SIMULAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
HERDEIRO LEGITIMÁRIO
LEGITIMIDADE
Sumário

1. A causa de pedir numa acção fundada em de simulação de negócio jurídico estrutura-se na base de três componentes fundamentais:
a) - a divergência entre a vontade real e a vontade declarada dos contraentes, aquela integrando o negócio dissimulado e esta o negócio simulado;
b) - o acordo ou conluio entre as partes;
c) - a intenção de enganar terceiros.
2. O nº 2 do artigo 242.º estabelece uma norma especial de legitimidade activa quanto aos herdeiros legitimários, restrita às situações em que o negócio simulado tenha sido feito com o intuito de os prejudicar.
3. Assim, a legitimidade dos herdeiros legitimários terá de ser aferida em função do que o autor alegue na petição inicial, em particular quanto ao intuito dos contraentes em prejudicá-los, não necessitando que alegue a existência de um prejuízo efectivo.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

         I – Relatório

1. P… e R…, ambos solteiros, intentaram contra V… (1ª R.), J… e mulher M… (2º R.R.), casados sob o regime de comunhão de adquiridos, V… e mulher A… (3º R.R), acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, alegando, no essencial, que:
- por escritura pública de 21/3/2005, a 1ª R. vendeu aos 2º R.R., em direito de superfície, uma fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao rés-do-chão direito, Bloco L, Lote 26, tipo T quatro, do prédio urbano sito na …, pelo preço de € 110.000,00, preço este ali declarado já recebido;
- porém, as declarações insertas naquela escritura não correspondem à verdade, porquanto tal venda teve apenas por função garantir o pagamento de um empréstimo concedido pelos 2º R.R. à 1ª R.;
- a 1ª R., os 2º R.R. e os A.A. combinaram que o imóvel seria retransmitido a estes últimos;
- entretanto, os 2º R.R. venderam a referida fracção imobiliária aos 3º R.R. e mudaram a fechadura por forma a impedir o uso e fruição dela por parte da 1ª R. e dos A.A., filhos daquela;
- assim, o negócio em causa é nulo, nos termos dos artigos 249.º e 694.º do CC e pode afectar eventuais direitos sucessórios dos A.A., o que lhes confere legitimidade para a presente acção ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 242.º do CC.
Pedem os A.A. que seja declarada a nulidade e ineficácia absoluta do sobredito contrato de compra e venda.
2. Os 2º R.R., J… e M…, bem como os 3º R.R., V… e A…, contestaram a acção, sustentando a sua improcedência e pediram, a título de reconvenção, a condenação dos A.A., com fundamento na violação do seu bom nome e credibilidade social, no que se viesse a liquidar para efeitos de execução de sentença.
3. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador a julgar inadmissíveis as reconvenções deduzidas e, quanto ao mais, a absolver os R.R. da instância por ilegitimidade dos A.A..
4. Inconformados com tal decisão, os A. apelaram dela, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O tribunal “a quo” fez uma errada interpretação do artigo 242.º do CC;
2ª – Não se torna necessário a prova da intenção de prejudicar os herdeiros legitimários do negócio simulado, conforme entendimento do ilustre civilista Carvalho Fernandes.
         Pedem os apelantes que a decisão recorrida seja substituída por outra a julgar a acção procedente.  
         5. Só os 2º R.R. apresentaram contra-alegações, em que sustentam a manutenção do julgado.

         Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

         II – Delimitação do objecto do recurso           

         Face ao teor das conclusões recursórias do apelante, em função das quais se traça o objecto do recurso, nos termos dos artigos 684.º, nº 3, e 685.º-A, nº 1 e 2, do CPC, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei nº 303/ 2007, de 24-8, a única questão a apreciar consiste em ajuizar sobre o pretenso erro de direito imputado à decisão recorrida, no que respeita à ilegitimidade processual dos A.A.  

         III – Do mérito do recurso    
 
A decisão recorrida considerou que a legitimidade dos A.A., na qualidade de herdeiros legitimários para arguírem a nulidade com fundamento em simulação de um negócio jurídico em que não tenham tido intervenção, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 242º do CC, depende da alegação de factos tendentes a comprovar a intenção dos contraentes em prejudicá-los, em relação ao que nada consta da petição inicial.
Por sua vez, os apelantes argumentam que os herdeiros legitimários podem invocar a nulidade em referência, desde que o negócio simulado os prejudique, sem necessidade de demonstrar tal intenção. E acrescentam que o alcance prático do nº 2 do artigo 242.º do CC é pôr os herdeiros legitimários a coberto de acordos falsamente praticados pelo autor da sucessão, em prejuízo da legítima daqueles, tanto mais que nem sempre se tornará fácil a prova dessa intenção.
Vejamos.
Segundo o disposto no artigo 26º, nº 1 e 2, do CPC, no que aqui re-leva, o autor é parte legítima quando tem interesse em contradizer, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção. E, nos termos consignados no nº 3 do mesmo normativo, a legitimidade processual é aferida, na falta de indicação da lei em contrário, pela titularidade das partes na relação material controvertida, tal como vem figurada pelo autor.
Ora, o artigo 240.º do CC preceitua que:
1 – Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2 – O negócio simulado é nulo.
         Assim, a causa de pedir numa acção de simulação estrutura-se na base de três componentes fundamentais[1]:
a) - a divergência entre a vontade real e a vontade declarada dos contraentes, aquela integrando o negócio dissimulado e esta o negócio simulado;
b) - o acordo ou conluio (pactum simulationis) entre as partes;  
            c) - a intenção de enganar terceiros (animus decipiendi).
Relativamente à legitimidade para arguir a simulação, o artigo 242.º do CC estabelece o seguinte:
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 286.º, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.
2 – A nulidade pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.        
A propósito das razões que justificaram o tratamento específico dado aos herdeiros legitimários pelo nº 2 do artigo 242.º acima transcrito, Carvalho Fernandes observa[2] que: … se prendem com a particular natureza dos direitos sucessórios que lhe são reconhecidos, considerando que … a consistência prática do seu direito à legítima poderia ser posta em causa se não lhes fosse reconhecido o poder de, em vida do autor da sucessão, reagir contra actos simulados celebrados com a intenção de os prejudicar. Segundo o mesmo Autor, o que está em causa não é um direito realmente existente, mas a expectativa jurídica que aos herdeiros legitimários a ordem jurídica reconhece, em vista da tutela preventiva dos interesses que a atribuição da quota legitimária visa assegurar. E acrescenta que, por isso, estes terceiros só são admitidos a intervir nos actos simulados do autor da sucessão, em vida deste, quando eles forem praticados com a intenção de os prejudicar, o que constitui uma excepção ao princípio da irrelevância da distinção entre a simulação inocente e fraudulenta, neste domínio. Esclarece o mesmo Autor que não é exigido um prejuízo efectivo, o que, de resto, em vida da sucessão seria difícil, senão impossível, de demonstrar[3].
E ainda, como bem se refere no despacho recorrido, citando o Prof. Mota Pinto[4], a disposição referida (nº 2 do art. 242.º do CC) não deve ser aplicada por analogia à hipótese de o acto simulado, embora sendo fonte de graves prejuízos, não ter sido praticado com o intuito de lesar os legitimários.
         Nesta conformidade, o nº 2 do artigo 242.º estabelece uma norma especial de legitimidade activa quanto aos herdeiros legitimários, mas restrita às situações em que o negócio simulado tenha sido feito com o intuito de os prejudicar.
         Assim sendo, a legitimidade dos herdeiros legitimários terá de ser aferida em função do que o autor alegue na petição inicial, em particular quanto ao intuito dos contraentes em prejudicá-los, não necessitando que alegue a existência de um prejuízo efectivo.
          Ora, da leitura da petição inicial, com relevo neste particular, colhe-se apenas a alegação do art. 14º, segundo a qual “Os A.A. são filhos da 1ª R. e, por isso, o negócio em causa pode afectar eventuais direitos sucessórios. E, do art. 16º consta que as declarações do negócio visaram apenas garantir à 1ª R. que o imóvel em causa seria retransmitido aos A.A. Nada se alega, pois, quanto à intenção dos contraentes de enganar terceiros e muito menos de prejudicar os herdeiros legitimários. Aliás, se a intenção dos A.A. era apenas garantir um empréstimo feito pelos 2º R.R. à 1ª R. e retransmitir mais tarde o bem aos A.A., filhos da 1ª R., nunca aquele intento poderia ser a de prejudicar os herdeiros legitimários.
         Nesta linha de entendimento, tal como vem configurada a pretensão, na petição inicial, os A.A. não se apresentam nela como titulares de um interesse que possa ser afectado por contrato celebrado com intuito de os prejudicar, mas apenas como podendo ser afectados nos seus eventuais direitos sucessórios. Daí que lhes faleça legitimidade para arguir a simulação, na qualidade de herdeiros legitimários.
         Acresce que, enquanto herdeiros em geral, só teriam legitimidade para arguir a simulação, em caso de morte do autor da sucessão, na qualidade de sucessores do simulador, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 242.º. E, enquanto terceiros, não se vislumbra do alegado na petição inicial qualquer afectação, em particular, de interesse directo que releve para os efeitos do disposto no artigo 286.º do CC. De resto, os A.A. nem colocam o problema da sua legitimidade nestes domínios.     
         Termos em que improcedem as razões dos apelantes.
                          
         IV - Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando a decisão recorrida.
As custas do recurso são a cargo dos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.

Lisboa, 22 de Junho de 2010

Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado   
Rosa Maria Ribeiro Coelho
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[1] Vide, por todos, Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 3ª Edição, Universidade Católica Editora, pag. 280-281
[2] Simulação e Tutela de Terceiros, Separata dos Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, Lisboa, 1988, pags. 37 a 40.
[3] Ob. cit. nota de rodapé 42.
[4] Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição actualizada, Coimbra Editora, 1996, pag. 482.