USURA
VENDA A RETRO
CONTRATO DE MÚTUO
HIPOTECA
SIMULAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

1.É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência psíquica de outrem, obteve deste, para si ou para terceiro, a promessa ou concessão de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados.
2.Para que o negocio jurídico seja anulável por usura e necessário que para alem do elemento objectivo – grave desproporção entre as prestações dos contraentes – concorra o elemento subjectivo, ou seja, o aproveitamento consciente por uma das partes ou por terceiro, de uma situação de necessidade, da experiencia, dependência ou deficiência psíquica ou ligeireza da outra parte
3. A consciência de explorar a situação de inferioridade resulta da manutenção da actividade usurária durante anos, das quantias envolvidas e do resultado obtido, com venda da casa em vez da oportuna constituição de adequada garantia.
4. Sendo anulável a venda ficamos com um vício intrínseco do negócio e, portanto contemporâneo da sua formação. Não se produzem os efeitos jurídicos a que o negócio jurídico tendia. Há lugar à repristinação da coisa no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – A, intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário contra J, M, e C, S.A.
Alegou que em Abril de 2006 ficou desempregada a começou a ter dificuldades em satisfazer as prestações de créditos bancários por si contraídos e que ascendiam a €1.000,00 mensais. No final de 2006 e como forma de resolver os seus problemas económicos, combinou com os primos, ora primeiros RR., transferir-lhes temporariamente o seu direito de propriedade sobre uma casa no A, com recurso ao crédito bancário, por forma a que, com o montante do empréstimo, a A. pudesse solucionar as suas dívidas. Mas, combinaram que, dentro de poucos meses, assim que a A tivesse a sua situação financeira regularizada, voltariam a celebrar uma escritura para lhe retornar o direito de propriedade. O empréstimo pedido era de valor superior às dívidas da A. para que esta ficasse com alguma margem durante alguns meses, nomeadamente para ir satisfazendo as prestações do novo crédito que os primos RR. iriam contrair.
A C. estava a par das combinações entre as partes, tendo mesmo sugerido a forma do negócio. Os RR. não lhe entregaram a quantia mutuada que ia além do pagamento das dívidas que a A. tinha na altura, e recusaram-se a devolver a casa à A.
Concluiu pedindo que fosse:
a) declarada a nulidade do contrato de compra e venda da fracção designada pela letra "G", correspondente ao apartamento nº 29, situado no piso térreo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, por simulação absoluta de tal contrato;
b) ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR. J e M e de quaisquer outros posteriormente levados a efeito;
c) e a A. fosse declarada como mutuária no contrato de empréstimo celebrado entre os RR.
Contestaram os primeiros RR. e deduziram pedido reconvencional. Defenderam que é falso que as vontades das partes no negócio tenham sido diferentes das declaradas, ou que tenham querido celebrar negócio diferente. Limitaram-se a fazer um favor à A. para que a casa permanecesse na família. A A. tinha-se comprometido a suportar as despesas do negócio, o que não fez, os RR. pagaram comissões de estudo e avaliação, registos provisórios, notário, e outras despesas e imposto no valor total de 3.741,76 €.
Entre Outubro de 2006 e Março de 2007 foram emprestando à A., a pedido desta, várias quantias que a mesma ficou de restituir, no montante global de 6.000,00 €, o que não fez.
Terminam pedindo que a acção seja julgada não provada e improcedente, com a sua absolvição do pedido; e que a reconvenção seja julgada procedente por provada, condenando-se a A. a pagar aos 1°s RR. o montante de 9.741,76 €, acrescidos de juros até integral pagamento.
A R. C alegou desconhecer a generalidades dos factos que respeitam à relação entre a A. e os primeiros RR. e negou qualquer envolvimento da sua parte numa possível simulação.
Terminou pedindo que a acção fosse julgada não provada e improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido; ou, caso assim não se entenda e venha a ser declarada a nulidade do negócio de compra e venda, que o mesmo seja apenas reduzido mantendo-se incólume a hipoteca constituída a favor da R. C.
A A. replicou, excepcionando a inadmissibilidade da reconvenção e, para o caso de assim não se entender, a improcedência da reconvenção.
Houve tréplica dos 1°s RR.
Após o despacho saneador fixaram-se os factos assentes e foi elaborada a BI.
Procedeu-se a julgamento e foi proferida decisão que julgou a acção e a reconvenção totalmente improcedentes absolveu a A. e RR. dos respectivos pedidos.
Não se conformando com a decisão interpôs recurso a A. e os réus interpuseram recurso subordinado.
Conclusões da apelante
- o art. 15 deve ser dado como provado, em face dos depoimentos das testemunhas I, L e N, a alteração do montante do empréstimo para €160.000,00 foi para solver todas as dívidas da recorrente;
- apesar de o acordo ser verbal, não decorre daí, que o tribunal não tivesse que se pronunciar sobre a questão suscitada;
- de facto, a mesma foi, até, quesitada e discutida, pelo que era uma questão a resolver e o tribunal tinha o dever de se pronunciar, por força do art. 660, n.º 2, do C. P. Civil;
- ao reconhecer que os co-recorridos podem ter enriquecido sem causa, mas não apreciando nem decidindo sobre essa questão, a sentença terá de ser revogada e ordenar-se a substituição por outra que condene os co-recorridos no pagamento das quantias acordadas;
- embora a sentença conclua pela validade do contrato celebrado entre a recorrente e os co-recorridos, relevando a exigência de forma legalmente prevista para os contratos-promessa e a devida consequência pela sua não-observância, em nosso entender e salvo melhor juízo, importa saber até onde vai essa consequência e se a mesma pode, ou não, ser revertida, provando-se ter havido uma verdadeira divergência entre a vontade real e a manifestada na escritura;
- se as partes acordaram camuflar um mútuo com a aparência de um negócio de compra e venda, nos termos legalmente previsto, a parte prejudicada pode, sempre, arguir a nulidade do negócio simulado, recorrendo, também, à prova testemunhal, para abalar o texto da escritura, mas sem contender com o mesmo;
- o previsto no art. 394, do C. Civil, não exclui a possibilidade de se provar, por testemunhas ou outro meio, qualquer facto como, por exemplo, o fim ou o motivo porque as partes agiram de determinado modo e assim documentando essa mesma actuação, uma vez que tal facto não é contrário ao conteúdo do documento nem se pode considerar uma cláusula adicional;
– uma coisa é considerarmos prova plena feita pelo documento, no caso presente a escritura mas quanto ao seu texto e outra, bem diferente, é atendermos aos motivos que determinaram outorga dessa mesma escritura e que nela não foram consignados;
- teremos de atender ao fim para que o empréstimo, que se encapotou com a dita escritura, foi contraído, sendo certo que esta nada diz sobre os motivos que estivarem na sua génese nem quanto ao destino dado, ou a dar, ao produto do empréstimo;
- importa apurar, em nosso entender, qual era a verdadeira intenção ou vontade das partes, isto é, qual o negócio que, efectivamente, queriam celebrar, se a venda ou um mútuo disfarçado de venda;
- esta posição, para nós pacífica, também o é para a melhor doutrina, transcrevemos:
“Advirta-se, em todo o caso, que o art. 394, se refere, apenas, às convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento, não excluindo, por conseguinte, a possibilidade de se provar por testemunhas qualquer elemento, como o fim ou o motivo por que a dívida documentada foi contraída ( Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil, anot., IV pág. 317), que nem é contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional a declaração (o sublinhado é nosso)” ( Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado, Vol.I, 4. Edição Revista e Actualizada, pág. 343 );
- a resposta encontra-se na própria base instrutória – facto 6 – dado como provado, onde se confirma que o que as partes, indubitavelmente, acordaram, foi uma autêntica venda a retro, ficando, até, acordado o prazo para a recorrente reaver a fracção em causa;
– o que a recorrente pretendia, com a dita venda como reconhece, de resto, a sentença que se recorre, era conseguir o dinheiro necessário para solver casos pontuais mas jamais desfazer-se do bem que utilizou para o negócio, isto é, da fracção "sob judice"; pormenor que faz toda a diferença;
- as partes não reduziram a escrito o que supra se diz, nos termos previstos no art.927, do C. Civil, mas a sua acção volitiva resultou provada - factos 11 e 13 - como se alcança do texto da sentença, isto é, a vontade das partes quanto ao negócio que queriam celebrar, totalmente contrário e, por isso, camuflado, com o que estavam a outorgar por escritura;
- a tese que vimos defendendo deveria merecer o acolhimento do tribunal, porquanto é pacífica e assim entendida pela a melhor Doutrina, que transcrevemos: "A venda 'a retro' pode servir interesses sérios e legítimos, como o daquele que, precisando de dinheiro, não queira, todavia, recorrer ao crédito, para não sentir o peso dos encargos (ou não ter, dizemos nós em atenção ao caso em apreço, capacidade de crédito por estar no seu limite ou por qualquer outra razão como o desemprego), e não queira, também, despojar-se definitivamente dos bens, conservando a esperança e o direito de os recuperar..."`. (Galvão Telles, BMJ, 83-134);
- consideremos, por mero exercício de raciocínio mas sem conceder, que o contrato celebrado é um contrato indirecto, tal não invalida a tese que vimos defendendo, ter-se querido uma verdadeira venda a retro, só reforçando, aliás;
- através do contrato indirecto, a parte mais forte, normalmente menos escrupulosa, também, pode sempre criar as condições ideais para que o devedor não consiga cumprir e, assim, de forma indirecta, locupletar-se como o bem dado como garantia;
- " A venda a retro poderá servir para obter um empréstimo hipotecário em que o credor fará sua a coisa vendida, no caso de o devedor não cumprir. Obter-se-ia, assim, uma fraude à lei, torneando a proibição legal do pacto comissório (art.694.). Poderá, igualmente, a venda a retro permitir a dissimulação de um contrato de mútuo com garantia real." (Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, 293).
- o tribunal entendeu e bem, o fim visado pelas partes, ao efectuarem o negócio em causa, porquanto deu como provados os factos a eles referidos (factos 9 a 17);
– o tribunal deu como provado e aceitou que, na génese do negócio de compra e venda, estava apenas, e tão-só, a necessidade da recorrente se financiar para solver as suas dívidas e, uma vez estas liquidadas, recuperaria a fracção, "desfazendo" o negócio, permita-se a expressão, como supra ficou dito;
- ainda assim, decidiu não considerar a vontade das partes, os motivos que determinaram a celebração de um tipo de negócio, que inferiam, mas disfarçado de um outro legalmente previsto, mas que jamais, quiseram, ao menos a recorrente como, desde início, deixou bem claro e os concorridos sabiam, de ciência certa;
- ao não considerar os motivos que determinaram o negócio, entendemos, salvo melhor opinião, que o tribunal não decidiu em conformidade coto os factos com que foi confrontado e que sustentam a tese defendida pela corrente, dando-os, aliás, como provados;
- não obstante terem sido respeitadas as formalidades exigidas para o negócio aparente, o tribunal tomou conhecimento de que o negócio em causa não foi abertamente concluído, isto é, preteriu-se uma formalidade "ad substantiam", porquanto não houve uma contradeclaração de reserva ou de ressalva, com os requisitos formais exigidos, o que postula a nulidade do negócio simulado, caso se considere que houve simulação mas, não se considerando a simulação, então o negócio dissimulado também é nulo, por vício de forma;
- foi produzida prova cabal, aceite pelo tribunal "a quo", pelo que dúvidas não subsistem de que este pôde verificar e confirmar, que o negócio dos presentes autos não foi aberto, faltando uma formalidade essencial, sem prejuízo de ter sido observado o formalismo legal;
– a observância da forma legal pode não ser suficiente para se concluir pela validade do negócio dissimulado se concluir, como supra se disse, que o negócio não foi abertamente celebrado, este sim, um requisito essencial;
- posição, para nós pacífica, também o é para a jurisprudência, que transcrevemos: I – O negócio real, mas dissimulado, deve ser tratado em conformidade com as normas que valem para a sua celebração aberta. II – E, assim, será válido se, nele, tiverem sido observados os requisitos de substância e de forma que, para o efeito, seriam precisos, se tal negócio tivesse sido abertamente concluído não sendo, pois, suficiente a observância da respectiva forma (RP, 13-12-1983; CJ, 1983, 5. °-229).
- este acórdão, de resto, vem no seguimento da melhor Doutrina aceite pelos Tribunais e que se transcreve: " Face ao disposto neste art. poderá o negócio latente ser plenamente válido e eficaz ou poderá ser inválido, consoante as consequências que teriam lugar, se tivesse sido abertamente concluído (Mota Pinto, Teoria Geral, 478). Resulta do teor do n.º 2 do art. que, se não se cumprirem no negócio simulado, os requisitos de forma exigidos para o dissimulado no negócio simulado, os requisitos de forma exigidos para o dissimulado, este será nulo por vício de forma, mesmo que se tenham observado as formalidades exigidas para o negócio aparente. Haverá um negócio latente válido, se as partes fizerem constar as declarações que integram o seu núcleo essencial de uma contradeclaração escrita (escrito de reserva ou (de reserva ou ressalva), com os requisitos formais exigidos para esse negócio. Se não existir essa contradeclaração, o negócio simulado é nulo por simulação (ob. cit., 478), o negócio dissimulado é nulo por vício de forma (ob. cit., 479).
- a venda foi o meio que os contraentes encontraram para atingir um fim - o mútuo - foi o necessário e não o negócio querido pelas partes.
Conclusões do recurso subordinado
- como a sentença refere a fls. 789, os factos 12 e 29 provam que a A. ficou obrigada a pagar todas as despesas da transacção e os Factos 26 a 28 provam que ao invés do acordado, foram os 1 °s. RR. que suportaram as despesas naquele montante de €3.741,76;
- o pedido do pagamento foi formulado em reconvenção, e a respectiva causa de pedir foi provada;
- a sentença recusou a condenação da A. no pagamento aos 1°s. RR. naquela importância com o fundamento de que esta obrigação não tem autonomia, por fazer parte do acordo global, mas não se pode concordar com esta decisão;
- os acordos ou contratos são compostos ou englobam obrigações e direitos que são distintos mas bem definidos entre si, como acontece neste caso e em tantos outros.
Por isso não se vislumbra nem fundamento de facto nem de direito para a A. não ser condenada a pagar os €3.741,76 C aos réus;
- os hipotéticos direitos que a A. possa vir a fazer vingar no futuro, não ficaram definidos nem quantificados. Mas o mais importante é que não formulou pedido de condenação dos Réus ao seu pagamento ou a qualquer cumprimento;
- não pode o Tribunal nesta sentença fazer a compensação dos créditos da A. com os créditos dos 1°s. Réus, porque ainda não são exigíveis, art.847, 1, a) do CC.
- a não condenação da A. no pagamento da quantia de €3.741,76 acrescida de juros à taxa legal até integral pagamento, violou o direito dos 1°s. Réus a obter uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado a sua pretensão, art. 2°, 1 e 2 do C. Civil e art. 20° da CRP.
- ao art. 6 da Base Instrutória não pode ser dada resposta positiva, porque as únicas testemunhas com conhecimento directo dos factos, declararam de forma a não permitir a sua prova;
- a matéria de facto referida neste art. está intimamente relacionada com a matéria constante dos art. 12 e 13 no que respeita à ficcionada compra e venda do prédio, sendo certo que o art. 12 foi dado como provado, excepto a expressão "ainda que fictícia ", ou seja, que o gerente ficou informado de que a compra e venda e o mútuo não eram verdadeiros;
- a única testemunha que falou com conhecimento directo dos dois contratos foi R, que esteve na reunião onde o gerente, a A. e a Ré M definiram os termos dos mesmos sem a obrigação desta à revenda posterior do imóvel àquela;
- o depoimento referido e o do gerente da C., são coincidentes quanto a esta matéria, e ninguém mais os contradisse nem podia contradizer porque não estiveram presentes na dita reunião, nem dos conteúdos dos contratos sabiam a não ser por ouvir dizer, o art. 6 não pode ser dado como provado;
- como não pode deixar de ser eliminada do art. 13 a expressão "... ou seja ficcionar uma compra e venda...", visto que no anterior quesito 12 também foi eliminado por não provado, facto referenciado ou descrito com expressão idêntica, ou seja, "ainda que fictícia ";
- para arredar de vez a ideia de que a A. é vitima, basta salientar que, se a compra tivesse sido feita conforme a sua versão, os RR., não sendo os proprietários do imóvel, já pagaram cerca de 40.000,00€ do empréstimo até agora, iriam pagar duas ou três vezes mais até ao trânsito, e sem garantia da sua recuperação por parte da A. que se vem mantendo em necessidade constante de apoio financeiro;
- a sentença não pode ser alterada como a recorrente A. propõe, mas haverá que ser alterada como os ora recorrentes justificam quanto à matéria de facto e a A. ser condenada a pagar-lhes a quantia de 3.741,76 € e juros legais.

Factos
A A., por escritura pública outorgada em 21 de Maio de 1998 adquiriu a plena propriedade da totalidade da fracção autónoma designada pela letra "G" que corresponde ao apartamento n.º 29, (A).
A aquisição da fracção a favor da A. já se encontrava registada a seu favor desde 1975, pela inscrição porquanto a A. havia já adquirido a nua propriedade em 9 de Fevereiro de 1974, sendo que, após a mãe da A. ter renunciado ao usufruto, a A. tornou-se então dona da totalidade da fracção em causa (B).
Em 30 de Julho de 2004, a A. celebrou com o CP dois mútuos com hipoteca: um no valor de 34.168,66 €, no Regime Geral de Crédito, e outro no valor de 48.000,00 € (C).
Para garantia do pagamento dos empréstimos acima referidos foram constituídas a favor do CP duas hipotecas sobre a aludida fracção autónoma, as quais foram devidamente registadas junto da Conservatória do Registo Predial (D).
Para além dos dois empréstimos hipotecários acima referidos a A. em 29/10/2004 contraiu igualmente um crédito pessoal junto do CP no montante de Euros 26.389,12 (E).
A A., a partir de Abril de 2006, ficou desempregada (1°).
No ano de 2006 o valor das prestações mensais dos empréstimos a pagar pela A ao Banco ascendiam a mais de €1.000,00 (2°).
A partir da data em que a A. ficou desempregada a mesma, começou a entrar em incumprimento no pagamento das prestações mensais devidas ao Banco (3°).
Em meados de Setembro de 2006 a A., como forma de solucionar os seus problemas financeiros, começou a ponderar a hipótese de arranjar uma pessoa da sua confiança que estivesse disposta a adquirir temporariamente a compra de metade da fracção acima identificada, ficando a mesma co-proprietária do imóvel supra identificado (4°).
No início de Novembro de 2006 a A. propôs aos 1°s RR, seus primos, como forma de obter financiamento que lhe permitisse solver as suas dívidas, celebrar com os RR. um contrato de compra e venda de metade da fracção, com recurso a crédito bancário, no âmbito duma, aparente, operação de crédito para aquisição de habitação (5°).
Ficou acordado entre a A. e os RR. que estes, passados três a quatro meses voltariam a celebrar um contrato de compra e venda de metade da fracção em causa, nos termos do qual a A. voltaria a adquirir a quota-parte de metade da aludida fracção (6°).
Mais ficou acordado que a A. suportaria todos os encargos decorrentes da celebração do contrato do mútuo que viesse a ser celebrado entre os 1°s RR. e a 2a Ré, tais como, prestações mensais do empréstimo, seguros da casa e IMI (7°).
Os 1°s RR concordaram com os termos da operação proposta pela A. (9°).
A A. e os 1°s RR. dirigiram-se em 23 de Novembro de 2006 à agência da 2° Ré sita, onde os 1°s RR tinham conta, para aí solicitarem um empréstimo bancário para adquirem metade da fracção em questão (10°).
Nessa reunião o gerente da citada agência da 2a R, Sr. V, afiançou que a C. não aceitava conceder financiamentos bancários na situação jurídica de compropriedade (11°).
Logo nessa reunião o dito gerente tomou conhecimento do plano que a A. e os 1°s RR. pretendiam levar a cabo, tendo informado que a operação pretendida só poderia ser levada a cabo caso a A. celebrasse um contrato de compra e venda sobre a totalidade da fracção em causa (12°).
Foi face a esta informação prestada pela gerente da 2a R. que a A. concordou, juntamente com os 1°s RR., em alterar o seu plano, ou seja ficcionar uma compra e venda já não sobre metade da fracção, mas sobre a totalidade da fracção em causa (13°).
No que diz respeito ao montante do financiamento a solicitar a A. e os 1°s RR.. acertaram que o valor a solicitar à 2ª Ré seria então de 120.000,00 Euros, por ser este o valor estimado para solver as dívidas da A. junto da Banco que se estimava em cerca de 110.000,00 Euros, sendo o remanescente utilizado pela A. para esta pagar todos os encargos decorrentes do contrato de mútuo (14°).
Em 28 de Dezembro de 2006, na Conservatória do Registo Predial, foram feitos os registos provisórios de aquisição e de hipoteca (F).
Entretanto, em 29 de Janeiro de 2007, em reunião na citada agência da C, na qual estiveram presentes, a A., a Ré M e o mencionado Gerente da C, foi dito ao Gerente da C que pretendiam afinal um empréstimo de 160.000,00 € (15°).
A ideia inicial da A. e dos 1°s RR. foi a de configurarem o aumento como empréstimo para obras (16°).
Mais tarde, todas as partes concordaram na alteração do valor do mútuo a conceder pela 2a Ré C no âmbito da operação de crédito e no valor que ficaria a constar como sendo o preço de aquisição (17°).
O Banco emitiu em 09/02/2007 uma nota de débito para liquidação dos empréstimos e (G).
Por a escritura ter sido adiada, a A. voltou a solicitar ao Banco uma nova declaração actualizada contendo o valor das suas responsabilidades, declaração que foi emitida em 26/02/2007 (H).
Foi a A. que em 27/02/2007 pagou o IMT relativo à venda da fracção(O).
A Autora não procedeu ao pagamento dos registos, os quais foram suportados pelos 1°s Réus (P).
Para além disso, os 1°s Réus liquidaram, também, antecipadamente, os custos de envio dos registos provisórios, pela Conservatória do Registo Predial, para a sua morada, (Q).
Os 1°s RR. pagaram as seguintes despesas referentes ao empréstimo e compra e venda: - Comissão de estudo bancário: € 190,00; - Comissão de avaliação do processo: €175,00;- Registos provisórios: € 421,63; - Pagamento ao Cartório Notarial € 1.678,13; - Pagamento à C. (outras despesas, comissões e impostos): € 1.277,00 (R).
A Autora comprometeu-se a reembolsar os ora 1°s Réus das despesas acessórias relativas à contratação, nomeadamente as referentes a emolumentos notariais e a registos (S).
Mais se comprometeu a ora Autora a tratar da documentação necessária e de todas as diligências relativas à aquisição (28°).
A escritura de compra e venda foi então novamente marcada para o dia 7 de Março de 2007, para as 9.00H (I).
Na véspera da escritura, em 6 de Março de 2007, a A. deslocou-se à agência da C sita na e entregou a declaração do capital em dívida emitida pelo Banco (J).
Na véspera da escritura em 6 de Março de 2007, na agência da C sita na, a A. entregou ao gerente, além da declaração do capital em dívida emitida pelo Banco, o NIB da sua conta de que a A. era titular junto da C, uma vez que o mesmo ao telefone lhe havia dito que não o encontrava (19°).
Antes da escritura, A. e 1°s RR. tinham acordado que o remanescente da quantia mutuada (47.011,23 Euros) seria entregue à A. por transferência bancária (20°).
Mais acordaram que, após a A. receber essa quantia, os 1°s RR, apresentariam à A. as despesas que tivessem pago em emolumentos notariais devidos pela celebração da escritura, os valores que estes pagaram com os pedidos de registo provisórios de aquisição e hipoteca, sendo que ficou ainda combinado que a A. lhes entregaria também a importância correspondente a cerca de três prestações que fossem devidas à C, fazendo assim o acerto de contas (21°).
Em 7 de Março de 2007, a A. os 1°s RR e ainda a C, 2a Ré, outorgaram na sede desta última, perante a Notária, a escritura de compra e venda e de mútuo com hipoteca (K).
Do dinheiro proveniente do contrato de mútuo, a quantia de €112.988,77 foi destinada para solver as responsabilidades da A. junto do Banco (L).
Após a celebração da escritura, não foi transferida para a conta bancária da A. o remanescente da quantia (M).
Em 8 de Março de 2007, a A. deslocou-se a casa dos 1°s RR. no sentido de apurar o que se estava a passar e para que estes lhes apresentassem as despesas que tinham suportado para que se fizesse o acerto de contas (22°).
A A. não entregou aos 1°s RR. a chave da fracção, nem tal lhe foi exigido pelos RR. (N).
A fracção autónoma em causa foi avaliada pela C em € 200.000, 00 (29°).
Houve contra alegações defendendo a manutenção da decisão
Corridos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento
II – Apreciando
Os recursos são balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
A lei consagra o princípio da prova livre – art. 655º do CPC – nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e responde segundo a prudente convicção que tenha formado acerca de cada facto da BI.
Só assim não será quando a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial que, nesse caso, não pode ser preterida.
Conforme ensina o Prof. A. Varela, “...as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que gerem realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto (Manual, 1984, pag. 455).
Assim, como regra geral, não pode o Tribunal da Relação alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, a menos que decorra algum dos casos excepcionais que vêm numerados no art. 712º do CPC.
Embora seja permitida a reapreciação dos elementos de prova constantes do processo, podendo a 2ª instância adquirir uma convicção diferente daquela a que chegou a 1ª instância, e expressá-la em concreto, alterando a decisão do tribunal inferior nos pontos questionados, quanto a nós, semelhante ampliação de poderes, não se impõe a realização de novo e integral julgamento nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
Na verdade, mantendo-se em pleno vigor os princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação das provas, e orientando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de absoluta certeza, o uso pela Relação dos poderes de alterar a decisão da 1ª instância acerca da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão nos concretos pontos questionados.
A acrescer a isto, há que ter em conta que o julgador não pode apenas ter em linha de conta este ou aquele depoimento, este ou aquele documento. Deve formular um juízo de valor sobre todos os meios de prova apresentados em juízo e, depois, ponderadamente, responder aos factos que compõem a matéria da base instrutória.
Não pode, porém, olvidar-se, ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da reprodução dos depoimentos produzidos, a apreciação e valoração destes continua a ser informada pelo regime da oralidade a que se mostram adstritos, entre outros, os princípios da concentração e da imediação, o que impede que o Tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do julgador, pois, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in “Manual de Processo Civil”, 2ª Ed., revista e actualizada, págs. 657), a propósito do “princípio da imediação”, «...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar...».
A pretendida alteração da matéria de facto pela apelante restringe-se à resposta ao art. 15.
O art. 15 tinha seguinte redacção: Entretanto, em 29 de Janeiro de 2007, a A. teve uma reunião na citada agência da C, na qual estiveram presentes, para além dela o dito gerente da C e a ré M, na qual a A. propôs aos 1ºs réus uma alteração ao plano de financiamento no que diz respeito ao montante de financiamento de que a mesma necessitava para solver todas as dívidas que passaria a ser de €160.000,00.
Este art. foi respondido da seguinte forma:
Provado apenas que, entretanto, em 29 de Janeiro de 2007, em reunião na citada agência da C, na qual estiveram presentes, a A. a ré M o mencionado Gerente da C, foi dito ao gerente da C que pretendiam afinal um empréstimo de €160.000,00.
Defende a apelante que a reposta ao art. 15 deve ser provado.
Fundamentou tal pretensão nos depoimentos das testemunhas I, L e N.
A I sabia por ter acompanhado a A. a encontrar uma forma de solucionar o problema que tinha em face do desemprego e os encargos financeiros e após o negócio tentou mediar a solução para este caso. Chegou a falar com os primos da A. A L é amiga da A. há mas de 30 anos e a última é a mãe da A.
Não há dúvida que o pedido de empréstimo inicial foi de €120.000,00, confirmado pelas testemunhas e documentalmente, e confere com a informação da C junta a fls. 238.
No entanto, também está provado que em 27 de Fevereiro tal montante foi aumentado para €160.000,00, num pedido dos réus escrito e dirigido à C sendo que nesse escrito se justificou tal alteração com o aumento para obras, no montante e €40.000,00.
Mas, esta versão não ficou provada e também não resultou provado que tivesse sido o gerente da 2ª ré a propor esse montante. Na escritura apareceu como valor da venda € 160.000,00.
Da prova dos autos quer testemunhal quer documental podemos concluir que o valor do empréstimo teve em vista assegurar à A. o necessário para pagamento dos seus encargos. Ou seja, tinha de liquidar os empréstimos que tinha e liquidar as despesas correntes enquanto não estivesse empregada. Só assim se entende que tivesse entregue o seu NIB na C, e aceitou que suportava todas as despesas com a compra, avaliação, registos e demais despesas do processo bancário que competem sempre a quem compra. Como justificar o pagamento por parte da A. do IMI?
E que razão estava subjacente ao obrigar-se a pagar todos os encargos com o empréstimo e registos, quando essas despesas ocorrem sempre por conta de quem compra. Nem os apelados de forma alguma tentaram justificar, aliás no recurso subordinado continuam a pedir o pagamento em face da prova das despesas.
A declaração de que tal montante se destinava a obras, foi a forma encontrada para justificar o aumento do montante do empréstimo.
Aliás, a primeira tentativa de obter o empréstimo pretendido foi vender apenas metade da casa para os primos conseguirem o empréstimo. Como não conseguiu concretizar tal pretensão naquela agência bancária declarou vender a totalidade da casa,
para obter o referido empréstimo. Algumas testemunhas referiram que tal seria possível noutra agência. Era duvidoso, pois a autora tinha uma hipoteca sobre aquela fracção. E, as condições pessoais e económicas da autora não eram propícias a tal deferimento.
E, nas circunstâncias que os autos relatam, a autora qual condenado “à morte” por asfixia financeira e desempregada viu uma oportunidade para o seu problema acreditando na família núcleo fundamental e qualquer sociedade estruturada e acreditou em quem podia confiar, na sua opinião. Vendia aos primos assumindo todas as despesas, para poder readquirir o mesmo. Uma irmã do réu confirmou também ter conhecimento destes factos contados pelo irmão.
E, a ser verdade o que os réus defendem, ficamos perante uma venda usurária. Ou seja, umT2 com 103m2 avaliado em 6.12.2006 em €305.600,00, para venda imediata com o valor de €275.040,00, cf. fls. 95 a 98, foi adquirido por €112.988,77. Na verdade, se como declararam por escrito os €40.000,00 eram para obras, nunca podiam ser atribuídos ao valor da compra do imóvel. Mas, também é verdade que a A. apenas recebeu o montante da hipoteca para a liquidar no valor de €112.988,77, no Banco. Ou seja, os réus com o montante do empréstimo de €160.000,00 pagaram à autora apenas o distrate da hipoteca e arrecadaram o restante. A autora ficou sem a fracção em causa recebendo apenas €112.988,77, seguramente que a autora não acordava nos termos em que o fez com a possibilidade de tal acontecer. Aliás, mantendo-se esta situação estamos perante uma conduta que atenta à boa fé contratual e aos bons costumes.
Assim a resposta dada deve ser mantida em face da prova que consta dos autos, quer testemunhal quer documental. Ou seja, a autora declarou vender a fracção por €160.000,00. Sabendo-se que está provado também que pretendia novamente readquirir a propriedade da mesma.
Por outro lado, os réus pretendem a alteração das respostas aos art. 6 e 13.
Ficou acordado entre a A. e os RR. que estes, passados três a quatro meses voltariam a celebrar um contrato de compra e venda de metade da fracção em causa, nos termos do qual a A. voltaria a adquirir a quota-parte de metade da aludida fracção (6°).
Foi face a esta informação prestada pela gerente da 2a R. que a A. concordou, juntamente com os 1°s RR., em alterar o seu plano, ou seja ficcionar uma compra e venda já não sobre metade da fracção, mas sobre a totalidade da fracção em causa (13°).
Não é verdade que as demais testemunhas não tivessem conhecimento directo dos termos dos negócio celebrado entre a Autora e os Réus, ou que não tenham assistido a quaisquer negociações.
Os art. 6 e 13 tendo em conta o depoimento da testemunha I explicou que era intenção da autora e sempre foi a de manter a casa, não queria desfazer-se dela e que a solução que a Autora encontrou foi tentar que alguém ficasse, temporariamente com a propriedade da casa, contraísse um empréstimo em asseguraria todos os encargos com o empréstimo, pagando as dívidas que tinha. Esta testemunha, após a escritura de compra e venda contactou os 1 RR. e tentou mediar uma composição amigável do litígio, e falou por diversas vezes a Ré M, sendo que esta testemunha confirmou que a Ré não negou pelo contrario, confirmou os termos do acordo que havia sido entre autora e os 1º RR. no que diz respeito à recompra da casa por parte daquela, tendo inclusivamente a Ré afirmado que já estava arrependida de ter feito o negócio com a Autora.
E, voltariam a celebrar um contrato de compra e venda sobre metade da fracção em causa e depois sobre a totalidade conforme consta do facto 16 constante da sentença – resposta ao quesito 1 da base instrutória – os depoimentos prestados pela testemunhas L e da mãe N.
A testemunha T prima da autora e irmã do réu J, disse que teve conhecimento pelo irmão lhe contou que ia ajudar a prima a manter a casa.
A resposta ao quesito 13, é de manter-se na íntegra, não existe qualquer contradição entre a resposta dada a este quesito e a resposta dada ao quesito 12.O gerente da 2ª Ré a autora, com os 1º RR, acabaram por concordar em alterar o seu plano, ou seja, em ficcionar a compra e venda já não sobre metade da casa, mas sobre a totalidade da fracção em causa. Não se provou que tivesse sido o gerente da 2ª ré a propor às partes que ficcionassem a venda da totalidade da fracção. Na verdade não sendo possível a venda de metade e ficar em compropriedade para obterem o empréstimo acordaram vender a totalidade mas sempre com a ideia de a readquirir. Seguramente não aceitava vender pelo valor da hipoteca, uma vez que era essa situação limite que tentou evitar a todo o custo. No entanto, os autos relatam em matéria factual uma situação pouco diferente ou talvez pior.
Em suma, em face do exposto, não procede a requerida alteração da matéria de facto.
Pretende a autora com a presente acção, para além do mais, que seja declarada, a nulidade do contrato de compra e venda da fracção designada pela letra "G", correspondente ao apartamento nº 29, , por simulação absoluta de tal contrato;
b) ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR. J e M e de quaisquer outros posteriormente levados a efeito;
c) e a A. fosse declarada como mutuária no contrato de empréstimo celebrado entre os RR.
A autora fundamentou a acção na simulação do negócio e concluiu pela sua nulidade.
Na decisão impugnada julgou – se a acção improcedente com tal fundamento.
Nas alegações vem defender que houve uma venda a retro e a sentença violou o art. 927º e segs. do Cód. Civil, por não admitir que o fim do contrato como venda a retro era servir de contrato dissimulado de contrato de mútuo com garantia hipotecária.
A venda a retro prevista no art. 927º citado como a compra e venda em que se reconhece ao vendedor a faculdade de resolver o contrato, é incompatível com a existência de um contrato dissimulado de mútuo com garantia hipotecária.
Ora antes de mais, no caso em apreço não há qualquer simulação, mas apenas uma contrato de compra e venda formalmente válido e regular em que a vontade das partes não diverge da vontade ali declarada.
Tal como ensina o Prof. A. Varela, in Das Obrigações em Geral, I vol., 2º ed. pág. 267, a venda a retro assenta sobre uma condição potestativa resolutiva. Aquele tipo de compra e venda implica a faculdade de resolução da venda anterior por simples declaração de vontade do vendedor, obrigando por isso à entrega do preço primitivo e determinando a caducidade dos direitos entretanto constituídos sobre a coisa.
Esta figura jurídica que o Código Civil de 1867 havia abolido por encobrir, em regra, um contrato de usura, funcionando a possibilidade de rescisão como garantia da obrigação excessiva, veio a ser admitida no Código Civil de 1966. Entendeu-se então que a mesma pode servir interesses sérios e legítimos como o daquele que, precisando de dinheiro, não queira todavia recorrer ao crédito, para não sentir o peso de encargos, e não queira também despojar-se definitivamente dos bens, conservando a esperança e o direito de os recuperar. Procurou-se, porém, com o disposto no art. 928º do mesmo código, evitar que o comprador receba qualquer contrapartida da resolução.
Desta forma, a venda a retro tem por detrás de si uma condição resolutiva que, geralmente, é constituída pelo cumprimento de um contrato de mútuo em que o vendedor é o mutuário funcionando o cumprimento ou reembolso como condição de resolução.
Daí que não pode considerar-se ter havido uma venda a retro não houve condição resolutiva o pagamento pela vendedora do reembolso das importâncias provenientes de um contrato de mútuo e hipoteca.
Daí que o alegado contrato de mútuo esteja para além do contrato de compra e venda ou de venda a retro embora ambos possam estar numa relação de conexão.
E mesmo a proibição prevista no art. 928º do mesmo código de se estabelecer cláusulas de entrega de dinheiro ou outra vantagem ao comprador como contrapartida da resolução não está aqui em causa. E se estivesse apenas tinha por consequência a nulidade dessa cláusula, mas mantendo a validade do mais contratado.
O problema que se coloca aqui consiste na interpretação da declaração negocial.
Há que recorrer ao disposto no art. 236º do Cód. Civil segundo a qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não poder razoavelmente contar com ele. E continua aquele dispositivo que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Por seu lado, tratando-se de negócio formal, o art. 238º do mesmo código estipula que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Além disso, na interpretação daquela declaração há que atender a todas as circunstâncias do caso concreto, todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.
Fazendo a aplicação destes conceitos ao caso dos autos, podemos dizer que se encontra provado a realização de uma escritura de compra e venda. Daqui se pode concluir que o que ficou apurado foi a compra e venda com hipoteca, pois a venda a retro não é mais que uma forma daquele contrato típico.
Fazendo apelo aos factos apurados – declaração negocial expressa de compra e venda e aos demais factos provados – no sentido de que o ali comprador e mulher ao celebrarem aquele negócio com a vendedora e que a outorga daquele negócio serviu para garantir aquele empréstimo.
Com efeito, a venda a retro como acima referimos é a forma de compra e venda em que é estipulado o direito do vendedor a resolver o contrato. Essa faculdade está, em geral, ao serviço da finalidade de garantir um empréstimo. O adquirente esperaria pela resolução ou não para então proceder ao registo ou não conforme não houvesse ou houvesse resolução. Mas há outro argumento mais decisivo.
O nº 1 do art. 238º citado prescreve que tratando-se de negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Daqui resulta que nunca poderia ser interpretada a declaração negocial de compra e venda como de hipoteca, pois estando esta sujeita a forma especial – escritura pública, nos termos do art. 80º, nº 2 al. g) do Cód. do Notariado – nenhuma correspondência havia no texto que, mesmo que imperfeitamente, correspondesse à pretendida vontade real.
A natureza jurídica de ambos os institutos jurídicos é de tal modo diversa que nunca uma compra e venda poderia traduzir, sem mais, a vontade de dar de hipoteca, pois a declaração bilateral de compra e venda não contém o mínimo de correspondência com uma declaração unilateral de dar de hipoteca.
Também, sendo o mútuo pretendido um negócio formal – art. 1143º do Cód. Civil -, nunca a declaração de compra e venda poderia valer como de mútuo, por igualmente nenhuma correspondência ter o texto declarado com a pretensa vontade de celebrar o empréstimo.
Fica-nos a declaração de compra e venda com a intenção de garantir um mútuo celebrado autonomamente, ou seja, a forma de compra e venda a retro, cuja consolidação se tem de aceitar em face do tempo decorrido e o disposto no art. 929º do Cód.Civil.
Ainda poderíamos ver a questão de outra forma: provando-se a declaração notarial de compra e venda, teriam a autora o ónus de provar que as partes quiseram celebrar outro negócio, ou não quiseram celebrar nenhum. A autora alegou agora que quiseram celebrar uma venda a retro, ou subsidiariamente, um mútuo com hipoteca.
A autora não provou a celebração deste último negócio, por a tal se opor a regra do art. 238º, nº 1 mencionada, como já vimos. Não se provou que as partes quiseram celebrar a venda a retro, o que faz com que não proceda o pedido da autora com este fundamento. Se entendemos que na falta de prova da cláusula de resolução, se não pode concluir que as partes quiseram a venda a retro, fica a compra e venda declarada, pois os réus também não provaram que as partes não quiseram celebrar nenhum negócio, ou não quiseram celebrar a compra e venda sob qualquer forma e tinha aqueles o ónus de provar tal ausência de vontade, como facto extintivo do direito.
O art. 241º mencionado trata da validade do negócio dissimulado, em caso de simulação relativa.
Ora no caso dos autos em lado algum se colocou a questão da ter havido simulação, mas apenas uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada numa escritura de compra e venda.
Ao interpretar o referido negócio de compra e venda como venda a retro está a atribuir àquele um pacto comissório proibido pelo art. 694º do Cód. Civil.
O art. 694º do Código Civil prescreve que é nula, mesmo que anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir.
Ora no caso dos autos, foi constituída hipoteca, mas não uma venda a retro que é legalmente admitido, como já acima referimos.
E com a finalidade de moralizar a utilização destes institutos – tentando evitar situações de usura – existe o disposto no art. 928º do Código Civil, que proíbe a estipulação de pagamento de dinheiro ao comprador ou qualquer vantagem para este como contrapartida da resolução
O art. 334º do Código Civil regula o conhecido instituto jurídico do abuso de direito, no qual se torna ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Vejamos se vem provada a simulação
Dispõe o art. 240, nº 1, do Código Civil (diploma a que se reportam as mais disposições legais referidas sem menção de origem), que se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
Da leitura deste preceito legal resulta que a simulação consiste intencional entre a vontade real e a declaração negocial, procedente de acordo entre o declarante e o declaratário, determinada pelo intuito de enganar terceiros.
1 - Veja-se, na doutrina, entre outros, Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, página 168 e segs. e Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3a edição, página 471 e segs.
Na jurisprudência, entre muitos outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.04.93 e 04.03.97, in C. J., Ac6rdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, pag. 61 e ano V, tomo I, pag. 121, e do Tribunal da Relação do Porto, de 08.03.90, in c. J., ano XV, tomo II, pag. 206.
Ou seja, sabem que a declaração emitida é diversa da sua vontade real, querem, ainda assim, emiti-la nestes termos.
Exige-se ainda que, por um lado, esta divergência entre a vontade e a declaração resulte de acordo entre declarante e declaratário – pactum simulationis – e, por outro lado, seja feita com o intuito de enganar terceiros. Ac. STJ, 30.5.95, CJSTJ, ano III, tomo II, pag. 118.
Daqui resulta que o intuito de enganar ou iludir – animus decipiendi – é elemento constitutivo da simulação, não se exigindo, contudo, o intuito de prejudicar – animus nocendo – ou seja, de causar um dano ilícito.
A simulação é a principal modalidade de divergência entre a vontade real e a vontade declarada.
Por simulação entende-se o acordo (ou conluio) entre o declarante e o declaratário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganarem terceiros.
O art. 240, nº1, do C.C., exige três requisitos para que haja simulação:
- divergência entre a vontade real e a vontade declarada;
- acordo simulatório;
- intuito de enganar terceiros (animus decipiendi).
Com a intenção de enganar terceiros pode ou não cumular-se a de prejudicar outrem (animus nocendi).
Quando, além da intenção de enganar, haja a de prejudicar, a simulação diz-se fraudulenta.
A lei portuguesa supõe a classificação entre simulação absoluta e relativa no art. 241º, sob a epígrafe “simulação relativa”.
Trata-se de uma nulidade atípica (neste sentido, Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil” cit., pág. 845). A atipicidade deriva do facto dos simuladores não poderem invocar a simulação contra terceiro de boa fé (art. 243º, nº1).
O art. 241º do Código Civil estatui:
1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.
Temos de concluir que não houve simulação a A quis vender e os réus comprar para obterem o empréstimo.
Mas, houve um negócio usurário sem dúvida. Os réus adquiriram um andar de valor superior a €200.000 pelo montante da hipoteca que foi paga. A diferença do montante obtido não foi entregue à autora como tinham acordado. Aliás, eles declararam que o restante era para obras, o que não provaram. A ser verdadeira essa versão, ficavam com um andar por €120.000,00.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, "usurário é aquele que explora certas situações em que outra pessoa se encontra, para dela obter, em proveito próprio ou de terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados" (in Código Civil Anotado, Volume I - 4ª edição -, pág. 260).
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos, o art. em apreciação exige um requisito objectivo - o desequilíbrio excessivo ou injustificado -, um requisito subjectivo atinente ao lesado - a inferioridade -, e, ainda, um requisito subjectivo atinente ao usurário - a exploração reprovável.
Para este A., o requisito objectivo verifica-se "quando a relação valorativa entre as prestações revelar um desequilíbrio que exceda os limites normais dos padrões típicos de valor vigentes no mercado e quando não haja uma causa justificativa atendível para esse desequilíbrio".
Já em relação ao requisito subjectivo, refere que é necessário que o lesado, ao celebrar o negócio, se encontrasse num caso de inferioridade negocial caracterizado daquela maneira, devendo, para tanto, o intérprete discernir a ratio legis, o sentido que está subjacente ou imanente naquela abundância verbal e sindicar se o lesado da usura estava numa situação de inferioridade negocial tal que dessa inferioridade resultasse para ele a inabilidade para compreender o mau negócio que fazia ou para evitar fazê-lo", sendo também imprescindível sindicar a causalidade desta inferioridade em relação ao negócio e ao seu desequilíbrio.
Finalmente, em relação ao requisito subjectivo relativo ao usurário, sublinha que a lei exige que haja um aproveitamento consciente e intencional da vantagem comparativa em que o usurário se encontra perante o lesado, ou seja, "é necessário que o usurário saiba que a sua vítima está numa situação de inferioridade, com discernimento ou liberdade diminuída, que ele próprio está numa correspondente situação de superioridade" (in Teoria Geral do Direito - 2ª edição -, pág. 462 e ss.).
Dispõe o artigo 282º, n.º 1 do Código Civil que "É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados".
O negócio usurário só existe quando se verifiquem, cumulativamente, os respectivos requisitos subjectivos (a exploração de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem) e objectivos (benefícios excessivos ou injustificados) - neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/01/1994, Processo n.º 0076721, N.º Convencional JTRL00013813, in www.dgsi.pt e Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra Editora, pág. 532.
Estes requisitos são integrativos da causa pedir do direito invocada pela Autora. Assim, a invocação do direito tem de ser feita através da alegação de factos descritivos concretos.
Por um lado, tem de haver benefícios manifestamente excessivos ou injustificados, isto é, tem de haver uma desproporção entre as prestações, que, segundo todas as circunstâncias, ultrapasse os limites do que pode ter alguma justificação. O critério do dobro do valor parece ser o limiar, a partir de cuja ultrapassagem se vai averiguar a existência das demais circunstâncias objectivas e dos requisitos subjectivos da usura.
Por outro lado, devem igualmente verificar-se requisitos subjectivos, a saber: a exploração e uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter. Esta situação de necessidade não se verifica sempre que o sujeito tem uma necessidade a satisfazer, constituindo sim "uma situação de forte temor ou receio ocasionada por um perigo grave de origem natural ou proveniente de um facto humano, como, por exemplo, alguém ameaçado de perder a vida num naufrágio faz promessas a outrem para o salvar" (vide Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 278).
Os negócios usurários, regulados nos art. 282º ss., pertencem aos negócios jurídicos com conteúdo desaprovado pela ordem jurídica e isto em virtude do desequilíbrio das prestações neles acordadas devido à inferioridade de uma das partes. Quer dizer, em termos sistemáticos é correcta a sua colocação na lei. No entanto, a sanção cominada é, ao contrário dos negócios abrangidos pelos art. 280º e 281º, apenas a anulabilidade. Esta sanção é inadequada. Contudo, sucede com frequência que um negócio com as características aparentes de um negócio usurário pode ser qualificado como sendo contrário aos bons costumes, de modo que se aplicam as regras do art. 280º, nº 2.
Determina o art. 282º que são anuláveis, por usura, os negócios jurídicos quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
O requisito da excessividade ou injustificação do benefício refere-se ao objecto material do negócio; assim se explica o enquadramento sistemático dado pelo legislador ao instituto da usura.
A situação de necessidade abrange os casos de penúria económica, mas não se esgota com eles; a necessidade pode apresentar-se sobre os mais variados aspectos, que serão de considerar em cada hipótese.
No nosso antigo direito admitia-se a rescisão dos contratos comutativos por lesão enorme. E escreveu Coelho Rocha: Diz-se haver lesão nos contratos comutativos todas as vezes que uma das partes não recebe o equivalente daquilo que dá.
O código de 1867, imbuído do princípio da liberdade contratual, aboliu a acção de rescisão por lesão.
A controvérsia que, através dos séculos, tem suscitado a admissibilidade desta causa de anulação do negócio jurídico, mergulha as suas raízes na contrariedade de razões igualmente válidas: para a não admissibilidade, o princípio da estabilidade do contratos, o da segurança jurídica, o reconhecimento das exigências do comércio; para a solução oposta, o princípio da protecção dos mais fracos e outros de humanidade e caridade – Das Relações Jurídicas, do Cons. Rodrigues Bastos, pag 200 e seg.
E continua… O texto legal vigente é de aplaudir, integrando-se harmonicamente na economia do diploma, que em boa hora tão larga aplicação manda fazer dos princípios da equidade e boa fé negocial.
No mesmo sentido Mota Pinto, na Teoria Geral do Direito Civil, pag 534 seg.- O DL 262/83, de 16 de Junho, alterou a redacção do art. 282/1 deixando de fazer referência a «benefícios manifestamente excessivos ou injustificados».
Ora, a conclusão perante os factos provados tem de ser positiva. A autora desempregada e sem possibilidade de satisfazer os compromissos de vários empréstimos procurou uma solução e após várias hipótese ponderadas acordou com os primos vender metade da casa para obter um empréstimo e não deixar que a hipoteca existente fosse executada a curto prazo. Quando informada de que tal não era possível, confiando na família e nos laços familiares existentes acordou e concordou vender aos primos, para obterem um empréstimo com um valor superior à dívida existente e solver os seus compromissos financeiros. Estes factos eram do conhecimento dos réus que acordaram no negócio nesses termos atenta a proximidade familiar das partes e o estado de extrema necessidade da autora que estava desempregada e sem recursos para fazer face aos encargos assumidos com os empréstimos que tinha contraído.
Vem nos factos assentes que ela se comprometeu a pagar as prestações do empréstimo e todas as despesas de avaliação e processo bancário para o deferimento da hipoteca. Tanto assim, que foi ela que liquidou o IMI, imposto que é devido sempre e só pelo comprador.
Como se sabe o vendedor nunca assume esses compromissos que são encargo do comprador. Compreende-se que no caso vertente ela os tenha assumido, para de alguma forma tornar menos onerosa a intervenção dos primos, que lhe estavam a prestar um favor de importância vital, naquele momento da sua vida. Vem provado que estava desempregada. Os primos sabiam e acompanharam o desenrolar de toda a situação e fizeram-no numa atitude solidária para com ela. Aliás, conheciam a situação e alegaram que já lhe tinham emprestado dinheiro que pediram nesta acção, mas não ficaram provados.
Também é verdade que a A. não soube acautelar a sua situação, o que se pode entender, em face da sua situação de desemprego e a sua incapacidade de solver as dívidas, de alguma forma numa situação de dependência pelo menos financeira, teve de aceitar o contrato como lhe propuseram ser a melhor forma. E, confiou nos familiares, que sabiam da sua situação económica numa fase em que não podia nem conseguia sozinha obter um empréstimo sobre aquele imóvel nem tinha acesso a outras formas de solver as dívidas, quis acima de tudo evitar a venda em hasta pública da sua casa.
Sempre se podia dizer que a culpa foi dela que não devia colocar-se em tal situação. No entanto, a situação de desemprego não consta que tivesse assumido a decisão de deixar o seu emprego. Aguardava a curto prazo celebrar novo contrato de trabalho, facto que era do conhecimento de todos.
Como se sabe a situação de desemprego acarreta a cada um que por tem na sua vida activa essa experiência uma angústia enorme. Pelo inesperado e acima de tudo pelo desconhecimento do que o espera, no futuro próximo, é para o próprio o desabar do seu mundo. Há estudos feitos que é uma das causas mais frequentes que levam a um estado de depressivo e por vezes com sequelas mais graves que levam a falta de objectividade e até energia para lidar e resolver os problemas que surgem.
Aliás, perguntamos que sentido fazia vender a casa pelo valor da hipoteca (único valor que lhe foi entregue) sempre podia fazer uma venda a qualquer pessoa, e receber um valor mais próximo do valor que constava da avaliação. E os apelados não esclareceram nem justificaram porque razão a A. aceitou ficar responsável por todas as despesas, que continuam a pedir e pagaram para celebrar a escritura de compra e venda com hipoteca.
A A. nunca quis vender verdadeiramente a casa. Mas podemos assegurar que se esse facto fosse pelo menos equacionado a A. não tinha assinado a venda sem acautelar a sua intenção de não vender pelo preço que ficou a constar. Na verdade, ela tentou após esta escritura regularizar a situação com os primos que deixaram de a receber. E, como interpretar o acto de não ter entregue as chaves da casa? Qualquer pessoa que compra tem as chaves do imóvel que compra, mas não tendo ainda, seguramente que no acto da escritura são entregues. No caso vertente, os réus ocuparam a casa e nunca mais a A. teve qualquer acesso. E não pediram as chaves. A ser verdadeira a sua versão deviam ter combinado com a apelante um dia ou estipular um prazo para ela poder retirar o recheio. Não constava nem foi alegado que o recheio da mesma estivesse incluído nesta venda. O que se entende, em face da intenção que esteve subjacente a este acordo de solver as dívidas e nunca a venda, com o recheio.
O art. 282º implica uma limitação ao princípio da liberdade contratual no que respeita à liberdade de fixação do conteúdo do contrato.
A finalidade dos art. 282º ss é, por conseguinte, a protecção de pessoas caracterizadas ou afectadas por certas situações de inferioridade contra quem pretenda daí tirar benefícios excessivos e injustificados. Deste modo, a finalidade dos arts. 282º ss. é a de um correctivo material de índole social.
Exige-se, como requisito da anulabilidade, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém.
A anulabilidade não resulta, portanto, apenas dum daqueles estados. É necessário que haja a consciência (conhecimento) de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem. Só assim o negócio pode ser havido corno usurário.
E, é necessário que a situação de inferioridade de uma das partes tenha sido aproveitada pela outra para alcançar a promessa ou a concessão de um benefício, em proveito desta ou de terceiro. E, por último, exige-se ainda que estes benefícios sejam manifestamente excessivos ou injustificados - determinação que fica entregue, caso por caso, ao prudente critério do julgador.
No caso vertente estão verificados estes dois requisitos na matéria de facto que foi dada como provada. Por um lado, o estado de necessidade da autora, em face da sua penúria económica e sem alternativas, conforme depôs a solicitadora amiga dela, que não conseguiu encontrar uma solução para a sua situação, apesar de o ter tentado durante algum tempo e como referiu alertou-a para o perigo da solução encontrada. E, por outro lado, a forma como os réus se aproveitaram para ficar com a casa da autora por um valor irrisório ficando com benefícios em seu proveito, pois seria impensável adquirirem tal imóvel pelo valor que como vimos foi e apenas o valor da hipoteca €112.988,77.
Não podiam, ter assumido a posição de nada quererem saber, nem conversar após a celebração da escritura de compra com mútuo e hipoteca. Ignoraram a autora e ocuparam a casa sem lhe entregarem o recheio, sendo certo que não foi acordado nem tal consta na matéria de facto. A solidariedade demonstrada com a celebração do contrato de compra e venda desapareceu de imediato após a sua assinatura. Sendo anulável a venda ficamos com um vício intrínseco do negócio e, portanto contemporâneo da sua formação. Não se produzem os efeitos jurídicos a que o negócio jurídico tendia. Há lugar à repristinação da coisa no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado.
Para além disso, o legislador de 1966 usou a palavra usura para identificar um vício do negócio, que partilha elementos relativos à vontade e ao objecto. Neste sentido, os art. 282.° a 284.° constituem uma inovação no direito português.
Concluindo
1.É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência psíquica de outrem, obteve deste, para si ou para terceiro, a promessa ou concessão de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados.
2.Para que o negocio jurídico seja anulável por usura e necessário que para alem do elemento objectivo – grave desproporção entre as prestações dos contraentes – concorra o elemento subjectivo, ou seja, o aproveitamento consciente por uma das partes ou por terceiro, de uma situação de necessidade, da experiencia, dependência ou deficiência psíquica ou ligeireza da outra parte
3. A consciência de explorar a situação de inferioridade resulta da manutenção da actividade usurária durante anos, das quantias envolvidas e do resultado obtido, com venda da casa em vez da oportuna constituição de adequada garantia.
4. Sendo anulável a venda ficamos com um vício intrínseco do negócio e, portanto contemporâneo da sua formação. Não se produzem os efeitos jurídicos a que o negócio jurídico tendia. Há lugar à repristinação da coisa no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado.

III – Decisão: em face do exposto, julga-se:
1. procedente a apelação, declarando-se a nulidade do contrato celebrado entre as partes com a obrigação de repristinação no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado.
2.improcedente o recurso subordinado.

Custas por pelos A. e réus na proporção de 1/3 e 2/3 respectivamente.

Lisboa, 15 de Abril de 2010

Catarina Arêlo Manso
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins