PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PROCESSO PENAL
ACÇÃO CÍVEL
Sumário

I – A melhor interpretação do regime estatuído no artigo 498.º, número 3 do Código Civil, atento o seu teor, alcance e sentido, é aquela que faz depender a ampliação do prazo prescricional, não da efectiva instauração do processo-crime mas, tão-somente, da tipificação, no âmbito da acção indemnizatória de natureza civil, do comportamento do agente e responsável pela verificação do acidente como crime, bastando para o efeito que a parte interessada faça a descrição circunstanciada do sinistro, imputando, objectiva e subjectivamente, o acidente em questão ao demandado ou segurado, procedendo o julgador à integração desses factos na correspondente norma penal incriminadora, a partir da dinâmica do sinistro, da violação das normas estradais e da verificação de lesões corporais ou outras nas vítimas.
II – Os crimes públicos não dependem de qualquer procedimento por parte do ofendido/lesado, ao contrário dos crimes semi-públicos e particulares, havendo mesmo um dever legal e funcional de abrir uma investigação criminal por parte das autoridades policiais ou judiciárias competentes relativamente aos primeiros.
III – Consideramos correcta a posição que reconduz ao regime estatuído no artigo 306.º, número 1 do Código Civil a situação de instauração oficiosa e vinculada de um processo criminal, pois a vítima do crime e titular do direito a uma indemnização fica impedida de accionar tal direito, de maneira autónoma e paralela a tal investigação penal (muito embora seja de ponderar, mesmo nesses casos, a relevância jurídica da participação feita pela vítima, na sua dupla qualidade de ofendido/lesado), por força do princípio da adesão e da obrigatoriedade (ainda que somente tendencial, face às excepções existentes) da dedução oportuna do pedido cível.
IV – Muito embora a queixa seja, nos casos de crime semi-público ou particular, pressuposto indispensável para a futura dedução do pedido de indemnização cível, não tem a virtualidade jurídica de provocar, só por si, a interrupção do prazo prescricional em curso, nos termos do artigo 323.º, números 1 e 4 do Código Civil.
O artigo 323.º, número 1 do Código Civil fala na comunicação ao infractor ou suspeito de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, comunicação essa que, em regra, só acontece relativamente aos factos que suportam a tipificação do crime ou crimes denunciados (aí se incluindo, por exemplo, as ofensas à integridade física ou da morte da vítima e o condicionalismo anterior e posterior às mesmas) e das circunstâncias atenuantes e agravantes que a ele ou eles respeitam, por que é esse o objecto da investigação criminal, já não tendo esta de se debruçar e averiguar factos que só respeitam, em exclusivo, à reparação civil dos prejuízos causados.
A queixa-crime, face às excepções constantes do artigo 72.º do CPP e à posição que entende como facultativa a dedução de pedido cível, não passa de uma porta que se abre à faculdade ou possibilidade de exercício do direito de natureza indemnizatória em tempo oportuno mas que, só por si, não se substitui nem dispensa o ofendido de formular o mesmo nos termos dos artigos 77.º e seguintes do Código de Processo Penal (cf., alias, o disposto no artigo 75.º do mesmo diploma legal).
Pensamos que os efeitos jurídicos da queixa-crime, ainda que interruptivos, não podem colher a sua justificação nos artigos 323.º, números 1 e 4 e 327.º do Código Civil, mas antes no artigo 306.º do mesmo diploma legal, numa interpretação extensiva do mesmo, de maneira a acolher não só os prazos de prescrição originais que ainda não tiveram início, como aqueles que se iniciaram e que, por motivos de ordem legal, se vêem impedidos superveniente de ser exercidos, como finalmente aqueles que sucedem aos primeiro
V – Aplicam-se as normas constantes dos artigos 323.º, números 1 e 4 do Código Civil quando o lesado formula, no quadro do processo-crime e de acordo com as normas já aludidas do Código de Processo Penal, o competente pedido de indemnização civil
Logo, nas situações em que o pedido de reparação de índole civil é efectivamente apresentado no seio do processo-crime e aí segue a sua normal tramitação, o prazo de prescrição previsto no artigo 498.º, números 1 e 2 do Código Civil e atendendo ao disposto nos artigos 326.º e 327.º, número 1 do mesmo diploma legal volta a correr desde o início somente a partir do trânsito em julgado da sentença onde, para além da sua vertente criminal, são apreciadas igualmente as consequências cíveis dos factos tipificados como crime.
VI – A partir do momento em que o lesado está em condições de exercer, nos termos do artigo 77.º, números 1 e 2 do CPP, o seu direito, através da dedução do pedido de indemnização civil, deixa de vigorar o regime do artigo 306.º, número 1 do Código Civil.
Não sendo tal suspensão ou interrupção radicada no artigo 323.º do Código Civil, tal implica a não aplicação do disposto no citado artigo 327.º, número 1 do mesmo diploma legal, por o regime deste estar ligado estreitamente ao daquele.
VII – Existe uma incongruência do regime legal, ao ser interpretado nos moldes defendidos pelo Apelante (aplicação do artigo 327.º do Código Civil), pois dá igual tratamento jurídico, no que concerne ao não decurso do prazo prescricional em análise, quer à situação em que ocorreu a dedução, aceitação adjectiva e normal julgamento do pedido cível do ofendido/lesado, quer aquela em que tal não aconteceu de todo ou em que não foi admitido, designadamente, por apelo ao disposto nos artigos 72.º, número1, alínea e) e 82.º, número 3 do CPP.
Em segundo lugar, mal se compreenderia uma diferença de regimes entre os processos de natureza oficiosa e crimes públicos, em que, caso não fosse exercido o pedido de indemnização civil, não haveria qualquer facto impeditivo ao decurso do prazo prescricional, e os demais, em que, por virtude da queixa, tal aconteceria, aparentemente, ao abrigo do artigo 327.º, número 1 do Código Civil.
O artigo 327.º do Código Civil (que para nós, não foi pensado para acções de natureza criminal como as actuais, sendo que o regime constante do Código de Processo penal de 1929 era substancialmente diverso do actual) tem de ser interpretado no sentido de abarcar apenas processos onde, de uma forma directa ou secundária, se analisa e julga o direito ou direitos a que se refere o prazo prescricional e não já aqueles em que, tendo havido essa possibilidade, a mesma não foi aproveitada, tendo ficado no limbo das intenções ou das expectativas do lesado.
VIII – A prescrição constitui uma excepção peremptória, por se traduzir num facto extintivo do direito do Autor, competindo a sua alegação (dado não ser de conhecimento oficioso – artigo 303.º do Código Civil) e prova à Ré, de acordo com o artigo 342.º, número 2 do Código Civil.
Não foi alegada nem demonstrada pela Ré a data da notificação ao Autor, no âmbito do processo-crime, da acusação do Ministério Público (nada indica que terá havido instrução e despacho de pronúncia), facto essencial da excepção peremptória em análise, pois somente com esse dado temporal é possível afirmar, com certeza e objectividade, que o prazo prescricional de 5 anos estaria já esgotado no dia 15/04/2008 (6.º dia após a entrada em tribunal da presente acção).
(JES)

Texto Integral

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

PEDRO, solteiro, maior, com domicílio em Oeiras, intentou, em 10/04/2008, esta acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra COMPANHIA DE SEGUROS, SA, com sede em Lisboa, formulando, em síntese, o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos demais de Direito, que V.ª Exa. doutamente suprirá, deve a presente acção ser julgada procedente e provada, e em consequência:
a) Ser a Ré condenada a pagar ao Autor quantia de € 50 000,000 (Cinquenta mil Euros), como indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, presentes e futuros.
b) Acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até ao efectivo e integral pagamento.”
(…)
*
Citada a Ré, veio a mesma apresentar uma primeira contestação (fls. 129 e seguintes) que foi depois substituída, na sequência da petição inicial aperfeiçoada junta pelo Autor, por uma segunda, de fls. 160 e seguintes, onde, para além de impugnar parte da matéria invocada na petição inicial, alegou o seguinte:
Por excepção – Prescrição
(…)
*
Foi proferido saneador/sentença, a fls. 210 e seguintes, que julgou a excepção da prescrição invocada pela Ré procedente e absolveu a mesma dos pedidos formulados pelo Autor.
(…)
O Autor interpôs deste saneador/sentença recurso de apelação (fls. 215), que foi correctamente admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (fls. 231).
O Apelante apresentou alegações de recurso (fls. 216 e seguintes) e formulou as seguintes conclusões:
“Deverá ser revogada a douta Sentença da Meritíssima Juiz do tribunal a quo, pois:
a) O Recorrente foi vítima de um acidente, provocado por viatura automóvel segurada pela Ré, devendo ser indemnizado pela violação dos seus direitos, nos termos do art.º 483° do Código Civil.
b) Por douta sentença de 11 de Julho de 2005, do ... Juízo Criminal de Lisboa, foi o arguido e segurado da Ré, Pedro, condutor do veículo acima referido, condenado nos termos previstos e punidos pelo art.º 148.º, n.º 3, do Código Penal.
c) Sentença confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º ...., da ... Secção Criminal, por douto acórdão dos Venerandos Desembargadores, de 24 de Maio de 2006.
d) O Recorrente tem o direito de interpor pedido de indemnização civil, em separado do processo-crime, nos termos dos art.º 71.º e 72.º, do CPP.
e) Contudo esse direito só é adquirido quando o ofensor é condenado, em processo-crime decorrente dos actos ilícitos praticados e após a decisão terminal desse processo penal.
f) Ao interpor o presente pedido de indemnização civil, o Recorrente estava em devido tempo, quer no prazo previsto no art.º 498.º, n.º 1, do Código Civil, de três anos, quer no prazo mais alargado de cinco anos previsto no art.º 118.º n.º 1, alínea c), do Código Penal.
g) Pois o seu direito à referida indemnização só é estabelecido com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que pôs fim ao processo-crime, reiniciando-se a contagem do prazo de prescrição para o exercício do referido direito.
h) Ao dar provimento à excepção deduzida pela Ré, na sua sentença datada de 28/10 pp., considerando decorrido o prazo de prescrição para o Recorrente interpor acção cível de indemnização, o Tribunal a quo fez uma interpretação errada dos preceitos legais acima invocados.
i) Tendo até uma interpretação diversa do concluído no Acórdão de 13/10/2009, do STJ, que lhe serve de base para as conclusões da sentença, conforme está doutamente escrito no ponto 1 das Conclusões daquele Acórdão: "... o prazo de prescrição a que alude o artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil não começa a correr enquanto não findar o procedimento criminal iniciado..."
j) Bem como de toda a abundante jurisprudência, que se tem debruçado sobre este tema, e que é citada neste Acórdão.
k) Não se verificando, nestes termos, qualquer inércia do Recorrente no exercício do seu direito, mas antes uma expectativa de desfecho do processo penal, aliás conforme o solicitado pela Ré.
1) Na sua carta de 29/05/2002, a Ré remete para o fim do processo-crime, a conclusão de qualquer acordo. Ao fazer isto, a própria Ré reconhece que o Recorrente tem o direito de exercer o seu direito só no fim do processo penal, e, mesmo não assumindo responsabilidades (esperando, como é óbvio, pela sentença que tanto podia condenar como absolver), interrompendo o prazo de prescrição para o exercício desse direito.
m) Pelo que a Meritíssima Juíza da 6.ª Vara Cível de Lisboa, 3.ª Secção, deveria ter julgado improcedente a excepção peremptória da prescrição do direito do Autor, apresentada pela Ré na sua contestação, seguindo o processo os seus tenros ulteriores.
n) Pois, por todos, cite-se o douto Acórdão do STJ, de 05/04/1979, onde está estampado "... a contagem do prazo de prescrição só se reinicia com o trânsito em julgado da sentença preferida no processo-crime... ".
Termos em que, deve ser revogada a douta Sentença Recorrida, determinando-­se a realização da audiência de discussão e julgamento, para apuramento dos factos, ou, em alternativa, considerar provados todos os factos peticionados e, em consequência, condenando-se a Ré no pagamento de Euros 50.000.00 (Cinquenta mil Euros), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, por ainda não ter decorrido, na data da interposição da acção, o prazo de prescrição para o Autor exercer o seu direito.
ASSIM SE FAZENDO COSTUMADA JUSTIÇA!”.
*
A Apelada apresentou contra-alegações a fls. 224 e segs., sem a formulação de conclusões, tendo pugnado pela manutenção do saneador/sentença nos seus precisos termos.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS

O Tribunal da 1.ª Instância não fixou, formal e expressamente, quaisquer factos como provados, muito embora do seu saneador/sentença se possa extrair aqueles que para esse efeito foram pelo mesmo considerados, tendo ainda este tribunal de recurso entendido como relevantes outros constantes dos autos, sendo tais factos, no seu conjunto, os seguintes:

1) No dia 9 de Setembro de 2000, uma viatura de matrícula NN, conduzida por JOSÉ, provocou um acidente na Avenida da Índia, em Lisboa, que, para além daquele veículo, envolveu mais dois automóveis bem como um peão, vítima de atropelamento, conforme ressalta da cópia do Auto de Participação elaborado pela PSP e junta a fls. 14 a 20 e da Declaração Amigável constante de fls. 21;
2) A referida viatura possuía seguro automóvel, coberto pela Apólice n.º .... emitida pela Ré, conforme a aludida Declaração Amigável de Acidente Automóvel que se mostra junta aos autos a fls. 21 e aqui se dá por reproduzida;
3) Esse acidente provocou dois feridos graves, o aqui Autor (atropelado) e o seu amigo João, evacuados de imediato para o Hospital S. Francisco Xavier, onde foram assistidos, tendo sofrido lesões físicas diversas;
4) O Autor, segundo o Relatório do Gabinete de Peritagens, sofreu 19 fracturas na tíbia, uma fractura no perónio, uma fractura no cotovelo e seis pontos no crânio.
5) Foi submetido a duas intervenções cirúrgicas de ortopedia, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa.
6) O Auto de Exame de Sanidade elaborado, em 14/02/2002, pelo Instituto de Medicina Legal e junto a fls. 34 e 35 indicam que as lesões sofridas pelo Autor determinaram 150 dias de doença com igual tempo de impossibilidade para o trabalho em geral, aos quais acrescem mais 60 dias para remoção do material de osteossintese e, com as sequelas permanentes ali descritas (duas cicatrizes e ligeira diminuição dos movimentos de flexão da articulação tíbio-társica esquerda), não integram nenhuma das situações previstas nas alíneas a) a c) do artigo 144.º do Código Penal nem implicaram concreto perigo para ávida do Autor;
7) Tendo sido instaurado inquérito de natureza criminal relativo ao acidente de viação dos autos e às ofensas de natureza física causadas ao Autor e a João (processo 1020/OO.OSILSB), foi, em 26/11/2002, deduzida acusação pelo Ministério Público contra o condutor da viatura segurada pela Ré, JOSÉ, aí se lendo que o mesmo "...cometeu, em autoria material, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado por dele ter resultado ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 144° alínea b); 148° n.º 3;285.º, 291.º, n.º 1, alínea a) e 294° do Código Penal ...", nos termos da acusação, conforme cópia que se mostra junta e se dá por reproduzida
8) Nesses autos, o Autor assumiu a posição de Ofendido, não se tendo constituído Assistente nem deduzido pedido de indemnização cível;
9) A outra vítima do acidente, João, constituiu-se Assistente e deduziu pedido de indemnização cível nos autos referidos.
10) Por sentença de 11 de Julho de 2005, do .... Juízo Criminal de Lisboa, de que mostra junta cópia e que se dá por reproduzida (fls. 43 e seguintes), foi o arguido e segurado da Ré JOSÉ condenado nos termos previstos e punidos pelo art.º 148.º, n.º 3, do Código Penal, em 150 dias de multa, à razão diária de 4 Euros, o que perfaz a multa global de 600 Euros, ou, em alternativa, 100 dias de prisão.
11) No âmbito no pedido de indemnização cível, foi a Ré condenada a pagar ao Assistente João a quantia de € 50.000,00 (Cinquenta mil Euros),
12) Dessa sentença, foram apresentados recursos para o Tribunal da Relação de Lisboa, que deram origem ao processo n.º ...., da ... Secção Criminal.
13) Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Maio de 2006, foi confirmada a indemnização cível de € 50 000,00 (Cinquenta mil Euros) e a restante matéria condenatória, conforme ressalta da cópia junta a fls. 82 a 112 dos autos.
14) O Autor propôs a presente acção em 10/04/2008;
15) A Ré COMPANHIA DE SEGUROS, SA foi citada através de carta registada com Aviso de Recepção em 9/5/2008;
16) A Ré remeteu ao primeiro mandatário do Autor, com data de 29/05/2002, a carta junta a fls. 38, onde se pode ler:
Reportamo-nos ao acidente de viação ocorrido a 09.09.2000 na Avenida da índia em Lisboa.
Concluída a assistência clínica que nos propusemos prestar ao sinistrado acima identificado (Pedro), na nossa carta de 02.11.2000, sem que tal significasse a assunção de responsabilidade por parte desta Seguradora, estamos nesta fase do processo na intenção de aguardar a evolução do Processo-Crime.
Mantendo a cordial relação até agora demonstrada, sem prejuízo desta nossa intenção, solicitamos que caso V. Exa. possua elementos que entenda de relevo para a nossa mais correcta tomada de posição, no-los faculte pront5amente para nossa apreciação”;
17) A Ré remeteu ao actual mandatário do Autor, com data de 26/02/2008, a carta junta a fls. 123, onde se pode ler:
Reportamo-nos à correspondência de V. Exa., datada de 01/02/2008, a qual mereceu a nossa melhor atenção.
Em resposta e no seguimento da nossa conversa telefónica informamos que não poderemos responder ao solicitado por V. Exa. por ser nosso entendimento ter sido atingido o prazo de prescrição”.

NOTA: Impõe-se, nos termos e para os efeitos dos artigos 666.º, número 2 e 667.º do Código de Processo Civil, proceder à rectificação da alínea 7), no que concerne à data da acusação do Ministério Público, pois que de acordo com fls. 39 a 42, a mesma foi deduzida em 26/11/2002 (data da assinatura do respectivo despacho) e não em 30/10/2002 (data da conclusão aquele magistrado).

III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).

A – MATÉRIA DE FACTO
(…)

B – OBJECTO DO RECURSO DE APELAÇÃO

A única questão que se suscita no âmbito do presente recurso de apelação é a seguinte: decorreu ou não o prazo prescricional para o exercício dos direitos de natureza indemnizatória de que o Autor é alegadamente titular, por efeito da responsabilidade civil extra-contratual em que incorreu o condutor do veículo que provocou o seu atropelamento?

B1 – SÍNTESE DOS FACTOS PERTINENTES
(…)
B2 – PRESCRIÇÃO – NOÇÃO E RAZÃO DE SER DO INSTITUTO

A prescrição é um instituto que, como Ana Filipa Morais Antunes refere em “Prescrição e Caducidade – Anotação aos artigos 296.º a 33.º do Código Civil (“O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas”)”, Coimbra Editora, 2008, páginas 17 e seguintes, não conhece uma definição no Código Civil (apesar de aí regulado nos artigos 298.º, 300.º a 327.º), fundando-se “num facto jurídico involuntário: o decurso do tempo. Invocada com êxito, a prescrição determinará a paralisação de direitos, sempre que os mesmos não sejam exercidos, sem uma justificação legítima, durante um certo lapso de tempo fixado por lei. Confere-se, assim, ao beneficiário da prescrição, o poder ou a faculdade de recusar, de modo lícito, a realização da prestação devida (cf. n.º 1 do artigo 304.º - tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito).
A noção avançada pressupõe, assim, três notas essenciais: i) o efeito paralisador dos direitos; ii) o não exercício do direito, pela inércia do respectivo titular; iii) o decurso de um certo lapso de tempo.
A ideia comum que preside ao instituto é, como referia DIAS MARQUES, a de uma “situação de facto que se traduz na falta de exercício dum poder, numa inércia de alguém que, podendo ou porventura devendo actuar para a realização do direito, se abstém de o fazer” (prescrição extintiva, cit., pág. 4)”. (cf. a demais doutrina indicada na obra citada, páginas 14 a 16).
A mesma autora, relativamente ao fundamento da prescrição, diz ainda o seguinte:
“Nos Trabalhos Preparatórios, VAZ SERRA defendeu que a prescrição não poderia reconduzir-se a um só fundamento, sendo um instituto em que confluiriam diversas razões justificativas e interesses nem sempre convergentes (Prescrição extintiva e caducidade, BMJ, n.º 105, pp. 32-33).
É esta a tese que merece a nossa adesão. A prescrição é um instituto que se funda em interesses multifacetados. Não existe, pois, uma só razão justificativa. Os principais fundamentos são: i) a probabilidade de ter sido feito o pagamento; ii) a presunção de renúncia do credor; iii) a sanção da negligência do credor; iv) a consolidação de situações de facto; v) a protecção do devedor contra a dificuldade de prova do pagamento; vi) a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos; vii) a necessidade de sanear a vida jurídica de direitos praticamente caducos; viii) a necessidade de promover o exercício oportuno dos direitos.
A prescrição justificar-se-á, numa primeira linha, em homenagem ao valor da segurança jurídica e da certeza do direito, mas, também, em nome do interesse particular do devedor, funcionando como reacção à inércia do titular do direito, fundada num imperativo de justiça” (cf. no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2009, processo n.º 206/09.7YFLSB, relator: Salazar Casanova, páginas 1 2 e 13).

B3 – PRESCRIÇÃO E REGIME LEGAL APLICÁVEL

Considerando o quadro fáctico acima enunciado, bem como os contornos gerais da figura da prescrição, importa chamar à colação as disposições legais que são relevante para a sua análise e julgamento e que são os artigos 306.º, 323.º, 325.º e 498.º do Código Civil, 118.º, 144.º, alínea b), 148.º, número 3, 285.º, 291.º, alínea a) e 294.º, número 3 do Código Penal e 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º e 77.º do CPP.
Importa, desde já, referir que o crime que foi imputado ao arguido pela Acusação do Ministério Público era punido com uma pena de prisão entre os 45 dias e os 4 anos ou com pena de multa entre os 13 dias e os 480 dias de multa, sendo que aquele pelo qual ele foi condenado tem uma pena abstracta que se situa entre os 30 dias e os 2 anos de prisão e os 10 e os 240 dias de prisão.
Os artigos 498.º do Código Civil e 118.º do Código Penal possuem a seguinte redacção, na parte que nos interessa e em vigor à data do acidente dos autos:
(…)
B3 – PRAZO PRESCRICIONAL

Chegados aqui e tendo em atenção o cenário fáctico acima sintetizado, as normas jurídicas de índole penal e civil referidas e transcritas e o facto do causador do acidente ter praticado, em fase de acusação e com referência ao Autor, um crime de condução perigosa, depois convolado, em sede de sentença condenatória, num crime de ofensa à integridade física grave, ambos punidos, em abstracto, com penas de prisão máximas superiores a 1 ano e inferiores a 5 anos, não podem haver dúvidas, no que concerne ao prazo de prescrição em presença, quanto à aplicação, por força do número 3 do artigo 498.º do Código Civil, do artigo 118.º, número 1, alínea c) do Código Penal, sendo o prazo – regra de 3 anos constante do número 1 do primeiro dispositivo legal indicado alargado para 5 anos (a aplicação de outras disposições legais de natureza penal, pensadas para os crimes dolosos, não têm, obviamente, aplicação nesta sede, não sendo, por outro lado, acumuláveis ou adicionáveis os prazos prescricionais em casos de vários crimes e/ou vítimas, correndo os mesmos em simultâneo e paralelo).
A tese que defende a necessidade de apresentação, pelas vítimas das ofensas corporais, de queixa-crime contra o aludido condutor e seu causador e/ou do desencadeamento, por essa via ou por via oficiosa, do competente e concreto procedimento criminal relativamente aos crimes praticados, para que tal alargamento do prazo prescricional possa operar não merece a nossa concordância, dado que, para nós, a melhor interpretação do regime estatuído no artigo 498.º, número 3 do Código Civil, atento o seu teor, alcance e sentido, é aquela que faz depender essa ampliação do prazo, não da efectiva instauração do processo-crime mas, tão-somente, da tipificação, no âmbito da acção indemnizatória de natureza civil, do comportamento do agente e responsável pela verificação do acidente como crime, bastando para o efeito que a parte interessada faça a descrição circunstanciada do sinistro, imputando, objectiva e subjectivamente, o acidente em questão ao demandado ou segurado, procedendo o julgador à integração desses factos na correspondente norma penal incriminadora, a partir da dinâmica do sinistro, da violação das normas estradais e da verificação de lesões corporais ou outras nas vítimas.
O Prof. Antunes Varela na "Revista de Legislação e Jurisprudência" 123, pág. 45 e segs., defende, a este propósito, o seguinte: "Não é, pois, necessário que haja ou tenha havido acção crime na qual os factos determinantes da responsabilidade civil tenham de vir à barra do Tribunal, ainda que observados sob prisma diferente. Basta que haja, em princípio, a possibilidade de instauração do processo criminal, ainda que, por qualquer circunstância (v.g. por falta de acusação particular ou de queixa ou por amnistia entretanto decretada), esse não seja ou não possa ser efectivamente instaurado". (cf., quanto a estes aspectos e no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/98, processo n.º 98A863, relator: Pinto Monteiro, de 3/12/98, Processo n.º 98B432, relator: Herculano Namora, de 2712/2004, processo n.º 04B3724, relator: Oliveira Barros e de 6/10/2005, processo n.º 05B2397, relator: Moitinho de Almeida e ainda Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/09/2007, processo n.º 1489/07-2, relator: Manuel Marques, todos em www.dgsi.pt).
De qualquer maneira, tal polémica não tem razão de ser no caso dos autos face à oportuna instauração de processo-crime, onde, na fase da acusação, foi imputado ao arguido um crime público que, depois e em sede de sentença condenatória, veio a ser convolado num outro tipo de infracção criminal, menos grave e, por isso mesmo, de natureza semi-pública.
Logo, quanto a esta espécie de danos, o prazo prescricional seria de 5 anos e não de 3 anos, terminando, nessa medida e em teoria, o mesmo no dia 09/09/2005

B4 – PRESCRIÇÃO E PROCESSO-CRIME

Importa, contudo, ter em atenção que, para a nossa jurisprudência e doutrina (cf., por exemplo, para além dos diversos Arestos e Autores que iremos referenciar, Américo Marcelino, “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 10.ª Edição Revista e Ampliada, 2009, páginas 253 e seguintes, bem como a jurisprudência aí referida), a instauração e subsequente tramitação do processo-crime tem consequências jurídicas sobre o início da contagem desse prazo prescricional ou sobre a sua interrupção, face ao estatuído nos artigos 71.º (“o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”) e 72.º (“pedido em separado”) do Código de Processo Penal, 306.º, número 1, 1.ª parte (“O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; (…)” e 323.º, ambos do Código Civil, reproduzindo-se este último, na parte que nos interessa:
(…)
Tal doutrina e jurisprudência, em nome do princípio da adesão obrigatória constante do artigo 71.º do CPP e durante a pendência do processo-crime, instaurado em virtude da mera notícia da infracção criminal ou de queixa-crime, nos casos em que a natureza semi-pública ou particular do mesmo o reclama, defende (de uma forma algo contraditória e não totalmente coerente, por vezes) a impossibilidade do lesado exercer o seu direito de natureza indemnizatória e civil de forma autónoma e por via de um meio processual diverso daquele (artigo 306.º do Código Civil) ou a interrupção do prazo prescricional em presença (artigos 323.º, números 1 e 4 e 327.,º número 1 do Código de Processo Civil).
Reproduzam-se, a título de exemplo, os sumários dos seguintes três Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos publicados em www.dgsi.pt:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/01/2004, processo n.º 03B4084, relator: Ferreira de Almeida:

II – O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, (princípio da adesão) só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei – art.º 71.º do CPP. Daí que, em princípio, se haja de admitir que o prazo de prescrição não corre enquanto pender a acção penal, nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 1, do C. Civil.
III – Tendo sido instaurado processo crime contra o lesante pela alegada prática de um crime semi-público, mediante a apresentação oportuna da competente queixa por parte do lesado, deve entender-se que o lesado manifestou, ainda que de forma indirecta, a sua intenção de exercer o direito a ser indemnizado pelos danos que lhe foram causados pelo arguido/lesante.
IV – A pendência do processo crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada («ex vi», do art.º 323.º n.ºs 1 e 4, do C. Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que com ele são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos, interrupção esta que cessará naturalmente quando o lesado for notificado do arquivamento (ou desfecho final) do processo crime adrede instaurado.
V – Só depois de esgotadas as possibilidades de punição criminal ficará o lesado a deduzir, em separado, a acção de indemnização, face ao disposto no n.º 1 do art.º 306.º do C. Civil. Com a participação dos factos (em abstracto criminalmente relevantes) ao M.º P.º ou às entidades policiais competentes, se interromperá o prazo de prescrição contemplado no n.º 1 do art.º 498.º do C. Civil, não começando, de resto, este a correr enquanto se encontrar pendente o processo penal impeditivo da propositura da acção cível em separado.
VI – A interrupção, (bem como o alargamento do prazo da prescrição nos casos em que é admissível), aplica-se (é oponível) aos responsáveis meramente civis (seguradoras e ao Fundo de Garantiam Automóvel), na medida em que estes representam (substituem) em última "ratio", o lesante civilmente responsável.

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- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2008, processo n.º 08B1745, relator: Salvador da Costa:

Instaurado inquérito criminal por crime público, arquivado que seja por qualquer motivo, não obstante a verificação de pressupostos da dedução do pedido cível em separado, o prazo de prescrição do respectivo direito de indemnização só se inicia depois do conhecimento pelos interessados daquele arquivamento.

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2007, processo n.º 06A4620, relator: Sebastião Póvoas

3) O pedido de indemnização fundado na prática de um crime – ainda que alguns responsáveis o sejam a título meramente civil – deve ser formulado em processo penal, salvo se ocorrer alguma das excepções elencadas no artigo 71.º CPP.
4) A pendência do processo-crime interrompe o prazo de prescrição do n.º 1 do artigo 498.º CC, quer para o lesante quer para os responsáveis civis pela reparação dos danos, interrupção que só cessará quando o mesmo terminar por arquivamento.
Este Aresto faz uma síntese feliz e elucidativa da questão em discussão, com abundantes citações doutrinárias e jurisprudenciais, que, com a devida vénia, transcrevemos:
“ 3.1- A lei processual penal consagra o princípio da adesão obrigatória.
Em regra o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é sempre deduzido em processo penal, só excepcionalmente podendo ser pedido, ou arbitrado, fora dele.
Os casos de dedução do pedido cível em separado constam taxativamente do artigo 71.º do Código de Processo Penal.
Já na vigência do diploma de 1929, que consagra o mesmo princípio (artigo 29º), o Assento do STJ de 28 de Janeiro de 1976 – RT 94, 1909, 109 – fulminava com incompetência absoluta o tribunal cível para acção de indemnização por acidente de viação proposta contra o condutor e proprietário, quando na acção penal contra ele movida tivesse sido proferida condenação a indemnizar. (cf., v.g, os Acórdãos do STJ de 14 de Janeiro de 1955 – BMJ 47-422; de 18 de Outubro de 1966 – BMJ 160-261; e de 15 de Fevereiro de 1967 – BMJ 164-258).
O Prof. Figueiredo Dias explica o sistema da adesão (ou da interdependência) como consagrando “a possibilidade – ou mesmo a obrigatoriedade – de juntar a acção civil à acção penal, permitindo que a jurisdição penal se pronuncie, ao menos em certa medida, sobre o objecto da acção civil. A razão de ser de tal sistema estará na “natureza tendencialmente absorvente do facto que dá causa às duas acções”, em atenção aos “efeitos úteis que, do ponto de vista pessoal, se ligam à indemnização civil”.
Daí que se fale também, nestes casos, em um processo de adesão da acção civil à acção penal” (apud “Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em Processo Penal”, 1963, separata da BFDC, 8.º; cit. ainda o Prof. Eduardo Correia, “Processo Criminal”, 1955, 215).
O Prof. Cavaleiro de Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, I, 137) refere a “confluência de processos, processo penal e civil, mais ou menos ajustados entre si”. (…) “A conexão da responsabilidade civil com a responsabilidade penal tem efeitos na estrutura do processo penal, porquanto neste se integra, nos casos indicados pela lei, uma acção cível, pelo que parece dever admitir-se o caso julgado quanto ao conteúdo da indemnização fixada em processo penal.”
Já o Prof. Vaz Serra (BMJ 91-196) escreve que a fixação da indemnização “embora feita pelo tribunal criminal, é-o no exercício da competência civil reconhecida por lei a esse tribunal.” (cf., ainda, o Prof. Castanheira Neves, “Sumários de Processo Criminal”, 79; Cons. Manso Preto, “Pareceres do Ministério Público”, 163; Prof. Gomes da Silva, “O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar”, 1949, 109 segs.).
O “adhäsionesprozess” é, na opinião do Dr. Ribeiro de Faria, “antes, ou melhor, também se bem que sobretudo, uma forma de processo declaratório.” (apud “Indemnização de Perdas e Danos Arbitrada em Processo Penal – O chamado processo de adesão”, 193).
3.2 - Do exposto resulta que para demandar os responsáveis com base no ilícito penal – ainda que com responsabilidade meramente civil – o Autor tivesse de recorrer à lide criminal, só podendo fazê-lo em separado, e noutro foro, nos casos excepcionais elencados no artigo 71.º da lei adjectiva penal.
E enquanto se mantiver pendente essa lide – ainda que em sede de inquérito – não pode correr a contagem do prazo prescricional, do n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil.
“Admitir o contrário seria, em certos casos, negar, na prática, o exercício da acção cível ao lesado que visse o processo crime ser arquivado decorridos que fossem mais de três anos sobre a verificação dos factos danosos, apesar desse processo ter estado sempre em andamento “normal” durante aquele período de tempo”. (Acórdão do STJ de 15 de Outubro de 1998 – Pº 988/97-2ª; cf., ainda, os Acórdãos do STJ de 6 de Julho de 1993 – CJ/STJ 2ª-180; de 14 de Janeiro de 1997 – CJ/STJ 1ª 59; de 8 de Junho de 1995 – BMJ 448-363; e de 22 de Fevereiro de 1994 – CJ/STJ-1ª, 126).
Ou como julgou o Acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 2004 – 03B 4084 – “com a participação dos factos (em abstracto criminalmente relevantes) ao Ministério Público ou às entidades policiais competentes, se interromperá o prazo de prescrição contemplado no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil, não começando, de resto, este a correr enquanto se encontrar pendente o processo penal impeditivo da propositura da acção cível em separado.”
Importa, finalmente, dizer que a interpretação do regime legal acima exposta e que é feita pela dita doutrina e jurisprudência, não deixa de vigorar, mesmo quando se esteja (ou se venha a estar) face a uma das excepções constante do artigo 72.º do CPP, conforme defende, por exemplo, o já referido Aresto do Supremo Tribunal de Justiça em que foi relator o Juiz-Conselheiro Salazar Casanova: “32. No entanto, tanto o Código de Processo Penal de 1929 como o de 1987 prevêem situações em que o lesado pode deduzir em separado o pedido de indemnização civil conforme resulta dos artigos 29.º e 30.º do Código de 1929 e 71.º e 72.º do Código de 1987.
33. Tem sido, no entanto, salientado pela jurisprudência, entendimento que se acompanha, que a lei não impõe ao lesado, logo que se verifique a situação em que a lei consente a dedução em separado de pedido de indemnização cível, o ónus de assim proceder que importaria, por definição, uma consequência gravosa em caso de incumprimento.
34. Poderia esta ser a de se considerar reiniciado o prazo de prescrição interrompido com a notícia do crime por não ter o lesado demandado civilmente o responsável civil logo que o pudesse fazer.
35. Esta ideia sancionatória colidiria com o princípio da adesão da acção civil à acção penal que confere ao lesado o direito de ser ressarcido no âmbito da acção penal.
36. Como se referiu, a jurisprudência tem afirmado a natureza facultativa que assiste ao lesado, ocorridas as condições previstas na lei (artigo 72.º do Código de Processo Penal), de se afastar da força centrípeta da acção penal, deduzindo pedido cível em separado. Neste sentido, no Ac. do S.T.J. de 14-6-2007 (Salvador da Costa) (P. 1731/2007) também in C.J., 2, pág. 112 refere-se, a propósito de uma das excepções ao princípio da adesão, que se trata “ neste caso de mera faculdade, ou seja, a circunstância de o antecessor do recorrido não ter deduzido pedido cível em separado é insusceptível de lhe implicar alguma consequência negativa” ; também o carácter facultativo da acção civil em separado avulta no Assento n.º 5 do S.T.J. de 19-1-2000, D.R., I Série - A, n.º 52 de 2-3-2000, pág. 721 visto que, tratando-se de crime em que o exercício da acção penal depende de queixa, o facto de o lesado instaurar acção cível em momento ulterior à queixa, não importa consequência sancionatória alguma, designadamente a extinção do procedimento criminal.
37. Assim sendo, assiste ao lesado, que não quiser recorrer à acção cível em separado, o direito de aguardar o desfecho do procedimento criminal, não se podendo considerar que o direito à indemnização tem de ser exercido apenas porque se lhe abriu a faculdade de accionar civilmente em separado.
38. A não ser assim, converter-se-ia uma faculdade num ónus, impondo-se, por via interpretativa, uma sanção que a lei não quis impor, não se vislumbrando na lei que o efeito interruptivo decorrente do procedimento criminal instaurado cesse logo que ocorra a possibilidade de ser demandado o responsável civil em separado.”.
Explanados os termos da tese que tem feito vencimento maioritário no nosso panorama doutrinário e jurisprudencial, passemos a fazer uma análise crítica da mesma.

B6 – QUEIXA-CRIME E ARTIGO 323.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Afigura-se-nos necessário fazer uma distinção entre crimes-públicos e crimes semi-públicos e particulares, atenta a circunstância daqueles não dependerem de qualquer procedimento por parte do ofendido/lesado, ao contrário dos segundos, havendo mesmo um dever legal e funcional de abrir uma investigação criminal por parte das autoridades policiais ou judiciárias competentes relativamente aos primeiros.
Logo, consideramos correcta a posição que reconduz ao regime estatuído no artigo 306.º, número 1 do Código Civil uma tal situação de instauração oficiosa e vinculada de um processo criminal, pois a vítima do crime e titular do direito a uma indemnização fica impedida de accionar tal direito, de maneira autónoma e paralela a tal investigação penal (muito embora seja de ponderar, mesmo nesses casos, a relevância jurídica da participação feita pela vítima, na sua dupla qualidade de ofendido/lesado).
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/02/2004, processo n.º 04A4284, relator: Moreira Camilo defende que, no caso dos crimes semi-públicos e particulares e enquanto estiver a decorrer o prazo para a necessária queixa-crime (6 meses – cf. artigos 48.º e seguintes do Código de Processo Penal e 113.º a 116.º do Código Penal), o referido direito ao ressarcimento dos danos de natureza cível não pode ser exercido, achando-se igualmente abrangido pelo regime do número 1 do artigo 306.º do Código Civil.
Chegado o termo do prazo para o efeito e se não for apresentada queixa-crime, começará então a correr o prazo prescricional (que, para nós e ainda assim, será o de índole criminal, se for mais amplo do que o artigo 498.º, número 1 do Código Civil, por força do seu número 2, havendo jurisprudência que defenda, contudo, que neste caso será o geral de 3 anos).
Não é despiciendo recordar nesta sede o que o número 2 do artigo 72.º do CPP, (que, neste particular, deve ser conjugado com o seu número 1, alínea c)) determina: “No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”, o que, a contrario sensu, significa que a queixa-crime ou acusação particular pressupõem a possibilidade do ofendido, no momento adjectivo oportuno, vir cumular com a perseguição criminal do infractor (para a qual, para além da participação inicial e do seu papel de testemunha, pode em nada mais ter contribuído) o pedido de reparação dos danos provocados pelo crime ou crimes que lhe são imputados, quer o mesmo seja formulado contra o arguido como apenas contra terceiros, como uma entidade seguradora.
Temos algumas dúvidas quanto à bondade da tese defendida pelo referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, face a esse regime, que espelha uma das excepções ao princípio da adesão obrigatória e que pode desde logo ser accionado (o que indica que o direito ressarcitório está em condições de ser exercido), conduzindo, por outro lado, a um prolongamento algo artificial de um prazo prescricional (mais 6 meses) que, por força do artigo 498.º, número 3 do Código Civil, já beneficia do maior prazo da prescrição crime.
Se houver queixa-crime e desencadeado o inquérito respectivo, a nossa jurisprudência maioritária defende a aplicação a essa realidade do artigo 323.º, números 1 e 4 do Código Civil (já acima transcritos).
As referidas normas dos números 1 e 4 do artigo 323.º do Código Civil, ao falarem em “notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente” e ao equipararem à citação ou à notificação judicial “qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido”, consentiriam que um acto como a queixa-crime fosse idóneo e eficaz, a partir do sexto dia da sua apresentação, caso não chegasse ao conhecimento do visado pela mesma antes desse prazo (número 2 do artigo 323.º) – cf., por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima citado, em que foi relator o Juiz – Conselheiro Ferreira de Almeida) a provocar a interrupção do prazo prescricional em curso.
Neste sentido parece ir igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/01/2010, processo n.º 1450/06.4TBALM-A.S1, relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, publicado em www.dgsi.pt, quando, no seu sumário, defende:

Tem pois de concluir-se que com a apresentação da queixa se interrompeu a prescrição; e que o prazo só (re)começou a correr, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 326.º do Código Civil, com a notificação do despacho de arquivamento. A pendência do processo penal impede a prescrição; entender, de modo diverso, que o prazo de prescrição teria recomeçado a correr a partir do momento em que a autora poderia ter instaurado, no tribunal cível, uma acção de indemnização, nomeadamente nos termos da alínea a) citada, equivaleria a tornar obrigatória uma dedução que a lei expressamente apresenta como facultativa e a desvirtuar o próprio princípio da adesão (neste sentido, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Outubro de 2009, www.dgsi.pt, processo n.º 206/09.7YFLSB e jurisprudência nele citada).

Constata-se, efectivamente, que, por força do princípio da adesão e da obrigatoriedade (ainda que somente tendencial, face às excepções existentes) da dedução oportuna do pedido cível, a queixa-crime, muito embora vise, essencialmente, a perseguição e punição penal do suspeito, abre a porta também à possibilidade da futura cumulação, nos termos dos artigos 77.º e seguintes do Código de Processo Penal, da pretensão reparatória, de cariz civil, dos danos causados pelo crime ou crimes praticados.
Muito embora a queixa seja, nos casos de crime semi-público ou particular, pressuposto indispensável para a futura dedução do pedido de indemnização cível, a posição exposta não merece, contudo e salvo o devido respeito, a nossa concordância, por se nos afigurar que não tem a virtualidade jurídica de provocar, só por si, nos moldes indicados a interrupção do prazo prescricional em curso, nos termos do artigo 323.º, números 1 e 4 do Código Civil.
A queixa de crime visa levar ao conhecimento das autoridades judiciárias competentes – o Ministério Público – o cometimento da referida infracção, bem como, quando conhecido, a identificação do seu infractor ou do suspeito da sua prática, omitindo, as mais nas vezes, qualquer referência ao recebimento de um indemnização pelos prejuízos causados ao queixoso ou, quando o faz, limita-se a fazer uma declaração genérica, sem especificar minimamente o tipo de danos e os montantes envolvidos (não é despiciendo recordar aqui o teor dos artigos 75.º e 77.º do CPP).
O artigo 323.º, número 1 do Código Civil fala na comunicação ao infractor ou suspeito de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, comunicação essa que, em regra, só acontece relativamente aos factos que suportam a tipificação do crime ou crimes denunciados (aí se incluindo, por exemplo, as ofensas à integridade física ou da morte da vítima e o condicionalismo anterior e posterior às mesmas) e das circunstâncias atenuantes e agravantes que a ele ou eles respeitam, por que é esse o objecto da investigação criminal, já não tendo esta de se debruçar e averiguar factos que só respeitam, em exclusivo, à reparação civil dos prejuízos causados (cf., embora quanto a actos diferentes da queixa, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/12/2003, processo n.º 0325507, relator: Durval Morais).
A queixa-crime, face às excepções constantes do artigo 72.º do CPP e à posição que entende como facultativa a dedução de pedido cível, não passa de uma porta que se abre à faculdade ou possibilidade de exercício do direito de natureza indemnizatória em tempo oportuno mas que, só por si, não se substitui nem dispensa o ofendido de formular o mesmo nos termos dos artigos 77.º e seguintes do Código de Processo Penal (cf., alias, o disposto no artigo 75.º do mesmo diploma legal).
Como conciliar o efeito interruptivo da queixa derivado do artigo 323.º, números 1 e 4 do Código Civil, com a ausência de dedução do pedido de indemnização cível e principalmente com o estatuído no artigo 327.º do mesmo diploma legal, que está estreitamente ligado aquele, quando estatui que o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo? Que decisão (judicial, necessariamente, pois só essas transitam em julgado) é esta a que se refere tal disposição? Que processo, designadamente, quando nos movemos no foro criminal? Inquérito, como muita jurisprudência refere (muito embora estejam geralmente em causa despachos de arquivamento do Ministério Público), Instrução, quando seja requerida ou Processo Comum, quando passa à fase de julgamento? Ou ao processo formado por todas essas fases, como defende o Apelante?
Não deixa também de nos impressionar a doutrina expressa, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/11/2005, processo n.º 05S1920, relator: Sousa Peixoto, publicado em www.dgsi.pt, quando, no seu sumário, afirma o seguinte:
“1. Como resulta da letra do n.º 1 do art.º 323.º (intenção de exercer o direito), o facto interruptivo da prescrição consiste no conhecimento que o obrigado teve, através duma citação ou notificação judicial, de que o titular pretende exercer determinado direito.
2. Deste modo, o requerente tem de assumir-se, antes de mais, como titular de um direito.
3. Não basta, porém que se assuma como titular de um mero direito virtual; tem de afirmar-se titular de um direito efectivo, minimamente definido e fundamentado.
4. Doutro modo, o requerimento em que se pede a notificação judicial avulsa do pretenso devedor tem de ser considerado inepto, por aplicação analógica do disposto no art. 193, n.º 2, a), do CPC.
5. É o que acontece quando o requerente se limita a alegar que "com a presente notificação judicial avulsa o Requerente pretende interromper, também, o prazo de prescrição de quaisquer outras quantias emergentes do contrato de trabalho que se venham a apurar e que estejam em dívida, nomeadamente relacionadas com o cálculo da isenção do horário de trabalho."
Não se ignora que tal Aresto se refere a uma Notificação Judicial Avulsa, mas afigura-se-nos que, mesmo num processo judicial, tem de haver uma exigência mínima quanto à forma como os contornos do direito a exercer futuramente são apresentados, não bastando uma mera presunção de que tal irá acontecer, com base na simples queixa (cf., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça já citado, em que foi relator o Juiz Conselheiro Salazar Casanova) ou mesmo com fundamento numa declaração mais ou menos abstracta e genérica.
Pensamos que os efeitos jurídicos da queixa-crime, ainda que interruptivos, não podem colher a sua justificação nos artigos 323.º, números 1 e 4 e 327.º do Código Civil, mas antes no artigo 306.º do mesmo diploma legal, numa interpretação extensiva do mesmo, de maneira a acolher não só os prazos de prescrição originais que ainda não tiveram início, como aqueles que se iniciaram e que, por motivos de ordem legal, se vêem impedidos superveniente de ser exercidos, como finalmente aqueles que sucedem aos primeiros (neste mesmo sentido, ao que julgamos, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 16/03/2000, processo n.º 0030228, relator: Teles de Menezes, de 12/07/2005, processo n.º 0522155, relator: Alziro Cardoso e de 1/4/2009, processo n.º 0616797, relator: Paulo Valério e do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/09/2007, processo n.º 6056/2007-2, relatora: Isabel Canadas).
Logo, haja um desencadeamento oficioso dos autos de inquérito criminal ou tenha o mesmo na sua raiz uma queixa do ofendido, certo é que o prazo prescricional não se inicia (artigo 306.º do Código Civil), até, pelo menos, a altura em que o lesado está em condições de poder exercer o seu direito de natureza indemnizatória.

B6 – PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL E ARTIGO 323.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Ainda que não se aceite o efeito interruptivo da queixa-crime, nos moldes por nós defendidos, (mantendo-se, contudo e nesse caso, o regime conjugado dos artigos 323.º, números 1 e 4 e 306.º, número 1 do Código Civil), não existem grandes dúvidas relativamente à aplicação das normas constantes dos artigos 323.º, números 1 e 4 do Código Civil quando o lesado formula, no quadro do processo-crime e de acordo com as normas já aludidas do Código de Processo Penal, o competente pedido de indemnização civil, bastando ler o que o Juiz-Conselheiro Salvador da Costa defende no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/06/2007, processo n.º 07B1731 (aí se fazendo a aproximação, que nos parece absolutamente correcta, entre a dedução do pedido cível e as exigências do número 1 do artigo 323.º do Código Civil): “Certo é, tal como o recorrente alegou, que os artigos 71.º do Código de Processo Penal e 306.º, n.º 1, do Código Civil não regulam os efeitos da pendência do processo-crime no prazo de prescrição do direito de indemnização pelos factos ilícitos que dele são objecto.
Decorre da lei a regra de que a prescrição se interrompe por via do conhecimento pelo obrigado, através de citação ou notificação judicial, de que o credor pretende exercer o direito (artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil).
Todavia, se a citação ou notificação não se fizer em cinco dias depois de requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias (artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil).
Sucede que, no caso vertente, um dos antecessores do recorrido deduziu, no dia 20 de Maio de 1997, pedido cível indemnizatório contra o recorrente, mas os factos não revelam que ele tenha requerido expressamente a notificação do último para o contestar.
Mas é a própria lei que determina que a pessoa contra quem for deduzido pedido de indemnização cível é notificada para, querendo, contestar no prazo de dez dias (artigo 78.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Assim, ao deduzir o pedido cível no processo penal, o antecessor do recorrido requereu implicitamente a notificação do arguido, ora recorrente.
Não tem, por isso, fundamento legal a alegação do recorrente no sentido de que o antecessor do requerido não requereu a sua notificação para contestar o pedido cível em causa.
Os factos revelam que a não notificação do recorrente do pedido de indemnização cível nos cinco dias seguintes à sua apresentação em juízo não é imputável ao antecessor do recorrido.
Por isso, o referido prazo de prescrição interrompeu-se cinco dias depois da apresentação em juízo do instrumento relativo ao mencionado pedido de indemnização cível, ou seja, no dia 25 de Maio de 1997.”

B7 – PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL, PROCESSO-CRIME E ARTIGO 327.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Ora, a ser assim, é manifesto que enquanto o pedido de indemnização cível estiver pendente, impõe-se aplicar ao prazo de prescrição interrompido o estatuído no artigo 327.º do Código Civil, que reza o seguinte:
(…)
Logo, nas situações em que o pedido de reparação de índole civil é efectivamente apresentado no seio do processo-crime e aí segue a sua normal tramitação, o prazo de prescrição previsto no artigo 498.º, números 1 e 2 do Código Civil e atendendo ao disposto nos artigos 326.º e 327.º, número 1 do mesmo diploma legal volta a correr desde o início somente a partir do trânsito em julgado da sentença onde, para além da sua vertente criminal, são apreciadas igualmente as consequências cíveis dos factos tipificados como crime.

B8 – NÃO DEDUÇÃO DO PEDIDO CÍVEL EM SEDE DE PROCESSO-CRIME

A questão que se coloca verdadeiramente neste recurso é a seguinte: após a acusação ter sido deduzida pelo Ministério Público e notificada ao arguido e/ou comunicada ao aqui lesado, para efeitos de dedução do pedido de indemnização civil, de acordo com o artigo 77.º, números 3 e 2 do CPP, se tal pretensão reparatória não for atempadamente formulada pelo segundo no processo-crime, ocorre a aplicação a tal situação do disposto no artigo 327.º, número 1 do Código Civil?
Afigura-se-nos manifesto que, a partir do momento em que o lesado está em condições de exercer o seu direito, através da dedução do pedido de indemnização civil, deixa de vigorar o regime do artigo 306.º, número 1 do Código Civil.
Tendo defendido o efeito interruptivo da queixa-crime, igualmente nos termos do artigo 306.º, número 1 do Código Civil, é óbvio que o mesmo também cessa a partir do momento em que o lesado está em condições de exercer o seu direito, ou seja, quando, nos termos do artigo 77.º, números 1 e 2, pode formular tal pedido cível.
Logo, não sendo tal suspensão ou interrupção radicada no artigo 323.º do Código Civil, tal implica a não aplicação do disposto no citado artigo 327.º, número 1 do mesmo diploma legal, por o regime deste estar ligado estreitamente ao daquele.
O Apelante, contudo, defende tal aplicação do artigo 327.º do Código Civil, ainda que não tenha alegado e provado a apresentação oportuna de queixa e apesar de não ter formulado oportunamente pedido cível no quadro daqueles autos de natureza criminal.
Começaremos por realçar a incongruência do regime legal que, a ser interpretado nos moldes defendidos pelo Apelante, dá igual tratamento jurídico, no que concerne ao não decurso do prazo prescricional em análise, quer à situação em que ocorreu a dedução, aceitação adjectiva e normal julgamento do pedido cível do ofendido/lesado, quer aquela em que tal não aconteceu de todo ou em que não foi admitido, designadamente, por apelo ao disposto nos artigos 72.º, número1, alínea e) e 82.º, número 3 do CPP.
Em segundo lugar, mal se compreenderia uma diferença de regimes entre os processos de natureza oficiosa e crimes públicos, em que, caso não fosse exercido o pedido de indemnização civil, não haveria qualquer facto impeditivo ao decurso do prazo prescricional, e os demais, em que, por virtude da queixa, tal aconteceria, aparentemente, ao abrigo do artigo 327.º, número 1 do Código Civil.
O artigo 327.º do Código Civil (que para nós, não foi pensado para acções de natureza criminal como as actuais, sendo que o regime constante do Código de Processo penal de 1929 era substancialmente diverso do actual) tem de ser interpretado no sentido de abarcar apenas processos onde, de uma forma directa ou secundária, se analisa e julga o direito ou direitos a que se refere o prazo prescricional e não já aqueles em que, tendo havido essa possibilidade, a mesma não foi aproveitada, tendo ficado no limbo das intenções ou das expectativas do lesado.
A nossa jurisprudência maioritária apesar de conferir efeitos interruptivos à queixa-crime, nos termos conjugados do artigo 323.º, números 1 e 4 e 306.º, número 1, do Código Civil (e embora não faça menção ao teor do artigo 327.º, número 1 do Código Civil), no caso específico do processo penal, restringe tal menção a “processo” ao inquérito-crime propriamente dito, que finda, para este efeito, com a definitividade (“trânsito em julgado”) do despacho de arquivamento ou de acusação ou de pronúncia/não pronúncia, após a sua notificação ao arguido e/ou ofendido/assistente.
O já identificado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2009, relatado pelo Juiz-Conselheiro Salazar Casanova, vai nesse preciso sentido quando afirma o seguinte, em termos de sumário:

III – Assim sendo, com o desfecho do inquérito, ou por arquivamento ou por acusação, inicia-se o prazo de prescrição, pois, a partir desse momento, o não exercício da acção cível em separado ou conjuntamente, conforme os casos, é da responsabilidade do lesado, não existindo, assim, razão para não se considerar terminado o impedimento posto ao decurso do prazo prescricional.
IV – Do exposto decorre que, iniciado o inquérito com o acidente ocorrido em 10-07-1998, inquérito que findou com acusação deduzida em 21-06-2001, a prescrição passou a correr contra o lesado decorridos os prazos a que alude o art. 77.º do CPP e, por isso, quando a acção de indemnização foi proposta no dia 14-02-2005, transitada já a acção penal no dia 30-03-2004, ainda não tinha decorrido o prazo de 5 anos a que alude o art. 498.º, n.º 2, do CC.

Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/01/2004, publicado em CJ/Supremo Tribunal de Justiça, Ano XII, Tomo I, 2004, páginas 36 a 39, citado por Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, página 149, em anotação ao artigo 327.º do Código Civil, refere o seguinte em termos de sumário:
“III – A pendência do processo-crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada (ex vi artigo 323.º, n.ºs 1 e 4 do Código Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que (…) com ele são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos, interrupção essa que cessará naturalmente quando o lesado for notificado do arquivamento (ou desfecho final) do processo crime adrede instaurado.
IV – Não é razoável que o início da contagem prescricional para o exercício do direito de indemnização possa ocorrer durante a pendência do inquérito”.

Finalmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2008, processo n.º 08B1745, relator: Salvador da Costa, em www.dgsi.pt:

“6. Instaurado inquérito criminal por crime público, arquivado que seja por qualquer motivo, não obstante a verificação de pressupostos da dedução do pedido cível em separado, o prazo de prescrição do respectivo direito de indemnização só se inicia depois do conhecimento pelos interessados daquele arquivamento. (cf., também, para além de alguma da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça acima indicada e o Acórdão de 3/12/2009, processo n.º 73/99.7Avis.C1.S1, relatora; Isabel Pais Martins, os seguintes Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, em que foi relator o Juiz-Desembargador Jorge Arcanjo, abaixo referidos, no ponto seguinte e ainda de 23/11/98, processo n.º 9850951, relator: Costa Pereira, de 8/11/2007, processo n.º 0735254, relator. Teles de Menezes e do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/01/1900, processo n.º 0024041, relator: Silva Montenegro).

B9 – RESPONSÁVEIS MERAMENTE CIVIS E PRAZO PRESCRICIONAL

Diremos a este respeito, que estamos de acordo com a nossa jurisprudência quando afirma que “VI – A interrupção (bem como o alargamento do prazo de prescrição nos casos em que é admissível), aplica-se (é oponível) aos responsáveis meramente civis (seguradoras e ao Fundo de Garantia Automóvel), na medida em que estes representam (substituem) em última “ratio”, o lesante civilmente responsável” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/01/2004, processo n.º 03B4084, relator: Ferreira de Almeida) e “II – O alongamento do prazo prescricional, previsto no art.º 498 n.º 3 do CC, é aplicável a todos os responsáveis meramente civis.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/06/2007, processo n.º 11/04.7TBTBU.C1, relator: Jorge Arcanjo – cf., do mesmo Juiz-Desembargador e no mesmo sentido o Acórdão de 15/09/2009, processo n.º 170/2001.C2).

B10 -SITUAÇÃO DOS AUTOS E REGIME LEGAL ANALISADO

Chegados aqui e direccionando a nossa atenção para a situação que se vive nos autos, ignora-se se o Autor apresentou dentro do prazo legal a oportuna queixa-crime, sendo que a Ré afirma expressamente que não o fez e a prova documental existente nos autos, que é a única que nesta matéria pode ser valorada, não evidencia a prática de tal acto (a condenação do arguido pela prática de um crime semi-público e relativo às ofensas contra a integridade física causadas ao Apelante e à outra vítima, parece indicar tal realidade, mas trata-se de uma mera suposição sem base fáctica segura, pois não é impossível que, apesar da bem elaborada e complexa decisão criminal, tal aspecto tenha escapado ao juiz autor dessa sentença).
A existência de tal queixa é mesmo contrariada pela circunstância de ao arguido, nos referidos autos criminais e em sede de acusação, terem sido imputados crimes de natureza pública, que justificavam a imediata, inicial e oficiosa abertura de inquérito e posterior investigação pelos órgãos judiciários e policiais competentes.
De qualquer forma, à falta de documento ou Auto que a contenha, a prova de tal queixa não pode ser feita por testemunhas nem por recurso a presunções judiciais – artigos 393.º, 396.º e 351.º do Código Civil.
Sendo assim, não havendo queixa-crime demonstrada nos autos, torna-se despiciendo trazer à liça as dúvidas que já acima suscitámos acerca da relevância jurídica para efeitos de aplicação do disposto no artigo 323.º, números 1 e 4 do Código Civil (e, por arrastamento, do artigo 327.º do mesmo texto legal).
Em segundo lugar, não foi deduzido pedido de indemnização cível que pudesse integrar a previsão dos artigos 323.º, números 1 e 4 e 327.º, número 1 do Código Civil, o que nos indica que não ocorreu nos autos qualquer acto de natureza interruptiva do prazo prescricional de 5 anos de que o Autor beneficiava, nos moldes já antes apreciados, tendo somente o mesmo usufruído do regime do artigo 306.º, número 1 do mesmo diploma legal.
Logo, o quadro com que teremos de trabalhar é o seguinte: a acusação do Ministério Público foi deduzida em 26/11/2002 e a sentença da 1.ª instância proferida em 11/07/2005, com Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/05/2006, tendo esta acção dado entrada em juízo em 10/04/2008 e a Ré sido citada em 9/5/2008.
Estes são os únicos factos que resultam da factualidade dada como assente, nada mais de relevante se retirando, por outro lado, dos documentos juntos (a não ser, pela negativa, da acusação do MP, ao se limitar a mandar notificar o arguido e não já o aqui Autor, nos termos e para os efeitos do artigo 77.º, número 2 do CPP, o que parece indicar que o mesmo estaria numa das hipóteses contempladas no seu número 3 – apresentação do pedido cível no prazo de 20 dias a partir da notificação do arguido da acusação ou da pronúncia).
Ora, sendo este o cenário em presença e constituindo a prescrição uma excepção peremptória, por se traduzir num facto extintivo do direito do Autor, é manifesto que a sua alegação (dado não ser de conhecimento oficioso – artigo 303.º do Código Civil) e prova compete à Ré, de acordo com o artigo 342.º, número 2 do Código Civil.
Terá logrado a Apelada, como decidiu o saneador/sentença, fazer a prova de todos os factos integradores de tal excepção?
Julgamos que não, pois não foi alegada nem demonstrada pela Ré a data da notificação ao Autor, no âmbito do processo-crime, da acusação do Ministério Público (nada indica que terá havido instrução e despacho de pronúncia), facto essencial da excepção peremptória em análise, pois somente com esse dado temporal é possível afirmar, com certeza e objectividade, que o prazo prescricional de 5 anos estaria já esgotado no dia 15/04/2008 (6.º dia após a entrada em tribunal da presente acção).
Dir-se-á que tal conclusão nem sequer é absurda ou excessiva, dado mediar um prazo relativamente curto entre o dia da referida acusação do Ministério Público (26/11/2002) e o dia 15/04/2003, data mínima limite para não ter transcorrido o prazo de prescrição de 5 anos, sendo perfeitamente aceitável e admissível que tenha havido um atraso em tal notificação igual ou mesmo superior a essa dilação.
Logo, tem o presente recurso de apelação de ser julgado procedente, muito embora por fundamento diverso.

B11 – CARTA DA RÉ E RECONHECIMENTO DO DIREITO

O Autor ainda vem arguir nas suas conclusões o reconhecimento do seu direito por parte da Ré, nos termos e para os efeitos do artigo 325.º do Código Civil, face à carta que se mostra transcrita no ponto 16 dos factos dados como provados:
“16) A Ré remeteu ao primeiro mandatário do Autor, com data de 29/05/2002, a carta junta a fls. 38, onde se pode ler:
Reportamo-nos ao acidente de viação ocorrido a 09.09.2000 na Avenida da índia em Lisboa.
Concluída a assistência clínica que nos propusemos prestar ao sinistrado acima identificado (Pedro), na nossa carta de 02.11.2000, sem que tal significasse a assunção de responsabilidade por parte desta Seguradora, estamos nesta fase do processo na intenção de aguardar a evolução do Processo-Crime.
Mantendo a cordial relação até agora demonstrada, sem prejuízo desta nossa intenção, solicitamos que caso V. Exa. possua elementos que entenda de relevo para a nossa mais correcta tomada de posição, no-los faculte prontamente para nossa apreciação”.
Muito embora fosse desnecessário apreciar esta questão, dir-se-á que da leitura atenta e objectiva dessa missiva não se pode deduzir, minimamente, ao contrário do que defende o Apelante, o reconhecimento pela Ré de qualquer direito de cariz indemnizatório de que aquele seria titular à data da sua redacção e envio.
Por outro lado e olhando somente à data da carta (logo, não tendo em atenção o que já decidiu relativamente ao processo-crime), já teria decorrido um período superior a 5 anos sobre a sua provável recepção (3 dias depois da data ali indicada), no momento da propositura desta acção.
Logo, este fundamento do recurso nunca poderia ser julgado procedente.

B12 – JULGAMENTO IMEDIATO DO MÉRITO DA CAUSA

O recorrente defende que este Tribunal da Relação de Lisboa decida já o fundo da causa, ao abrigo do disposto no artigo 715.º, números 2 e 3 do Código de Processo Civil (actual redacção) mas, salvo melhor opinião, atendendo aos factos alegados pelo Autor e à tomada de posição da Ré face aos mesmos, existe matéria de facto controvertida que tem de ser previamente instruída e julgada pelo tribunal da 1.ª instância.
Logo, não resta outra alternativa a este tribunal de recurso que não seja julgar improcedente a excepção peremptória da prescrição e procedente o presente recurso de Apelação, determinando depois a baixa dos autos ao tribunal recorrido para a sua normal tramitação.
Logo, pelas razões expostas, decide-se, embora com motivação diversa, revogar a decisão apelada e, nessa medida, julgar procedente o presente recurso.

IV – DECISÃO
Por todo o exposto e tendo em conta o artigo 713.º do Código do Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa no seguinte:
a) Em julgar procedente o recurso de apelação interposto por PEDRO e, nessa medida, revogar o saneador/sentença recorrido e julgar improcedente a excepção peremptória de prescrição arguida pela Ré;
b) Determinar que os autos baixem ao tribunal de 1.ª instância, a fim de aí serem sujeitos à sua normal tramitação, face à improcedência da aludida excepção peremptória.
Custas do recurso pela Apelada – artigo 446.º, número 1 do Código de Processo Civil.
Notifique e Registe.
Lisboa, 25 de Março de 2010
(José Eduardo Sapateiro)
(Teresa Soares)
(Rosa Barroso)