NULIDADE DE SENTENÇA
ERRO DE JULGAMENTO
Sumário

- O artigo 668º nº 1 alínea c) declara nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
- Esta nulidade ocorre quando o raciocínio do juiz aponta num sentido e no entanto decide em sentido oposto ou pelo menos em sentido diferente.
- Tende por vezes a confundir-se com o erro de julgamento.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

  I - RELATÓRIO

C --- intentou acção sumária, contra A --- e mulher, M ---, pedindo que estes fossem condenados a respeitarem o afastamento legal da nova construção em relação ao seu prédio; a procederem à tapagem do vão onde actualmente existe uma janela que deita directamente sobre o seu prédio, tornando-o opaco; a eliminarem definitivamente o acesso ao terraço, de modo a que o mesmo deixe de ser visitável; a demolirem todos os elementos da construção nova que ultrapassam o limite do prédio destes e invadem o espaço aéreo do seu prédio; a criarem as condições necessárias para que o telhado não goteje sobre o seu prédio; a pagarem, a título de sanção pecuniária compulsória, a importância mínima de 50,00 euros, por cada dia de atraso no cumprimento do que vierem a ser condenados no sentido de ser reposta a legalidade e respeito pelo seu direito de propriedade.

Em síntese, alegou que é proprietária de um prédio contíguo com o prédio que é propriedade dos réus. Estes, em meados de 2006, deram início a obras de construção no logradouro do seu prédio, no lado que confina com o prédio da autora, materializadas num novo espaço fechado, para além da volumetria, apresentando as seguintes vicissitudes:  foi edificada sobre o muro de partilha dos prédios em causa; deixou aberta uma janela, que deita directamente sobre o seu prédio; a cobertura ao nível do primeiro andar é constituída por um terraço visitável, com acesso pelo interior da moradia dos réus, sendo servido por um parapeito, com 1, 25 m., que permite a devassa do seu prédio; o terraço em causa é coberto por telhado, cujo beiral ultrapassa em 40 cm o limite do prédio dos réus, e no mesmo não foi colocada qualquer caleira, permitindo que as águas gotejem sobre o seu prédio; foi colocado no alçado poente um acessório de ventilação, que ultrapassa o limite do prédio dos réus;     a obra
desvaloriza o seu prédio, o que decorre da perda de privacidade, como da violação do seu direito de propriedade.

Contestaram os réus alegando, em suma, que há mais de 30 anos que o alçado poente da sua casa assenta sobre o muro de partilha, onde sempre esteve aberta uma janela sobre o prédio da autora. Em 1998, realizaram obras no seu prédio que consistiram na remodelação do alçado poente, nas quais mantiveram as janelas aí existentes e construíram uma varanda visitável, devidamente licenciada e expressamente consentida pela então proprietária do prédio hoje da autora. Em 2006, limitaram-se a substituir os materiais existentes e na cobertura de uma varanda, visitável.
Em reconvenção, alegaram que as obras levadas a efeito no prédio da autora pela anterior proprietária, fazem com que o prédio dos réus sofra constantemente com a acção das águas provenientes da cobertura do prédio da autora. Os trabalhos de limpeza da humidade provocada pela obra existente no prédio da autora importam para os réus num custo anual de 300,00 euros
A autora edificou uma chaminé junto ao seu prédio, sem qualquer licenciamento, que emite constantemente cheiros e fumos, que incomodam os réus.
As obras efectuadas custaram 25.000,00 euros, e a sua demolição obrigará a despender a quantia de 50.000, 00 euros, com inerentes incómodos, desvalorizando o prédio em 20.000,00 euros.
Terminam pedindo que, caso algum dos pedidos formulados pela autora proceda, esta seja seja condenada a pagar-lhes 75.000,00 euros, sendo 70.000,00 euros a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos e 5.000,00 euros, a título de indemnização pelos danos morais sofridos. Mais pedem que a autora seja condenada a, no prazo de 30 dias, elevar a saída da chaminé a pelo menos 0,50 cm acima da cobertura do seu prédio.

A autora respondeu, pugnando pela improcedência da reconvenção.

Foi proferida sentença que:
a) Julgou a acção parcialmente e, condenou os réus:
- a taparem o vão onde existe uma janela que deita directamente sobre o prédio da autora;
- a demolirem a varanda ou a elevar o respectivo parapeito para a altura mínima de um metro e meio;
- a retirarem o acessório de ventilação que ultrapassa o limite do seu prédio e invade o espaço aéreo do prédio da autora;
- a recuarem o beiral do telhado da varanda até meio metro de distância do limite do seu prédio ou a recuarem o beiral, colocando na sua extremidade e antes do limite do seu prédio, um algeroz que conduza as águas;
 b) Julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional e condenou a autora a elevar a saída da chaminé, a pelo menos 0,50 cm acima da cobertura do prédio dos réus.
 
Não se conformando com a douta sentença, dela recorreram os réus, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª – Deve a douta sentença ser alterada no sentido de serem os réus absolvidos do pedido de fechar o vão da janela, uma vez que, quanto a este ponto da decisão, existe oposição entre esta e os seus fundamentos, o que constitui causa de nulidade da sentença, atento ao disposto na alínea c) do número 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil.
2ª - Caso não proceda a conclusão anterior, e sob pena de violação do disposto no nº 3 do artigo 3°, no nº 3 do artigo 265° e do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 266° todos do Código de Processo Civil, deverá ser revogada a douta sentença quanto à condenação a):i, e serem aditados à base instrutória, seja por iniciativa do tribunal, seja por notificação a efectuar para o efeito aos réus e sempre ouvida a autora, os factos relevantes para aferir de que essas vistas foram exercidas durante pelo menos 20 anos, com a convicção de estarem os réus a exercer uma imposição ou restrição sobre o prédio da autora, repetindo-se o julgamento apenas quanto a esses novos factos.
3ª - Deve a douta sentença ser revogada na parte em que condenou os réus a demolir a varanda ou a elevar o respectivo parapeito para a altura mínima de um metro e meio, atendendo a que nesta parte existe igualmente oposição entre a decisão e os seus fundamentos, o que constitui causa de nulidade da sentença, atendo ao disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil, para além de violação do estatuído no nº 2 do artigo 1360° do Código Civil.

A parte contrária respondeu pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A- Fundamentação de facto
Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:
1º - Está descrito na Conservatória do Registo Predial o prédio urbano, composto por dois pavimentos e logradouro, sendo que a propriedade do mesmo, adquirida por partilha por morte de L ---, ocorrida em 30 de Agosto de 2007, está aí registada, desde 23.05.2008, a favor da autora (doc. fls. 6 e 69) - (A).
2º - Por escritura pública, outorgada no dia 18 de Setembro de 1988, no antigo Primeiro Cartório, J --- (...) declarou ser proprietária do prédio referido em A) e, mediante o preço de trezentos contos, vendê-lo a L --- (...) e a C --- (...), venda que é feita à primeira no respectivo usufruto (...), e à segunda na respectiva propriedade nua ou simples (...) -  (doc. fls. 64 a 68).
3º - L --- faleceu no dia 30 de Agosto de 2007, no estado de viúva de J --- - (doc. fls. 69).
4º - O prédio referido em 2º confronta a leste com o prédio urbano propriedade dos réus - (B).
5º - Por documento escrito, datado de 2 de Julho de 1996, L --- declarou que autoriza a M --- (...), residente à Rua, a ampliar a sua moradia com mais um piso e a implantar a mesma a menos de três metros da partilha poente dos seus terrenos - (doc. fls. 41) -  (C).
6º - Desde há cerca de 30 anos que o alçado poente da casa dos réus assenta sobre o muro de partilha - (9°).
7º - E que existem várias janelas no piso térreo do prédio dos réus que sempre deitaram directamente sobre o prédio da autora – (10º).
 8º - Em 1998, os réus executaram e concluíram obras na sua casa que resultaram na remodelação do alçado poente sobre a partilha, mantendo as janelas que já então deitavam directamente sobre o prédio da autora e na abertura de uma varanda visitável no piso superior – (11°).
9º - Em consequência das obras referidas em 8º, os réus ergueram, em alvenaria, um espaço, que serve de lavandaria, que confina com o prédio da autora, substituindo um outro aí existente, com a volumetria de 1 metro de largura, 4 metros de comprimento e 6, 6 de metros de altura desde a base até ao telhado de cobertura - (2°).
10º - O alçado poente da obra referida em 9º assenta directamente sobre o muro de partilha do prédio daqueles, sem que tenha sido deixado qualquer afastamento em relação ao prédio referido em 1º - (3°).
11º - Nesse mesmo alçado, ao nível do piso inferior, existe uma janela de vidro, com cerca de 3, 5 m de comprimento e 1, 5 m de altura, que deita directamente sobre o prédio referido em 1º, sendo que, no lado que confina com o prédio da autora, o prédio dos réus é delimitado por um muro, com cerca de 1 metro de altura, que antecede a construção referida em 9º - (4°).
12º - As obras em causa foram consentidas por L ---, usufrutuária do prédio referido em 1º - (12°).
13º - Esta nunca se opôs a que o alçado poente do prédio dos réus estivesse assente sobre o muro de partilha, nem que tais obras se realizassem, nem nunca pediu àqueles que procedessem à sua demolição - (13°).
14º - Em meados de 2006, os réus executaram obras de remodelação do seu prédio, incluindo no seu logradouro na parte que confina com o prédio da autora - (1°).
15º - A cobertura do piso referido em 11º é constituída por um terraço visitável, com acesso pelo interior da moradia dos réus, servido por um parapeito, com cerca de 1, 25 m de altura, permitindo aos que a ele acedem devassar o prédio da autora - (5°).
16º - O beiral do telhado de cobertura da construção executada pelos réus ultrapassa em cerca de 20 cm o limite do respectivo prédio, invadindo nessa mesma medida o espaço aéreo correspondente ao prédio referido em 1º - (6°).
17º - Devido ao facto desse beiral ultrapassar o limite do prédio dos réus, o mesmo goteja sobre o prédio da autora - (7°).
18º - No alçado poente da construção efectuada pelos réus, estes colocaram um acessório de ventilação, que ultrapassa o limite do prédio daqueles - (8°).
19º - No prédio referido em 1º existe uma chaminé a cerca de 3 metros do muro de partilha com o prédio dos réus - (18°).
20º - A qual não excede em altura a telha do seu prédio e do prédio dos réus - (19°).
21º - Os fumos e os cheiros dessa chaminé incomodam, por vezes, os réus - (20°).
22º - O trabalho a executar com as demolições e reconstruções pedidas pela autora implicarão para o réu um custo que rondará os 7.500,00 euros - (21°).

B- Fundamentação de direito

De acordo com as conclusões das alegações de recurso, a solução do caso sub judice passa por desenvolver e contextualizar a análise das seguintes questões:
- nulidade da sentença.
- factos a aditar à base instrutória.
NULIDADE DA SENTENÇA.
 
Defendem os réus que a sentença é nula, nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 668° do C.P.Civil, por existir oposição entre esta e os seus fundamentos, devendo ser alterada no sentido de serem os réus absolvidos do pedido de fechar o vão da janela.
 
O artigo 668º nº 1 alínea c) declara nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Esta nulidade ocorre quando o raciocínio do juiz aponta num sentido e no entanto decide em sentido oposto ou pelo menos em sentido diferente[1].
Tende por vezes a confundir-se com o erro de julgamento.
Anselmo de Castro[2] considera que a alínea c) nem tem autonomia em relação à alínea b) ( falta de fundamentação de facto e de direito).
E em relação à alínea, sublinha que só existe nulidade quando falta em absoluto a fundamentação.
Não faltando em absoluto, haverá fundamentação errada, que contende apenas com o valor lógico da sentença, sujeitando-a a alteração ou revogação em recurso, mas não produzindo nulidade.
A sentença não padece do apontado vício.
Vejamos.
Ficou provada a seguinte matéria de facto:
- O alçado poente da obra referida em 9º assenta directamente sobre o muro de partilha do prédio daqueles, sem que tenha sido deixado qualquer afastamento em relação ao prédio referido em 1º - resposta ao quesito 3°, correspondente ao alegado pela autora nos artigos 6º e 7º da petição inicial.
- Nesse mesmo alçado, ao nível do piso inferior, existe uma janela de vidro, com cerca de 3, 5 m de comprimento e 1, 5 m de altura, que deita directamente sobre o prédio referido em 1º, sendo que, no lado que confina com o prédio da autora, o prédio dos réus é delimitado por um muro, com cerca de 1 metro de altura, que antecede a construção referida em 9º - resposta ao quesito 4°, que corresponde à matéria alegada pela autora nos artigo 9º e 10º da petição inicial).
A situação factual apurada enquadra-se no disposto no nº 1 do artigo 1360º do Código Civil, segundo o qual, “ o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio”.
Foi neste enquadramento jurídico que a douta sentença considerou que se impõe o fecho da janela de vidro, que permite que o prédio da autora seja devassado pelos réus – Cfr. fls 195.
Por isso, não se descortina a apontada oposição entre os fundamentos e a decisão, improcedendo, deste modo, a conclusão primeira.

A outra nulidade invocada na conclusão terceira diz respeito à condenação dos réus na demolição da varanda ou a elevar o respectivo parapeito para a altura mínima de um metro e meio. E o argumento é o mesmo, ou seja, a oposição entre a decisão e os seus fundamentos, o que é gerador da nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 668° do C. P. Civil, para além de violação do estatuído no nº 2 do artigo 1360° do Código Civil.

 Sobre este prisma mostra-se provada a seguinte matéria de facto:
- A cobertura do piso referido em 11º é constituída por um terraço visitável, com acesso pelo interior da moradia dos réus, servido por um parapeito, com cerca de 1, 25 m de altura, permitindo aos que a ele acedem devassar o prédio da autora – resposta ao quesito 5°, que corresponde à matéria alegada pela autora nos artigos 13º, 14º e 15º da petição inicial.
 
A situação factual apurada enquadra-se no disposto no nº 2 do artigo 1360º do Código Civil, segundo o qual, “ igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela”.
Foi com base neste preceito que a douta sentença condenou os réus, tendo considerado, como alternativa à demolição da varanda, a elevação do parapeito para um metro e meio, “salvaguardando, desta forma, a restrição legal do artigo 1360º nº 2 do Código Civil e as relações de vizinhança”.
Não se verifica a apontada oposição entre os fundamentos e a decisão, improcedendo, deste modo, a conclusão terceira.

Finalmente, a apreciação da conclusão segunda.
Entendem os réus que, caso não proceda a conclusão anterior, devem ser aditados à base instrutória os factos relevantes para aferir de que essas vistas foram exercidas durante pelo menos 20 anos, com a convicção de estarem os réus a exercer uma imposição ou restrição sobre o prédio da autora, repetindo-se o julgamento apenas quanto a esses novos factos.
Efectivamente, ficou provado que, desde há cerca de 30 anos que o alçado poente da casa dos réus assenta sobre o muro de partilha -  resposta ao quesito 9°, que corresponde ao alegado pelos réus no artigo 5º da contestação.
Mais se provou que em 1998, os réus executaram e concluíram obras na sua casa que resultaram na remodelação do alçado poente sobre a partilha, mantendo as janelas que já então deitavam directamente sobre o prédio da autora e na abertura de uma varanda visitável no piso superior – resposta ao quesito 11°, que corresponde ao alegado pelos réus no artigo 7º da contestação.
O aditamento à base instrutória pretendido pelos réus, é impossível de concretizar, pois não assenta em factos alegados na contestação ou na reconvenção que permitam concluir no sentido de que os réus pretendem prevalecer-se da servidão de vistas por usucapião.
E aqueles factos provados (quesitos 9º e 11º) também não permitem igual conclusão.
Por isso, improcede a conclusão segunda, que não merece maiores considerações.
 
SÍNTESE CONCLUSIVA
- O artigo 668º nº 1 alínea c) declara nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
- Esta nulidade ocorre quando o raciocínio do juiz aponta num sentido e no entanto decide em sentido oposto ou pelo menos em sentido diferente.
- Tende por vezes a confundir-se com o erro de julgamento.

III - DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 24 de Junho de 2010

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes
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[1] Alberto dos Reis, in C.P.Civil Anotado, vol, V, pág 142 e A. Varela, J.M. Bezerra e S. e Nora, in Manual de Processo Civil, 1984, pág. 671.
[2] Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina 1982, pág 141 e 142.