstração de uma actuação adequada a zelar pela boa guarda do veículo.
Para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade civil é ainda necessário que exista um nexo causal entre o facto praticado pelo agente e o dano, segundo o qual ele fica obrigado a indemnizar todos os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Acolheu o Código Civil nesta matéria, no artigo 563º, a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstracto, se mostre adequada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente.
Esta teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa, sendo a primeira mais restritiva do que a segunda, adoptando a nossa lei a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto – v. Ac. STJ de 24.05.2005 (Pº 05A1333), acessível no citado sítio da Internet.
O dano é a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo direito, patrimonial ou não patrimonial, consoante tenha ou não conteúdo económico, conforme seja ou não, susceptível de avaliação pecuniária.
No caso em análise ficou apurado que o autor adquirira o veículo para o revender e que havia pago à R... a quantia de € 11.658,09 para o cancelamento da reserva de propriedade que sobre ele incidia, sendo este o preço indicado pelo autor para a venda do veículo por parte dos réus – v. Nºs 1 a 5 e 16 da Fundamentação de Facto. Será, por conseguinte, este o valor do prejuízo sofrido pelo autor, a ressarcir pelos réus, já que o mesmo resultou da demonstrada conduta dos réus.
Pede o autor a condenação dos réus, não só no pagamento da aludida quantia de € 11.658,09, mas também dos juros de mora que, até 15.09.2005, o autor liquidou em € 1.291,12.
Face ao preceituado no artigo 805º, nº 1 do Código Civil o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, salvo nos casos referidos no nº 2 daquele normativo.
Os prejuízos atendíveis na mora, para efeitos de indemnização, são aqueles que advêm ao credor pelo facto do retardamento. E, nas prestações pecuniárias, como é o caso dos autos, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.
No caso vertente, está em causa uma situação de responsabilidade contratual e não uma responsabilidade extracontratual ou por facto ilícito e tão pouco se mostra dos autos que os réus hajam sido interpelados extrajudicialmente, pelo que é a partir da citação, que se começam a contar os juros de mora.
Os juros de mora devidos são os legais, à taxa de 4% ao ano, definidos e regulados pelo artigo 559º do Código Civil, conjugado com o disposto na Portaria n.º 291/2003, de 08 de Abril.
Procede, pois, o recurso de apelação, ainda que parcialmente, razão pela qual se revoga a decisão recorrida, substituindo-se por outra em que se condenam os réus a pagar ao autor a quantia de € 11.658,09, acrescida de juros de mora desde a citação e até efectivo pagamento, à taxa legal de 4% ao ano.
**
Vencidos, são recorrente e recorridos responsáveis pelas custas respectivas, na proporção dos respectivos decaimentos - artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
***
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se por outra em que se condenam os réus a pagar ao autor a quantia de € 11.658,09, acrescida de juros de mora desde a citação e até efectivo pagamento, à taxa legal de 4% ao ano.
Condenam-se recorrente e recorridos no pagamento das custas, na proporção dos respectivos decaimentos.
Lisboa, 25 de Março de 2010
Ondina Carmo Alves – Relatora
Ana Paula Boularot
Lúcia Sousa