ESCRITURA PÚBLICA
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ARTICULADOS
ADMISSIBILIDADE
ÓNUS DA PROVA
Sumário

A acção de impugnação da escritura notarial de justificação notarial configura-se como uma acção declarativa de simples apreciação negativa, competindo ao Réu, na contestação, a alegação dos factos constitutivos do direito que se arroga na dita escritura (art.ºs 343/1 do CCiv), mantendo-se válida a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência de 04/12/07.
(V.G.)

Texto Integral

Acordam os juízes na 2.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

APELANTES/RÉUS: J... e M...
*
APELADOS/AUTORES: C... e B...
Com os sinais dos autos.
*
Os AA propuseram contra os RR acção declarativa de condenação sob a forma ordinária a que deram o valor de 15 000,00 €, acção que foi distribuída aos 01/09/2006 na Secção única do Tribunal Judicial da Lourinhã pedindo:
a) Declaração de não corresponderem à verdade os factos declarados pelos RR na escritura de justificação outorgada em 20/02/2002 no cartório notarial de Torres Vedras, designadamente, ser falso que os RR tenham exercido qualquer posse sobre o prédio identificado no art.º 1.º da presente p.i. desde o mês de Junho do ano de 1996 e o mês de Fevereiro do ano de 2002;
b) Declaração que os RR não adquiriram a propriedade do prédio sub iudice por usucapião com base na posse por eles exercida entre o mês de Junho do ano de 1986 e o mês de Fevereiro de 2002;
c) Declaração que os AA são os únicos e legítimos possuidores do prédio sub iudice desde o mês de Junho de 1986, tendo adquirido a propriedade do mesmo por usucapião;
d) Condenação dos RR a reconhecerem o exposto em c) supra;
e) Cancelar-se os registos de aquisição da propriedade do prédio referido no art.º 1.º da presente PI a favor dos RR pela inscrição (...) – Ap. (...)
Em suma alegaram:
§ No final do mês de Julho de 1986, os AA celebraram com os RR, um contrato verbal de compra e venda relativo ao prédio rústico denominado “Vale das Pias”, com a área de 5.840 m2 sito na Moita dos Ferreiros, concelho da Lourinhã, prédio encravado por 2 prédios do pai da A. mulher que os AA já cultivavam, e que por isso interessava aos AA para unificação de prédios, pelo preço de Esc. 400.000$00 a ser entregue na data da celebração da escritura pública compra e venda, escritura essa que seria marcada assim que os RR houvessem legalizado a situação do prédio, uma vez que este se encontrava inscrito em nome de um antepassado do R. marido e omisso na Conservatória do Registo Predial, ficando os RR de comunicar aos AA tal facto com vista à celebração da escritura (art.ºs 1, 2, 3 4, 5, 6, 7)
§ Mais acordaram as partes que os AA entrariam de imediato na posse do referido prédio, tudo se passando como se a venda houvesse sido formalizada, preparando-o (dado estar de pousio), cultivando-o, extraindo os frutos do que por si cultivado foi no terreno, o que vem acontecendo desde Junho de 1986 até hoje (Agosto de 2006, data da entrada em juízo da p.i.), comportando-se os AA como donos e exclusivos e verdadeiros proprietários do imóvel, sempre com pleno conhecimento dos RR, aguardando a comunicação das condições para a outorga da escritura (art.ºs 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15);
§ Nunca os RR contestaram a posse do prédio pelos AA até ao dia 22/06/2006 pelas 8:00h altura em que os AA receberam um telefonema do R, marido exigindo-lhes que abandonassem o terreno, com ameaças de destruição das culturas nos prédios adjacentes bem como as infra-estruturas no prédio construídas pelos AA e da própria integridade física, tendo o R. marido depositado estrume no prédio o que coagiu os AA a interromper a posse que exerciam (art.ºs 16 a 21, 34 a 36).
§ O R. marido perante a exposição pelos AA da sua posição de donos do terreno pelas razões referidas, respondeu que apenas se absteria da prática das ameaças se os AA lhes entregassem 10 000,00 € uma vez que o terreno já estava registado em nome dos RR que haviam feito uma escritura de usucapião no ano de 2002, escritura essa que os AA vieram a verificar ter sido outorgada em 20/02/2002 no Cartório Notarial de Torres Vedras, e que os RR tinham de há muito regularizado a situação do prédio sem nada lhes ter comunicado, escritura essa segundo a qual o Réu marido declarou ser dono e legítimo possuidor com exclusão de outrem, do prédio em causa que lhe pertence por se encontra na sua posse há mais de vinte anos, cultivando-o e administrando-o, sem a menor oposição de ninguém, posse que sempre exerceu sem oposição de ninguém e ostensivamente desde a doação não titulada que lhes foi efectuada por D... e mulher G... em 1967 (art.ºs 22 a 31)
§ Tais factos declarados e confirmados pelas testemunhas que na escritura vêm referidas são totalmente falsos uma vez que quem exerceu a posse de tal terreno nos últimos 20 anos foram os AA que são os verdadeiros e legítimos proprietários do terreno que adquiriram por usucapião.
Os RR contestaram em suma dizendo:

  • Não é possível apresentar uma acção baseada na posse de um imóvel transferido por contrato-promessa verbal de compra e venda, não sendo verdade que o prédio estivesse encravado entre dois prédios rústicos dos pais da A. mulher, sendo que o prédio que confronta do Norte com o prédio do R. marido só foi adquirido em 22/09/1992 (art.ºs 1 a 3);
  • No dia 5 de Julho de 1986 estando os RR emigrados nos Estados Unidos da América e os AA emigrados no Canadá foram os RR a Toronto passar período de férias e aí receberam uma comunicação do irmão do A. marido que aí morava e que na presença de F... lhe propôs comprar a propriedade de “Vale de Pias” que, não estando registada em nome dos R este disse-lhes qual era a situação e os AA prometeram compra-lhes o terreno oferecendo o preço de 400.000$00, o R. marido disse que não estava interessado em vender o prédio, nem necessitava, e que só venderia pelo preço mínimo de 600.000$00 e após conversa foi aprazada a venda por 450.000$00 para quando estivesse registada em nome do R marido e como o A não tivesse dinheiro ficou acordado entre varões que aquele lhe entregaria a totalidade do preço acordado até Setembro do ano de 1986, não tendo o A entregue nem em Julho de 1986 nem em qualquer data posterior a importância aprazada, não sendo verdade que lhe transmitira a posse do prédio (art.ºs 10, 16 a 23),
  • Não é verdade que os AA tenham estado na posse continuada do prédio desde o final de Junho de 1986 até ao presente, pois só entraram na posse efectiva do prédio rústico a partir do seu regresso do Canadá, o que ocorreu por volta do ano de 1993, sendo falsos os factos alegados pelos AA nos art.ºs 33 a 38 da p.i., e os factos alegados pelos AA nos art.ºs 5 a 10 apenas permite reduzi-los à situação de meros detentores ou possuidores em nome alheio; estando os RR emigrados nos Estados Unidos da América, tudo levava a crer (aos habitantes da Vila de Moita de Ferreiros) que o fizessem em nome dos donos, seus legítimos proprietários, não tendo havido inversão do título de posse (art.ºs 4, 8 a 15)
  • No dia 20/02/2002 o 1.º R fez lavrar a mencionada escritura de justificação notarial, escritura essa que foi publicada no jornal K, do concelho de Lourinhã, a 14 de Abril de 2002, condição sem a qual não era possível fazer o registo do prédio, tomaram os AA conhecimento de tal publicação e não reagiram (art.sº 5 a 7)- Juntaram os documentos de fls. 22 a 36.
    Houve requerimento dos AA que justificam dizendo que “vêm responder” onde em suma se diz:
  • A acção de justificação notarial reveste a natureza de acção de simples apreciação negativa pelo que nos termso do art.º 343/2 do CCiv compete aos RR a prova dos factos constitutivos do seu direito, não beneficiando os RR da presunção do registo lavrados com base em tal escritura, pois que esta é, precisamente, o objecto da impugnação, incumbindo aos RR a alegação dos factos tendentes à aquisição por usucapião do referido prédio, confessando os RR que foram os AA e não os RR que exerceram actos materiais da posse com conhecimento e concordância dos RR emigrados nos EUA, confessando ser falso o que exararam na escritura, aceitando os AA a confissão dos RR de que os AA estão na pose do prédio desde 1993 pelo que o pedido dos AA quanto à escritura tem que proceder (art.ºs 1 a 12)
  • Confirmam tudo o por si alegado na p.i. e tecem considerações sobre a posição dos RR no articulado (art.ºs 14 a 27).
    Na sequência de despacho judicial foi junta a certidão do registo predial do imóvel, prédio rústico, vinha com 5 840 m2, “Vale da Pias” descrito na Conservatória do Registo Predial de Lourinhã sob o n.º ... que tem as inscrições ..., Ap. (...), de aquisição a favor de J..., casado com M..., e a inscrição ... Ap (...)- Acção provisória por natureza (n.º 1, alínea a)- AUTORES – C... e mulher B... (…) RÉUS – J... e mulher (…) PEDIDO: Declarar-se que os AA são os únicos e legítimos possuidores do prédio sub iudice desde o mês de Junho de 1986, tendo adquirido a propriedade do mesmo por usucapião (…), conforme documento de fls. 59 e v.º que aqui na íntegra se reproduz.
    No momento do saneador com data de 4/03/2008, foi proferido despacho onde entre o mais se diz: “(…)Como se constata pela análise do requerimento apresentado pelos AA (fls. 41-45), não pretendem replicar, antes, face à contestação dos RR, pedem seja proferida decisão sobre o mérito da questão – pedido que se entende ser admissível formular. Pelo exposto admito nos autos o requerimento apresentado pelos AA. Custas do incidente a cargos dos RR, com taxa de justiça que fico em 1 (uma) U.C. Notifique (…)”
    Inconformada com a decisão de 04/03/08, proferida na fase do saneador que, conhecendo de parte dos pedidos formulados, julgou procedente o pedido formulados pelos AA sob as alíneas a), b) e e) e em consequência declarou inexistente o direito de propriedade invocado pelos Réus na escritura de justificação notarial de 20/02/2002 sobre o prédio rústico denominado “Vale das Pias” sito na freguesia de Moita dos Ferreiros concelho da Lourinhã, assim como o ordenou o cancelamento de todos os registos eventualmente feitos ou a fazer com base na referida escritura designadamente o registo ...-Ap.(..), dela apelaram os Réus, aí vencidos em cujas alegações concluem:
    1. Este recurso deve subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo
    2. O articulado que os AA. Apresentaram depois – fls. 41 a 47 dos autos, no lugar da réplica – não foi imediatamente considerado impróprio e devolvido aos apresentantes;
    3. deixando-o para o saneador, omitiu a única atitude que a lei impunha ao Juiz e violou os art.ºs 510 a 511 do C.P.C.
    4. deve passar à matéria de facto assente – fazer parte da especificação – o que os recorrentes disseram nos art.ºs 9.º, 10.º e 21.º da contestação.
    5. também deve constar dessa parte da especificação o que se diz na providência cautelar: “Sem alguma vez terem pago qualquer parcela do preço.”
    6. Julgando dessa forma, a M.ma Juíza, fez errada interpretação da matéria de facto, omitiu matéria importante (não especificando nem quesitando), o que tinha sido alegado pelos recorrentes.
    7. Deve pois ser revogado o despacho saneador e substituído por um em que se dê como improcedente a presente acção como é de justiça.
    Não houve contra-alegações.
    Condensados os factos assentes e os controvertidos necessários ao conhecimento dos restantes pedidos, instruídos os autos, designou-se dia para julgamento a que se procedeu com observância do legal formalismo, com gravação de depoimentos, e fixação de decisão de facto que não mereceu reclamações seguindo-se sentença que julgou improcedentes os pedidos formulados pelas AA nas alíneas c) e d) (não abrangidos pelo saneador-sentença), de que não houve recurso.
    Recebido o recurso do saneador-sentença, foram os autos aos vistos legais dos Ex.mos Juízes-Adjuntos, os quais nada sugeriram. Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso.

    Questão a resolver: a) Saber se o articulado de resposta dos AA à contestação deveria ter sido desentranhado dos autos;
    b) saber se certa matéria alegada na contestação e resultante do decidido na providência cautelar deveria ter sido considerada assente

    II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
    O saneador-sentença não refere qualquer fundamentação de facto, apenas fundamentação de direito, conforme se pode ver de fls. 77/80 dos autos.
    Considera-se todavia (art.ºs 713/23, 659/3 e 646/4 do CPC), com relevância para o conhecimento do recurso aqui em causa, plenamente provado, por documento autêntico, o seguinte:
    Por escritura de justificação notarial do Cartório de Torres Vedras de 20/02/2002, J..., casado com M..., declarou que é dono e legítimo possuidor com exclusão de outrem, do prédio rústico denominado “Vale das Pias” inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... da secção ... com o valor patrimonial de 138,40 euros, que lhe pertence põe estar na posse dele, há mais de vinte anos, cultivando-o, administrando-o, sem a menor oposição de ninguém posse que sempre exerceu sem interrupção e ostensivamente, desde o contrato de doação não titulada efectuada por D... e mulher G... que fizeram no ano de mil novecentos e sessenta e sete com o conhecimento de toda a gente e na convicção de ser o seu legítimo dono, sendo assim, uma posse pacífica, contínua e pública, pelo que o adquiriu por usucapião, nos termos da escritura constante de fls.71/75 cujo teor aqui na íntegra aqui se reproduz.
    Na sequência de despacho judicial foi junta a certidão do registo predial do imóvel, prédio rústico, vinha com 5 840 m2, “Vale da Pias” descrito na Conservatória do Registo Predial de Lourinhã sob o n.º ... que tem as inscrições ..., Ap. (..), de aquisição a favor de J..., casado com M..., e a inscrição ... Ap (...)- Acção provisória por natureza (n.º 1, alínea a)- AUTORES – C... e mulher B... (…) RÉUS – J... e mulher (…) PEDIDO: Declarar-se que os AA são os únicos e legítimos possuidores do prédio sub iudice desde o mês de Junho de 1986, tendo adquirido a propriedade do mesmo por usucapião (…), conforme documento de fls. 59 e v.º que aqui na íntegra se reproduz.
    III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
    São as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto salvo as questões que são de conhecimento oficioso, e aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (art.ºs 660, n.ºs 1 e 2, 288, 514, 684/3, 690/4, 713/2 do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL 329-A/95, de 12/12, pelo DL 180/96 de 25/09 e pelo DL38/2003 de 8/3[1]).
    As questões a resolver são pois as enunciadas em I.
    a) Saber se o articulado de resposta dos AA à contestação deveria ter sido desentranhado dos autos.
    O articulado dos AA de fls. 41/44 termina do seguinte modo:
    Nestes termos, deverá ser proferida decisão de mérito, no despacho saneador, quanto aos pedidos formulados pelos AA sob as alíneas a), b) e e) considerando-se não existir a aquisição por parte dos RR, por usucapião do prédio objecto da escritura de justificação notarial, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo de aquisição fundado naquela escritura.
    Mais deverá considerar inoperante a impugnação feita pelos RR por mera referência a artigos da PTR, uma vez que o texto da contestação constitui confissão do alegado pelos AA, que desde já aceitam.
    Como acima se disse em I os AA nesse requerimento de 10/11/06 de fls. 41/45 vêm responder (é assim epigrafado) e em suma alegam:
  • A acção de justificação notarial reveste a natureza de acção de simples apreciação negativa pelo que nos termso do art.º 343/2 do CCiv compete aos RR a prova dos factos constitutivos do seu direito, não beneficiando os RR da presunção do registo lavrados com base em tal escritura, pois que esta é, precisamente, o objecto da impugnação, incumbindo aos RR a alegação dos factos tendentes à aquisição por usucapião do referido prédio, confessando os RR que foram os AA e não os RR que exerceram actos materiais da posse com conhecimento e concordância dos RR emigrados nos EUA, confessando ser falso o que exararam na escritura, aceitando os AA a confissão dos RR de que os AA estão na pose do prédio desde 1993 pelo que o pedido dos AA quanto à escritura tem que proceder (art.ºs 1 a 12)
  • Confirmam tudo o por si alegado na p.i. e tecem considerações sobre a posição dos RR no articulado (art.ºs 14 a 27).
    Trata-se de uma acção ordinária.
    Nas acções ordinárias é admissível a Réplica “se for deduzida alguma excepção e somente quanto à matéria desta; a réplica serve também para o autor deduzir todas a defesa quanto à matéria da reconvenção mas a esta não pode ele opor nova reconvenção”- n.º 1 do art.º 502; tratando-se de acções de simples apreciação negativa, como parece manifestamente ser o caso, “a réplica serve para o Autor impugnar os factos constitutivos que o Réu tenha alegado e para alegar os factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo Réu.”. A Réplica serve, na falta de acordo, também, para a alteração ou ampliação da causa de pedir e pedido (art.º 273, n.ºs 1 e 2).
    Basta ler o teor da contestação para se concluir que nenhuma excepção (dilatória ou peremptória) foi expressamente deduzida, tão-pouco a defesa dos RR se pode qualificar de exceptiva; o que verdadeiramente os RR fazem no seu articulado de contestação é impugnar os factos deduzidos pelos AA, mais especificamente os factos referentes ao mencionado acordo verbal de venda do imóvel. Não deduzem os RR qualquer pedido reconvencional, tão-pouco alegam factos dos quais se permitam concluir quer pela aquisição derivada quer pela aquisição originária do imóvel em questão, tal como lhes é consentido pelo art.º 343/1 do CCiv.
    O n.º 1 do art.º 502 tem a redacção que lhe foi introduzida pela reforma intercalar de 1985 e com ela, ao invés do qua anteriormente acontecia (e que permitia ao Autor “responder” na réplica), a réplica passou a ser um articulado eventual e não normal da tramitação do processo. Não tendo o réu deduzido reconvenção nem excepção, a fase dos articulados termina na contestação e só quando o réu tenha reconvindo ou excepcionado é que o Autor dispõe da réplica para lhe responder, dela dispondo também, quando em acção de simples apreciação negativa o réu tenha alegado na contestação os factos constitutivos do direito ou os elementos constitutivos do facto, negado pelo autor na petição inicial.[2]
    Por conseguinte, fora daquele condicionalismo legal, sendo a Réplica um articulado eventual, que não normal da tramitação processual, não deve o requerimento de “resposta” dos AA à contestação ser admitido.
    O Meritíssimo Juiz não considerou nada do alegado pelos AA nesse requerimento, a não ser o pedido do conhecimento de mérito parcial do pedido, que considerou admissível.
    O art.º 508-A/1/b dispõe que a audiência preliminar serve para, entre outras coisas, conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.
    No fundo, essa audiência preliminar, no que ao conhecimento parcial do mérito da acção concerne, desempenha a função da observância do contraditório, princípio estruturante do processo com consagração no art.º 3.º Entendeu o Meritíssimo Juiz que “não se mostrando necessário fazer actuar o princípio do contraditório e porque é necessária a prévia produção de prova para se proceder à apreciação de mérito(…)”era dispensar, como dispensou, a audiência preliminar. Conheceu de imediato de parte do mérito como se vê, suportado expressamente, na alínea b) do n.º 1 do art.º 508-B- ou seja na manifesta simplicidade. E essa simplicidade como fundamento da dispensa da audiência preliminar não vem questionada.
    Daqui resulta em conclusão:
    § Não se verificam no caso concreto os pressupostos para a dedução do articulado de resposta à contestação;
    § O conhecimento do mérito, ainda que parcial, da acção, não depende de actuação das partes, designadamente pela apresentação de requerimento de parte nesse sentido decisório, sendo única e exclusiva iniciativa do Juiz;
    § O Juiz entendeu, implicitamente, ser simples a decisão de parte do mérito da acção e dispensou a audiência preliminar, o que é incontestado;
    § O requerimento de “resposta” dos AA ao articulado de contestação dos RR não tendo qualquer fundamento legal, constitui prática de acto inadmissível pela lei processual, por isso irregularidade processual, que, muito embora, não influindo minimamente no exame e na decisão da causa, não constituindo, por isso uma nulidade processual, não pode ser admitido processualmente, devendo ser desentranhado e entregue aos AA.
    § Tal articulado dos AA “motivou”o requerimento dos RR de 16/11/06 no sentido do seu desentranhamento, pelo que o acto processual dos RR não constitui um acto anómalo, razão pela qual se revogará a sua condenação nas custas do incidente, por não haver tal da parte dos RR.
    b) saber se certa matéria alegada na contestação e resultante do decidido na providência cautelar deveria ter sido considerada assente
    A acção interposta pelos AA tem uma dupla configuração e integra factos de causa de pedir complexa: acção declarativa condenatória dos RR de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel (alíneas c) e d)) e acção declarativa de simples apreciação negativa quanto à escritura de justificação notarial.
    Os factos referentes ao direito de propriedade dos AA sobre o imóvel (aquisição derivada e originária), foram alvo de base instrutória por terem sido contestados.
    Como acima se disse, a acção de impugnação da escritura notarial de justificação notarial configura-se como uma acção declarativa de simples apreciação negativa, tal como se diz na decisão de mérito recorrida, competindo ao Réu na contestação a alegação dos factos constitutivos do direito que se arroga na dita escritura (art.ºs 343/1 do CCiv) e por terem subsistido dúvidas na jurisprudência foi a questão alvo de acórdão uniformizador de jurisprudência de 04/12/07.
    Os factos constantes dos art.ºs 9, 10, 21 da contestação, e que os RR/recorrentes pretendem que se considere assente, tem a ver com a impugnação que os RR fazem do circunstancialismo referente ao pagamento do preço correspondente à alegada compra e venda do imóvel em questão, facto esse invocados, também, pelos AA.
    Tal matéria foi levada em parte do questionário (cfr. art.º 17 da base instrutória), foi alvo de julgamento e de sentença de que não houve recurso nem pelos RR (que também não tinha legitimidade por nele não terem decaído), nem pelos AA que decaíram, razão pela qual se formou caso julgado material que não pode ser reaberto nesta sede nos termos do art.º 684/4.
    Mas essa matéria nada tem a ver com a decisão, também de 4/03/08 que conheceu, parcialmente do mérito, na parte referente à impugnação da escritura de justificação notarial do imóvel.
    Ora, no recurso em apreço está e apenas em causa, a decisão que considerou inexistente o direito invocado pelos RR na escritura de justificação notarial de 20/02/2002 que nada tem a ver com a alegada compra e venda do imóvel de 1986, nem sequer lhe fazendo a mínima referência.
    Não tendo a decisão recorrida consignado qualquer factualidade referente à mencionada compra e venda de 1986, não tendo a decisão recorrida apreciado tal negócio, e, por isso, muito justamente, não lhe tendo feito qualquer referência, como não tinha que fazer sob pena de se considerar haver excesso de pronúncia, não pode este Tribunal de recurso reapreciar tal questão.
    Não padecendo a construção fáctico-jurídica que conduziu à decisão que se encontra de acordo com a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência de qualquer erro, não lhe sendo, sequer, apontado algum, mantém-se.
    IV- DECISÃO
    Tudo visto acordam os juízes em julgar parcialmente procedente a apelação e em consequência:
    a) Ordenar o desentranhamento da peça processual de fls 41/45 e sua entrega ao ilustre advogado dos AA, pelas razões constantes de III, revogando-se assim o despacho recorrido de fls. 76 na parte em que admite esse articulado e condena os RR nas custas do incidente.
    b) Confirmar a decisão do saneador-sentença que conheceu parcialmente do mérito declarando inexistente o direito de propriedade invocado pelos RR na escritura de justificação notarial de 20/02/2002 do prédio rústico denominado “Vale de Pias” e ordenou o cancelamento de todos os registos eventualmente feitos ou a fazer com base na mesma escritura, designadamente o registo de aquisição de propriedade dos prédio a favor dos RR pela inscrição ... Ap (...), conforme fls. 77/80 cujo teor aqui se reproduz, apenas se consignando que o prédio rústico se encontra descrito na respectiva conservatória do registo predial sob a ficha n.º ..., conforme fls. 59 dos autos.
    Regime de Responsabilidade por Custas: Custas na proporção de 90% para os Apelantes e 10% para os Apelados, em razão do decaimento nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 446.
    Lxa., 20/05/2010
    João Miguel Mourão Vaz Gomes
    Jorge Manuel Leitão Leal
    Ondina Carmo Alves


    [1] A acção entrou na Secretaria Judicial da Lourinhã aos 18/08/06, consequente distribuição dos autos aos 01/09/06 à Secção única do tribunal Judicial da Lourinhã; por isso antes da entrada em vigor do DL 303/07 de 24/08, que alterou o Código de Processo Civil que entrou em vigor, conforme art.º 12/1, no dia 1/1/08 e não se aplica aos processos pendentes por força do art.º 11/1 do mesmo diploma; ao Código de Processo Civil na mencionada redacção anterior à que lhe foi dada pelo DL 303/07, pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem.
    [2] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, , Coimbra editora 2002, vol. 2.º, págs. 330/331; no sentido de que se trata de um articulado eventual com igual justificação, também Remédio Marques, in A Acção Declarativa à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, págs. 319/320; também, neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, , “Estudos Sobre o Novo processo Civil2; Lex, 1997, pág. 294.