PROCESSO ABREVIADO
RECURSO
IRRECORRIBILIDADE
Sumário

I - A restrição imposta pelo art. 391º, do CPP, aplicável ao processo abreviado (art. 391º-F) tem em vista as decisões que se inserem na normal tramitação processual, com vista à obtenção célere de uma decisão final. Todas as decisões que respeitem a questões colaterais, ou incidentais, que nada tenham a ver com tal escopo, ou seja, que não se insiram na normal tramitação processual e que afectem os direitos do arguido ou de terceiros, estão submetidas ao princípio geral da recorribilidade decorrente do art. 399.º, do CPP.
II – Face à lei actual o despacho em que o juiz declara nulo o processado por entender que a audiência de julgamento não poderia ter lugar para lá do prazo de 90 dias previsto no art. 391º-D CPP é recorrível.
III - O que o legislador quis excluir da possibilidade de recurso foram apenas e tão só aquelas decisões que permitem que o processo desenvolva a sua normal tramitação até ao julgamento e à decisão final, culminando com a sentença. Recorrendo-se então desta, nesse recurso se poderão colocar todas as questões que a possam inquinar, ainda que relativas a actos anteriormente praticados. São razões de celeridade, que caracterizam este tipo de processo, que impõem tal opção legislativa, com vista à obtenção de uma decisão de mérito tão rápida quanto possível, com tal escopo se harmonizando os apertados prazos processuais para deduzir acusação e para realização da audiência de julgamento (90 dias em qualquer dos casos).
IV - A lei não prevê em lado nenhum o reenvio do processo abreviado para a forma comum, contrariamente ao que acontece com o processo sumário (art. 390.º). O processo abreviado, como o próprio nome indica, é um processo idêntico ao processo comum, mas ligeiramente abreviado, com a subtracção de alguns actos de inquérito (que pode ser reduzido ao essencial ou até nem existir) e sem instrução (actualmente) - na fase de julgamento e actos subsequentes é precisamente igual -, não fazendo, por isso, qualquer sentido tal reenvio.
V - o juiz de julgamento, perante a acusação do MP só tem duas hipóteses:
- ou recebe a acusação e designa dia para julgamento;
- ou rejeita a acusação, por manifestamente infundada.
Esta rejeição tem os mesmos pressupostos que a rejeição em processo comum, sendo correspondentemente aplicável o disposto no art. 311.º do CPP, podendo ainda ter lugar quando o crime imputado na acusação é punível com pena superior a 5 anos de prisão, caso em que a rejeição se fundaria na impossibilidade de o processo seguir a forma abreviada, já que esta consubstanciaria efectivamente a nulidade insanável do art. 119.º, al. f), do CPP, (obviamente, fora dos casos previstos no n.º 2 do art. 391.º-A).
Nesse caso, a declaração de tal nulidade implicará a anulação de todo o processado – salvando-se apenas o auto de notícia –, obrigando à realização integral do inquérito, levando-se a cabo as diligências de prova necessárias à sustentação de uma futura acusação, sem prejuízo de aproveitamento das diligências que eventualmente já haviam sido feitas anteriormente. Ou seja, nasce um novo processo, sob a forma de processo comum, desaparecendo pura e simplesmente o anterior processo abreviado.
Em tais hipóteses de rejeição, bem como no caso presente, ao não dar seguimento ao processo abreviado, pondo-lhe termo, na medida em que é declarada uma nulidade insanável que afecta irremediavelmente tal forma processual, a correspondente decisão é susceptível de impugnação, ao abrigo do art. 399.º, do CPP, já que não abrangida pela cláusula de irrecorribilidade decorrente da previsão do art. 391.º, do mesmo Código.
VI - No seguimento da jurisprudência largamente maioritária dos tribunais superiores entende-se que os prazos definidos nos arts. 391.º-B, n.º 2 e 391.º-D, do CPP, não constituem requisito essencial do processo abreviado, não acarretando a sua inobservância qualquer invalidade dos actos praticados após o seu decurso. A inobservância desses prazos implica apenas, se for caso disso, responsabilidade disciplinar, não obstando à prática dos actos processuais em falta, que não deixarão de ter plena validade, se por outros vícios não estiverem inquinados. Aliás, só a sua prática no mais curto prazo possível - dadas as exigências de celeridade que enformam tal meio processual - sana a irregularidade decorrente da inobservância de tais prazos, irregularidade que se manterá enquanto o acto não for praticado.

Nota: A questão a que se referem as conclusões I a IV, ou seja, a da recorribilidade do despacho que, no processo abreviado, declara nulo o processado por ultrapassagem do prazo de 90 dias para o início do julgamento, tem sido decidida de forma contrária – considerando o despacho irrecorrível – pelo Sr. Vice-Presidente do TR Lisboa nas decisões das reclamações apresentadas a tal propósito.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
Deduzida acusação pública, em processo abreviado, contra os arguidos João …e Manuel …, imputando-lhes um crime de furto na forma tentada, foi o processo remetido à distribuição para julgamento, cabendo o mesmo ao 2.º Juízo-2.ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, onde foi proferido o despacho de 13/11/2008 (fls. 90 a 95, destes autos), pelo qual foi declarado nulo o processado, salvaguardando os seus termos até à acusação, ordenando-se a remessa dos autos ao MP, por se entender que a audiência de julgamento não poderia ter lugar no prazo de 90 dias previsto no art. 391.º-D, do CPP.
Não se conformando com tal despacho, dele recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. Dispõe o art. 391.º-D do C.P.P. que "A audiência de julgamento tem lugar no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação."
2. O art. 391.º-D do C.P.P. é uma norma processual de carácter programático, ordenador e disciplinador do processo, à semelhança do que acontece com o no 1 do art. 312.º, do C.P.P.
3. Pretender-se-á como objectivo a alcançar, em ordem a uma maior celeridade processual e consonância com a fase de inquérito e o prazo referido no art° 391°.B, n.º 2 do C.P.P, que o referido prazo de 90 dias seja respeitado.
4. Mas caso não o seja, por razões diversas, tal não implica a referida nulidade insanável, p. e p. pelo art. 119.º al. f), do C.P.P.- emprego de forma especial fora dos casos previstos na lei - mas quanto muito uma mera irregularidade, que não sendo invocada pelo arguido no prazo previsto no art° 123.º do C.P.P. não determina a invalidade do acto a que se refere.
5. Na data em que foi proferida a acusação – 17/09/2008 – a forma de processo especial abreviado foi correcta e legalmente empregue, ou seja, no prazo legalmente previsto no art° 391.º-A, n.º 1, do C.P.P, na versão anterior à da Lei 48/07.
6. É no momento da dedução da acusação que deve ser aferida a legalidade da forma de processo empregue pelo acusador, e não em momento posterior.
7. Entendimento diverso implicaria, no caso dos autos, prejuízo para a celeridade processual, harmonia do processo e realização da justiça — vd art° 5°,n°2, al. b) do C.P.P.
8. Pelo que ao decidir pela nulidade insanável, p. e p. pelo art. 119.º al. f) do C.P.P. o douto despacho recorrido violou o disposto nos art°s 391°-D e 119.º al. f) do C.P.P.
9. Deve, assim, ser substituído por outro que receba a acusação do M. P. e designe data para julgamento.
10. A decisão ora posta em causa é recorrível, nos termos do disposto no art°391°, por remissão do art°391°F, ambos do Código de Processo Penal, uma vez que, a transitar em julgado porá termo ao processo na forma especial abreviada por decurso do prazo referido no n.º 2 do art. 391-B doC.P.P.
11. De todo o modo, decidindo-se acerca de nulidades, sempre estará salvaguardada a possibilidade de recurso.»

Não houve resposta ao recurso.
Na sequência de deferimento da reclamação interposta contra o despacho que inicialmente o não admitiu, viria o recurso a ser admitido, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Subidos os autos a este Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, por inutilidade superveniente do seu objecto, dada a evidente impossibilidade de realização do julgamento no prazo peremptório de 90 dias estabelecido na norma antes referida (art. 391.º-D, do CPP), apesar de esse prazo ainda não ter decorrido no momento em que foi proferido o despacho recorrido.
Cumprido o art. 417.º, do CPP, nada disseram os arguidos.
Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os necessários vistos e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
 
II – FUNDAMENTAÇÃO:
1. Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
A questão colocada no presente recurso é a de saber se se verifica a nulidade insanável prevista na alínea f) do artigo 119.º, do CPP, declarada pelo despacho recorrido – emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei - ,  pelo facto de não poder ser observado o prazo previsto no art. 391.º-D, do CPP.
Porém, previamente, há que decidir a questão da recorribilidade ou não do despacho impugnado, porquanto, por um lado, a decisão da reclamação e subsequente admissão do recurso não vinculam o tribunal superior e, por outro lado, considerando duvidosa tal opção, aquela decisão ordenou, “com dúvidas” a admissão do recurso, “para que seja o tribunal de recurso a definir esta questão, que se … afigura controversa” – cfr. fls. 138.
2.
a) Conforme resulta do atrás exposto, tendo o MP deduzido acusação em processo abreviado, o tribunal de julgamento proferiu o despacho recorrido, pelo qual declarou a nulidade do processado, salvaguardando os seus termos até à acusação, nos termos dos arts. 391.º-D e 119.º, al. f), ambos do CPP, por não ser possível proceder ao julgamento no prazo de 90 dias após dedução da acusação.

b) É aquela decisão susceptível de impugnação?
O MP deduziu acusação contra os arguidos, em processo especial abreviado, tendo os autos sido remetidos à distribuição, após as necessárias notificações, tendo sido atribuídos ao 2.º Juízo – 2.ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, onde foi proferido o despacho recorrido.
Estamos, pois, perante processo especial que seguiu a forma abreviada, cuja regulamentação resulta dos arts. 391.º-A a 391.º-F do CPP, que, para melhor compreensão do problema, a seguir se reproduzem:
“Do processo abreviado

Artigo 391.º -A
Quando tem lugar
1 — Em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a 5 anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado.
2 — São ainda julgados em processo abreviado, nos termos do número anterior, os crimes puníveis com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.
3 — Para efeitos do disposto no n.º 1, considera-se que há provas simples e evidentes quando, nomeadamente:
a) O agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não puder efectuar-se sob a forma de processo sumário;
b) A prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto para a dedução da acusação; ou
c) A prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.

Artigo 391.º -B
Acusação, arquivamento e suspensão do processo
1 — A acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o n.º 3 do artigo 283.º A identificação do arguido e a narração dos factos podem ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia.
2 — A acusação é deduzida no prazo de 90 dias a contar da:
a) Aquisição da notícia do crime, nos termos do disposto no artigo 241.º, tratando-se de crime público; ou
b) Apresentação de queixa, nos restantes casos.
3 — Se o procedimento depender de acusação particular, a acusação do Ministério Público tem lugar depois de deduzida acusação nos termos do artigo 285.º
4 — É correspondentemente aplicável em processo abreviado o disposto nos artigos 280.º a 282.º

Artigo 391.º -C
Saneamento do processo
1 — Recebidos os autos, o juiz conhece das questões a que se refere o artigo 311.º
2 — Se não rejeitar a acusação, o juiz designa dia para audiência, com precedência sobre os julgamentos em processo comum, sem prejuízo da prioridade a conferir aos processos urgentes.

Artigo 391.º -D
Audiência
A audiência de julgamento em processo abreviado tem início no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação.

Artigo 391.º -E
Julgamento
1 — O julgamento regula-se pelas disposições relativas ao julgamento em processo comum, com as alterações previstas neste artigo.
2 — Finda a produção da prova, é concedida a palavra ao Ministério Público, aos representantes do assistente e das partes civis e ao defensor, os quais podem usar dela por
um máximo de trinta minutos, prorrogáveis se necessário e assim for requerido. É admitida réplica por um máximo de dez minutos.
3 — A sentença é logo proferida verbalmente e ditada para a acta.

Artigo 391.º -F
Recorribilidade
É correspondentemente aplicável ao processo abreviado o disposto no artigo 391.º”


Desta última norma se extrai que em processo abreviado, tal como em processo sumário, “só é admissível recurso da sentença ou de despacho que puser termo ao processo”.
Conforme já tivemos oportunidade de afirmar em decisões anteriores[1], este princípio não tem, porém, natureza absoluta. Há muitas decisões, de diversa natureza, proferidas antes da sentença, que são recorríveis, apesar daquela norma. É o caso, nomeadamente, das decisões sobre medidas de coacção ou de garantia patrimonial, as que condenem no pagamento de determinada quantia, da decisão que não reconhecer o impedimento do juiz, etc.
A restrição imposta pelo art. 391.º, do CPP tem em vista as decisões que se inserem na normal tramitação processual, com vista à obtenção célere de uma decisão final. Todas as decisões que respeitem a questões colaterais, ou incidentais, que nada tenham a ver com tal escopo, ou seja, que não se insiram na normal tramitação processual e que afectem os direitos do arguido ou de terceiros, estão submetidas ao princípio geral da recorribilidade decorrente do art. 399.º, do CPP.
Na redacção do CPP anterior à Lei n.º 48/2007, de 29/08, não existia o actual art. 391.º-F, porém, dispunha o então art. 391.º-D, n.º 1: “Recebidos os autos, o juiz, por despacho irrecorrível, conhece das questões a que se refere o art. 311.º, n.º 1, e designa dia para julgamento”.
Ao abrigo desta norma foram proferidas várias decisões jurisprudenciais divergentes, entendendo umas que do despacho que declarava a existência de nulidades não havia recurso[2], enquanto outras entenderam que tal decisão era recorrível[3], apesar do teor daquela norma.
Entendemos, face à actual lei processual penal, que o despacho sob censura é susceptível de impugnação pela via de recurso.
Em primeiro lugar, porque o que o legislador quis excluir da possibilidade de recurso foram apenas e tão só aquelas decisões que permitem que o processo desenvolva a sua normal tramitação até ao julgamento e à decisão final, culminando com a sentença. Recorrendo-se então desta, nesse recurso se poderão colocar todas as questões que a possam inquinar, ainda que relativas a actos anteriormente praticados. São razões de celeridade, que caracterizam este tipo de processo, que impõem tal opção legislativa, com vista à obtenção de uma decisão de mérito tão rápida quanto possível, com tal escopo se harmonizando os apertados prazos processuais para deduzir acusação e para realização da audiência de julgamento (90 dias em qualquer dos casos).
Se a decisão proferida ao abrigo do art. 311.º, do CPP - por força do art. 391.º-C -, for no sentido de designar data para julgamento, ainda que conheça de eventuais nulidades entretanto invocadas (ou não) ou outras questões prévias ou incidentais que não obtiveram provimento, então tem toda a razão de ser a irrecorribilidade de tal decisão, já que o processo prossegue os seus termos com vista à obtenção de uma decisão de mérito. Se, pelo contrário, o juiz de julgamento rejeita a acusação – seja qual for a razão, seja esta fundada ou não fundada -, então o processo abreviado morre aí, não terá mais seguimento, atingiu o seu termo porque não pode prosseguir como tal.
Argumentar-se-á que a decisão não porá termo ao processo se este for reenviado para a forma comum, podendo o arguido ser ainda submetido a julgamento.
Em primeiro lugar, a lei não prevê em lado nenhum o reenvio do processo abreviado para a forma comum, contrariamente ao que acontece com o processo sumário (art. 390.º). O processo abreviado, como o próprio nome indica, é um processo idêntico ao processo comum, mas ligeiramente abreviado, com a subtracção de alguns actos de inquérito (que pode ser reduzido ao essencial ou até nem existir) e sem instrução (actualmente) - na fase de julgamento e actos subsequentes é precisamente igual -, não fazendo, por isso, qualquer sentido tal reenvio[4].
Em segundo lugar, o juiz de julgamento, perante a acusação do MP só tem duas hipóteses:
- ou recebe a acusação e designa dia para julgamento;
- ou rejeita a acusação, por manifestamente infundada.
Esta rejeição tem os mesmos pressupostos que a rejeição em processo comum, sendo correspondentemente aplicável o disposto no art. 311.º do CPP, podendo ainda ter lugar quando o crime imputado na acusação é punível com pena superior a 5 anos de prisão, caso em que a rejeição se fundaria na impossibilidade de o processo seguir a forma abreviada, já que esta consubstanciaria efectivamente a nulidade insanável do art. 119.º, al. f), do CPP, (obviamente, fora dos casos previstos no n.º 2 do art. 391.º-A).
Nesse caso, a declaração de tal nulidade implicará a anulação de todo o processado – salvando-se apenas o auto de notícia –, obrigando à realização integral do inquérito, levando-se a cabo as diligências de prova necessárias à sustentação de uma futura acusação, sem prejuízo de aproveitamento das diligências que eventualmente já haviam sido feitas anteriormente. Ou seja, nasce um novo processo, sob a forma de processo comum, desaparecendo pura e simplesmente o anterior processo abreviado.
Em tais hipóteses de rejeição, bem como no caso presente, ao não dar seguimento ao processo abreviado, pondo-lhe termo, na medida em que é declarada uma nulidade insanável que afecta irremediavelmente tal forma processual, a correspondente decisão é susceptível de impugnação, ao abrigo do art. 399.º, do CPP, já que não abrangida pela cláusula de irrecorribilidade decorrente da previsão do art. 391.º, do mesmo Código.

c) Passemos, pois, à questão que constitui o verdadeiro objecto do presente recurso.
Sofre o processo de nulidade insanável, ao abrigo da alínea f) do art. 119.º, do CPP, pelo facto de não poder ser observado o prazo de 90 dias desde a acusação até ao julgamento?
Contrariamente ao defendido pelo MP no seu parecer junto desta instância, do nosso ponto de vista é irrelevante que tal prazo ainda não tivesse decorrido no momento do despacho recorrido, ou se se completou depois de tal despacho - levando, segundo o MP, à inutilidade superveniente do recurso -, pois tal facto em nada releva para a decisão.
No seguimento da jurisprudência dos tribunais superiores - na qual julgamos haver, actualmente, uma quase unanimidade neste ponto -, entendemos que os prazos definidos nos arts. 391.º-B, n.º 2 e 391.º-D, do CPP, não constituem requisito essencial do processo abreviado, não acarretando a sua inobservância qualquer invalidade dos actos praticados após o seu decurso. A inobservância desses prazos implica apenas, se for caso disso, responsabilidade disciplinar, não obstando à prática dos actos processuais em falta, que não deixarão de ter plena validade, se por outros vícios não estiverem inquinados. Aliás, só a sua prática no mais curto prazo possível - dadas as exigências de celeridade que enformam tal meio processual - sana a irregularidade decorrente da inobservância de tais prazos, irregularidade que se manterá enquanto o acto não for praticado.
Os verdadeiros e únicos pressupostos do processo abreviado estão enunciados no art. 391.º-A, o qual nos diz “quando tem lugar” o processo abreviado.
As demais normas (arts. 391.º-B a 391.º-F) limitam-se a regular a subsequente tramitação processual do processo abreviado, onde ele diverge do processo comum.
Tal como neste, também no processo abreviado vigora a princípio da legalidade no que concerne a matéria de nulidades – arts. 118.º e segs. -, dali resultando que um acto só está ferido de nulidade quando esta for expressamente cominada na lei. Dividindo aquelas em nulidades sanáveis e insanáveis, as segundas são apenas as enunciadas no art. 119.º, ou “as que como tal forem cominadas noutra disposição legal”.
Diz o art. 119.º, al. f), que constitui nulidade insanável “o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei”.
Quando é que o processo abreviado, como forma de processo especial, é utilizado fora dos casos previstos na lei? Quando o MP acusar em processo abreviado fora dos casos em que ele pode ter lugar, ou seja, fora das condições exigidas pelo art. 391.º-A, do CPP.
É certo que, anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 48/07, de 29/8, constava daquele mesmo artigo que o MP podia deduzir acusação em processo abreviado “se não tiverem decorrido mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido”.
Todavia, com a entrada em vigor daquela lei, tal condição saiu do aludido art. 391.º-A – o qual, frisamos mais uma vez, nos diz “quando tem lugar” o processo abreviado – para passar para o art. 391.º-B, n.º2, que diz respeito aos requisitos da própria acusação e já não aos pressupostos do processo abreviado. Em consequência dessa alteração, caducou a jurisprudência que, até então, se havia debruçado sobre esta mesma problemática da inobservância do aludido prazo de 90 dias pelo MP.
A alteração legislativa tem significado de largo alcance, subtraindo aos pressupostos do processo abreviado o requisito do prazo em que deve ser deduzida a acusação. Pelo que, a nulidade insanável consignada na alínea f) do art. 119.º, do CPP não pode, actualmente, ser preenchida com a violação de qualquer das normas ínsitas nos arts. 391.º-B e segs, respeitantes à tramitação do processo abreviado, verificando-se apenas quando não forem observados os pressupostos enunciados no art. 391.º-A, pois só nesse caso é que haverá emprego do processo abreviado “fora dos casos previstos na lei”.
Por outro lado, em nenhum lado a lei comina com qualquer sanção, nomeadamente com a nulidade, muito menos de natureza insanável, a inobservância do prazo de 90 dias consignado no n.º 2 do art. 391.º-B, o mesmo acontecendo com o prazo do art. 391.º-D, impondo-se solução idêntica para ambas as situações. Pelo que, do nosso ponto de vista, a inobservância de qualquer desses prazos jamais pode consubstanciar nulidade, seja ela de que natureza for.
Nessa conformidade, tem de ser reconhecida razão ao recorrente, na medida em que a nulidade insanável declarada pelo despacho recorrido não existe. Devendo este, por isso, ser revogado e substituído por outro que dê seguimento ao processado na mesma forma processual.

III – DECISÃO:
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso do Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que permita o prosseguimento dos ulteriores termos do processo abreviado.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa,  18 de Maio de 2010

José Adriano
Vieira Lamim
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[1]  Cfr. nomeadamente, Acórdão proferido em 5 de Maio de 2009 no Proc. 268/08.4PGAMD-B.L1, desta mesma secção criminal, cuja fundamentação se segue no presente acórdão. No mesmo sentido se decidiu no Proc. 69/07.7SCLSB.
[2]  Cfr. nomeadamente, Acs. desta Relação de Lisboa de 8/3/2007, de 5/6/2007 e de 4/11/2008, respectivamente nos processos 2025/07 da 9.ª secção, 3314/07 (do qual o presente relator foi subscritor na qualidade de 2.º adjunto) e 6667/08, ambos da 5.ª secção.
[3]  Cfr. entre outros, os Acs. desta mesma Relação de 7/3/2007, 11/07/2007, 14/11/2007 e 21/07/2007, proferidos respectivamente, nos processos 608/07, 5068/07, 5100/07 e 3261/07, todos da 3.ª secção, para além de muitos outros em que se conheceu de mérito sem questionar da admissibilidade ou não do recurso.
[4]  No sentido da inexistência de possibilidade de reenvio do processo abreviado para a forma comum, Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, pág. 993 (anotação 5, in fine, ao art. 391.º-C).