TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
FORMALIDADES
NULIDADE
Sumário

I. A formalidade legal prevista no artigo 8°, da Lei n° 2.088, de 3 de Junho de 1957, que consistia em tentativa de conciliação prévia ao decurso do prazo para contestação, não se encontra em vigor desde 1962, quando o seu teor foi transposto para o artigo 981º Código de Processo Civil, o que importou a sua revogação.
II. Mas se a omissão de tal formalidade fosse de considerar verificada, não integraria a mesma nulidade susceptível de influir no exame e na decisão da causa, por não se tratar de formalidade que lhe deva ser aplicável o regime gravoso da falta de citação, previsto no art. 198º do CPC, por não estar em causa qualquer falta de citação, nem qualquer omissão enquadrável no art. 201º do mesmo Código.
(PR).

Texto Integral

I. OBJECTO DO RECURSO.

No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, na AUDIÊNCIA PRELIMINAR, levada a efeito na acção de processo ordinário que A move contra B, C, D e E, iniciada a audiência, pela Mm.a Juiz foi tentada a conciliação, não tendo a mesma sido possível, foi proferido o seguinte despacho:
Na sua contestação, defendeu-se se a Ré por excepção invocando, desde logo, a preterição da formalidade legal prevista no parágrafo 3.° da Lei 2088/57 de 3.06.1957. que determina a nulidade da citação.
Em resposta, pugnou a Autora pela improcedência de tal excepção, alegando que os arts. 8.°e 9° da Lei 2088 se encontram revogados.
Cumpre decidir:
Tendo em conta que a presente acção deu entrada na secretaria-geral dos juízos cíveis a 27.06.2006, aplica-se à questão em apreço o disposto na Lei 2088 de 3.06.1957 com as alterações introduzidas pelo art.° 42.° da Lei 46/85 de 20/09.
A referida Lei 2008 apenas foi revogada expressamente pelo Dec-Lei 157/2006, que entrou em vigor no dia 7.09.2006, conforme os arts. 49.° e 50.° deste Dec-Lei.
Assim sendo, estabelece efectivamente o parágrafo 3.° do art.° 8.° da Lei 2008 que: "O juiz, logo que o processo lhe seja concluso, marcará tentativa de conciliação a fazer no prazo de 15 dias. Se houver acordo com todos os Réus acerca da reocupação ou da indemnização, o processo considerar-se-á findo, proferindo o Juiz nos próprios autos, a sentença a que se refere o art.° imediato.
Se o acordo for apenas com alguns dos Réus, o processo seguirá contra aqueles que não se conciliaram. O prazo da contestação, contar-se-á neste caso, desde a data da tentativa de conciliação."
Compulsados os autos, verifica-se que este normativo não foi considerado, tendo a Ré sido citada para contestar, nos termos do art.° 783.° do CPC.
Assim, é manifesto que foi preterida uma formalidade legal que poderá prejudicar a defesa da citada, pelo que, nos termos do art.° 198.° do CPC, é nula a citação.
Pelo exposto, julgo procedente a invocada excepção e determino a nulidade de todo o processado a partir da petição inicial.
Considerando o valor da acção indicada na PI (4.608,48 euros) é competente para a apreciação desta acção os Juízos Cíveis de Lisboa, pelo que, nos termos do art.° 99.° da LOTJ e 108.°, 110°, n.° 2 e 111.°, n.°3, todos do CPC, declaro esta Vara Cível incompetente para julgar esta acção e, em consequência, determino a sua remessa para os juízos cíveis de Lisboa, por serem os competentes para a citação da Ré, nos termos do art.° 8.° da Lei 2088 de 3.06.1957 e aí seguirem a sua tramitação até ao final.
Após trânsito deste despacho, remeta, dando a respectiva baixa”.
Inconformada com a decisão, veio a A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1 - O presente recurso tem como objecto o despacho proferido em 1 de Março de 2010 pela Meritíssima Juiz da Vara Cível de Lisboa, Secção, na qual esta julgou procedente a excepção invocada pela Ré …, de preterição de formalidade legal determinando, em consequência, a nulidade da citação e de todo o processado após a petição inicial.
2 - Salvo o devido respeito, é errónea a fundamentação de Direito invocada pela Mma. Juiz a quo, porquanto, em primeiro lugar, o normativo invocado para fundamentar a necessidade de formalidade legal está revogado; e, em segundo lugar, a verificar-se nulidade de citação, a mesma não seria atendível.
3 - A Mma. Juiz a quo entendeu ter havido nulidade da citação, na medida em que teria sido preterida a formalidade legal prevista no artigo 8°, 3° parágrafo, da Lei n° 2088, de 3 de Junho de 1957 (e não Lei n° 2008, conforme, decerto por lapso, refere repetidamente o douto despacho), a qual consistia em tentativa de conciliação prévia ao decurso do prazo para contestação.
4 - Esta tentativa prévia de conciliação não foi efectuada, tendo os Réus sido citados para contestar, o que fizeram, pelo que a Mma. Juiz a quo entendeu estar-se perante uma preterição de formalidade legalmente prevista e determinou a nulidade da citação e do processado.
5 - O artigo 8° da Lei n° 2088 - assim como o artigo 9° ibidem - regulavam a tramitação da acção judicial de despejo para aumento do número de fogos, consistindo, portanto, em legislação especial relativamente aos artigos 970° a 998° do Código do Processo Civil de 1939, os quais regulavam a acção de despejo nas restantes modalidades previstas em diversa legislação avulsa.
6 - Aprovado em 1966, o Código Civil passa a conter a grande maioria do normativo relativo ao arrendamento urbano, mas não inclui as regras substantivas constantes da Lei n° 2088, de 3 de Junho de 1957 que, nos termos do artigo 3° do Decreto-Lei n° 47 344, de 25 de Novembro de 1966, se mantém em vigor.
7 - O mesmo não sucede, no entanto com as regras adjectivas constantes dos artigos 8° e 9° da referida Lei, uma vez que estas passam a estar transpostas para o artigo 981° do Código de Processo Civil, aprovado em 24 de Abril de 1962, através do Decreto-Lei n° 44 129, de 28 de Dezembro de 1961.
8 - Este Decreto-Lei esclarece cristalinamente (ponto 31): "No capítulo relativo à cessação do arrendamento inserem-se as disposições que, posteriormente a 1939, criaram novos fundamentos de despejo ou modificaram o regime da respectiva acção", inserção esta que, feita com a sistematização processual civil de 1961/62, nomeadamente, com a transposição do teor dos artigos 8° e 9° da Lei n° 2088 para o artigo 981° do Código de Processo Civil, com alterações ligeiras importou a revogação destas normas naquela Lei de 1957.
9 - Tal foi, claramente, a intenção do legislador ao codificar todas as normas adjectivas relativas a arrendamento urbano no Capítulo II do Título IV do Código do Processo Civil, dedicado aos Processos Especiais, assim eliminando aqueles preceitos da legislação avulsa e fazendo-os beneficiar da visão uniformizadora e sistemática que a codificação implica.
10 - Em 15 de Outubro de 1990, foi publicado o Decreto-Lei n° 321-B/90, que veio estabelecer o Regime do Arrendamento Urbano, retirando-o do Código Civil, bem como pôr fim à acção especial de despejo (a qual passou a tramitar segundo o processo declarativo comum), na medida em que revogou os artigos 964° a 997° do Código de Processo Civil, correspondentes ao supracitado Capítulo II do Título IV.
11 - O Decreto-Lei n° 321-B/90 não revogou a Lei n° 2088, remetendo, inclusivamente, para este diploma, no seu artigo 73.°, porque não regulou substantivamente o regime da denúncia para realização de obras de ampliação ou conservação de locados.
12 - No entanto, e já relativamente às normas adjectivas constantes daquela Lei, o Decreto-Lei n° 321-B/90 sobre elas não se pronunciou, não porque, como afirma a Mma. Juiz a quo no despacho ora recorrido, "A referida Lei 2008 (sic) apenas foi revogada expressamente pelo Dec-Lei 157/2006, que entrou em vigor no dia 7.09.2006, conforme os arts. 49° e 50° deste Dec-Lei", mas sim porque apenas as regras substantivas daquela Lei - as únicas que estavam em vigor - foram revogadas em 2006.
13 - Conforme preceitua o artigo 7° n° 4 do Código Civil, "A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara", pelo que a revogação pelo Decreto-Lei n° 321-B/90 dos artigos 964° a 991° do CPC não importou, de forma alguma, o renascimento dos artigos 8° e 9° da Lei n°2088, os quais haviam sido revogados, por sua vez, pela codificação no artigo 981°.
14 - Toda esta sucessão legislativa é sumamente condensada na obra "Arrendamento Urbano 7.ª Edição, Almedina, Dezembro de 2003, do Senhor Juiz Conselheiro Aragão Seia, que, em anotação ao artigo 73° do Decreto-Lei n° 321-B/90 (página 528), diz: "A legislação especial em vigor é a Lei n° 2.088, de 3 de Junho de 1957, com as alterações introduzidas pelos artigos 42º e 43º da Lei n°46/85, de 20 de Setembro.
Os artigos 8° e 9° tinham sido transcritos, com ligeiras alterações, para o artigo 981º do CPC, agora revogado pela al. b) do n° 1 do art. 3° do Dec.-Lei n° 321-B/90, de 15 de Outubro pelo que não estão em vigor" (negritos nossos).
15 - A Lei n° 2088 "apenas foi revogada expressamente pelo Dec-Lei 157/2006"; no entanto, atente-se que as normas constantes naquele Decreto-Lei nada têm de adjectivo, mas apenas de substantivo, com meras especificações no artigo 8° desde diploma, o que se deve ao facto de o direito adjectivo ser, há muito (desde 1990) o processo declarativo comum, situação, aliás confirmada pela Lei n° 6/2006, de 27 de Fevereiro.
16 - No processo declarativo comum, não há tentativa de conciliação após o recebimento da petição inicial, mas sim citação para contestar - artigo 480° CPC - o que foi, correctamente, efectuado pelo douto Tribunal a quo (embora não na titularidade da Mma. Juiz a quo).
17 - Pelo que é errada a aplicação pela Mma. Juiz a quo do artigo 8°, parágrafo 3°, da Lei n° 2088, porquanto este preceito encontra-se revogado desde 1962, data em que foi o seu teor transposto para o Código de Processo Civil, o que importou a sua revogação.
18 - Caso se entendesse que o artigo 8° da Lei n°2088 ainda está em vigor - no que não se concede e só por necessidade de raciocínio se admite - não se poderia, no entanto, e até em face do processado, decidir-se no sentido em que o fez a Mma. Juiz a quo, entendendo estar-se perante a preterição "de uma formalidade legal que poderá prejudicara defesa da citada", invocando como fundamento legal o artigo 198° CPC, que versa sobre a nulidade da citação - o que é manifestamente erróneo.
19 - Com efeito, a formalidade legal alegadamente preterida - realização de uma tentativa de conciliação - não tem como escopo a protecção do direito de defesa dos Réus inquilinos, mas sim a celeridade processual!
20 - A realização, ou não, de uma tentativa de conciliação prévia à citação para contestar em nada influi sobre a defesa dos Réus, sendo que, no caso em apreço, e verificada a contestação, é por demais evidente que a Ré ora Recorrida não restringiu a sua Contestação a esta excepção, pele que a tentativa de conciliação seria, quanto a ela, inútil, da mesma forma que o foram as outras
21 - A defesa da Ré ora Recorrida em nada foi prejudicada pela não realização de uma tentativa de conciliação prévia à contestação, na medida em que a Ré ofereceu a sua Contestação a tudo quanto entendeu, não necessitou de prazo para juntar qualquer documento, e compareceu às duas tentativas de conciliação entretanto já realizadas, sem sucesso.
22 - Por outro lado, há que atentar que a Ré invoca a preterição da formalidade legal, mas não alega em lado algum que tal preterição importou um prejuízo para a sua defesa.
23 - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-06-2009, Proc° 5553/03.9TMSNT-H.L1-8: "Só determina a nulidade da citação, a omissão de formalidades que tenham em vista a defesa do citando, isto é, a arguição só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado (art. 198°, n° 4, do CPC) O agravante não indica os aspectos da organização da sua defesa que ficaram prejudicados (...)"
24 - Conforme o Prof. Lebre de Freitas, em anotação ao artigo 198° do seu "Código de Processo Civil Anotado" e a propósito do n° 4, esta exigência relativa à verificação do prejuízo para a defesa do citado "constitui a garantia de o regime instituído ser utilizado para realizar o seu escopo (evitar a restrição ou supressão prática do direito de defesa) e não para finalidades puramente formais ou dilatórias".
25 - A Ré ora Recorrida não foi, em fase alguma deste processo, ou por acto ou omissão algum do mesmo, prejudicada, prejuízo este que, aliás, não alegou ou logrou provar.
26 - Assim, é forçoso concluir que a invocação do preceito contido no artigo 198° n° 1 CPC não é aqui aplicável, na medida em que, mesmo admitindo ser formalidade processual a tentativa de conciliação contida no parágrafo 3° do artigo 8° da Lei n° 2088, a sua omissão não é susceptível de determinar a nulidade atendível da citação.
Nestes termos e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida com as legais consequências.
Não houve contra-alegação.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do mesmo, cumpre decidir e desde já nos termos do art. 705º do CPC, dada a simplicidade do recurso.
A questão a resolver é a de saber se o processo devia ser anulado a partir da petição com fundamento na preterição da tentativa de conciliação.
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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.
Os factos a tomar em consideração para conhecimento do recurso são os que decorrem do relatório acima inscrito.
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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Importa desde já deixar elucidado que a recorrente produz doutas alegações, que se subscrevem, no que de essencial é invocado pela recorrente, pois que se mostram de acordo com o que se entende ser a melhor solução de direito para a resolução da questão que se apresenta como thema decidendum.
Não parece oferecer qualquer dúvida que o artigo 8°, da Lei n° 2.088, de 3 de Junho de 1957, invocado no despacho recorrido para fundamentar a anulação do processado, com fundamento em preterição da formalidade legal nele prevista, e que consistia em tentativa de conciliação prévia ao decurso do prazo para contestação, não se encontra em vigor desde 1962, quando o seu teor foi transposto para o artigo 981º Código de Processo Civil, o que importou a sua revogação.
Este entendimento, quanto se sabe, nunca foi colocado em discussão.
Vários autores que escreveram sobre a matéria do despejo com fundamento na execução de obras para aumento do número de arrendatários não tiveram dúvidas no sentido de que o regime previsto nos artigos 8° e 9º, da Lei n° 2.088, foi transposto para o art. 981º do CPC, que passou a reger sobre a matéria.
Assim o referem João de Matos em “A Acção de Despejo” (publicada a seguir à entrada em vigor do CPC, aprovado pelo DL 44 129, de 28.12.1961), pg. 199 e ss, António Pais de Sousa, em “Extinção do Arrendamento Predial”, 1969, pg. 136 e ss, Abílio Neto, em “Inquilinato”, 5.ª edição, 1982, pg. 320 e 322, e José Alberto Aragão Seia, em “Arrendamento Urbano”, 7.ª edição, pg. 528 e ss.
Este último, em comentário ao art. 73º do RAU, refere expressamente que “os artigos 8º e 9º (entenda-se da Lei 2.088) tinham sido transcritos, com ligeiras alterações, para o art. 981º do CPC, agora revogado pela al. b) do n.º 1 do art. 3º do Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, pelo que não estão em vigor”.
E reportando-se à tramitação da acção de despejo com o sobredito fundamento refere que ela deve seguir a tramitação prevista no art. 56º/1 do RAU, ou seja, a do processo comum com as alterações previstas no diploma e acrescenta a dado passo:
“Não sendo caso de citação edital a secretaria, distribuída a acção, procederá oficiosamente às diligências necessárias à citação dos réus, nos termos previstos nos n.ºs 1 a 3 do art. 234º do CPC”.
Nenhuma referência fazendo a qualquer tentativa de conciliação.
Ora, foi este formalismo que foi seguido na presente acção, pois que após a sua distribuição, a secretaria procedeu oficiosamente à citação e seguiram-se os demais termos, sem que fosse designada qualquer tentativa de conciliação, que após a revogação do art. 981º do CPC, deixou de ser obrigatória.
Daí que não existia fundamento para anulação do processado com pretenso fundamento em omissão da tentativa de conciliação.
Acrescente-se, todavia, que se tal omissão fosse de considerar como verificada, não integraria a mesma nulidade susceptível de influir no exame e na decisão da causa, por não se tratar de formalidade que lhe deva ser aplicável o regime gravoso da falta de citação, previsto no art. 198º do CPC, por não estar em causa qualquer falta de citação, nem qualquer omissão enquadrável no art. 201º do mesmo Código.
Seria antes uma mera irregularidade processual que deveria ser suprida mediante a designação da diligência em falta.
E como no caso até foi feita uma tentativa de conciliação no início da audiência preliminar, a qual se frustrou, como decorre da respectiva acta e acima se fez constar, sempre estaria sanada omissão que se tivesse verificado em tal matéria.
Mas entende-se que não existe qualquer motivo para considerar obrigatória a realização da aludida tentativa de conciliação, pelo que o douto despacho recorrido tem de ser revogado, a fim de ser substituído por outro a ordenar o prosseguimento dos autos.

Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.
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IV. DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento ao agravo e revoga-se o despacho recorrido, para prosseguimento dos autos.
Sem Custas.
Lisboa, 18 de Junho de 2010.
Fernando Pereira Rodrigues