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CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
PENA ACESSÓRIA
Sumário
O condutor que pratique um crime de condução de veículo sem habilitação legal previsto no artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de Janeiro e incorra simultaneamente na prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto no art.º 292.º, do Código Penal, deve ser condenado também na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no art.º 69.º, n.º 1, deste diploma, a despeito de não estar legalmente habilitado a conduzir veículos com motor.
Texto Integral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
* 1. Relatório
1.1. Nos presentes autos de processo sumário que correram termos no 2.º Juízo, 3.ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi à arguida A… imputada a prática em concurso real de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.° do Código Penal, em conjugação com o disposto no art. 69.°, n.° 1, al. a), do mesmo diploma legal e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.°, n.°s 1 e 2, do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de Janeiro.
Realizado o julgamento, veio a ser proferida em 12 de Fevereiro de 2010 sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, declaro procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência: a) Condeno a arguida A…, pela prática, e em concurso real de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), e pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de multa de 70 (setenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros), operando o cúmulo jurídico, de harmonia com o disposto no art. 77.° do Código Penal, julga-se adequada a pena única global de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante de € 500,00 (quinhentos euros), susceptível de conversão em 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária (art. 49.° do Código Penal); b) Condeno a arguida em 2 UC's de taxa de justiça, reduzida a metade em virtude da confissão (cfr. arts.° 344.°, n.° 2, alínea c), 513.° e 514.° do Código de Processo Penal e art.° 8.°, do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo de lhe ser concedido apoio judiciário, e nos demais encargos, englobando honorários.”.
1.2. A Digna Magistrada do Ministério Público interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar a respectiva motivação, as seguintes conclusões:
“1. Conforme resulta do disposto no art°. 69° n°. 1 do C. Penal, "É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: al. a) Por crime previsto nos art°s. 291° ou 292°".
2. A pena acessória de inibição de conduzir tem como finalidade a prevenção da perigosidade do agente do ilícito, o qual, com a sua conduta põe em perigo a vida ou a integridade física dos demais utentes da via pública;
3. Tal pena acessória é de aplicação obrigatória mesmo nos casos, como o "sub judice", em que o agente que cometeu o crime de condução de veículo em estado de embriaguez não está, à data dos factos, habilitado a conduzir.
4. Não pode ser considerado destituído de qualquer utilidade, aplicar a pena acessória de inibição de conduzir ao agente condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez que, igualmente, não está habilitado a conduzir, já que este pode vir a obter a respectiva carta de condução, durante o período em que a pena acessória poderá ser executada por ainda não se encontrar prescrita.
5. Ao não condenar o agente que praticou os crimes de condução ilegal e de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena acessória de inibição de conduzir, pelo facto de este não ser titular de carta de condução, coloca-o em situação desigual face a outro agente que é condenado por este último crime, encontrando-se habilitado a conduzir, o que gera uma situação de injustiça relativa.
6. Portanto, ainda que o arguido não esteja habilitado com a necessária carta de condução deve aplicar-se a pena acessória de inibição de conduzir prevista no art°. 69° do C. Penal no caso de o mesmo ser condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez p.p. pelo art°. 292° do C. Penal.
7. Ao não aplicar ao arguido tal sanção acessória, a douta sentença recorrida violou o disposto no art°. 69° n° 1 al. a) do C. Penal, pelo que deverá ser substituída por outra que aplique tal pena acessória.”
1.3. A arguida não apresentou resposta à motivação.
1.4. O recurso foi admitido por despacho de fls.38.
1.5. Uma vez remetido o mesmo a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto subscreveu a motivação do Ministério Público na 1.ª instância.
1.6. Foi proferido despacho preliminar.
Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
* 2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação - artigos 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal -, a única questão que incumbe a este tribunal apreciar consiste em saber se deve a arguida ser condenada na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69.º, n.º 1, do Código Penal, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto no artigo 292.º do Código Penal, a despeito de a mesma não estar legalmente a habilitado a conduzir veículos com motor.
* 3. Fundamentação
3.1. De facto
Os factos materiais relevantes para a decisão da causa foram fixados pela sentença recorrida nos seguintes termos:
«[...] Apreciada a prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos, com relevância e pertinência para a boa decisão da causa: 1. No dia 12 de Fevereiro de 2010, pelas 04h25m, a arguida seguia ao volante do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula 00-00-00, na Avenida da Índia, em Lisboa; 2. A arguida foi sujeita ao exame e pesquisa de álcool no sangue, pelo método do ar expirado, no aparelho Drãger, modelo 7110 MKIII; 3. Tendo acusado uma TAS de "1,72 g/1"; 4. No referido dia e em momento anterior à prática de condução a arguida havia ingerido bebidas alcoólicas, nomeadamente várias doses de vinho tinto e caipirinha; 5. A arguida sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas e que isso afectava a sua capacidade de destreza e atenção para o exercício da condução, tendo admitido, e pelos menos, configurado como possível, atento número de bebidas alcoólicas ingeridas e o teor alcoólico das mesmas, ter uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida; 6. A arguida bem sabia que não podia conduzir o mencionado veículo na via pública e, apesar disso, dispôs-se a fazê-lo; 7. Ao actuar da forma supra descrita, a arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, ciente que se encontrava a conduzir um veículo motorizado na via pública sob a influência do álcool, sabendo ser proibida e punida por lei a respectiva conduta; 8. Verificou-se igualmente que a arguida não estava habilitada com a respectiva carta de condução que validamente lhe permitisse conduzir veículos automóveis; 9. A arguida sabia que se encontrava a conduzir um veículo motorizado sem ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o mesmo; 10. Não obstante ter conhecimento de que a condução de veículos automóveis apenas é legalmente permitida a quem é titular de documento que o habilite para o efeito, não se absteve de conduzir, agindo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei; 11. A arguida confessou os factos integralmente e sem reservas; 12. Do seu certificado de registo criminal não constam condenações; Mais se provou: 13. A arguida é estudante do curso de Gestão de Recursos Humanos, frequentando o 3.° ano de escolaridade; 14. Reside com os pais; 15. Trabalha em part-time no Call Center da Portugal Telecom, actividade pela qual aufere um vencimento mensal de cerca de € 200,00 (duzentos euros), Factos Não Provados: Inexistem quaisquer factos não provados com relevância para a decisão de mérito, não se provando facto contrário nem que estivesse em contradição com a factualidade elencada.
[...]».
Estes os factos a atender uma vez que no caso sub judice não foi impugnada a matéria de facto e, analisada a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, numa apreciação oficiosa da matéria, conclui-se não padecer aquela de qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n. 2, do Código de Processo Penal.
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3.2. De Direito
A sentença recorrida considerou que com os factos apurados se mostram preenchidos todos os elementos típicos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.°, n.° 1 do Código Penal, e do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.°s 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, 03/01, inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
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3.2.1. A aplicabilidade da pena acessória de proibição de conduzir
Assente que a arguida cometeu o primeiro daqueles crimes, foi a mesma sancionada com pena de multa, mas não com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
O único segmento da sentença recorrida que o recorrente pretende ver sindicado no recurso é precisamente aquele em que se decidiu não ser de aplicar à arguida a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69.º do Código Penal.
O recurso encontra-se limitado a esta questão de direito, em conformidade com o disposto no artigo 403.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Estabelece o artigo 69.º do Código Penal, sob a epígrafe “Proibição de conduzir veículos motorizados”, que:
«1 — É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:
a) Por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º;
(…).»
A este propósito, o tribunal a quo ponderou o seguinte: “No atinente à pena acessória da proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69°, n.° 1, alínea a), do Cód. Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 77/2001, de 13 de Julho, uma vez que a mesma não é automática, visando-se tão-só, prevenir a perigosidade do agente – enquanto que a pena principal tem em vista a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – o que terá de se aferir, em concreto, por que a arguida se encontra legalmente e de facto inibido da conduzir decide-se que a mesma não tem aplicação no caso sub júdice, pelo que não é aplicável.”
3.2.1.1. Quanto à primeira afirmação genérica de que a pena acessória não é automática, a mera leitura do texto que actualmente a prevê não consente tal interpretação.
Como resulta com clareza dos termos em que o preceito está formulado – “É condenado (…) quem for punido (…)” –, uma vez punido o agente por um crime previsto no artigo 292.º do Código Penal, deverá ser condenado, para além da pena principal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, sendo a margem de manobra do julgador, apenas, a que lhe é dada pelos limites da moldura traçada na norma.
Com efeito, em matéria de penas vigora o princípio da legalidade. O julgador não tem liberdade para impor quaisquer sanções, diferentes das previstas na lei incriminadora, ou para deixar de as impor. E tem obrigatoriamente de aplicar as sanções que estão expressamente previstas na lei para a infracção cometida.
O crime cometido pela arguida é punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias (art. 292.º, n.º 1, do Código Penal) e com pena acessória de proibição de conduzir “entre 3 meses e 3 anos” (artigo 69.º do mesmo código). Nenhuma outra pena diferente destas pode ser aplicada e estas não podem deixar de o ser, a não ser que a própria lei possibilite a sua substituição ou admita a não aplicação, o que não ocorre com a pena acessória.
É certo que, de acordo com o nº 1 do artigo 65º do Código Penal “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos” (em conformidade com o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa).
Estatui, todavia, o nº 2 do mesmo artigo 65.º que “a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões”.
E é exactamente isso que acontece com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez: a sua prática, para além de ser punida com a privação da liberdade ambulatória ou com a privação de parte do património, acarreta a perda do direito de conduzir por um período determinado – vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Junho de 2005 (processo n.º 4549/2005-3, in www.dgsi.pt).
Esta correspondência necessária entre a prática do crime e a pena acessória não era tão clara perante a redacção conferida em 1995 ao artigo 69.º do Código Penal. Estabelecia então o preceito que “é condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano (…) quem for punido por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário”. A pena acessória apenas era aplicável àquelas situações de condução em que as regras do trânsito rodoviário foram, em concreto, gravemente violadas, e o julgador dispunha de um campo de manobra para aplicar ou não a referida pena e adequar a medida concreta da mesma em face das necessidades de punição, dentro dos limites da culpa – vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 2010.04.07 (processo n.º 139/09.7PTLRA.C1, in www.dgsi.pt).
Mas mesmo no período de vigência desta redacção do preceito, em face das divergências jurisprudenciais que surgiram sobre a aplicação da proibição de condução ao agente do crime de condução em estado de embriaguez, veio a fixar-se jurisprudência no sentido de que “o agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal, deve ser sancionado, a título da pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no seu artigo 69.º, n.º 1, alínea a)” – Assento n.º 5/99 do STJ, publicado no Diário da República, I.ª Série, de 20 de Julho de 1999.
E o legislador, a fim de afastar, de todo, tal divergência jurisprudencial, acabou por alterar o artigo 69.º do Código Penal através da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho de 2001, consagrando com tal alteração legislativa, de modo definitivo, uma automática pena acessória de proibição de condução para o agente do crime de condução em estado de embriaguez, e agravando, de modo significativo, a pena abstracta da mencionada sanção acessória, alterando-a, no seu limite mínimo, de 1 mês para 3 meses e, no seu limite máximo de 1 ano para 3 anos.
Não pode assim afirmar-se, como faz a sentença, que a pena prevista no artigo 69.º do Código Penal não é de aplicação automática.
*
3.2.1.2. Persiste contudo a questão de saber se à arguida (que não está habilitada a conduzir veículos automóveis) deve (ou não) ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, pp. pelo art.292º, nº1 do C. Penal, na medida em que, estando como afirma a sentença legalmente e de facto inibida de conduzir, sempre poderá dizer-se que seria inócua a aplicação de uma pena cujos efeitos se esgotam nessa mesma proibição de conduzir.
Esta questão vem sendo debatida ao nível dos Tribunais da Relação, obtendo respostas de sinal diferente, mas a jurisprudência mais recente que está publicada continua maioritariamente a defender a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir a quem não possua habilitação legal e cometa os crimes prevenidos nos art. 291.º e 292.º do Código Penal.
Vejam-se, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 2006.03.08 (processo n.º 12073/2005-3 in www.dgsi.pt), de 2007.09.12 (processo n.º 4743/2007, in www.dgsi.pt), de 2007.07.26 (processo n.º 5103/2007, in www.dgsi.pt) de 2007.01.24 (processo n.º 7836/2006, in www.dgsi.pt), de 2009.09.17 (in www.pgdlisboa.pt) e de 2009.12.03 (processo n.º 84/08.3SQLSB.L1-9, in www.dgsi.pt), da Relação de Coimbra de 2002.05.22, in C.J., tomo III, p.45, e de 2008.12.10 (processo n.º 17/07.4PANZR, in www.dgsi.pt), da Relação do Porto de 2008.07.09 (processo n.º 12897/08, in www.dgsi.pt) e de 2009.04.01 (processo n.º 963/08.8PAPVZ, in www.dgsi.pt) e da Relação de Évora de 2009.05.26 (processo nº141/07.3GBASL.E1, in www.dgsi.pt) de 2009.12.10 (processo n.º 83/09.8GBLGS.E1, in www.dgsi.pt) e de 2010.03.11 (processo n.º 498/09.1PALGS.E1 in www.dgsi.pt).
Em sentido inverso, considerando que não tem aplicação aos casos em que o arguido não está habilitado a conduzir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, foi proferido, entre outros, o acórdão da Relação de Évora de 2004.02.03 (processo nº 2294/03, in www.dgsi.pt).
A “Proibição de conduzir veículos motorizados”, expressão que servia de epígrafe ao art. 69.º do Código Penal, na versão anterior à da Lei n.º 77/2001, de 13-07, foi introduzida na lei penal pela revisão de 1995 (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março).
Como se assinala no Acórdão da Relação de Lisboa de 2007.09.12, a dúvida suscitada nos trabalhos da Comissão de Revisão, no sentido de saber se a proibição em causa seria também de aplicar àqueles que não tivessem licença de condução, foi desfeita pelo Professor Figueiredo Dias ao justificar a sua imposição, mesmo para os não titulares dessa licença, “para obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição”, o que foi aceite por aquela Comissão [vide «Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão», Ministério da Justiça, 1993, pp. 75 e 76].
Assim o n.º 3 desse art. 69.º, tal como nasceu da reforma de 1995, dispunha que a proibição implicava para o condenado, que “fosse titular de licença de condução” a obrigação de a entregar na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, o que inculcava a ideia de que tal sanção seria de aplicar também a quem, mesmo que não fosse titular da licença de condução, incorresse na prática de qualquer um dos crimes a que se reportavam as als. a) e b) do preceito.
Na vigência de tal redacção do preceito, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 12 de Março de 2003 (processo n.º 03P505, in www.dgsi.pt) expressou o entendimento preponderante e concluiu que do próprio preceito em si (artigo 69.º do Código Penal, na redacção então vigente) não resulta de modo nenhum, nem expressa nem sequer implicitamente, que a sanção aí prevenida só possa ser aplicada a quem já possua carta de condução ou documento que o habilite a conduzir veículos motorizados. Bem pelo contrário.
Salienta esse aresto que, “como aliás se alcança do próprio teor do seu n.º 3 ("... condenado que for titular de licença de condução ...", o que faz pressupor contemplar também quem o não seja), e do que de todo em todo resulta do seu n.º 5 (não se aplica a inibição quando houver lugar a "interdição da concessão de licença", o que pressupõe a possibilidade de existência de falta de habilitação para conduzir), perfila-se como de todo em todo incontornável e inquestionável que a proibição de conduzir veículos motorizados, prevista e consagrada no art. 69º do C.Penal, de modo nenhum reclama ou exige que o condenado seja já possuidor de carta de condução ou esteja já habilitado a conduzir tais veículos.
Aliás, continua, “a própria lei é clara e inequívoca ao indexar apenas a condenação à prática dos crimes referenciados nas alíneas a) e b) do n.º 1, e no condicionalismo aí consignado, o que surge como natural e adequada resposta a todo um pensar e querer legislativos em termos de acautelamento e de prevenção da perigosidade revelada pelo agente naqueles casos concretos, o que não deixa de se configurar de significativa relevância mesmo no plano da prevenção geral. Uma interpretação, aliás enquadrada na economia do próprio preceito e apoiada no seu teor, que se apresenta de todo em todo lógica, compreensível e em si mesma inteligível, porque ajustada à realidade que lhe subjaz e que se intenta acautelar e preservar, sendo de consignar-se que tal interpretação não só é perfeitamente compaginável com situações em que o condenado ainda não possua habilitação para conduzir, como até contempla e revela toda uma manifesta e pragmática utilidade num quadro de prevenção de toda uma perigosidade.”
A redacção actual do mencionado art.º 69.º, resultante da Lei n.º 77/2001, aludindo no seu n.º 3 apenas à obrigação de entrega do título de condução pelo “condenado” e deixando de relacionar a obrigação de entrega do título a quem dele seja titular, veio dar algum folgo ao entendimento de que a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados apenas é aplicável a quem está habilitado a conduzir.
Mas de modo algum, por si só, impõe um entendimento diverso daquele que maioritariamente se vinha adoptando e que, não se baseando apenas na redacção primitiva do n.º 3 do artigo 69.º, continuou a preponderar ao nível das Relações.
Com efeito, há vários argumentos de peso que persistem válidos e outros que, ex novo, vêm alicerçar o entendimento de que, uma vez condenado o agente pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo art. 292.º, n.º 1, do Código Penal, deve-lhe também ser aplicada a pena acessória a que se refere o art. 69.º do mesmo diploma, ainda que não seja titular de carta de condução.
Assim, e sinteticamente:
- a não aplicação da pena acessória a quem não fosse titular de licença de condução traduzir-se-ia num privilégio injustificado concedido a quem teve um comportamento globalmente mais grave do que a mera condução em estado de embriaguez (de facto, se o agente “apenas” tivesse conduzido sob a influência do álcool ser-lhe-ia aplicável a pena principal e a pena acessória; se, para além disse, não fosse titular de licença de condução apenas ficaria sujeito à aplicação da pena principal) - vide os citados Acórdãos desta Relação e Secção de 2006.03.08 e de 2005.06.29;
- o facto de o conteúdo material da sanção em causa ser o da imposição de uma proibição de conduzir e não o da previsão de uma suspensão dos direitos conferidos pela titularidade da carta de condução também conforta a ideia de que os não habilitados a ela estão sujeitos - ibidem;
- a aplicação da proibição de conduzir visa não só assegurar de uma forma reforçada a tutela dos bens jurídicos como também evitar que o agente de tal crime volte a praticar factos semelhantes, o que é válido também para quem ainda não está habilitado a conduzir - ibidem;
- o art. 353.º do Código Penal criminaliza a violação de proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória não privativa da liberdade, podendo da violação dessa proibição resultar para o agente, ainda que não seja titular de carta de condução, a responsabilização pela prática, em concurso efectivo, de um crime previsto no art. 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03-01, e de um crime do referido art. 353.º, pois que este tipo legal visa tutelar a autoridade pública e não a segurança das comunicações – vide o citado Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Setembro de 2007;
- após a publicação daquela Lei n.º 77/2001, o Código da Estrada foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28-09, tendo este diploma mantido como um dos requisitos para a obtenção do título de condução a circunstância de o requerente não se encontrar a cumprir decisão que tenha imposto a proibição de conduzir [art. 126.º, n.º 1, al. d), do Código da Estrada], o que pressupõe que a proibição de conduzir pode ser aplicada a quem não for titular de título de condução;
- seria um “contra-senso” que o condutor não habilitado a conduzir, podendo vir a obter licença ou carta de condução logo pouco depois da sentença condenatória, não se visse inibido de conduzir, quando o já habilitado fica sujeito a tal sanção – vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Setembro de 1995 (in CJ, tomo IV, p. 147);
- do confronto do artigo 69.º, n.º 1 e n.º 7, com o artigo 101.º, n.º 4, do Código Penal, resulta que, ao estabelecer a pena acessória, o artigo 69.º prevê a sua exclusão quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a interdição da concessão do título de condução; uma vez que esta interdição pressupõe que o agente não é titular de título de condução (artigo 101.º, n.º 4), conclui-se que é possível a condenação naquela pena acessória em relação ao condutor não habilitado – vide o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 2009.12.10;
- o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 98/2006, de 6 de Junho, que regula o registo de infracções de não condutores (infractores não habilitados) enumera vários elementos que deverão constar no registo de infracções do não condutor (RIO) e um dos elementos é a pena acessória aplicada pelo tribunal relativa a crimes praticados no exercício da condução (este diploma surgiu na sequência do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, que alterou o Código da Estrada e prevê no seu art. 10.º que a Direcção-Geral de Viação deve assegurar a existência de registos nacionais de condutores, de infractores e de matrículas, organizados em sistema informático, nos termos fixados em diploma próprio, com o conteúdo previsto nos art. 144.º e 149.º do Código da Estrada no que se refere ao registo dos condutores).
Neste contexto, deve continuar a sustentar-se que o legislador, com as alterações operadas ao artigo 69.º do Código Penal, não quis excluir da condenação na pena acessória de proibição de conduzir os infractores não habilitados com carta de condução que cometam os crimes mencionados nas diversas alíneas do n.º 1 daquele preceito.
Na doutrina, Germano Marques da Silva também entende que “a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pode ser aplicada a agente que não seja titular de licença para o exercício legal da condução; o condenado fica então proibido de conduzir veículo motorizado, ainda que entretanto obtenha licença” (in Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, p. 32, nota 54).
3.2.1.3. Em conformidade com o exposto, não se acolhem as razões expressas na sentença recorrida e conclui-se que, uma vez condenada a arguida pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 292.º, n.º 1, do Código Penal, deve-lhe também ser aplicada a pena acessória a que se refere o art. 69.º do mesmo diploma, apesar de ela não ser titular de carta de condução.
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3.2.2. A pena acessória concreta
No caso sub judice, a arguida foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo automóvel na via pública sem para tal estar habilitada, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º do Código Penal.
A sentença condenatória não sujeitou a arguida à pena acessória prevista no artigo 69.º, quanto ao segundo dos crimes, quando é certo que, como resulta do exposto, deveria tê-lo feito.
Haverá pois que determinar a medida concreta desta pena acessória de proibição de conduzir, dentro dos limites da lei – de três meses a três anos – e tendo em conta que a mesma obedece aos critérios definidos no artigo 71.º do Código Penal, uma vez que os autos fornecem todos os elementos necessários para o efeito.
Perante a factualidade apurada, há que ponderar:
- o grau de ilicitude patenteado na taxa de álcool no sangue de 1,72 gramas de álcool por litro de sangue;
. o facto de a arguida ter simultaneamente praticado um crime de condução sem habilitação legal;
- a actuação, com dolo eventual, quanto ao crime previsto no artigo 292.º;
- a postura revelada em julgamento, com uma confissão integral e sem reservas que, embora com muito pouco relevo para a descoberta da verdade, manifesta, de algum modo, a assunção do erro praticado;
- as prementes exigências de prevenção geral, atenta a consabida influência da condução sob o efeito do álcool nos níveis de sinistralidade rodoviária;
- as menores exigências de prevenção especial, atenta a inexistência de antecedentes criminais e a inserção sócio-profissional da arguida.
Ponderando todos estes elementos, considera-se justo e adequado fixar a proibição de conduzir em quatro meses, proibição que produzirá efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão (artigo 69.º, n.º 2 do Código Penal).
Procede, assim, o recurso.
* 4. Decisão
Nesta conformidade, acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, condena-se a arguida A… na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses, mantendo-se em tudo o mais a sentença recorrida.
Sem custas.
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(Documento elaborado pela relatora e integralmente revisto por quem o subscreve – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
Lisboa, 12 de Maio de 2010
Maria José Costa Pinto
Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida